Day: outubro 1, 2020

Zeina Latif: Melhor não despertar a ira dos investidores

Precisamos, desde já, de um plano de contenção de despesas obrigatórias

Disciplina fiscal significa um país não gerar indefinidamente rombos orçamentários e aumento da dívida pública como proporção do PIB. Caso contrário, cedo ou tarde, vai enfrentar o revide dos credores: inicialmente demandando taxas de juros crescentes e, no limite, desistindo de financiar o governo, por medo de calote. Irão buscar investimentos mais seguros, inclusive fora do País. O resultado é o aumento da inflação.

O espaço para governos esticarem a corda depende da crença dos investidores quanto à sua capacidade e disposição de fazer o ajuste das contas públicas, em algum momento futuro. Dois fatores são chave para essa expectativa: a capacidade do país de crescer de forma sustentada, o que é um selo de qualidade da ação estatal, e a credibilidade do governo, construída pelo respeito a compromissos feitos.

Países ricos conseguem se endividar mais. A dívida pública das economias avançadas estava na média em 104% do PIB em 2018 ante 50% nos emergentes. Em 2000, essas cifras eram 83% e 45%, respectivamente.

Para ajudar na construção de credibilidade, muitos governos adotam regras fiscais para reger as contas públicas. São compromissos com a disciplina fiscal previstos em lei. É comum em países com meta de inflação, pois são regras que se reforçam mutuamente.

As regras precisam ser duradouras para cumprirem seu papel. Não podem ser facilmente contornadas ou alteradas. Já se observam no mercado financeiro as consequências do flerte com a flexibilização da regra do teto, aprovada há menos de quatro anos. A elevada volatilidade de preços de ativos, inclusive da taxa de câmbio, ameaça a recuperação da economia. Além disso, ocorre um encurtamento do perfil da dívida pública, tornando o ambiente mais propenso à saída de recursos.

As regras não podem ser frouxas, deixando de fora muitos itens de despesa, como alguns propõem – a regra do teto já exclui o Fundeb e a capitalização de estatais não dependentes do Tesouro. Por outro lado, precisam ser críveis ou factíveis. Alguns analistas apontam que, por conta da pandemia, a regra do teto tornou-se impraticável diante das demandas por gastos com saúde e socorro de pessoas e empresas, sendo necessário ajustá-la. Vejamos.

A regra já embute uma “cláusula de escape” para o período de calamidade pública, liberando as despesas associadas ao combate dos efeitos da covid-19. Seria então o caso de estendê-lo por mais alguns meses, para autorizar despesas transitórias? O cuidado aqui é haver justificativa forte o suficiente para os créditos extraordinários e a garantia de seu bom uso. Além disso, convém esgotar outras possibilidades, como criar espaço no Orçamento pela redução temporária da folha do funcionalismo, conforme proposto na PEC emergencial, abandonada.

Uma flexibilização do teto para aumentar despesas permanentes seria mais arriscado. Mesmo medidas meritórias, como a Renda Cidadã, deveriam substituir as muitas políticas públicas equivocadas. Nesse contexto, é indefensável a tímida proposta de reforma administrativa, que além de excluir importantes carreiras do funcionalismo, não afeta os atuais servidores. O mesmo vale para a contrariedade do presidente com o remanejamento de recursos de outras políticas sociais proposto pelo time econômico.

A pandemia aumentou a necessidade de reformas. O teto, mesmo se respeitado, não eliminará o rombo fiscal por muitos anos. Flexibilizá-lo significaria cutucar o investidor, já desconfiado, com vara curta. Dilma fez isso em 2015. Deu no que deu.

Na melhor das hipóteses, o governo estaria aumentando a probabilidade de um ajuste forçado das contas públicas por meio de sensível elevação da carga tributária. Um cenário “volta ao passado” penalizaria ainda mais a frágil economia.

Os investidores poderão financiar a dívida pública elevada e crescente, e será possível evitar maior carga tributária e instabilidade econômica. Mas desde que haja plano consistente de contenção de despesas obrigatórias de forma a não apagar a chama já tão fraca da disciplina fiscal.


Míriam Leitão: Recados, indiretas e novos improvisos

Por Alvaro Gribel (interino)

Se a palavra do ministro Paulo Guedes ainda vale pelo governo, o programa Renda Cidadã voltou à casa zero. O ministro da Economia mudou sua agenda em cima da hora ontem à tarde para participar da divulgação dos dados do Caged, mas sobre o mercado de trabalho pouco falou e terceirizou para a área técnica. Ele aproveitou o espaço para disparar recados a aliados e ao próprio presidente Bolsonaro e ainda alimentou bate-boca com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Disse que havia rumores de que Maia interditara as privatizações após acordo com partidos de esquerda e que o novo programa social não pode ser financiado por “puxadinhos”.

Guedes se recusou a chamar o programa pelo nome Renda Cidadã e por três vezes falou em Renda Brasil, que havia sido proibido por Bolsonaro. Ao dizer que ele precisa ser a unificação de 27 projetos sociais, o ministro voltou à ideia inicial para o seu financiamento, que na visão do presidente significa tirar do pobre para dar ao paupérrimo. No mercado financeiro, a interpretação foi de que o ministro elevou o tom para demonstrar que não vai compactuar com pedaladas e contabilidade criativa. Para muitos investidores, a fala foi bem recebida, e houve quem entendesse que se o governo seguir por esse caminho Guedes deixará o cargo.

O ministro reconheceu que houve estudo sobre os gastos com precatórios, mas porque, segundo ele, esse tipo de despesa tem crescido muito nos últimos anos. Afirmou que em momento algum o governo “deixará de honrar” seus compromissos, muito menos uma dívida que já transitou em julgado. Em outras palavras, disse que a medida seria um calote, rebatendo o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC), que chamou de “hipócritas” todos os que pensavam dessa forma.

Em seguida, Rodrigo Maia disse que Guedes está desequilibrado. No dia anterior, ele próprio acusara o ministro de interditar o andamento da reforma tributária. Sobre as privatizações, os fatos parecem estar a favor do deputado, já que o veto maior ao programa vem do próprio presidente Bolsonaro, que desde a campanha eleitoral excluiu as maiores estatais da lista de empresas vendáveis.

Ao fim e ao cabo, o novo programa social não tem nome, fonte de custeio, e o governo continua como sempre esteve: perdido em suas brigas internas.

O valor do auxílio

O gráfico mostra o impacto da crise sobre os rendimentos do trabalho. Pelos dados divulgados ontem pelo IBGE, e compilados pelo Iedi, houve uma queda de 13,3% em julho, sobre o mesmo mês do ano passado. “Tomados os rendimentos efetivamente recebidos, que refletem melhor o choque provocado pela pandemia, a massa de R$ 185,6 bilhões é a menor da série histórica da Pnad Contínua, iniciada em 2012”, disse o Iedi. Esse dado exclui o que foi pago pelo governo no auxílio emergencial, e reforça a importância do benefício para garantir o consumo de muitas famílias.

Dois lados do emprego

Os economistas Bruno Ottoni e Tiago Barreira, do Ibre/FGV, juntaram três séries de desemprego e concluíram que a taxa de desocupação do país em julho foi a maior desde 1992, ou seja, em quase 30 anos. A Pnad Contínua, como se sabe, começou em 2012, mas os economistas adaptaram os dados à Pnad Anual e também à PME, que possuem séries mais antigas. “É uma constatação preocupante, e a tendência ainda é o desemprego aumentar nos próximos meses, porque muita gente que perdeu trabalho ainda não voltou a procurar”, disse Ottoni. No mercado formal, houve criação de quase 250 mil vagas em agosto, segundo o Caged. O governo comemorou e, na visão de Ottoni, o Programa de Manutenção do Emprego ajudou de fato a evitar um quadro pior. “Ainda assim, estamos com uma perda de mais de 800 mil vagas de carteira assinada desde o início da crise”, lembrou.


Celso Ming: Bolsonaro quer marcar gol de mão

O programa Renda Cidadã, pretendido pelo governo Bolsonaro, é calote, é pedalada, é contabilidade criativa

Todos os qualificativos sobre o passa-pernas pretendido pelo governo Bolsonaro para criar a Renda Cidadã já foram mencionados pela imprensa: é calote, é pedalada, é contabilidade criativa.

A Renda Cidadã é o nome fantasia com que o governo Bolsonaro batizou o projeto de ampliação do Bolsa Família, que assume características de renda mínima ou de Imposto de Renda negativo.

Antes de seguir adiante, convém deixar claro que um programa social desse tipo não é apenas uma reivindicação das esquerdas ou dos populistas da hora. É uma necessidade de mercado ou do próprio sistema capitalista. Como o contrato de trabalho tal como o conhecemos está a caminho da extinção ou da irrelevância, é preciso cuidar da renda e, portanto, do mercado de consumo e da sobrevivência das próprias empresas. Nesse sentido, importa menos se sua criação tenha um viés eleitoreiro, como de fato tem. Ela passou a ser uma necessidade tanto social como econômica.

O problema é que o governo quer validar gol de mão e, como Maradona, argumenta que é da mão de Deus. Para obter a verba necessária para a Renda Cidadã, avisou que vai pegar recursos do Fundeb (destinados à Educação) e do pagamento dos precatórios. Ou seja, para o governo, haverá menos recursos para o Fundeb e o pagamento dos precatórios ficará para depois, sabe-se lá quando.

Os vícios estão claros. O Fundeb é constituído de recursos que não entram no cálculo do teto das despesas. O que o governo está dizendo é que não há nada de errado em inchar o Fundeb e, depois, transferir os recursos para cobertura de outras despesas. No caso do calote dos precatórios, ficaria validado o procedimento de adiar indefinidamente o pagamento de uma dívida, passada e julgada, seja de precatórios (em geral, consequência de desapropriações), seja outra qualquer.

Há algumas semanas, o mesmo programa social levava o nome de Renda Brasil. Mas Bolsonaro enterrou a proposta quando foi informado de que os recursos sairiam de outros programas sociais, como do próprio Bolsa Família e do seguro-defeso (ajuda aos pescadores na suspensão da pesca). A justificativa do presidente: “Não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos”.

Nesta quarta-feira, o ministro Paulo Guedes negou que tenha intenção de usar verbas destinadas ao pagamento de precatórios para o Renda Cidadã. Mas é apenas outra declaração. Não se entende que o guardião do Tesouro esteja disposto a defender gols de mão.

O presidente Bolsonaro ainda vem com o discurso de que, se não for assim, não se faz nada. Como passou a pedir àqueles que repudiam a volta da CPMF, pede agora que os críticos apresentem solução melhor.

Ora, presidente, todos sabemos qual é hoje o tamanho do Estado. Sabemos também que, além de privilégios como o da estabilidade no emprego, os funcionários públicos usufruem dos melhores salários do País e, além disso, boa parte conta com adicionais, com benefícios extras, com aposentadoria e mordomias com que os trabalhadores do setor privado não contam. E há os subsídios, as isenções tributárias e a ideia de congelar as aposentadorias para as categorias mais beneficiadas…

Só no handebol vale gol de mão.


Vinicius Torres Freire: CPMF de Guedes e pedalada param Congresso e ameaçam povo com mais fome

Está uma zorra total e não vai haver Carnaval. A pedalada do Renda Cidadã subiu no telhado ou, pelo menos, o governo tenta dourar a pílula da moratória dos precatórios, que o povo do mercado e quase todo mundo cuspiu. Na Câmara, há estranhamento entre parte dos parlamentares de DEM, MDB e PSDB e outros que querem tocar a reforma tributária e o centrão, que assumiu de vez o comando parlamentar do governo. Graças ao sururu causado pela CPMF, mas não apenas, a mudança dos impostos está indo para o vinagre. O resto do ano no Congresso fica cada vez mais curto.

Paulo Guedes tenta sair de fininho do vexame do plano pedalada. Além do mais, se estranha cada vez mais com Rodrigo Maia, até agora condestável das reformas, cada vez mais desafiado pelo centrão, se por mais não fosse porque começou a disputa pela presidência da Câmara em 2021.

Segundo o padrão bolsonarista de disseminar “fakes” e tirar o corpo fora, Guedes disse nesta quarta-feira que “há boatos” de que Maia e a esquerda fizeram acordo para barrar privatizações”, aquelas que, no entanto, o governo não consegue organizar ou mandar para o Congresso.

Maia respondeu que Guedes está “desequilibrado” e recomendou que o ministro da Economia veja “A Queda”. Hum.

Trata-se do filme que deu origem àquela série de memes com paródias da cena do chilique de Hitler. Narra a vida no bunker nazista em Berlim, sob fogo dos soviéticos. A interpretação mais benevolente da dica de Maia é que Guedes poderia aprender algo com a história de um bando de psicopatas assassinos à beira do fim, ainda mais alheados da realidade, presos a uma bolha física e mental.

Os líderes do governo no Congresso ainda querem tocar o Renda Cidadã tal como anunciado, com moratória de precatório, com Fundeb, com pedalada, com tudo. Gente do Planalto e mesmo Guedes tentam adoçar o remédio e dizem que o plano do governo “não é bem assim”.

Hum. É ou era.

“É um prazer, uma honra e uma satisfação, presidente, poder anunciar o teu programa”, discursou o senador Márcio Bittar MDB-AC) antes de explicar de onde viria o dinheiro do Renda Cidadã. Depois de assim cumprimentar Jair Bolsonaro, Bittar contou que o programa seria financiado com moratória de precatórios e com parte de recursos federais para a educação básica.

Isso foi na segunda-feira de tarde. Na quarta-feira, Guedes chamou a ideia de “puxadinho”, entre outras desqualificações. O ministro estava no palanque do anúncio do Renda Cidadã e então nada disse a respeito. Já era contra o plano? No Planalto, há quem diga que o ministro não gostara mesmo da ideia; há quem o acuse de querer pular fora do barco que furou.

Também no dia do anúncio, Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara, disse que Guedes foi consultado e que Bolsonaro “validou” o que ele e Bittar chamaram de “solução final” para o Renda Cidadã. Como dizia o surfista da caricatura dos anos 1980, “ó u auê aí, ó”: olha a confusão.

Guedes afirmou também nesta quarta-feira que o Renda Cidadã terá dinheiro da fusão de vários programas sociais, 27 deles, segundo o ministro, embora Bolsonaro seja contra “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Seja lá como for, todas as “soluções finais” aventadas até agora dependem da aprovação de alguma mudança na Constituição, caso se queira conseguir um dinheiro bom para ampliar o Bolsa Família.

Dá tempo? Daqui a três meses, acabam de vez os auxílios emergenciais. Algo vai acontecer: mais fome, sururu no mercado ou “tirar de pobres para paupérrimos”.


Ribamar Oliveira: A impressão é de um governo perdido

Bolsonaro não aceita sugestões apresentadas por seu ministro da Economia, e há um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo

Na segunda-feira passada, na presença do presidente Jair Bolsonaro, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da proposta orçamentária para 2021, anunciou a criação do novo programa social do governo, que chamou de Renda Cidadã. Ele informou que o governo iria limitar o pagamento de precatórios judiciais e, com os recursos que sobrariam, financiar o programa. Ontem, o ministro Paulo Guedes surpreendeu o país ao afirmar que nada daquilo valeu. Chegou a sugerir que nunca se pensou em tal coisa.

O anúncio de Bittar, no Palácio do Planalto, está gravado e pode ser facilmente acessado na internet. O mais impressionante é que, no dia seguinte, o próprio Bittar e o líder Ricardo Barros reafirmaram a decisão e negaram que o governo pudesse recuar de sua proposta, mesmo com a forte reação contrária dos mercados.

A avaliação unânime dos analistas foi de que o governo estava propondo uma “pedalada fiscal”, com a postergação do pagamento dos precatórios. Iria transferir uma dívida, que todo ano a Justiça manda pagar, para ser quitada pelas futuras gerações.

Guedes aproveitou ontem a entrevista de divulgação dos dados do Caged, que mostraram uma forte criação de empregos com carteira assinada em agosto, para alterar inteiramente o discurso oficial sobre os precatórios. “Sabemos que precatórios são dívidas líquidas e certas, transitadas em julgado. Ninguém vai botar em risco a liquidação de dívidas do governo. Vamos pagar tudo”, disse, demonstrando uma certa exaltação. “Estamos aqui para honrar compromissos. Compromisso fiscal, de dívida”, acrescentou.

O ministro afirmou que sua preocupação era com o “crescimento explosivo” da despesa com o pagamento de precatórios nos últimos anos. Segundo informou, esse gasto era de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões no governo Dilma Rousseff e a projeção para 2021 é de R$ 55,5 bilhões. “Estamos examinando [os precatórios] estritamente com foco em controle das despesas.”

Guedes reafirmou, no entanto, sua intenção de apresentar um novo programa social para amparar os “invisíveis”, que foram descobertos pelo governo com o auxílio emergencial. Segundo ele, são 40 milhões de pessoas que precisam de ajuda a partir de janeiro, quando o auxílio emergencial acabar. Guedes voltou a afirmar que é preciso promover uma aterrissagem suave, quando isso ocorrer.

Ele disse que nunca pensou em utilizar parte do dinheiro que seria usado para pagar os precatórios para financiar o Renda Brasil. Foi com esse nome que o ministro se referiu ao novo programa social do governo Bolsonaro, e não Renda Cidadã, empregado por Bittar. “Uma despesa permanente precisa ser financiada com uma receita permanente. Não pode ser financiada por um puxadinho, por um ajuste”, afirmou.

O problema, portanto, está do mesmo tamanho. Ou seja, como o novo programa do governo, qualquer que seja o seu nome, será financiado a partir de janeiro do próximo ano?

É importante relembrar que todas as sugestões apresentadas pela área econômica foram vetadas pelo presidente Bolsonaro. A ideia inicial, com a qual a equipe de Guedes trabalhou desde o início, era eliminar os programas sociais considerados ineficientes, ou seja, que não estão atingindo as pessoas mais necessitadas da sociedade, e direcionar os recursos para os mais carentes e para os trabalhadores informais.

A primeira proposta levada ao presidente foi a de acabar com o abono salarial, que concede até um salário mínimo por ano para o trabalhador que ganha até dois pisos por mês. Bolsonaro rejeitou a proposta publicamente, dizendo que não iria tirar dos pobres para dar para os paupérrimos. Aquele foi um banho de água fria na equipe de Guedes, pois o fim do abono abriria um espaço de R$ 20 bilhões para turbinar o Renda Brasil.

Depois, o presidente rejeitou também o fim do seguro-defeso, que é concedido aos pescadores artesanais no período da desova dos peixes. O secretário da Pesca, Jorge Seif Junior, ao lado de Bolsonaro em sua live semanal, chegou a dizer que o fim do seguro-defeso era “fake news”.

Em seguida foi a vez de o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, ser desautorizado pelo presidente da República. Em entrevista ao Valor, Waldery defendeu a desindexação de benefício previdenciários, ou seja, suspender pelo prazo de dois anos a correção monetária do valor das aposentadorias e pensões. O secretário estimou que a medida reduziria as despesas da União em R$ 17 bilhões em 2021 e em R$ 41,5 bilhões em 2022.

Com a repercussão das palavras de Waldery, o presidente usou as redes sociais para dizer que uma proposta como aquela só podia ser feita por alguém que não tem coração e anunciou que daria “cartão vermelho” para quem insistisse no assunto. Bolsonaro disse também que não queria ouvir falar em Renda Brasil até 2022. Ele mudou de ideia no dia seguinte, ao autorizar o relator das PEC Emergencial e do Pacto Federativo, senador Marcio Bittar, a incluir em seu substitutivo a criação de um novo programa social.

Depois da forte reação dos mercados e da própria sociedade à “pedalada fiscal” dos precatórios, o ministro Guedes informou ontem que o governo não vai financiar o Renda Brasil com parte dos recursos que seriam utilizado para pagar precatórios. O ministro disse, no entanto, que o programa será criado para fazer a “aterrissagem suave” do auxílio emergencial.

A impressão que está passando ao público é de um governo perdido. Com um presidente que não aceita as sugestões apresentadas por seu ministro da Economia e um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo. Há também as intrigas entre ministros. Ontem, por exemplo, Guedes afirmou que tinha gente dentro do governo querendo “estourar o teto de gastos em R$ 60 bilhões a R$ 70 bilhões”. E que sua intenção é não deixar que isso aconteça.


Fernando Schüler: Estamos confortáveis com o tempo de reação do setor público à crise?

A inércia do ensino público produzirá mais desigualdade, mas o sistema é de 'não culpados'

Thiago conta que “não são aulas por vídeo”. Diz que é só uma interação. “A gente fala mais de cultura, racismo, bullying, coisas assim.” Isabela explica que o problema é a internet. “O sinal é fraco. Não tem aula, só atividade remota. No fim não entendia mais nada, desisti.”

Nas últimas semanas, li o que pude sobre nossa educação pública na pandemia. Me fixei nos relatos. Histórias dos alunos brigando com celulares que não funcionam e emails do colégio que não respondem. E dos alunos, em especial no ensino médio, que vão desistindo.

Os especialistas dizem que a evasão vai aumentar. Demétrio Magnoli cunhou um termo algo assustador: teremos a geração covid. Ela nos lembrará por muito tempo sobre como este ano triste foi também um ano irresponsável.

Alguns sugerem cancelar o ano letivo, quem sabe aprovar todo mundo, começar tudo no ano que vem. Os sindicatos fazem o jogo do nirvana. Aula tem que ser presencial, mas presencial não dá. Só depois da vacina. Então não tem jeito, não é mesmo?

Se a gente observar mais a fundo vai ver aí nossos dois Brasis. Logo no início da pandemia, o mundo das escolas privadas migrou para o espaço digital. Os professores se adaptaram com algum treinamento e o ano seguiu. Com perda de qualidade, que é a regra nisso tudo, mas seguiu.

Enquanto isso, a máquina estatal emperrou. A Pnad Covid mostrou 16,1% dos alunos ainda sem aula, em agosto. Uma enorme parcela com acesso muito precário a atividades, aulas sem interação, sem aferição do que se está ou não aprendendo.

Nosso debate público rapidamente decretou que o problema era a “desigualdade”. Os alunos mais ricos têm acesso à internet, os mais pobres, não. Tudo explicado? Na minha visão, coisa nenhuma.

A desigualdade é um dado estrutural da realidade brasileira. Há muito sabemos sobre a disparidade de acesso à tecnologia. E é óbvio que isso pesa na capacidade das famílias se adaptarem, orientarem os filhos, segurarem a barra numa situação difícil.

Não é exatamente para lidar com isso que existe a educação pública? Estudo recente do Ipea calculou em R$ 3,9 bilhões o custo para corrigir o déficit de acesso digital e a equipamentos. Informação e recursos não são o problema. O ponto é: estamos confortáveis com a velocidade de reação do setor público?

Fui conversar com dirigentes educacionais nos estados. Os problemas são óbvios. Falta acesso a redes, conexões instáveis, aplicativos difíceis de usar. As escolas fazem o mínimo, falta preparo aos professores para o ensino remoto.

Um deles foi direto: o problema é que o sistema não tem pressa. Quando tem orçamento, é difícil comprar equipamentos. Quando compra, é difícil treinar as pessoas. No final, a frase reveladora: “O setor privado fez isso porque tem interesse. Se não tem aula, os pais simplesmente tiram os filhos”.

E o setor público, perguntei, não tem interesse? Pergunta inútil. Se não tiver aula, os pais irão trocar de escola? E irão reclamar para quem? Alguém está realmente preocupado com isso e vai assumir a responsabilidade?

Eis o lado trágico da questão. Temos um sistema de “não culpados”. Os professores não têm culpa por causa do risco e por não terem controle algum do processo; os diretores dependem das secretarias, não controlam o orçamento, sistemas de compras ou a contratação de pessoal.

Os secretários também estão de mãos atadas. Pouco recurso, burocracia, os sindicatos resistem e não podem demitir quem é improdutivo. Por fim sobra o Ministério da Educação, mas o ministro já esclareceu que o problema também não é dele, que a responsabilidade é dos estados e municípios.

Todos reunidos concluiriam, desconfio, que a culpa é “disso tudo que está aí”, como gostava de dizer Leonel Brizola. Que esse papo de eficiência é coisa de neoliberal e que era mesmo impossível converter o drama da pandemia em um trabalho coordenado de inclusão digital.

Melhor tapar o sol com a peneira e pôr a culpa é na desigualdade. Ela mesma, que a inércia estrutural do setor público fará aumentar, como nunca, neste ano triste de 2020.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Maria Hermínia Tavares: Na pandemia, obrigados a ser fortes

Experiências de solidariedade deveriam inspirar políticas públicas

Perdendo a enésima oportunidade de ficar calado, Bolsonaro chegou não faz muito a desdenhar dos que ficam em casa para se proteger da pandemia. "É para os fracos", decretou, quando já passavam de 135 mil os mortos pela Covid-19. Na realidade, os "fortes", expostos diariamente ao novo coronavírus, são muitos —e muito diversos em estilo e condições de vida.

A grande maioria é formada por aqueles para os quais o isolamento não é opção, por lhes faltarem renda, moradia adequada, acesso a saneamento e água potável. São os milhões de pobres, predominantemente negros, que vivem nas periferias ou nos centros degradados de nossas cidades.

É difícil saber ao certo como vêm passando e de que modo têm reagido à pandemia. O pouco que se conhece de sua dor e de sua força deve-se à Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de uma centena de estudiosos de diferentes formações e filiações acadêmicas, engajados em levantar dados que ajudem a melhorar a ação dos governos durante e depois da pandemia.

Um grupo de membros dessa rede, coordenado pela socióloga Graziela Castello, vem coletando periodicamente informações junto a lideranças comunitárias de várias capitais brasileiras sobre os principais problemas enfrentados pelas populações mais vulneráveis.

O que angustia antes de tudo os ativistas das comunidades são as famílias que passam fome, uma ameaça sempre presente. Segue-se a perda do emprego ou do trabalho e da renda. Depois, a dificuldade de acesso a serviços públicos como educação, justiça e atendimento funerário; finalmente, a expansão do contágio e a dificuldade de conseguir a adesão das pessoas às medidas de proteção.

Os mesmos temas aparecem nos relatos de três ativistas participantes do evento "A pandemia nas favelas", organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível no YouTube. Eles contam como líderes e entidades comunitárias se mobilizaram para suprir carências de toda ordem. Distribuíram cestas básicas, material de higiene, máscaras; organizaram atividades para gerar renda e fizeram podcasts para difundir informações úteis sobre a pandemia; auxiliaram os agentes comunitários de saúde e saíram em busca de espaços para o isolamento dos doentes e proteção dos mais velhos.

Dor, luto e incerteza —mas também solidariedade, força e inovação— aparecem nos depoimentos dos participantes do encontro, assim como naqueles coletados pela Rede Solidária. São experiências que poderiam inspirar parcerias inovadoras e políticas públicas mais adequadas a um país onde o isolamento não é para quem quer, porém para quem pode.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Bruno Boghossian: Na corrida por uma vaga no STF, Bolsonaro frustra parte de sua base

Reviravolta mostra dificuldade do presidente em equilibrar suas alianças de conveniência

A corrida pela próxima vaga do STF ensina a Jair Bolsonaro o desafio de equilibrar as alianças de conveniência que o sustentam no poder. A reviravolta produzida pelo presidente aprofunda seu namoro com a classe política, mas também coroa seu divórcio com o lavajatismo e aborrece parte da base ideológica mais radical do governo.

A escalada do juiz federal Kássio Nunes ao posto de favorito à primeira indicação de Bolsonaro para a corte se deu contra os sinais públicos que o presidente emitia sobre a decisão. Nos últimos dias, ele buscou apoio do centrão e apresentou seu escolhido para ministros do STF que representam a ala do tribunal mais crítica aos excessos da Lava Jato.

Antes de chegar ao Planalto, Bolsonaro já explorava o poder de indicar novos ministros para surfar na onda anticorrupção. Na campanha, ele falou em aumentar o número de cadeiras do STF e prometeu nomear “dez do nível do Sergio Moro” para a corte. O papo ajudou a colar sua candidatura à imagem da operação.

O presidente não demorou a trair quem acreditou na conversa –a começar pelo próprio Moro. Depois que Bolsonaro escancarou sua intenção de usar a caneta para proteger seu grupo político de investigações, nem mesmo os lavajatistas em negação, que ainda apoiam o governo, podem se dizer surpresos.

A guinada no processo de escolha, se confirmada, frustra segmentos mais apegados à pauta ideológica em que Bolsonaro se apoia. O presidente prometeu um ministro “terrivelmente evangélico” para o tribunal, mas depois modulou o discurso e avisou a pastores que seu escolhido seria apenas um conservador. Kássio Nunes, no entanto, nunca deu peso público a essa agenda.

Bolsonaro pode repetir com a indicação o mesmo estremecimento que sofreu ao nomear Augusto Aras como procurador-geral. Na ocasião, sua base ficou furiosa e tentou vincular o escolhido ao combate à Lava Jato. Em busca de sobrevivência política, o presidente se mostra disposto a seguir esse caminho.


Ricardo Noblat: A história exemplar da escolha de um ministro para o Supremo

Kássio atirou no que viu e acertou no que não viu

Bolsonaro desistiu da escolha de um ministro para o Supremo Tribunal Federal que atendesse seus convites para tomar cerveja. Uma vez que pode ir, de repente, a casa de um ministro para reunir-se com ele e com outro e, juntos, avaliarem a escolha que fez, por que se preocupar com cerveja? Bebe-se uísque.

Dias Toffoli foi advogado do PT e Advogado-Geral da União no governo Lula. Gilmar Mendes, Advogado-Geral da União no governo Fernando Henrique. Ora, por que Kássio Nunes Marques, um piauiense de 48 anos, não pode ser indicado pelo Centrão? Kássio nem é um Centrão puro sangue. É tudo misturado.

Em 2011, para ocupar uma vaga de desembargador no Tribunal Regional Federal (TRF1), em Brasília, Kássio contou com amplo apoio político. Wellington Dias, governador do Piauí eleito pelo PT, o apoiou. O governador anterior, do PSB, também. E mais Renan Calheiros (PMDB), à época presidente do Senado.

E o senador por Roraima Romero Jucá (PMDB). E o ex-presidente José Sarney (PMDB). E, naturalmente, o vice-presidente da República Michel Temer. Além da Ordem dos Advogados do Brasil. Então a presidente Dilma Rousseff o nomeou, e ele tratou de empregar sua mulher como funcionária do Senado.

Kássio estava em campanha para ser ministro do Superior Tribunal de Justiça, e foi nessa condição que no início desta semana conheceu Bolsonaro no Palácio da Alvorada, levado por seu conterrâneo, o senador Ciro Nogueira, presidente do PP, partido do Centrão que aderiu ao governo há poucos meses.

O papo agradou tanto a Bolsonaro que, a certa altura, ele disse:

– Você vai ser ministro do Supremo.

Kássio corrigiu-o, pensando que ele se enganara:

– Do Supremo, não, do STJ, presidente.

– Não, vai ser ministro do Supremo – decretou Bolsonaro.

Em seguida, passou a mão no celular, ligou para Davi Alcolumbre (DEM), presidente do Senado que luta para ser reeleito, embora a Constituição proíba, e orientou-o a providenciar às pressas uma reunião com os ministros Gilmar, Toffoli e Fábio Faria, das Comunicações. E na casa de Gilmar ficou tudo acertado.

A ficha de Kássio custou a cair. Bom de gogó, ele faz o gênero falso humilde, mas é muito esperto e sedutor. Mesmo assim, em alguns momentos da reunião, pareceu nervoso e meio apalermado. Não era para menos. Foi como se ganhasse, sozinho, o maior prêmio da Megasena acumulada há meses.

Diz-se, a seu favor, que a ir para o Supremo Jorge Oliveira, ministro da Secretaria do Governo e capacho de Bolsonaro, melhor que Kássio substitua Celso de Mello, obrigado a se aposentar em breve porque fará 75 anos. Só o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, passou recibo por não ter sido consultado.

Fux soube da nomeação de Kássio pela imprensa, um descuido de Bolsonaro, ou uma maldade. Fux sabe que Kássio se aliará à facção dos ministros do Supremo empenhados em pôr um ponto final na Operação Lava Jato. É o que mais interessa aos políticos em geral, e também a Bolsonaro à cata de votos para se reeleger.

No passado, o Supremo foi o templo dos juristas consagrados por suas obras de referência. Chegava-se ali com a biografia já escrita. A de Kássio, por sua pouca idade e à falta de títulos admiráveis, mal foi escrita. Ele terá os próximos 27 anos para escrevê-la, parte sob o olhar atento de Gilmar, o mais poderoso ministro do Supremo.


Bernardo Mello Franco: Campanha contra Carol Solberg une governismo, hipocrisia e burrice

A atleta Carol Solberg foi denunciada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva por gritar “Fora Bolsonaro” após um jogo de vôlei de praia. O caso mostra que a hipocrisia e o governismo continuam a ditar as regras no mundo do esporte.

A perseguição foi iniciada pela Confederação Brasileira de Voleibol. A entidade divulgou uma “nota de repúdio” e prometeu tomar “todas as medidas cabíveis” contra a jogadora, que já estava sob ataque das milícias virtuais. Por dizer o que pensa, ela foi acusada de violar a “atitude ética que os atletas devem sempre zelar” (sic).

Curiosamente, a confederação não se incomodou quando os jogadores Wallace e Maurício Souza manifestaram apoio a Bolsonaro com a camisa da seleção. Às vésperas da eleição de 2018, a dupla fez o número 17 com os dedos após uma partida do Mundial. Na época, a CBV afirmou que “acredita na liberdade de expressão”.

A Comissão Nacional de Atletas do Vôlei de Praia, que deveria defender Carol, preferiu aderir ao linchamento. O grupo é chefiado pelo campeão olímpico Emanuel Rego, que ocupou cargo no governo até junho.

Os ataques chegaram ao ápice na segunda-feira, quando o procurador Wagner Dantas pediu que Carol seja condenada a multa de R$ 100 mil e suspensão por seis torneios. Na CBN, o jornalista Juca Kfouri lembrou que o STJD nunca julgou cartolas acusados de corrupção, como Ricardo Teixeira e Carlos Arthur Nuzman.

Dantas afirmou que o protesto pôs em risco o patrocínio do Banco do Brasil ao vôlei, iniciado em 1991. Isso mostra como o aparelhamento das instituições está sendo naturalizado no país de Bolsonaro. O procurador admitiu que o governo pode interferir nos contratos de um banco público em retaliação a uma atleta que criticou o presidente. Numa democracia saudável, este seria o verdadeiro escândalo.

A campanha tem um objetivo claro: impedir novas manifestações contra o capitão. Atletas são cidadãos, têm título de eleitor e não devem ser proibidos de falar sobre política. Além de ineficaz, a tentativa de censura é burra. O cerco a Carol só amplificou o seu grito nas areias de Saquarema.


Merval Pereira: Centrão no STF

Como tudo na ação política de Bolsonaro, nem sempre o que parece ser, é. Assim, já corre em Brasília a tese de que a surpreendente escolha do desembargador Kassio Nunes para substituir o ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) é apenas um balão de ensaio, que pode não se concretizar.

Estaria testando a resistência do nome às chuvas e trovoadas que normalmente ocorrem nessas ocasiões. Uma primeira impressão é que o nome passa bem no teste, mas as pressões internas para que o indicado seja um ministro do STJ, mais graduado que o desembargador, estão intensas.

A escolha tem aspectos bons, como não se basear em critérios estapafúrdios para indicar alguém “terrivelmente evangélico”, ou que tome cerveja com ele, e outros nem tanto, como fazer uma escolha claramente baseada em critérios políticos.

Assim como Dias Toffoli foi nomeado por ter sido advogado do PT, o desembargador Kassio Nunes é um escolhido do Centrão. Quando foi nomeado para a vaga do quinto constitucional no Tribunal Federal Regional, em 2011, teve o apoio do então governador petista Wellington Dias, preferia ir para Brasília a ficar em Recife, no TRF-5, que abrange o nordeste.

Nesses quase 10 anos, teve tempo de fazer um networking político de dar inveja, trafegando nas mais diversas correntes políticas, e contou com a sorte. Estava visitando ministros do STF e políticos para tentar ser nomeado para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e acabou escolhido para o STF. Não que o desembargador seja desqualificado para o cargo, tudo indica que não, pelo menos se comparado ao candidato preferencial de Bolsonaro, o ministro-chefe da Secretaria de Governo Jorge Oliveira, que foi sutilmente tirado da lista nas sondagens informais junto aos ministros do STF.

Bolsonaro executou com maestria um “drible da vaca”, como comparou um ministro do STF, “daqueles que o Ronaldinho deixava o zagueirão no chão”. Bolsonaro deve ter gostado da comparação futebolística. Ele havia jogado vários nomes no ar, e apareceu com uma novidade, uma solução diferente do que estavam esperando.

A indicação aparentemente agradou aos ministros do STF, que identificam o desembargador como uma pessoa centrada, equilibrada, com posições sensatas. Por exemplo, é a favor da prisão em segunda instância, mas acha que a decisão deve ser do juiz. Acredito que a escolha já esteja definida, pois Bolsonaro levou-o à casa de Gilmar Mendes, onde estavam Dias Toffoli e David Alcolumbre, presidente do Senado, e anunciou que ele seria indicado. Mas muitos ministros do Supremo estão estranhando que o anúncio tenha saído de uma reunião política.

Entendo a escolha como uma tentativa do presidente de demonstrar ao STF respeito, e entendimento de que não poderia escolher alguém que “toma cerveja” com ele. Mostrou que, na prática, acha que não deve fazer o que estava anunciando para sua platéia. Foi um gesto de aproximação. Se for mesmo escolhido por Bolsonaro, o desembargador não terá problemas no Senado, pois seu padrinho político é o Senador Ciro Nogueira, e, entre outros, tem o apoio de Renan Calheiros, do ex-presidente José Sarney e do ex-senador Romero Jucá. Aquele que disse que seria preciso fazer um acordo, “com o STF e tudo”, para acabar com a Lava-Jato.

É o que deve acontecer, pois Kassio Nunes se coloca contra os “exageros” de Curitiba, na mesma linha de Gilmar Mendes. Como vai ocupar a vaga de Celso de Mello, o futuro ministro deve ir para a Segunda Turma, completando o quorum para decretar a parcialidade do então juiz Sérgio Moro, e anular a condenação do ex-presidente Lula pelo triplex do Guarujá. Talvez não seja nem mesmo preciso fazer aquela manobra de colocar o ministro Dias Toffoli na Segunda Turma.


William Waack: Lição do debate americano

Disputa indica uma crise constitucional, já que Donald Trump só aceita um resultado: sua vitória

Não são nada boas as evidências trazidas pelo debate entre Donald Trump e Joe Biden sobre o estado geral da política americana. O debate trouxe a cara feia do que até há pouco era impensável: uma crise constitucional provocada por uma eleição de resultados contestados. Com Trump dizendo que só aceita um: o da sua vitória.

O que acontece no sistema político americano pesa de forma desproporcional no resto do mundo. Especialmente quando o país que serviu de referência – “a cidade de luzes no topo da colina”, na clássica definição – vai deixando de ser exemplo positivo.

Os Estados Unidos são um país muito grande, muito rico, muito poderoso e que exerceu grande atração como modelo de vida pública e virtudes civis (há séculos, por sinal). Mas o debate da terça feira fez saltar aos olhos como se acelerou essa “virada para dentro”, o “deixa prá lá” em relação ao que se assumia como sendo o papel dos Estados Unidos de “nação líder” (pode-se gostar ou detestar esse papel, mas não dá para ignorar).

Nota-se na falta de conteúdo substantivo do debate a presença de uma espécie de doença infecciosa espalhada de tal maneira a ponto de grandes temas de formulação de políticas domésticas e internacionais mal receberem menções – uma das poucas foi sobre desmatamento da Amazônia, provavelmente pela sensibilidade que Joe Biden julga detectar no eleitorado democrata. É como se fosse uma “amnésia” em relação ao resto do planeta, assinalam comentaristas americanos.

Um deles é Adam Garfinkle, fundador e editor da imperdível publicação “The American Interest” (que tem no seu quadro de colaboradores nomes como Francis Fukuyama, Walter Russel Mead, Robert D. Kaplan, Niall Ferguson). Ele vai ao ponto de dizer que a sociedade e política americanas vivem um “estado geral de loucura” do qual Donald Trump não foi o iniciador. Mas que ajudou a acelerar, passando a representar a “quintessencia” de um tipo de desorientação geral típico de quem se perde numa sala de espelhos.

Para Garfinkle, constatar que Trump está ativamente empenhado em solapar as instituições democráticas americanas (seu destaque favorito é a politização do Departamento de Justiça) não significa dizer que o outro lado é “bom”. “Os democratas podem parecer relativamente menos perigosos para normas e princípios americanos, mas suas divisões internas e seus julgamentos equivocados não os tornam admiráveis. Por serem meramente incompetentes em vez de imorais não os torna bons na linha do tradicional provérbio de que dois erros não compõe um acerto”, escreveu.

Já é lugar-comum afirmar que no ambiente político americano (no brasileiro também, diga-se de passagem) as pessoas não conseguem concordar em sequer quais são os fatos. Não é de hoje que a política se tornou um espetáculo de imagens rápidas, mais compatíveis a eventos de esportes brutais, nos quais o entretenimento tem total precedência. Quando tudo vai se limitando a 140 toques, e ao “joinha” no pé da postagem, esse tipo de debate acaba sendo o espelho da perda do hábito da leitura e, sobretudo, da reflexão.

É o tipo da situação na qual tanto democratas quanto republicanos colocam o “sound bite” (a “sonora”, na gíria televisiva brasileira) adiante de qualquer substância, as teorias conspiratórias na frente de qualquer abordagem racional ou de substância. De novo, não é Trump o “inventor” desse tipo de fenômeno – muito conhecido também na nossa política. Mas é ele quem se esmera em tirar todo partido possível do desrespeito às regras não escritas de convivência dentro da civilidade e do respeito à opinião alheia e, sem dúvida, da mentira descarada.

A julgar pelo que ele mesmo disse no debate, Trump terá de ser forçado para fora da Casa Branca, mas mesmo uma clara e inequívoca derrota dele não fará o relógio voltar para trás. O que pareceu perdido no espetáculo do debate de terça à noite foi o que tanto fascinou sobretudo comentaristas europeus desde o século 18: o espírito de comunidade, de virtudes civis e de dedicação ao bem comum da tal “cidade das luzes no alto da colina”.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN