Day: outubro 2, 2020
El País: Trump e Melania testam positivo para covid-19 e entram em quarentena
Doença joga gasolina na incendiária campanha presidencial e pode colocar a política americana de pernas para o ar caso o vice-presidente ou Joe Biden, seu adversário, tenham sido contaminados
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou pelo Twitter na madrugada desta sexta-feira que ele e sua mulher, Melania, receberam um diagnóstico de covid-19 e por isso entrarão em quarentena. “Sairemos disto JUNTOS”, escreveu o mandatário. A notícia representa mais um barril de gasolina sendo atirado a uma campanha eleitoral tensa, quando faltam apenas 33 dias para que o eleitorado norte-americano decida quem será o ocupante da Casa Branca nos próximos quatro anos.
Trump, de 74 anos, decidiu fazer exame de covid-19 nesta quinta, depois que Hope Hicks, uma de suas assessoras mais próximas, testou positivo no exame para o coronavírus, segundo noticiou inicialmente a Bloomberg News e confirmou depois o próprio mandatário ao canal Fox. Hicks, de 31 anos, acompanhou Trump no Air Force One na viagem a Cleveland (Ohio), onde ele participou do primeiro debate televisivo contra o seu rival democrata, Joe Biden. Ela também tinha estado com o republicano na quarta-feira em um comício em Minnesota. Neste sábado sua agenda incluía um ato na Pensilvânia.
O resultado positivo de Trump ocorre num momento em que o presidente vinha pisando no acelerador de sua campanha para tentar reverter as pesquisas que dão vantagem a Biden, com quem protagonizou um feroz debate na terça-feira, quando o republicano foi repetidamente repreendido por interromper o rival. Ambos ficaram a menos de quatro metros de distância, e tudo indica que o candidato democrata e sua equipe mais próxima também devem se submeter ao exame.
Conforme informou o presidente norte-americano em uma entrevista ao canal Fox, tanto ele como sua esposa, Melania, tinham decidido se submeter ao exame do coronavírus depois da notícia sobre a colaboradora dele. “[Hicks] deu positivo”, afirmou Trump ao canal. “Acabo de fazer um teste e veremos o que acontece.”
O médico oficial da Casa Branca, Sean Conley, afirmou em nota que o presidente “se encontra bem” e continuará “cumprindo suas funções”. Segundo ele, tanto Trump quanto a primeira-dama se encontram em bom estado “por enquanto” e planejam passar sua convalescença na ala residencial da Casa Branca. Na opinião de Conley, Trump tem condições de continuar trabalhando “sem interrupção” enquanto se recupera. Com uma quarentena à vista, a campanha entra em um terreno totalmente desconhecido até agora, como outros tantos episódios vividos neste período eleitoral de 2020.
Um comentarista médico afirmou no canal Fox que, na faixa etária de Trump, o índice de sobrevivência da covid-19 é de 96%, mas que a obesidade e a hipertensão aumentam o risco. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, bem mais jovem que Trump (tem 56 anos), teve covid e ficou em estado grave no final de março. O atual cenário nos EUA leva a uma série de especulações marcadas por questões legais. Se Trump está contagiado, é provável que o mesmo ocorra com seu vice, Mike Pence. Caso ambos tenham que ser afastados, o próximo nome na cadeia sucessória é a presidente da Câmara dos Representantes (deputados), a democrata Nancy Pelosi, inimiga jurada dos republicanos.
Apesar dos 200.000 mortos e mais de sete milhões de casos confirmados nos EUA, o presidente manteve eventos e comícios em que admiradores dele se aglomeram para cumprimentá-lo e aclamá-lo. Na grande maioria de seus atos, Trump se gabou de não usar máscara e se riu de seu rival por fazê-lo. A mesma política antimáscara vigora na Ala Oeste da Casa Branca e nas viagens que o mandatário vinha fazendo pelos Estados que serão mais decisivos nas eleições de 3 de novembro.
Hicks é um dos cinco membros destacados do Governo Trump que deram positivo para Covid-19 e que despacham regularmente com o presidente. Assim como o magnata republicano, ela não costuma usar máscara em suas aparições públicas. Durante a viagem da assessora a Cleveland com Trump, entre 20 e 30 pessoas viajavam no avião presidencial, incluindo funcionários da Casa Branca e familiares do presidente.
Sem máscaras
Entretanto, na noite da terça-feira, durante o debate, a família de Trump e amigos próximos – a presença de público foi muito limitada – apareciam na tela sem usar máscaras que protegessem a boca e o nariz, ao contrário da mulher de Biden, que estava com o acessório durante os 90 minutos que durou o caótico e truculento encontro.
Ex-diretora de comunicação da Casa Branca e assessora de imprensa durante a campanha presidencial de seu chefe em 2016, Hicks retornou à Administração Trump em fevereiro passado para trabalhar ombro a ombro com um dos mais próximos assessores de Trump, Jared Kushner. A millennial de Connecticut era e é uma das pessoas mais fiéis a Donald Trump, e sua discrição lhe permitiu sobreviver em seu momento ao tumulto permanente que espreita o presidente. Não tem conta no Twitter, e a do Instagram é privada.
Hicks havia deixado a Casa Branca em 2018 para ocupar um cargo de direção no escritório de comunicações da corporação Fox. Modelo de profissão, a jovem carecia de qualquer experiência em política até entrar para a campanha de Trump em 2016. Antes desse momento que mudou sua vida, a jovem trabalhou para a filha do presidente, Ivanka Trump.Adere a
Juan Arias: A corrupção cria um novo genocídio no Brasil
Os abutres estão se aproveitando da dor da pandemia para engordar suas barrigas. Quantas vidas poderiam ter sido salvas com esse dinheiro?
Não é só o coronavírus que está criando um genocídio no Brasil, pecado do qual o próprio chefe de Estado, Jair Bolsonaro, é acusado por seu comportamento negacionista diante da epidemia. Outro genocídio não menos importante é o da corrupção que infestou todas as instituições do Estado, da política à Justiça, começando pelas próprias igrejas.
Os abutres estão se aproveitando da dor da pandemia para engordar suas barrigas. Quantas vidas poderiam ter sido salvas com esse dinheiro? A corrupção cria morte e dor como um vírus da alma. Quem se apropria do dinheiro público dedicado a criar vida é um genocida.
Dias atrás vi se encherem de lágrimas os olhos de uma mãe de duas meninas, desempregada, ao receber uma cesta básica. E veio aos meus olhos, como um pesadelo dantesco, a fila de políticos, empresários, juízes e até religiosos em uma dança de morte de milhões roubados dos pobres.
Ao mesmo tempo, com dor, vejo aflorarem os pecados dos maiores responsáveis pela Lava Jato chamados a exigir justiça. Vejo a dança de alegria dos corruptos diante do colapso da cruzada contra a corrupção e não sei qual crime é pior.
A verdade é que os pecados daqueles que foram aclamados por terem tido a coragem de desafiar os corruptos poderosos não podem servir de detergente para limpar a sujeira dos corruptos.
É preciso dizê-lo em voz alta: a corrupção que move milhões e até bilhões em um país onde correm rios de dor de milhões de pobres que sofrem porque não podem alimentar seus filhos deve ser punida como assassinato e genocídio.
E são sempre os mesmos, na pandemia e na corrupção, os que mais sofrem e morrem: os negros e afrodescendentes herdeiros da escravidão; os que cresceram sem uma educação que os preparasse para a vida, os indígenas cada vez mais massacrados, os idosos e os doentes incapazes de sobreviver por conta própria.
Durante a pandemia, dois demônios se juntaram no Brasil para criar morte e dor, o do vírus e o da corrupção nascida no próprio coração da tragédia. Um trabalhador que recebe salário mínimo me perguntou: como podem ter alma aqueles que roubam até o dinheiro destinado a salvar vidas? Fiquei me perguntando como podem dormir tranquilos.
E não apenas não parecem ter remorso, mas dançam felizes vendo desabar alguns dos pilares da luta contra a corrupção. Na verdade, observar hoje o regozijo de alguns políticos sobre os quais recai até uma dúzia de processos de corrupção e que continuam em liberdade por sua cumplicidade com magistrados e procuradores ou por suas chantagens a eles é algo que não deixa de causar indignação e repulsa.
Este Brasil que a corrupção está corroendo não é aquele com que os brasileiros sonharam e pelo qual se empenharam e lutaram —um país onde ninguém passasse necessidade, pois é atravessado por rios de riquezas naturais. E que, além disso, tem um povo criativo e capaz, se o deixarem, de produzir riquezas para que todos possam ter o que precisam sem ter de ver a fome aflorar nos olhos de seus filhos.
Sou exagerado? Não. Ainda fico aquém porque nem eu nem a maioria dos meus leitores conhecemos por dentro as entranhas dos dramas da pobreza e até da miséria de milhões de pessoas expostas ao mesmo tempo à violência cruzada do crime organizado e da ausência do Estado.
E enquanto isso, onde estão as vozes dos justos que não ouvimos seus gritos de condenação a tanto genocídio? Onde está aquele punhado de políticos e líderes decentes e não corruptos que não levantam a voz? Onde estão aqueles que foram escolhidos para fazer justiça e defender os mais fracos e que vivem de mãos dadas com os outros poderosos, defendendo mutuamente seus privilégios?
Às vezes me vêm à memória as vozes do Deus da Bíblia quando, na cidade corrupta de Sodoma e Gomorra, não encontrava um único justo capaz de salvar os demais. Ou me lembra o lamento daquele profeta dos descartados e abandonados à própria sorte quando dizia: “Tenho compaixão por eles porque são como ovelhas sem pastor”. Onde estão no Brasil os pastores, os governantes, os políticos, os juízes e até os religiosos capazes de proteger os mais expostos sempre à patada dos lobos?
Se os pecados da Lava Jato não redimem os corruptos, tampouco uma vitória nas urnas autoriza a tirania e a perseguição aos diferentes e mais expostos a serem escravizados. A classe brasileira que está em boa situação, a que nunca passou necessidades e pôde até dar caprichos aos seus filhos, os políticos e juízes corruptos, nunca compreenderá a imensidão da dor acumulada no coração dos que trabalham e não conseguem nem uma vida digna.
É triste para o Brasil, como país, se distinguir por ser um dos países mais corruptos do mundo ao mesmo tempo em que é um dos povos mais religiosos do planeta.
Os evangelhos cristãos dizem que o demônio, para tentar Jesus, o levou ao alto da cidade e, mostrando-lhe todos os reinos a seus pés, lhe disse: “Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares”; o Brasil aparece hoje rendido à tentação dos demônios da corrupção diante dos quais todas as instituições parecem de joelhos.
E o pior e o mais sarcástico é que este é um país que chegou a ser invejado de fora porque se dizia que “Deus era brasileiro”. Será que voltará a ser algum dia? Recursos não faltam. O que falta é decência aos responsáveis pelo seu destino.
Vinicius Torres Freire: Governistas sugerem alta de imposto, mas Bolsonaro sabe sobreviver na sua selva
Certo é que presidente mostra capacidade de sobrevivência, favorecido pela inexistência de oposição
Bancar o Renda Cidadã com aumento de imposto é de fato uma conversa entre deputados governistas. Alguns ainda parecem não entender que o governo apenas poderia gastar essa receita extra caso fosse alterado o teto de gastos. A pergunta mais importante, no entanto, é se Jair Bolsonaro arrumaria de fato alguma dessas encrencas.
Pode sair aumento de imposto? Ou pode se armar outro arranjo com o Congresso? Por exemplo, uma extensão do estado de calamidade casado com “reformas” grandes de cortes de despesas, uma gambiarra de alto nível, por assim dizer. Assim, seria possível pagar algum auxílio emergencial a mais, haveria sobra de dinheiro advinda de arrochos (sobre servidores, por exemplo) e algum tempo para arrumar financiamento permanente para um Renda Cidadã. Até mesmo neste governo, algum pouco de organização política poderia parir uma solução dessa espécie.
Na política, Bolsonaro se desdiz sem vergonha, o que tem saído de graça. Na economia, apesar dos arreganhos por si só daninhos, não chegou a tomar ou patrocinar nenhuma decisão final contra o teto ou a favor de aumento de impostos. É omisso, inepto ou avacalha projetos de “reformas” política e socialmente mais sensíveis, mas até agora não ultrapassou de fato o sinal vermelho dos donos do dinheiro grosso, apesar da baderna financeira que seu governo causa.
Na política, é diferente. Bolsonaro escorraçou o lavajatismo, aliou-se à “velha política”, montou bancada mínima para evitar impeachment e interrompeu os comícios golpistas e os ataques ao Supremo, com quem negocia acordão ou acordões. Limitou (mas não cassou) as graças concedidas a “terrivelmente evangélicos”, aos “ideológicos” ainda mais lunáticos e aos adeptos da propaganda do “gabinete do ódio”, até porque tem contas a pagar no Congresso e no Supremo.
Parou também de vociferar naquelas saidinhas do Alvorada. Agora faz comício para inaugurar bica d’água, caminho de vaca e pedra fundamental de ponte.
É verdade que Bolsonaro, Paulo Guedes e o governismo são capazes de dar tiros no pé tais como o vexame ridículo, contraproducente e alienado da pedalada dos precatórios. É verdade também que, dados os vetos de Bolsonaro a cortes de gastos sociais e as ideias de Guedes, restaria nenhuma alternativa a não ser gambiarra, mexida de fato no teto ou uma negociação mais complicada no Congresso (trocar uma extensão da calamidade por grandes “reformas”).
Dados os estranhamentos entre governo e centrão, de um lado, e Rodrigo Maia mais partes de DEM, MDB e PSDB, essa negociação complicada parece remota. Por ora.
Essa novela toda parece ainda mais tediosa a pessoas normais, mas é preciso repetir: desse rolo dependem a fome de milhões e as taxas de juros e o dólar que podem ou não encrencar o crescimento. Do ponto de vista do ocupante da cadeira de presidente, desse rolo depende parte relevante de sua popularidade. O Congresso, de resto, vai ficar parado até acabar o auxílio?
Outras incertezas obscurecem o caminho da solução, claro: o ritmo da economia no final do ano, a possibilidade de vacina, de recuo menos vagaroso da epidemia ou a disputa pelo comando do Congresso em 2021 (conflito que não é besteirinha: foi o começo do fim de Dilma Rousseff, em 2015). Certo é que Bolsonaro tem mostrado capacidade de sobrevivência na selva que ele mesmo cria, se ajeitando politicamente, favorecido ainda pela inexistência de oposição. Não é fácil descartar a hipótese que faça um acordão que o beneficie também nessa história do Renda Cidadã.
Celso Ming: O capitão parece sem rumo
O presidente Jair Bolsonaro não sabe para onde quer ir ou está perdido
Basta alinhar um fato atrás do outro para concluir que o capitão Bolsonaro ou não sabe o que quer ou está perdido.
Para o dia 25 de agosto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, havia agendado o que chamou de “big bang”, aquilo que seria um ato de recriação da economia. Haveria o anúncio do Renda Brasil, um avanço sobre o Bolsa Família, que distribuiria mais renda. O ministro Paulo Guedes avisou que teria como principal fonte orçamentária a extinção de programas sociais pouco eficazes: o abono salarial, que concede um salário mínimo por ano para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos por mês; o seguro-defeso, distribuído aos pescadores artesanais nos períodos de desova dos peixes, em que teriam de permanecer inativos; e o próprio Bolsa Família, cujos recursos seriam incorporados ao novo programa.
O presidente Bolsonaro fulminou a proposta. Disse que “não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos”. O “big bang” não passou de um estourinho de pipoca dentro da panela.
Do “big bang” fariam parte duas outras providências: a desindexação total da economia (inexistência de reajustes), que alcançaria salários, aposentadorias e pensões; e o anúncio de um programa estimulador de empregos, a desoneração dos encargos sociais, a que estão obrigados os empregadores. A arrecadação que deixaria de ser obtida com a redução dos encargos sociais seria coberta com um novo imposto, que incidiria sobre transações financeiras, em quase nada diferente da extinta CPMF.
Às críticas a essa nova CPMF o ministro Paulo Guedes disse que seria “a troca de um imposto cruel por um feioso”. Se esse imposto cria distorções, argumenta ele, mais e maiores distorções são produzidas pelos encargos sociais, que impedem a criação de postos de trabalho, estimulam a informalidade e semeiam concorrência desleal pelas empresas que pagam salários “por fora” e não recolhem os encargos.
Há três dias, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), avisou que não havia acordo político para a nova CPMF e que, por isso, o projeto não teria condições de tramitação no Congresso. A proposta vai outra vez para a gaveta e, com isso, fica para depois a desoneração pretendida.
Dia 15 de setembro, o secretário especial do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, avisou que a cobertura para o programa Renda Brasil viria do congelamento de aposentadorias e pensões, por dois anos. Não era nada do que não tivesse sido combinado anteriormente, seja porque Paulo Guedes já havia adiantado essa desindexação por ocasião do anúncio do “big bang”, seja porque Waldery não é o tipo da autoridade que fala por conta própria.
Mas o presidente Bolsonaro desconsiderou avaliações técnicas anteriores, desautorizou pelas redes sociais o secretário Waldery e advertiu que levantaria o cartão vermelho para autoridades do governo que defendessem propostas desse tipo. Waldery recolheu-se à toca, à espera do que viesse, e não se falou mais em desindexação de salários e aposentadorias.
Na última segunda-feira, o mesmo líder do governo, Ricardo Barros, fez um comunicado na presença do presidente Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes – portanto anunciava algo previamente negociado –, de que o Renda Brasil seria rebatizado de Renda Cidadã e que seria financiado com recursos do adiamento do pagamento das dívidas precatórias e com parcela do Fundeb, cujo nome e sobrenome é Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação.
Depois do caos produzido no mercado com a perspectiva da caracterização de um calote e o uso para outra finalidade de recursos liberados do teto dos gastos, nesta quarta-feira o ministro Paulo Guedes, aparentemente por ordem superior, desdisse o que defendia antes. Abateu a tiros a ideia do adiamento do pagamento dos precatórios, que já havia sido determinado pela Justiça, para lastrear o Renda Cidadã. Outra vez, o anúncio oficial já não valeu para nada.
O presidente Bolsonaro vem repetindo o princípio que aprendeu no Exército de que “pior do que uma decisão ruim é a indecisão”. Mas tem coisa pior do que isso. São decisões tomadas e, repetidamente abandonadas. Ele mesmo autoriza o piloto a mudar a rota do barco e, logo depois, volta atrás e ainda recrimina o piloto por ter obedecido a sua ordem. No Estado Maior deve haver um nome para isso.
Importa menos a direção dos ventos. Basta ajustar as velas do barco. Mas Bolsonaro não sabe para onde quer ir e os marinheiros não sabem como ajustar as velas.
Claudia Safatle: Deixa como está para ver como é que fica
Discussão sobre novo programa social do governo Bolsonaro deve ficar para depois das eleições municipais
Depois da grande confusão patrocinada pelo governo e pelas lideranças políticas em torno do financiamento do programa de renda básica por uma limitação do pagamento de precatórios, a ideia que ocorre à equipe econômica, agora, é: “Vamos deixar como está pra ver como é que fica,” sintetizou uma fonte qualificada.
Isso porque o presidente Jair Bolsonaro está focado nas eleições e tem como um objetivo político superar o prestígio do ex-presidente Lula no Nordeste. Passadas as eleições, volta-se a discutir como financiar o Renda Cidadã ou Renda Brasil, que o governo quer criar para ter sua marca, advogam assessores do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Na quarta-feira, Guedes jogou um balde de água fria na pretensão de financiar o programa social com dinheiro economizado com o não pagamento de precatórios. A proposta de dar um calote nos credores do Estado foi anunciada em entrevista coletiva no Palácio da Alvorada na segunda-feira e soou mais como um “gigantesco bode na sala” do que uma real alternativa para o novo programa de renda. A reação do mercado foi péssima e o pai da ideia desapareceu.
Se depender da área econômica, agora, nenhuma decisão será tomada no calor da campanha eleitoral. Resolvida essa questão política, a expectativa predominante é de Guedes ainda tentar voltar à proposição original do Renda Brasil, que seria criado com a fusão de 27 programas sociais dispersos (abono salarial, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, entre outros).
Isso, porém, não reúne uma massa de recursos suficientes para financiar as 14 milhões de famílias que já recebem o Bolsa Família e mais umas 20 milhões de pessoas colhidas entre os mais de 60 milhões de brasileiros que estão recebendo o auxílio emergencial. A ideia seria de garantir uma renda de cerca de R$ 300 por mês.
Aliás, debate-se um programa social que, a rigor, ninguém conhece e nunca viu uma folha da sua concepção. O ministro da Economia diz que o programa do Renda Brasil, ou Renda Cidadã, está nas mãos de Onyx Lorenzoni, ministro da Cidadania. Não se tem informações básicas sobre qual o publico-alvo do novo programa, quantas pessoas deverão ser beneficiadas por uma renda mínima e quanto isso custará ao Tesouro.
A proposta de Guedes é reforçar a verba para o Renda Brasil com mais cerca de R$ 40 bilhões. Dinheiro que seria tirado da classe média que declara Imposto de Renda e se beneficia de deduções de gastos com saúde e educação, que devem ser abolidas. Quanto à tributação dos ricos e muito ricos, Guedes acena apenas com o Imposto sobre Transações Digitais.
“Esse é um programa conceitualmente íntegro”, costuma dizer o ministro, referindo-se à concepção de financiamento da renda básica. O problema é que Bolsonaro não aceitou a ideia de fusão de quase três dezenas de programas sociais para bancar o Renda Brasil sob o argumento que isso significaria “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
O ministro da Economia, porém, acredita que poderá voltar à carga e persuadir o presidente a apoiá-lo em mais essa empreitada. Afinal, se ele já não é mais o “posto Ipiranga”, está confiante de que ainda detém uns 80% a 85% de apoio de Bolsonaro.
Da profusão de ideias anunciadas e retiradas de cena sobrou um pente-fino que o governo pretende fazer na crescente conta dos precatórios. Pelo ministro da Economia, ele paga os valores menores e vai administrando, na boca do caixa, os débitos de maior valor. Como se trata de dívida transitada em julgado, não cabe mais recurso a não ser quitá-la.
O relator da PEC do Pacto Federativo, senador Marcio Bittar (MDB-AC), abrigou no seu substitutivo a limitação dos pagamentos de precatórios a 2% da receita corrente líquida anual. Cifra equivalente a R$ 16,1 bilhões para quitar uma conta de precatórios de praticamente R$ 55 bilhões no próximo ano.
Na reta final da preparação do substitutivo, o senador tirou da PEC os “3D”, defendidos pela área econômica, na proposta de Orçamento: desindexar, desvincular e desobrigar. Ou seja, descarimbar as receitas para devolver ao Congresso a função de decidir sobre a destinação do dinheiro público e dar ao Executivo margem de manobra para gerir o Orçamento da União.
Ideia tão cara ao ministro da Economia, os “3D” teriam como objetivo eliminar correções automáticas de valores e “vícios corporativos” que reservam para grupos específicos parcelas do Orçamento.
Com a desindexação seria possível reforçar o caixa da União e não comprometer o teto de gasto.
Sem os “3D” e com a criação do Imposto sobre Transações Digitais suspensa, o programa econômico de Guedes fica ferido de morte.
O ministro, porém, acredita que o relator da PEC 186 e do Orçamento para 2021 está com duas versões de substitutivo. Em uma delas não constam a desindexação, desvinculação e desobrigação do Orçamento. Mas haveria uma outra em que ele manteve os “3D”. Assim, Guedes ainda vê uma chance de a proposta vingar.
O bate-cabeça do governo na questão fiscal tem um alto preço que deve ser visto e compreendido pelo presidente da República. A taxa Selic (juros básicos da economia), que hoje está em 2% ao ano, o nível mais baixo da série histórica, está sob elevado risco de ter que ser aumentada. Os juros futuros subiram substancialmente e estão, hoje, na casa dos 9% ao ano para o primeiro biênio do próximo governo.
Esse é o preço da incerteza e da insegurança do mercado com relação aos rumos da política fiscal do governo pós-pandemia. Com um rombo de mais quase R$ 1 trilhão nas contas do setor público e uma dívida que cresce aceleradamente e que baterá na casa dos 100% do PIB possivelmente ainda neste ano, não cabe ao governo adicionar mais tensão e volatilidade nos mercados de juros, câmbio e ações.
Cabe ao governo, isto sim, encontrar uma boa explicação para o caso de vir a romper o teto do gasto ou simplesmente cumpri-lo, que é o que se espera de uma administração séria e responsável.
Bruno Boghossian: Bolsonaro toca a vida como se Guedes não estivesse mais ali
Nem os pilares da equipe econômica têm sido levados muito a sério dentro do governo
Paulo Guedes pode até completar mais uma semana no cargo, mas o governo já deixou o ministro no chão. Nas últimas 24 horas, Jair Bolsonaro e seus aliados tocaram a vida como se o chefe da equipe econômica nem estivesse mais por ali.
Pela manhã, o presidente embarcou para o Nordeste pela sétima vez desde junho. A agenda era parte de uma turnê pela reeleição coordenada pelo ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional). Ele se tornou o antípoda de Guedes no governo ao formar uma aliança a favor do aumento de gastos com obras.
Os dois ministros já se estranharam em reuniões fechadas e trocaram hostilidades em público. Interessado em extrair ganhos políticos da máquina do governo, o chefe da dupla se mostra inclinado a escolher o lado de um deles.
No sertão de Pernambuco, Bolsonaro prometeu entregar “cada vez mais obras” na região e disse que seus aliados lutam por dinheiro “para que o ministério do Marinho possa realmente trabalhar”. Guedes, como se sabe, já negou mais de uma vez os pedidos do colega para aumentar despesas com esses investimentos.
A turma política também parece disposta a atropelar o ministro nas caóticas discussões sobre o novo programa social de Bolsonaro. Nesta quinta (1º), aliados do presidente chegaram a anunciar em público a criação do benefício, embora Guedes ainda não tenha conseguido encontrar o dinheiro para bancá-lo.
Ao lado de Bolsonaro, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, disse que o Planalto entregaria “o maior programa de solidariedade social da história desse país”. Depois, o parlamentar ganhou uma citação elogiosa do presidente.
Nem os pilares da equipe econômica têm sido levados muito a sério. Ainda que Guedes precise mandar recados semanais a investidores em sentido contrário, o vice-presidente Hamilton Mourão sugeriu a execução de uma manobra “fora do teto de gastos” para financiar o novo Bolsa Família. Cada vez menos gente quer saber da cartilha do ministro.
Reinaldo Azevedo: O Kássio com K e teóricos da conspiração
Indicação de juiz para o Supremo junta interesses de Lula e Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro decidiu indicar Kássio Nunes para o Supremo. O que resta de lavajatismo na imprensa e em sites de "notícias & negócios especulativos" transformou o "Kássio com K" num super-Cássio com C, o da peça "Júlio César", de Shakespeare. É a personagem-símbolo da conspiração e da traição.
Aquele traiu um só. A conspirata deu certo no curto prazo e matou a República no médio. O conspirador quebrou a cara. O Kássio com K teria de se dar bem traindo uma penca de gente.
"Não entendi, Reinaldo!" Os criadores de fábulas também não. Eles ainda tentam inventar um roteiro de ficção para justificar as frustrações de Sergio Moro.
Segundo o mercado de conspirações, o ainda juiz federal do TRF-1 teria de fazer as vontades de vários padrinhos, além do próprio Bolsonaro: Gilmar Mendes, Wellington Dias, Dilma Rousseff, a juíza federal Maria do Carmo Cardoso (também do TRF-1), Flávio Bolsonaro, Davi Alcolumbre, todo o centrão, o PT, o PSDB, o PMDB, a OAB, advogados de pessoas investigadas pela Lava Jato e, bem…, ainda não se pronunciou a palavra mágica, mas é questão de tempo: "LULA". Deve-se escandir o nome com a baba do ódio nos cantos da boca.
"Ah, mas é isso mesmo! Trata-se do velho sistema". Assim, o Kássio com K conseguiria juntar num mesmo feixe de interesses Lula e Bolsonaro, o petismo e o bolsonarismo.
Não por acaso, Moro veio a público para dar uma dica: que o "Senado exerça seu crivo sobre o candidato para saber se há o comprometimento ou não com a agenda anticorrupção".
Obviamente, dele não se espera que sugira aos senadores que procurem saber se o candidato ao STF será ou não um fiel cumpridor da Constituição. Aquele que, quando juiz, atuou como coordenador do órgão acusador de suas futuras vítimas —e que desmoralizou o Poder Judiciário ao se colocar como esbirro do poder de turno-- posa agora de grande moralista.
Não custa lembrar: a vaga que ora se abre só não será preenchida por Moro porque, nomeado por Bolsonaro para o Ministério da Justiça, ele resolveu ambicionar o lugar do chefe. O presidente não é lá versado em Shakespeare ou nas balizas e sutilezas do Estado de Direito —Moro também não—, mas burro não é. Sentiu o cheiro da conspiração nas entranhas do seu governo. César também. O nosso ogro, quem diria?, foi mais rápido.
O ex-ministro da Justiça defendeu ainda, a exemplo do que ocorre nos EUA, que se tenha a figura de um promotor independente para investigar "pessoas que ocupam posições elevadas de poder". Sei.
Naquele país, um juiz que gravasse ilegalmente o presidente da República e divulgasse o conteúdo do grampo amargaria, deixem-me ver, uns 15 anos de cadeia.
Estávamos todos preparados para criticar uma indicação "terrivelmente evangélica", como André Mendonça, ou um "amigo dos meninos", como Jorge Oliveira.
A indicação de Kássio Nunes quebrou as expectativas e criou uma demanda: é preciso formular alguma teoria —qualquer uma.
Não deixa de ser espantoso que até a imprensa digna desse nome aponte como uma das fragilidades de Nunes a sua vinculação à corrente garantista do direito.
Circula freneticamente uma entrevista sua em que ele afirma que, em 2016, o Supremo autorizou a prisão após a condenação em segunda instância, mas não a impôs.
Não se trata de uma opinião, mas de um fato. E que se note: este escriba considera que o tribunal errou porque em desacordo com o mandamento expresso no inciso LVII do artigo 5º da Constituição: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Se o postulado serve a uma pletora de recursos que impedem a execução da pena, que se cuide desse assunto em vez de fraudar a Carta em nome da eficiência da Justiça.
Bolsonaro não se deixou intimidar pela patrulha liderada por Moro. Quando Kássio estiver no STF, prometo elogiá-lo todas as vezes em que se subordinar à Constituição e criticá-lo sempre que fizer o contrário. Assim é com todos.
O combate à corrupção, à saúva ou aos tarados mata a democracia caso se dê acima das instituições ou contra elas.
Valor: Pandemia demanda um programa de renda básica permanente, diz Monica de Bolle
Para Monica de Bolle, a crise sanitária impõe desafios aos dogmas econômicos e demanda um programa de renda básica
Por Diego Viana, Valor Econômico
SÃO PAULO - Um gosto antigo pela medicina fez da economista Monica Baumgarten de Bolle uma das primeiras pessoas a alertar para o tamanho da crise que viria em 2020. A luz amarela foi acendida em janeiro, com a leitura do artigo em que o Sars-Cov-2 foi nomeado pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus. “Pude perceber que seria uma calamidade absoluta, porque o novo vírus era muito mais transmissível que o Sars original. E era imprevisível, levando 20% dos contaminados para o hospital e muitos desses para a UTI”, diz a pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins.
“No caso de um país como o Brasil, ficou claro que o golpe seria ainda mais brutal”, afirma Monica. Com mais de 60% da população em situação vulnerável, fora do mercado formal de trabalho ou com grande risco de ser expulsa dele, “essas pessoas seriam imediatamente atingidas quando começassem as medidas de isolamento”. Esse raciocínio levou à conclusão de que “o Brasil não sobreviveria sem um programa de renda básica”.
Nos meses seguintes, em artigos de imprensa, “lives” e postagens de redes sociais, a economista defendeu com afinco a necessidade do auxílio emergencial. A pressão de intelectuais e entidades da sociedade civil teve efeito: o Congresso aprovou o auxílio de R$ 600 em março. Mas o problema não parava aí: à medida em que chegavam novos artigos de virologistas e epidemiólogos, ficou claro para Monica que transformações muito mais profundas seriam necessárias.
No livro “Ruptura” (Intrínseca, 320 págs.), a economista retoma os debates que a pandemia suscitou no campo da política, das medidas de mitigação à expansão dos gastos públicos, incluindo a reconversão industrial (fábricas que passaram a produzir equipamentos médicos), o papel do BNDES e a emissão de moeda. Mas as rupturas vão além. A crise sanitária deixa em seu rastro um mundo mudado. Ideias parcamente discutidas há poucos anos ganham tração. Poucos duvidam que os governos terão de conviver com níveis mais elevados de endividamento, que será necessário investir pesadamente na recuperação das economias e que a transição energética será acelerada.
“São pelo menos três níveis de ruptura”, afirma. “Primeiro, o mundo real está sendo transformado. Segundo, a teoria econômica é obrigada a examinar como ela pensa em seu papel. Terceiro, a ruptura pessoal: decidi abandonar os modelos que não ajudam mais a entender o mundo e adotar uma perspectiva mais interdisciplinar.”
Monica detalha as diferenças entre tipos de vírus, sua taxa de transmissão e sua mortalidade. Seu interesse pelo tema é anterior à formação como economista: foi demovida de seguir a carreira médica graças a Dionísio Dias Carneiro (1945-2010), professor da PUC-RJ. “Ele disse que muito do que um economista faz é parecido com a medicina. De fato, trabalhamos com diagnósticos e podemos pensar que estamos tratando de um sistema parecido com um organismo, porque é evolutivo, sempre mudando”, diz.
Aprofundando as leituras sobre a pandemia, diz Monica, “era cada vez mais evidente que não vamos voltar rapidamente à vida normal. Por mais que, agora, exista a perspectiva de uma vacina, vamos passar pelo menos dois anos difíceis. Mesmo que não seja tão complicada como foi até agora, a vida não vai estar normal”.
Para a economista, o trauma da pandemia tem o potencial de consolidar projetos ambiciosos e, até recentemente, apenas especulativos. A renda básica, adotada em caráter emergencial em vários países, se torna um primeiro impulso para projetos de renda básica universal, debatidos como meramente utópicos até o ano passado. O primeiro país a aprovar uma renda permanente é a Espanha, duramente atingida pela covid-19. “Estamos caminhando para que a renda básica seja componente normal das economias”, afirma. Para ela, porém, está se tornando consenso que não é possível deixar parte substancial da população desamparada. “Não sabemos como vai ser o mundo quando passar o pior da pandemia. O que vai acontecer com as relações de trabalho? Quais empregos estarão obsoletos?”
As idas e vindas em torno do programa Renda Cidadã, proposta do governo para substituir o Bolsa Família, mostram que “é preciso ter um projeto bem desenhado, sabendo precisamente quem é a população a ser assistida. Esse desenho é mais relevante do que o valor do benefício”, observa. Como a função do Bolsa Família é reduzir a pobreza, o programa tem um público-alvo claro. Agora, porém, “há um novo contingente: pessoas que vivem em situação precária, mas, pelo menos até a pandemia, tinham acesso ao mercado de trabalho formal. É para elas que seria necessário desenhar uma alternativa”.
Segundo Monica, o formato de um programa para essa população seria parecido com o de um seguro. “Quando estão sem renda por algum motivo, seja a pandemia ou outro, recebem um benefício, determinado de acordo com as restrições orçamentárias do país. Quando estivessem de volta ao mercado, o valor poderia ser reduzido.” A economista ressalta que não se trata de substituição ao Bolsa Família, mas programa complementar. “O que transparece é que o governo não sabe quem quer atender, nem como.”
O Brasil, portanto, terá de repensar alguns princípios econômicos que nortearam os últimos anos, diz a economista. Terá de aceitar mais investimento do Estado, o fortalecimento do sistema de saúde, a flexibilização do teto de gastos e o aumento do endividamento. “Mesmo com a rigidez do ministro [da Economia, Paulo] Guedes, queira ou não, a pandemia já está mudando a mentalidade sobre a atuação do Estado. Não temos como responder a um desafio dessa envergadura sem o governo.”
O aumento da dívida, no entanto, enfrenta a barreira da memória, já que o país enfrentou uma devastadora crise de endividamento na década de 1980 e episódios de alta inflação. “Não tem de onde vir inflação hoje”, diz a economista. Ela aponta que a crise da dívida se seguiu a um período de empréstimos fartos em dólar, que se tornaram impagáveis depois que o Federal Reserve elevou os juros americanos, em 1979.
A situação atual é inversa. Nos próximos anos, os juros devem permanecer baixos ao redor do mundo. A dívida brasileira, por sua vez, está denominada sobretudo em reais, o que protege contra súbita escassez de dólares. “Minha preocupação não é inflação, nem dívida. O debate está completamente errado no Brasil”, afirma. “O que me preocupa é a possibilidade de pegarmos dinheiro emprestado para fazer besteira. O grande perigo é ficarmos presos para sempre em uma armadilha de crescimento baixo.”
A ruptura teórica, para ela, exigirá que a economia como disciplina passe a reconhecer seu campo de estudo não mais como sistema estático, mas evolutivo e complexo. A maior vítima é a macroeconomia, que “conversa muito pouco com o mundo real e onde quase não houve inovação nas últimas décadas”. Na microeconomia, alguns desenvolvimentos das últimas décadas apontam direção mais fecunda, como é o caso das pesquisas que se apoiam sobre a psicologia comportamental ou a área do desenho de incentivos. “As aplicações são inúmeras, já que esses modelos afetam também a provisão de bens públicos, como saneamento básico”, diz.
“Muitas dessas reflexões já estavam na minha cabeça desde a crise de 2008, sobretudo as questões sobre a economia como disciplina”, relembra. “Por que ela se fechou em si mesma? Por que perdeu sua interdisciplinaridade? A que papel ela se presta nas intervenções de política pública? Sobretudo, como ela vem se tornando obsoleta ao longo do tempo?”
César Felício: Relações carnais
Eleição nos EUA mexe no jogo político brasileiro
Se alguma evidência ainda precisava ser apresentada para comprovar a extrema importância da eleição americana no processo político brasileira, essa necessidade desapareceu com o debate da última terça-feira entre Joe Biden e Donald Trump.
Sem ser provocado, Biden de moto próprio afirmou que faria uma proposta para o Brasil na área ambiental, que mais soa a um ultimato. Ou Bolsonaro aceita US$ 20 bilhões de ajuda para preservar a Floresta Amazônica, ou arcará com consequências econômicas.
Foi um aceno de Biden à ala mais radical do Partido Democrata, que precisa ser compensada de alguma maneira por todos os gestos centristas já feitos pelo candidato. Mas sinalizou para um isolamento maior do governo brasileiro no futuro. Será o fim das relações carnais entre Brasil e Estados Unidos, como o próprio Bolsonaro deixou claro ao refutar no dia seguinte a proposta de “plata o plomo” feita pelo democrata. Afora Rússia e China, o Brasil foi o único país mencionado no debate.
A reeleição de Trump empoderaria o bolsonarismo não pelo que as relações com os Estados Unidos poderiam proporcionar ao país do ponto de vista comercial, econômico. Há uma sintonia política que não passa por isso, e motiva o Brasil a se submeter a uma equação desigual, em que o alinhamento brasileiro claramente não tem retribuição.
Por Trump, o Brasil aceita condições menos favorecidas no comércio de etanol e o chanceler se abala até Roraima para servir de escada a um gesto político do secretário de Estado.
A similaridade entre Trump e Bolsonaro é assustadora, como ficou nítido no debate. Trump demonstrou na lancinante hora e meia de refrega com Biden que não titubeia em deixar no ar o risco de uma ruptura institucional, caso não consiga permanecer no poder. Também exaltou as forças armadas e policiais. Militarizou a pandemia, ao dizer que vai acionar a tropa para distribuir doses da vacina contra Covid-19.
Bateu e rebateu na tecla do anticomunismo. Agrediu a imprensa. Recusou-se a condenar a extrema-direita. Responsabilizou os governadores por dois males que afligem os Estados Unidos: a desaceleração da economia, supostamente produto de um fechamento exagerado de atividades por conta da pandemia e a escalada da insegurança,
Para completar, colocou em dúvida a qualidade do sistema de votação no seu país e flertou com o negacionismo sanitário, ao relativizar a importância do uso de equipamentos individuais de proteção, como a máscara.
Torna-se difícil citar pelo menos uma diferença entre ambos. Talvez seja possível dizer que o discurso religioso, tão preponderante na retórica bolsonarista, não marcou a fala de Trump na noite da terça-feira. Não houve as citações de João, capítulo 8, versículo 32.
Bolsonaro converteu-se, de certo modo, em uma franquia de Trump. Um dos arquitetos da vitória republicana em 2016, Steve Bannon, também foi um conselheiro na eleição do presidente brasileiro dois anos depois.
Grandes influenciadores bolsonaristas nas redes sociais fazem parte do ramo endinheirado da colônia brasileira no país, que atua nos setores financeiro e imobiliário. Estes brasileiros estão profundamente vinculados a estrategistas da direita radical americana. Olavo de Carvalho, de longe o principal agitador cultural, não tem este tipo de ligação, mas de seu bunker no sul dos Estados Unidos recebe a influência da direita americana e dá lógica e coerência interna para todo o discurso extremista brasileiro.
É para os Estados Unidos que correm os bolsonaristas que, por um motivo ou por outro, estão preocupados com a reação da Justiça brasileira às suas demasias. Não à toa Bolsonaro quis nomear um operador político- seu próprio filho, Eduardo- para ser embaixador no País. Ficou óbvio que o que guia o bilateralismo americano não é comércio e economia. É ideologia.
Há uma mesma faixa. Trump e Bolsonaro estão na mesma frequência modulada. O possível descarrilamento nos Estados Unidos da estrada da direita radical abre perspectivas perturbadoras para políticos como o brasileiro.
A eleição paulistana, como mostra a pesquisa da XP/Ipespe divulgada com exclusividade pelo Valor, mostra que Celso Russomanno nunca teve uma chance tão boa de chegar ao segundo turno como agora. Está colado ao presidente Jair Bolsonaro, que conta com 28% de aprovação na cidade, e se beneficia do recall das eleições passadas, que o situam acima do patamar de 20%. Precisamente 24% no XP/Ipespe. O desafio é o que acontece depois. A posição de Russomanno para disputar o segundo turno é ruim.
Bruno Covas tem 21% na pesquisa. Se enfrentar o tucano no segundo turno, como tudo no momento indica, será difícil para Russomanno herdar os votos da esquerda. Boulos, Tatto, Orlando Silva,, Vera Lúcia e Marina Helou no momento somam 15%. Covas consegue 37% na simulação de segundo turno. O voto do centrista Marcio França, por ora, parece estar dividido, mas pende mais para o candidato bolsonarista. Russomanno obtém 35% no embate direto contra Covas. A soma do seu caudal com os 6% de Arthur do Val, Matarazzo, Levy Fidelix e Joice Hasselman e Felipe Sabará, todos matizes de direita, agrega 30%.
Russomanno só consegue vantagem clara se enfrentar Boulos no segundo turno, porque aí é possível restabelecer o vigorosíssimo discurso antiesquerdista. Seria a repetição do cenário do segundo turno carioca em 2016, em que Crivella teve a sorte de chegar ao segundo turno contra o único candidato que conseguia sobrepujar.
Um levantamento no mês de setembro com a análise de 31,5 milhões de posts no Twitter e no Facebook, feito pela consultoria ponto Map, indica que o debate nas redes está longe da zona de conforto bolsonarista.
A saúde lidera as menções, com 17% de participação. Menos debatida, a Economia deu um salto de 5% para 9% das menções. E não se fala mais tanto de auxílio emergencial, mas de desemprego, inflação dos alimentos e perda de renda.
Bolsonaro não tem porque se envolver profundamente em uma eleição que corre o risco de perder. É bom Russomanno torcer para Boulos.
Ricardo Noblat: Bolsonaro é desmentido em tempo quase real
Retratos de um desgoverno
Bolsonaro disse que estava proibida a discussão sobre o programa Renda Cidadã até o fim do seu governo. Depois anunciou que o programa será enviado em breve para votação no Congresso. Então o ministro Paulo Guedes, da Economia, vetou as fontes de financiamento do programa – dinheiro da Educação e calote no pagamento de precatórios.
Em menos de uma semana, descobriu-se que por enquanto não há como se lançar o programa e que é melhor deixar para fazê-lo depois das eleições ou em 2021 Quer retrato melhor do desgoverno Bolsonaro? Tem outro também que acabou de ser revelado. A Amazônia teve o segundo pior setembro de queimadas da última década, e o Pantanal o pior mês de sua história.
O presidente conseguiu ser desmentido quase que em tempo real. Na última quarta-feira, em vídeo destinado à Cúpula da Biodiversidade das Organizações das Nações Unidas, ele disse que não pode aceitar o que classifica de “informações falsas e irresponsáveis” que desconsideram “as importantes conquistas ambientais” alcançadas pelo Brasil em benefício do mundo.
Pois é. Quem nega realidade passa vergonha, mas ele não liga. Está acostumado.
Nosso Kássio virou um peão na mão dos seus patrocinadores
Bolsonaro é obrigado a defender-se nas redes sociais
Bom de faro, o senador Ciro Nogueira, presidente do Partido Progressista (PP) e um dos líderes do Centrão, aliado de todos os governos que passaram por ele e os que um dia ainda possam passar, conterrâneo e avalista número um do próximo ministro do Supremo Tribunal Federal, Kássio Nunes Marques.
Em junho do ano passado, quando Marques era vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, em Brasília, Nogueira profetizou durante uma solenidade:
– Nosso Kássio é uma figura respeitadíssima no mundo jurídico hoje. Tenho certeza de que vai chegar aos tribunais superiores. É uma figura muito querida.
“Nosso Kássio” virou senha para senador disposto de antemão a aprovar a indicação de Marques para a vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta no próximo dia 13. A sabatina obrigatória será uma mera formalidade. Direita e esquerda votarão unidas com algumas raras exceções para não dar tanto na vista.
Só bolsonaristas de raiz, que acreditaram no conto do ministro “terrivelmente evangélico”, ainda resistem aos encantos do “nosso Kássio”, um católico de boa cepa. Ou às conveniências que ditaram a sua escolha. A esses, o presidente Jair Bolsonaro dedicou sua live das noites das quintas-feiras no Facebook.
“Todo mundo aqui ao longo de 14 anos de PT teve alguma ligação. Não é por isso que o cara é comunista, é socialista”, explicou Bolsonaro. “Vão desqualificar só porque ele deu uma liminar para retomar o cardápio do Supremo? Não tem nada demais comer lagosta. Qual é o problema? Quem pode, come.”
E disse mais: “Você quer que eu troque o Kássio pelo Sérgio Moro? Vocês querem o Sérgio Moro ministro do Supremo? Será que ele vai ser um ministro leal às nossas causas? Será que ele vai ser aprovado no Senado?”. Bolsonaro sabe que Moro poderia ser rejeitado pelo Senado, mas não foi por isso que se livrou dele.
As cobranças dos devotos e as respostas às pressões oferecidas pelo presidente da República mostram a que patamar baixou o processo de nomeação de um ministro da mais alta Corte de Justiça. O Brasil de Bolsonaro envergonha quem antes levava o país a sério. Um dos seus produtos: o Real foi a pior moeda global em 2020.
Se temos na presidência um paraquedista que nunca leu um livro, nem mesmo as memórias do coronel torturador Brilhante Ulstra; que foi afastado do Exército porque planejou jogar bombas em quartéis; que é ligado a milícias e suspeito de ter-se beneficiado de rachadinhas; nada mais pode causar estranheza.
No passado, o Supremo foi um templo de juristas consagrados que ali chegavam para coroar suas carreiras. Hoje, entra qualquer um – de Dias Toffoli, duas vezes reprovado em exames para juiz, ao “nosso Kássio” que batalhava por uma vaga no Superior Tribunal de Justiça e que se credenciou a beber tubaína com Bolsonaro.
Mas ele é “um garantista”, dizem a seu favor. Não tem maior empulhação do que essa história de juiz garantista e juiz não garantista. Garantista de quê? Do que manda a Constituição? Ora, diabos! Respeitar a Constituição não é pré-requisito para que alguém possa vestir a toga e ser respeitado como juiz?
Em editorial, o jornal O Estado de S. Paulo resgatou palavras dirigidas por Paulo Brossard ao então presidente Itamar Franco sobre o processo de escolha de seu substituto no Supremo:
“Pode ocorrer que surjam candidatos, mas é preciso não esquecer que ninguém, por mais eminente que seja, tem direito de postular o cargo, que não se pleiteia, e aquele que o fizer, a ele se descredencia”.
O “nosso Kássio” é o menos culpado pelo modo como se dará sua ascensão. Virou um peão nas mãos de Bolsonaro e dos seus demais patrocinadores.
Eliane Cantanhêde: ‘Não tem de onde tirar’
Num redemoinho, Guedes não agrada a Bolsonaro, ao Congresso, ao mercado e à opinião pública
O ministro Paulo Guedes se debate em mares revoltos, ora emerge, ora afunda, fazendo tudo para sobreviver, numa situação comum em Brasília, quando autoridades entram no redemoinho, sem forças para sair, e raramente chegam a um porto seguro. De superministro, ele agora luta para se manter à tona, com o desafio de cumprir as ordens e fazer as vontades, quase impossíveis, do chefe Jair Bolsonaro.
Com a mesma obsessão com que defende os filhos da PF, do MP, da mídia e da verdade, o presidente agora trata da sua própria campanha e mandou Guedes se virar e arranjar recursos para o “seu” Bolsa Família, com o nome de Renda Cidadã, maior valor e mais abrangência, sem mexer no teto de gastos nem criar novo imposto. Dinheiro, porém, não cai do céu nem dá em árvore – mesmo que desse, as árvores estão virando carvão.
De onde tirar o dinheiro? “Não tem de onde tirar”, responde com clareza o vice Hamilton Mourão. Não tem mesmo e tudo o que os técnicos do Ministério da Economia conseguem produzir são soluções… técnicas. Mas o mundo é político, o ano é de campanha e o presidente está no modo populista-eleitoral e “não vai tirar do pobre para dar a paupérrimo”.
Guedes está num mato sem cachorro. A primeira ideia foi garfar do eleitor aposentado ou pensionista para dar para o eleitor do Bolsa Família. Bolsonaro matou a tiros. A segunda foi impopular e de legalidade duvidosa: sacar dos precatórios, decididos pela Justiça, e do Fundeb, prorrogado a duras penas e sob a resistência do Planalto. Aí quem atirou foi o próprio Guedes. Mas foi também um tiro no pé.
Perdendo aval de Bolsonaro e atraindo desconfiança no mercado e na opinião pública, o ministro-âncora do governo está como um náufrago de apoios. Perdeu o chão quando a pandemia contaminou e derrotou a prioridade fiscal – sua especialidade –, exigindo gastos. Frágil, atraiu a cobiça de ministros, ressuscitou a alma estatizante dos militares, encolheu. Depois de derrotas internas, críticas externas e sucessivas evidências de não estar agradando, a gota d’água foi o tal “cartão vermelho”. Não foi coisa de Rogério Marinho, de Tarcísio de Freitas, e sim do presidente.
Foi aí que Paulo Guedes aprendeu que superministro não existe e convocou uma imersão, ou retiro espiritual, para ensinar o básico do poder à sua equipe: quem foi eleito, tem voto, entende de política e manda é o presidente. O que ele quer e diz é uma ordem. Ponto. E Guedes ressurgiu das cinzas decidido a recuperar prestígio e liderança na onda do Centrão. Durou pouco.
No primeiro grande lance desse “recomeço”, Guedes deu com os burros n’água. Na segunda-feira, ele participou da reunião e do anúncio, com o presidente, ministros, assessores e líderes do governo (ou seja, do Centrão) da proposta de tirar dos precatórios e do Fundeb para dar para os paupérrimos do Bolsa Família. Na quarta, o mesmo Guedes foi a público negar tudo e descartar o uso de precatórios. Tirou o corpo fora. O dito pelo não dito.
Assim como a procuradora Lindôra Araújo denunciou e “desdenunciou” o deputado Arthur Lira, nome do Planalto à presidência da Câmara em 2021, Guedes assumiu e depois renegou o uso dos precatórios, que havia afetado câmbio e Bolsa e agitado o mundo jurídico – afinal, esse dinheiro não é do governo, é dos credores do governo. A ideia é (era) dar calote?
E, assim como Bolsonaro culpa os governadores pelos seus erros absurdos na pandemia, Guedes tenta arranjar um culpado para a falta de privatizações, reformas, recursos, ações e soluções: Rodrigo Maia, que chamou o ministro de “desequilibrado”. Maia sai da presidência da Câmara em fevereiro. E Guedes, até quando fica no Ministério da Economia? Abraço de afogados.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Luiz Carlos Azedo: O melhor negócio do mundo
A venda de refinarias servirá para reduzir o endividamento da Petrobras, que consome 35% do caixa gerado por suas operações. Em juros, isso equivale a um sistema completo de exploração
O famoso magnata norte-americano John Davison Rockefeller começou a trabalhar com 16 anos, em 1855, como contabilista de um armazém de retalhos. De família modesta e religiosa, quando completou 19 anos, pediu demissão e partiu para seu próprio negócio: abastecer o Exército da União. Durante a Guerra Civil americana (1861-1865), vendeu uniformes, farinha, sal, sementes e carne de porco, concorrendo com o antigo patrão. Com o fim da guerra, mudou de ramo e comprou uma refinaria de petróleo, na qual fabricava querosene para iluminação. Em 1985, fundou a Standart Oil Company.
Chegou a controlar 90% das refinarias dos Estados Unidos, mas a Suprema Corte, em 1911, resolveu acabar com o monopólio da empresa e ordenou a criação de mais 30 companhias petrolíferas, origem das gigantes Exxon, Chevron, Atlantic, Mobil e Amoco, que continuaram sob seu controle acionário. Nessa época, Rockefeller era o homem mais rico do mundo, com uma fortuna pessoal de US$ 318 bilhões, transformando-se num mecenas das artes e patrono da educação e da pesquisa. Criou a Universidade de Chicago, museus, bibliotecas e um instituto de pesquisas médicas que leva seu nome. É dele a frase “o melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada; o segundo melhor negócio, uma empresa de petróleo mal administrada”.
A Petrobras, durante o governo Lula, conseguiu transformar uma refinaria de petróleo num péssimo negócio, com a compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, segundo depoimento da ex-presidente da empresa Maria das Graças Foster, no Senado, quando a operação virou mais um caso do escândalo do petrolão. A ex-presidente Dilma Rousseff, que presidia o Conselho de Administração da Petrobras por ocasião da compra, alegou que aprovou a decisão sem saber dos anexos do contrato, com cláusulas muito desvantajosas para o comprador, negociadas pelo então diretor Nestor Cerveró, um dos condenados na Lava-Jato.
Ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF), por seis votos a quatro, rejeitou um pedido de suspensão da venda de oito refinarias e ativos da Petrobras a partir da criação de empresas subsidiárias. A iniciativa fora questionada pelo Congresso, que embargou a venda das refinarias de Landulfo Alves (BA), Presidente Getúlio Vargas (PR), Abreu e Lima (PE), Alberto Pasqualini (RS), Gabriel Passos (MG), Isaac Sabbá (AM), Lubnor (CE) e a Unidade de Industrialização de Xisto (PR), com o argumento de que Petrobras estava descumprindo um entendimento do próprio STF ao desmembrar a empresa-mãe para, em seguida, vender esses ativos sem autorização do Legislativo.
Endividamento
O relator do caso, ministro Édson Fachin, votou para conceder a liminar ao Congresso e suspender a venda dos ativos, porém, a maioria dos ministros do STF discordou. Seis ministros avaliaram que o entendimento da Corte não foi descumprido, e que as operações representam um desinvestimento por parte da estatal — e não uma fraude para repassar o controle acionário ao setor privado. A decisão é uma mudança de paradigma, comemorado pelo presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, que foi indicado para o cargo pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com a tarefa de mudar o perfil da empresa, que passará a se dedicar à exploração de petróleo, deixando as áreas de refino e distribuição para o setor privado.
Se a máxima de Rockefeller ainda vale, a venda das refinarias será um novo alento para Guedes, que, na quarta-feira, estava acusando o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de boicotar as privatizações. A decisão ainda será apreciada no mérito, mas a maioria que se formou no Supremo, dificilmente, mudará de orientação. Votaram a favor da venda das refinarias os ministros Alexandre de Moraes, que contestou o relator; Luís Barroso; Dias Toffoli; Cármen Lúcia; Gilmar Mendes; e o presidente do Supremo, Luiz Fux. Votaram com o ministro Édson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.
A venda das refinarias, segundo a direção da Petrobras, servirá para reduzir o endividamento da empresa, que consome 35% do caixa gerado por suas operações. Somente em juros, essa dívida equivale a um sistema completo de produção, com plataformas, sistemas submarinos e poços, capaz de produzir 150 mil barris de petróleo por dia, com receita anual de US$ 3 bilhões. O objetivo de Castello Branco é obter mais recursos para concentrar as atividades da Petrobras na exploração de petróleo leve do pré-sal, antes que o óleo extraído em águas profundas e ultraprofundas deixe de ser um negócio rentável, por causa dos custos de exploração e da mudança de modelo energético em curso no mundo, principalmente no setor automotivo.