Day: setembro 26, 2020
Marcus Pestana: O futuro da economia brasileira
O projeto “O Brasil pós-pandemia”, levado a cabo pelo PSDB e pelo ITV, tem procurado dialogar com grandes economistas como Armínio Fraga, Pérsio Arida e Edmar Bacha.
Armínio Fraga tem demonstrado que retomada do crescimento e combate às desigualdades são faces da mesma moeda. Acredita que se houver clareza e coragem é possível empreender um ajuste que coloque a economia nos trilhos do desenvolvimento e da equidade social.
Mas é imprescindível um vigoroso ímpeto reformista que consiga produzir uma economia em torno de 8 a 9% do PIB para criar o espaço fiscal necessário e viabilizar investimentos na qualificação do sistema educacional, nas políticas de inovação, no fortalecimento do SUS e no estabelecimento de programas de renda mínima. Além disso, cerca de 3% do PIB deste esforço deveria ser direcionado para a recuperação do superávit primário, condição necessária para evitar a deterioração do endividamento público.
Segundo Armínio Fraga, o ajuste viria das reformas que diminuam o comprometimento do gasto público com o funcionalismo e a previdência, que chegam a 80% das receitas e do corte substancial de gastos tributários que já consomem mais de 300 bilhões de reais por ano.
Na mesma linha, Pérsio Arida crê que a reforma do Estado é essencial. Mas assinala que muito pode ser feito além das reformas estruturais como uma intensa abertura externa e a aceleração do programa de privatizações.
Para ele, também a melhoria do ambiente de negócios a partir do fortalecimento da segurança jurídica e de um clima político mais confiável, são absolutamente essenciais. Reafirma que o aumento da produtividade é imprescindível. Acredita que melhorar a imagem do Brasil no exterior, abalada por questões ambientais e alinhamentos equivocados, é também peça chave. Assim como enxugar nossa Constituição, prolixa e detalhista, que amarra decisões importantes.
Já Edmar Bacha nos provocou: porque o Brasil, que foi o país que mais cresceu do pós-guerra até 1980, não realizou seu potencial? Deixou claro que o crescimento econômico depende de um círculo virtuoso entre poupança, preço dos bens de capital (máquinas e equipamentos), aumento do estoque de bens de capital, gerando crescimento e incrementando a poupança. A poupança pública foi estrangulada pela crise fiscal, derivada do aumento exponencial dos gastos correntes e a poupança privada, pelo aumento contínuo da carga tributária e do Custo Brasil. Ainda assim, acredita que o colapso do crescimento se deu mais pela queda acentuada da produtividade e do aumento dos preços dos bens de capital.
Comparou a renda per capita brasileira que em 1950 era 120% maior que a da Coréia do Sul e em 2018 era 25% da coreana. Associou diretamente as trajetórias divergentes dos dois países ao grau de abertura externa. O comercio externo (importações+exportações) representa 125% do PIB na Coréia e apenas 25% no Brasil, o que afeta a competitividade e a produtividade da economia. O caminho apontado por Edmar Bacha: abertura externa, mas não só isso. Superar nossas deficiências na educação, na infraestrutura, no sistema tributário, nos gastos com funcionalismo e previdência, no clima de incerteza política e na sustentabilidade da dívida, são ações complementares centrais.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Demétrio Magnoli: Geração abandonada pela escola será testemunho histórico da crise do coronavírus
As meninas e meninos abandonados pela escola entregarão comida por aplicativo na próxima emergência sanitária
"As aulas recomeçaram porque deixamos a pele, o estômago e os olhos em cada medida que cada instituto adotou, por sua conta e risco, com dinheiro do próprio bolso e hora extra." A diretora de um colégio público de Sevilha (Espanha), que preferiu permanecer anônima, falou com orgulho —e, como tantos educadores entrevistados pelo jornal El País, proferiu saraivadas de críticas aos governos nacional e regional. Mas ela e seus colegas enfrentaram o medo para evitar o nascimento de uma Geração Covid.
O Brasil, pelo contrário, certamente terá uma Geração Covid —isto é, milhões de crianças e adolescentes que carregarão, pela vida afora, o fardo de um ano sem escola. Segundo os indícios disponíveis, quase 30% deles não voltarão jamais à sala de aula. São, em geral, estudantes do ensino médio perdidos para sempre. Muitos outros sofrerão rupturas definitivas na sua capacidade de aprendizagem.
Escolas são redes de proteção social. Na Índia, há fortes sinais de aumento de 20% nos casamentos de meninas pré-adolescentes provocado pelo longo fechamento das escolas e, ainda, de um novo salto no trabalho infantil. No Brasil sem aulas, milhares de adolescentes pobres são cooptados pelas facções criminosas ou capturados por redes de prostituição de menores. Eles não entrarão nas estatísticas fatais da epidemia.
"Nas tragédias, o protocolo da humanidade é salvar primeiro as crianças", lembrou Viviane Senna, que não teme dizer verdades inconvenientes. A reportagem do El País (21 de setembro) revela que os professores espanhóis resolveram seguir o "protocolo da humanidade". Também mostra que, com todas as diferenças, o sistema público de ensino deles partilha muitas das carências do nosso. A verdadeira distinção está em outro lugar: por aqui, o "protocolo" não é salvar as crianças, mas seguir o comando das corporações. Os médicos peritos do INSS abandonaram os idosos pobres na rua; os professores ignoram o desastre silencioso que espreita seus alunos.
A pandemia de crianças sem aula é uma ameaça social ainda maior que a representada pelo coronavírus. Na Espanha, a retomada escolar prossegue mesmo com uma segunda onda da epidemia —assim como na França. Aulas presenciais suspensas "até a vacina"? A palavra de ordem sintetiza nossa tragédia civilizatória.
Os sindicatos de professores invocam a ciência para fazer política corporativa. Mas a OMS, junto com a Unicef e a Unesco, apela aos governos pela reabertura das escolas —e detalha protocolos sanitários para diferentes estágios da epidemia. "A maioria das evidências de países que reabriram escolas ou nunca as fecharam sugere que as escolas não foram associadas a aumentos significativos na transmissão comunitária", escreve a OMS. Mas, como crianças não votam, nossos políticos preferem ignorar o apelo, imolando os direitos delas no sagrado altar da eleição.
Bruno Covas exemplifica o intercâmbio indecente. Na sua valsa infinita do adiamento, ele "estuda" realizar um censo sorológico entre professores e funcionários, para saber quantos já tiveram a doença, estão imunes e podem voltar às escolas. O prefeito conhece de antemão o resultado: como os anticorpos decaem em pouco tempo, tornando-se indetectáveis por esse tipo de teste, a "ciência" oferecerá a conclusão de que não existe pessoal suficiente para reabrir a rede municipal. CQD.
Os professores espanhóis sanitizam salas de aula e traçam com setas amarelas os roteiros de circulação nos edifícios escolares. Estão na célebre "linha de frente", como médicos, enfermeiros, motoristas de ônibus e comerciários. A Geração Covid ficará como testemunho histórico da crise epidemiológica brasileira. As meninas e meninos abandonados pela escola entregarão comida por aplicativo na próxima emergência sanitária, quando o Brasil já terá esquecido o criminoso negacionismo de Bolsonaro.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Adriana Fernandes: Xadrez econômico
Muitos senadores não querem nem saber de novo imposto, mesmo que seja repaginado com a desoneração da folha
A campanha do presidente Davi Alcolumbre pela sua reeleição na Presidência do Senado deve dar um nó no xadrez da pauta econômica do governo no Congresso. Melhor dizendo: na agenda do ministro da Economia, Paulo Guedes.
O ambiente é de negociação intensa pela reeleição justamente na véspera da apresentação do parecer do senador Márcio Bittar (MDB-AC) da PEC do pacto federativo, que surgirá com muitas “maldades”, como são chamadas as medidas impopulares que mais tarde viram “bode na sala” para serem descartadas pelos parlamentares.
A divulgação do parecer, que aconteceria na última terça-feira, foi adiada para a próxima semana depois que o presidente Jair Bolsonaro deu aval a Bittar para seguir com as medidas mais duras e incluí-las no seu parecer, como quer a equipe de Guedes.
Bolsonaro foi convencido pelos seus aliados que as propostas polêmicas de corte de gastos podem ficar no parecer porque não terão o seu carimbo, mas o do relator.
Se passar, passou. Se não passar, a derrota não será dele. Ao Senado, caberá a tarefa de retirar do texto os pontos que já avisaram de antemão que não passa. Tudo combinado.
O problema é que o corte de despesas que resultará dessa desidratação muito provavelmente será insuficiente para garantir o Renda Brasil, o novo programa social do governo, dentro dos limites restritos do teto de gastos.
Como o caminho é de difícil aprovação de medidas mais impopulares, muito senadores nos bastidores já falam abertamente que, se for necessário, estão dispostos a abrir espaço para excluir o programa do teto. Com valores bem definidos. Se tudo for bem explicado ao mercado, que dá sinais de estresse com os riscos fiscais e tem cobrado mais prêmio para financiar o Tesouro Nacional.
Alcolumbre já conta com o apoio do PT para a sua reeleição e essa semana partiu para o contra-ataque público ao rebater uma avaliação da consultoria da Casa contra a possibilidade da sua reeleição no cargo, em fevereiro de 2021. Ele busca aval do Supremo Tribunal Federal para sua tentativa de reeleição e enfrenta oposição de caciques antigos da Casa.
Nesse ambiente em que todos pisam em ovos e compromissos vão sendo assumidos, um movimento importante precisa ser observado: a apresentação no mesmo dia pelo líder do PT, senador Rogério Carvalho (SE), de uma PEC com a defesa de novas regras para o teto de gastos. A proposta teve 31 signatários de vários partidos, inclusive aliados do presidente Bolsonaro e o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). Para uma PEC tramitar no Senado, é preciso pelo menos 27 senadores.
A proposta petista defende gastos emergenciais em 2021 e 2022 e, a partir de 2023, revogação do teto e metas de gastos diferenciados por áreas, de quatro em quatro anos. Alcolumbre também abriu o plenário do Senado nessa sexta-feira para o debate da proposta do PT, que considera que o Brasil está desalinhado em relação ao resto do mundo com o teto de gastos.
O que tem atraído os senadores é cobrança por mais recursos emergenciais para manter os 20 mil leitos abertos no SUS durante a pandemia e para o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), a linha de crédito com garantia do Tesouro para as empresas mais afetadas pela crise.
O movimento em si é mais importante do que a própria PEC da oposição, que dessa vez mudou de estratégia e já não fala da revogação do teto de gastos sem colocar nada do lugar. Outras propostas de mudanças no teto já tramitam, entre elas, a do senador e líder do MDB, Eduardo Braga (AM), que propõe a exclusão do programa social do limite de gastos.
A assinatura de tantos senadores não significa que a proposta pode avançar. É mais um sinal de que o Senado quer debater. À coluna, senadores, que não são da oposição e assinaram a PEC, dizem que querem discutir. A porta está aberta.
Muitos deles já avisaram ao governo que não querem nem saber também de novo imposto, mesmo que repaginado com a desoneração da folha de pagamentos. O xadrez está sendo jogado.
Bolívar Lamounier: Elogio do comedimento
Salta aos olhos que Bolsonaro não assimilou os conceitos e deveres da função pública
Em 2020, quer se reeleja ou não, Jair Bolsonaro provavelmente terá ainda à sua frente um país consumido por várias devastações, umas bem visíveis, outras quase invisíveis. Comecemos pelas devastações visíveis.
Falar da Amazônia é chover no molhado. Pensemos só em nossa incapacidade de efetivar as reformas sem as quais não retomaremos o crescimento econômico em bases sustentáveis. Em nosso calamitoso sistema de ensino, sobre o qual nenhuma proposta relevante de reforma veio a público nestes quase dois anos de governo. No disparate de um país que não consegue ajustar as contas do governo, mas insiste em se desenvolver com base no investimento público, e num governo que mantém o ministro Paulo Guedes como personagem figurativo. Num país corroído até a medula pela corrupção, que alimentava a esperança de reformar essa área de forma drástica, mas, em vez disso, assistiu à defenestração do ex-juiz Sergio Moro e a um tapete vermelho estendido na rampa do Planalto para o retorno da “velha política”.
Por último, mas não menos importante, uma palavra sobre nossa medíocre taxa de investimento, que nos mantém aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”. Aprisionados até onde a vista alcança, uma vez que uma renda anual per capita crescendo 2% ao ano não será dobrada em menos de 30 anos – o que ainda seria um resultado medíocre. Em tal quadro, nutrimos a ilusão de que dentro de mais alguns anos o nosso decantado “país do futuro” será um pouco melhor ou pelo menos igual a esse de que hoje dispomos, como se a possibilidade do retrocesso não existisse, a pior hipótese sendo a de ficarmos parados no tempo, sem sair do lugar.
Dediquei o parágrafo acima a focos bem visíveis de devastação, todos eles de conhecimento geral. Entre as devastações menos visíveis, a primeira a mencionar é, sem dúvida, o abandono da reforma política. Já nem falamos nela, como se o nosso sistema político fosse um primor de funcionalidade, como se as instituições, nos três Poderes, estivessem funcionando esplendidamente e como se a máquina do Estado estivesse pronta a responder ao primeiro impulso favorável ao crescimento da economia. O que se vê, infelizmente, é bem o contrário, e aqui vou me ater a um aspecto apenas da estratégia política de Jair Bolsonaro.
Nunca em nossa História tivemos tantos militares graduados no Executivo. Não estou sugerindo que isso seja ilegal, nem quero recorrer ao termo “cooptação”, sabidamente pejorativo. Mas, inegavelmente, o recrutamento para o Executivo de tantos oficiais militares não se harmoniza com o artigo 142 da Constituição de 1988, que define as Forças Armadas como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina”. Essa definição do status das Forças Armadas é o núcleo conceitual que as diferencia de uma força suscetível de partidarização ou de eventual devoção a um governo de índole caudilhesca. É óbvio que falo em tese, sem me referir a nenhuma conduta específica das Forças Armadas no atual governo. Contudo, no momento atual, expressar tal preocupação é normal e cabível, tendo em vista o clima de desvairada radicalização que possibilitou a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência e, igualmente importante, as atitudes por vezes desnorteadas que Sua Excelência assume.
Mesmo tendo passado 29 anos na Câmara dos Deputados e obtido expressiva votação no pleito presidencial, salta aos olhos que Jair Bolsonaro não assimilou na extensão devida os conceitos e deveres inerentes a toda função pública. Bem ao contrário, ele parece desconhecer a noção de “liturgia do cargo”; contraria (para não dizer sabota) de maneira frontal o trabalho dos Estados e municípios no combate à pandemia de covid-19, fomentando aglomerações e recusando-se a usar a máscara; procura influenciar a Polícia Federal, desconhecendo, ao que parece, que também ela é uma instituição de Estado; e muda de orientação política como quem troca de camisa, por exemplo, deixando de lado a “nova” e retornando à “velha” política.
Ainda mais preocupante, a meu juízo, é o manifesto desprezo do presidente da República pelo imperativo do comedimento na vida pública. A pessoa investida numa magistratura do Estado tem de compreender que não se pertence mais. O respeito devido aos cidadãos e ao país impõe-lhe a mais estrita observação desse preceito que denominamos comedimento, moderação, temperança, senso de proporção. Em seu ensaio Os Inimigos Íntimos da Democracia, o filósofo francês Tzvetan Todorov vai direto ao ponto: descomedir-se é o caminho mais rápido para reunir num único feixe os riscos objetivos a que toda democracia vez por outra se torna vulnerável. “Na Grécia antiga”, o filósofo prossegue, “os deuses puniam o orgulho dos homens que pretendessem ascender ao lugar deles, como se fossem onipotentes; entre os cristãos, o ser humano é sujeito desde o nascimento pelo pecado original, que limita severamente suas aspirações.”
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Marco Aurélio Nogueira: Sangrar sem esmorecer
Resistir significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo… Para unir as forças
Estamos carentes de uma explicação abrangente da sociedade atual.
Para desafios complexos uma teoria da complexidade é indispensável. Precisamos infletir sobre o todo, abraçá-lo. Mas os paradigmas vigentes são a hiperespecialização, de um lado, e o fanatismo negacionista, de outro. Ambas as vertentes desarmam o pensamento crítico, levando a que se vejam paisagens na neblina, pedaços imprecisos do real.
Parte importante da dificuldade se deve a estarmos numa megatransição, saindo da vida apoiada em instituições estáveis e em rotinas disciplinares bem estabelecidas – na família, na escola, no trabalho – para uma a vida mais líquida, veloz, instável, sobrecarregada de riscos e incertezas, na qual “tudo o que é sólido se dissolve no ar” em questão de dias.
Achar que éramos felizes antes é uma nostalgia paralisante. Não viveremos mais como nossos pais, se é que algum dia vivemos. Continuaremos a repetir alguns de seus hábitos e atitudes, a ser influenciados por sua convivência e por sua memória, mas o futuro seguirá outros caminhos.
A megatransição subverte o modo como trabalhamos e vivemos, como nos relacionamos, nos organizamos e fazemos política, como pensamos e estudamos. Inutiliza os mapas antigos, os discursos codificados, as práticas cristalizadas. Mas no dia a dia tendemos a buscar refúgio naquilo que conhecemos e terminamos por não saber em que terreno pisamos. Fugimos da realidade que não compreendemos. O negacionismo é parte disso, impulsionado pela ignorância anticientífica.
Explicações simplistas, “analógicas”, orientadas por doutrinas congeladas, colidem com a complexidade do real, mas nem por isso são abandonadas. Funcionam como fotos em preto e branco num ambiente multicolorido.
As dificuldades inerentes a essa transição – adaptação, insegurança, assimilação – combinam-se com crises desastrosas, que se interpenetram e ampliam a crise do modo de produção capitalista. A pandemia explicitou uma crise sanitária de vastas proporções. Há a crise do emprego e do trabalho, que desestrutura, desprotege e rouba identidades, embaralhando sindicatos e movimentos associativos. A crise climática e ambiental está aí, desafiadora. Há a crise da democracia representativa e dos partidos políticos, que também é uma crise da política. Há uma crise de paradigmas, que nos tira o foco da totalização e nos deixa com mais dificuldades de pensar, de escolher, de explicar o mundo.
No Brasil, o passado lateja forte. O País modernizou-se, mas não o suficiente para se soltar das estruturas tradicionais. Perdemos uma oportunidade durante o ciclo de ouro da social-democracia à brasileira, entre 1995 e 2010. “Passado”, aqui, é uma metáfora com múltiplos significados: a desigualdade, a miséria, a falta de saneamento, o desmatamento selvagem, o sistema escolar ruim, a economia de baixa produtividade, o racismo estrutural, o autoritarismo mal disfarçado, o Estado pouco eficiente, a escassez de estadistas e lideranças democráticas. Tudo isso sustenta o reacionarismo prevalecente.
Temos um governo que fracassa em termos de gestão, mas se apresenta como um porto seguro retórico que ilude e bloqueia o entendimento da realidade. Nega todas as crises, que, se não são por ele provocadas, têm nele um fator de propulsão. Seu plano é criar confusão permanente, dentro e fora do País, intoxicando a população com palavras de ordem grotescamente nacionalistas e assustando investidores.
Desgasta-se, assim, o que há de cultura democrática nos brasileiros, que são desestimulados de participar civicamente da vida coletiva. Uma imagem de País vai pelo ralo.
Viver em redes tem significado viver com mais dispersão e menos diálogo. A sociabilidade digital não conseguiu, até agora, expandir as interações democráticas. Desloca as pessoas para guetos autossuficientes, em que vicejam superficialidades, boatos e mentiras, em que cada um fixa sua bandeira à espera de aplausos. Os manipuladores deitam e rolam. Perde-se a motivação para dialogar com os diferentes. A política sangra. Viramos prisioneiros da nossa própria individualidade.
Será preciso um enorme esforço para reerguer o movimento liberal-social-democrático.
Protagonizamos uma incompletude: nossa democratização não se estabeleceu de fato, não se concluiu, por mais que tenhamos avançado. A sociedade não a digeriu, não a incorporou ao seu DNA. Jamais nos desgarramos das bases do retrocesso. A “Constituição cidadã”, uma conquista democrática, não chegou a ser propriamente assimilada pelos diversos interesses.
Não é só o governo retrógrado que perturba, nem somente o capitalismo, o desemprego e a desigualdade. Disputas estéreis dividem os democratas. Há muitos problemas em termos de valores, ideias e atitudes. Estamos sem perspectiva.
Lutar contra essa crise passa por dar murros em pontas de faca. Sangrar sem esmorecer. Resistir, hoje, significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo, da argumentação serena e generosa. Para reunir as forças.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Sergio Denicoli explica como agem ‘robôs militantes’ e aponta final ‘infeliz’
Pós-doutor em comunicação publicou análise na revista Política Democrática Online de setembro
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A guerra de narrativa na internet abre um grande campo de atuação para “robôs militantes”, principalmente, no período das eleições. “São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar”, analisa o pós-doutor em comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital, Sergio Denicoli, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de setembro.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, o especialista destaca como as narrativas ganham cada vez mais destaque e poder, principalmente, com a estratégica de mimética, reforço das repetições, provocados pelo conhecidos memes. T
“Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação, e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional, para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos”, exemplifica
Ele pondera que essa história de amor com os robôs pode levar, certamente, a um final “infeliz”. “Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, ‘a lei é a razão livre da paixão’. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional”, afirma. “Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram”, continua.
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