Day: setembro 24, 2020

Reforma tributária, estupros e paixão por robôs são destaques da Política Democrática

Produzida pela FAP, revista mensal tem acesso totalmente gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Impactos da reforma tributária, estupros contaminados por guerra ideológica e a crescente relação das pessoas com robôs na internet, em meio a um intenso conflito de narrativas, são destaques da edição de setembro da revista Política Democrática Online, lançada nesta quinta-feira (24). Todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que produz e edita a publicação.

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No editorial, a publicação destaca a defesa da democracia e o combate à corrupção. “A defesa da democracia exige a preservação da fronteira entre decisões da política, nas quais vigora o princípio da maioria, e decisões da justiça, que dependem da aplicação das leis por um corpo de funcionários qualificado”, diz. “A resposta democrática às falhas da Justiça é a reforma das regras, não a contestação das sentenças”, continua.

Na economia, a revista destaca entrevista exclusiva com o consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) Everardo Maciel, que foi secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Ele analisa as três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para foi solicitado tratamento de urgência no Congresso Nacional.

“A lista de perdedores é imensa”, critica Maciel. “Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas”, analisa o consultor.

Já a reportagem especial destaca histórias e dados de vítimas de estupro no país. A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), mostra que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos estupradas. 

Outra abordagem de comportamento humano é analisada em um artigo sobre a relação das pessoas com robôs na internet. “Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação, e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional, para nos roubar a floresta”, analisa o pós-doutor em comunicação Sérgio Denicoli, diretor da AP Exata – Inteligência Digital.

Já a mentalidade bolsonarista é assunto para análise do professor titular de Literatura Comparada da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ensaísta João Cezar de Castro Rocha. “Trata-se de reduzir o outro ao mero papel de adversário, inimigo a ser eliminado. Por isso, muito mais importante do que somente derrotar o Messias Bolsonaro é superar o próprio bolsonarismo”, alerta.

A revista Política Democrática Online de setembro de também tem artigos sobre política e cidadania, proposta de reforma administrativa, recessão, perspectivas da economia, cinemateca brasileira, cinema argentino, história política do Chile e as eleições dos Estados Unidos.

A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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Luiz Carlos Azedo: O imposto da reeleição

Guedes voltou a defender a reforma tributária. Agora, pretende aumentar o peso do Estado na economia e não o contrário, como anunciou nos tempos áureos de Posto Ipiranga

Há quase um consenso no Ministério da Economia de que a antecipação do projeto de reeleição do presidente Jair Bolsonaro, em meio à pandemia, tornou-se o maior complicador da política econômica. Muito do comportamento errático do ministro Paulo Guedes decorre dessa contingência política, que não tem nada a ver com as necessidades dos agentes econômicos. Ontem, ao afirmar que indexadores não resolvem os problemas, que a solução dos mesmos é sempre política, citando as medidas de “economia de guerra” adotadas pelo Congresso, Guedes jogou a tolha: já não lidera a política econômica do governo, rendeu-se ao “dispositivo parlamentar” montado por Bolsonaro e os generais que hoje mandam na Esplanada dos Ministérios.

Os líderes do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE); e no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), são raposas políticas experientes, operam em conexão direta com os ministros da secretaria de Governo, general Luiz Ramos; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, para viabilizar desde já o projeto de reeleição de Bolsonaro, em troca de apoio nas eleições municipais para os candidatos ligados ao Centrão, o bloco político que ancora o governo no Congresso. Guedes foi engolido por esse grupo.

A política, em última instância, é a economia concentrada, mas a experiência mostra que a blindagem da política econômica é que garantiu o sucesso do Plano Real, no governo Fernando Henrique Cardoso, com o economista Pedro Malan no Ministério da Fazenda, e do governo Lula da Silva, com Guido Mantega comandando a economia. Em ambos casos, porém, o projeto de reeleição teve um custo muito alto. No governo Bolsonaro, a equipe econômica, em vez de ser blindada, está sendo implodida pelo próprio presidente da República.

Ontem, por exemplo, o “dispositivo parlamentar” — como não lembrar, com sinal trocado, do “dispositivo militar” do presidente João Goulart, que não impediu sua deposição —, anunciou junto a Guedes que o governo desistiu de manter o veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de pagamentos de 17 setores da economia intensivos em mão de obra. A decisão foi tomada porque o governo concluiu que já estava derrotado no Congresso. Guedes, que orientou o veto presidencial, é o grande perdedor. Agora, o Palácio do Planalto quer fazer do limão uma limonada. Como? Usando a derrubada do veto como justificativa para criar um novo imposto sobre operações financeiras. Ou seja, o governo pretende aumentar a carga tributária, com um imposto com efeito cascata.

Investimentos

O objetivo é gerar uma sobra de caixa para a implantação do programa Renda Brasil, a transferência de R$ 300 para a população de baixa renda hoje atendida pelo Bolsa Família e o abono emergencial. Concebido para ser o carro chefe da campanha de reeleição de Bolsonaro, o programa ainda não tem viabilidade, por falta de recursos no Orçamento. Para pôr de pé a proposta, Guedes voltou a defender a reforma tributária. Agora, pretende aumentar o peso do Estado na economia e não o contrário, como anunciou nos tempos áureos de Posto Ipiranga.

O resultado da movimentação errática do governo na economia está sendo a volta da inflação, a queda da Bolsa e a alta do dólar, como mostram os indicadores anunciados ontem. O pior ainda está por vir: a taxa recorde de desemprego, que deve chegar a 18% da população economicamente ativa, considerando-se apenas os que procuram emprego, o critério adotado pelo IBGE. Nesse rumo, logo o Banco Central (BC) terá que aumentar a taxa de juros, hoje em 2%, o que é muito bom diante da recessão causada pela pandemia, mas começa a ser pressionada pelos juros nas operações de venda de títulos públicos, por perda de confiança dos investidores.

O Banco Central anunciou, ontem, uma queda de 26,6% nos investimentos diretos, que somaram US$ 22,8 bilhões no primeiro semestre, contra US$ 31,1 bilhões no mesmo período do ano passado. Neste ano, ao contrário do que o presidente Bolsonaro disse em seu discurso na ONU, os investidores já retiraram R$ 88,9 bilhões da Bovespa, o dobro do volume registrado no ano passado: R$ 44,5 bilhões. É o pior desempenho em 11 anos. A pandemia e a recessão mundial têm culpa nesse cartório, assim como é compreensível que o ministro Guedes tente vender otimismo e anuncie uma recuperação em V da economia brasileira, mas não está sendo convincente. Ainda não caiu a ficha de que a falta de confiança dos investidores é resultado do comportamento errático do governo na economia, das crises criadas pelo próprio presidente Bolsonaro e de uma política ambiental desastrosa. Criar um imposto para garantir a reeleição do presidente da República não resolve o problema.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-imposto-da-reeleicao/

Carlos Melo: Previsível, Bolsonaro é lacuna brasileira no cenário internacional

Na inconstância e no arrebatamento de seu líder, o governo Bolsonaro é previsível e banal. Foge ao modelo de instituições eficientes, capazes de garantir segurança e perspectivas de longo prazo a cidadãos e negócios; não coordena, não conduz, não se antecipa a problemas que, antes, ele os cria.

O esdrúxulo e o voluntarismo são regras consolidadas nas quais pode-se apostar, sem risco. Foi o que se viu no discurso brasileiro na ONU. Novamente, o presidente foi previsível: lavou as mãos em relação à pandemia, vangloriou-se daquilo que não fez, desprezou a ciência. Na questão ambiental, vitimizou-se; grande injustiçado mundial.

Sua “política de tolerância zero ao crime ambiental” foi o ponto mais criativo (e irônico) do discurso.

Voltou a acusar a Venezuela, alvo preferencial de “inimigo externo” – todo regime autoritário precisa de um. Em sua cruzada medieval, denunciou suposta “cristofobia”. Adulou Donald Trump, sapateando sobre as brasas do multilateralismo. Trump exerce enorme fascínio sobre o brasileiro, que o ama e o saúda em continência, com gestos e opiniões clonadas.

Bolsonaro sabe que se Trump for derrotado em novembro, seu governo estará isolado. Por isso, incrementa doses de maior submissão. A troco do quê?

Possivelmente, nem Bolsonaro nem seu chanceler saibam ao certo, pois a reciprocidade de Trump tem sido humilhante para o Brasil. As “bases” aprovam. Mas, agarrar-se a Trump não é solução, mesmo em caso de vitória. No Concerto das Nações, o atrelamento de um país a outro o transforma num garoto de recados, sem importância. Mesmo assim, nada disso é estranho: no caleidoscópio sem lógica do universo bolsonariano, vertigem dá prazer.

✽ Cientista político. Professor do INSPER


O Estado de S. Paulo: Alcolumbre não tem respaldo para reeleição, diz nota da consultoria do Senado

Interpretação será usada por adversários para reagir à tentativa do parlamentar de ser reconduzido ao comando do Congresso em fevereiro do próximo ano

Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Uma análise da Consultoria Legislativa do Senado afirma que a reeleição do atual presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), é inconstitucional. A interpretação será usada por adversários para reagir à tentativa do parlamentar de ser reconduzido ao comando do Congresso em fevereiro do próximo ano. 

De acordo com a nota, assinada pelo consultor Arlindo Fernandes de Oliveira, é "inequívoco" que a reeleição é proibida dentro da mesma legislatura, ou seja, sem uma nova eleição para renovação dos mandatos no Legislativo federal. O documento não é uma opinião oficial do Senado, mas serve como subsídio para o posicionamento dos parlamentares sobre o tema. A análise foi feita a pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que faz oposição a Alcolumbre no Senado.

"É conhecido o critério adotado tanto pelo Senado Federal quanto pela Câmara dos Deputados para a eleição de suas mesas, e esse critério, embora tenha comportado mudanças, nos trinta anos de vigência da Constituição de 1988 e do regime democrático que ela instituiu, nunca comportou a reeleição dentro de uma mesma legislatura, após o exercício pleno de um mandato", diz a nota do consultor legislativo.  

De acordo com o técnico do Senado, a reeleição do presidente da Casa não encontra respaldo na Constituição nem no regimento interno da Casa. A Carta Magna estabelece que os integrantes das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado serão eleitos para um mandato de dois anos, "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente". O regimento repete a mesma regra.

Princípios

Além das questões técnicas, a nota da consultoria aponta a renovação no poder como um princípio republicano. O técnico também aponta a necessidade de segurança jurídica nas normas eleitorais para não se alterar a regra no meio do jogo e beneficiar quem está no poder. Mesmo que a Constituição seja alterada para permitir a reeleição, senadores questionam se a mudança poderá valer para 2021 e beneficiar Alcolumbre na disputa.

A nota da consultoria é diferente do posicionamento adotado pelo próprio Senado. Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto, a Mesa Diretora da Casa argumentou a legalidade da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A Corte julgará uma ação que questiona a possibilidade. Alcolumbre tenta aval do tribunal para emplacar sua candidatura.

O relator da ação no STF é o ministro Gilmar Mendes. Na última segunda-feira, 21, ele esteve em um jantar com Alcolumbre na casa da senadora Kátia Abreu (PP-TO), que articula a reeleição do amapaense no Senado. O banquete, nesse caso, foi servido por interessados no julgamento para aquele que vai julgar o caso.

O entendimento de que a reeleição da cúpula do Congresso é assunto que cabe apenas ao Legislativo ganha força entre diferentes alas do Supremo e mobiliza adversários de Alcolumbre. "O único caminho viável para a reeleição do Davi é mudar a Constituição. A esperança de ver o STF rasgar a constituição me parece irreal", afirmou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). "Se o STF lavar as mãos será a maior desmoralização do STF desde o seu surgimento", disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

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Zeina Latif: Provocando os contribuintes

As lideranças do funcionalismo precisam buscar o diálogo honesto para proteger aqueles que elas representam

A construção da cidadania iniciou-se tardiamente no Brasil. Em uma sociedade escravocrata e com domínio da oligarquia rural na estrutura econômica e social do País até 1930, não havia espaço para liberdades individuais e participação social ampla na esfera pública.

Além de tardia, a cidadania teve evolução muito lenta, por conta dos ciclos autoritários que marcaram nossa história, quando as liberdades de expressão e de mobilização eram suprimidas.

Da mesma forma que o ambiente era pouco propício à cidadania, o era também para a educação de massas. A ausência de educação básica universal até a década de 1990 é, ao mesmo tempo, reflexo e agravante da cidadania incipiente.

Esse quadro não impediu as várias revoltas populares em nossa história, que eram reprimidas com violência, sendo que o longo período militar deixou marcas. A repressão pode ter contribuído para uma sociedade pouco inclinada à reivindicação.

O resultado é que prevalecem os interesses de grupos organizados na agenda política, enquanto preserva-se muitas vezes o equilíbrio social com populismo e paternalismo. Uma combinação que impede o maior crescimento econômico.

As novas gerações, beneficiadas pela conectividade digital, têm desafiado a “velha ordem” e anseiam por maior participação política – ainda que por vezes as reivindicações sejam injustas. Essa foi a lição dos protestos de 2013.

A crise atual cria um ambiente mais propenso a reivindicações. O distanciamento social e a volta da economia contribuem para a população dar o benefício da dúvida aos governos. Talvez não por muito tempo. A crise ceifa oportunidades de trabalho e de desenvolvimento, gerando insatisfação.

Temas que antes eram pouco presentes no debate público têm ganhado evidências e geram indignação. É o caso das regras que regem o serviço público, com benefícios não disponíveis ao trabalhador do setor privado. A pesquisa Exame-Ideia mostra que 34% dos entrevistados são contra a estabilidade do funcionalismo. Predominam os que são a favor (52%), mas 34% não é pouco, posto que é um debate recente. Além disso, 53% são a favor de a reforma administrativa proposta pelo governo valer também para os atuais servidores, e não apenas para futuros concursados.

Enquanto isso, organizações que representam os servidores públicos mostram-se indiferentes ao sofrimento da população. Falta espírito público a um grupo que deveria servir à sociedade e que conta com estabilidade de emprego e renda.

Os sindicatos de professores recusam o retorno das aulas presenciais, deixando de lado os estudantes e os responsáveis que voltam ao trabalho e sofrem por não ter como cuidar dos filhos. Para a Apeoesp, que representa os professores da rede pública de São Paulo, “voltar às escolas é genocídio” e “o não retorno às aulas presenciais é inegociável”. Deveriam estar discutindo como retomar as aulas presenciais com segurança.

Muitos médicos peritos do INSS relutam em voltar ao trabalho. A associação que os representa, ANMP, obteve uma vitória na Justiça Federal, que suspendeu o retorno presencial, o que impede o governo de cortar o ponto dos faltosos.

Dezenas de sindicatos de servidores se unem contra a reforma administrativa governo. Muitos se acreditam especiais, enquanto o governo falha em sua comunicação.

A elite do funcionalismo, principalmente do sistema judiciário, tem conseguido preservar e até criar novos privilégios. O Ministério Público Federal obteve aprovação para contornar a regra do teto e garantir recursos para o auxílio-moradia. E juízes poderão receber mais 1/3 do salário ao assumir estoque de processos que aguardam julgamento.

Não seria justo generalizar. Não faltam servidores zelosos de suas responsabilidades, sendo que há grande desigualdade de renda dentro do serviço público. As lideranças do funcionalismo, no entanto, precisam buscar o diálogo honesto e resgatar o espírito do serviço público. Na intransigência, não estão protegendo a quem representam. Estão, sim, provocando a ira dos contribuintes.

*CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP


William Waack: De quem é a culpa

Por não entender o que acontece lá fora, governo perde guerra da comunicação

A situação internacional que o Brasil enfrenta em relação às políticas ambientais de Jair Bolsonaro é séria e perigosa. Vamos olhar o que acontece do ponto de vista da comunicação, deixando para especialistas dos vários outros setores o mérito de questões específicas.

Existe desinformação no que se diz e se publica sobre o que acontece na Amazônia e no Pantanal? Sim. Existem interesses de competidores comerciais incomodados com a capacidade brasileira de produzir grãos e proteínas? Sim. Existem organizações (partidos, ONGs, instituições religiosas) com agenda político-ideológica atacando um governo (o brasileiro) por considerá-lo seu adversário? Sim.

Nada disso é novidade nem começou com Bolsonaro. Mas o governo está sabendo enfrentar essa batalha da comunicação? Não. Faltam aos que tomam esse tipo de decisões em Brasília dois elementos fundamentais que ajudam a entender a natureza deste que é um dos maiores desastres de comunicação em escala internacional.

O primeiro elemento é a falta de compreensão do fenômeno lá fora, mas não só. Por incrível que pareça, o governo brasileiro não entendeu a abrangência, a profundidade e o peso da questão climática e ambiental na sua escala planetária. Se isto era, nos idos da Rio 92 (quando o Brasil se preparou muito bem para o que viria), uma agenda de instituições multilaterais e de governos, empurrados em parte por ONGs, hoje a questão ambiental molda nosso “Zeitgeist”, o espírito de uma época, e condiciona a percepção da realidade de gerações inteiras de atores políticos, instituições, governos, consumidores, empresários, grandes corporações no mundo inteiro.

Há um notável apego de ocupantes de gabinetes no Planalto, especialmente generais estrelados, em enxergar no tsunami negativo lá fora em relação ao Brasil articulações contra a nossa soberania em geral e nosso governo em particular – um esquema mental diretamente transferido dos anos setenta para uma realidade muito mais complexa do que conspirações geopolíticas para negar ao Brasil seu direito manifesto de ser uma grande potência. Em outras palavras, embarcaram na guerra de ontem.

O segundo elemento que ajuda a entender o desastre de comunicação é o apego a táticas político-eleitorais – como a negação de fatos, o “deixa que eu chuto”, o xingamento do adversário, a efervescência nas redes sociais – que funcionam no ambiente polarizado de eleições. Mas que tem se mostrado inócuas em escala internacional. O “enfrentamento” duro do adversário, real ou percebido, até aqui não avançou os interesses do Brasil.

Ao contrário, se há algo que o “altivo” discurso de Bolsonaro evidencia quanto à “estratégia” de lidar com a crise internacional de imagem brasileira é a de que ele não tem nenhuma – além de satisfazer seus seguidores domésticos. E não estamos falando de danos subjetivos ou de “percepções” deste ou daquele dirigente ou personagem do debate ambiente versus economia (totalmente superado até na China): estamos falando de danos concretos à capacidade do Brasil de competir nos mercados que interessam.

O extraordinário de tudo isso é que o Brasil tem, de fato, lições a dar em matéria de meio ambiente e de como aumentar a produção de grãos e proteínas de forma sustentável e socialmente responsável. Tem lições a dar em matéria de matrizes energéticas. Dispõe de sólida tradição diplomática (hoje abandonada) na busca de decisões por consenso e cooperação multilaterais. E uma imagem (ainda que cada vez mais distante da realidade social) de um país aberto, simpático, tolerante e bonito.

São ativos desprezados na batalha da comunicação. Enfrentar o que estamos enfrentando lá fora em termos de imagem não é culpa dos outros, dos insidiosos adversários. É nossa, mesmo.

*Jornalista e apresentador do jornal da CNN


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro e Trump em busca do inimigo externo

EUA e Brasil têm os maiores cemitérios da covid, não é por acaso que coincidem no discurso

Primeiro e maior fórum mundial desde o início da pandemia, a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas revelou como a covid-19 não apenas moldou a visão de mundo de chefes de Estado como também a maneira como cada um pretende que a reação à doença seja vista, principalmente, em seu próprio país.

As falas, porém, não se limitaram à projeção de um caldo multinacional de quimeras. Confrontados, os discursos de Xi Jinping (China), Vladimir Putin (Rússia), Emmanuel Macron (França), Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro deixam claro que apenas os dois últimos fizeram da pandemia a deixa para a fantasia do inimigo externo. Talvez não seja coincidência que Estados Unidos e Brasil sejam aqueles que, neste grupo, registram tanto o maior número absoluto quanto proporcional de mortos pela doença.

Dos cinco chefes de Estado, Xi Jinping foi quem mais falou da pandemia. Anteviu o que seria o discurso de Trump, que o antecedeu com 20 menções à China, mais do que o dobro de todas as referências à doença, às suas consequências e às providências tomadas.

Ante um Trump que resume o drama mais devastador da humanidade desde a criação da ONU ao “vírus chinês”, Xi citou 13 vezes a covid-19, doença que teve uma única menção no discurso do presidente americano, e nove, o vírus, a despeito da nacionalidade imputada. E propagandeou a “diplomacia da vacina” para substituir a das máscaras e expurgar o espectro da culpa chinesa.

Sem enfrentar as mesmas imputações de Xi, Putin foi pelo mesmo rumo. As menções do presidente russo à doença superaram, com folga, todas as suas demais obsessões sobre segurança cibernética, armas químicas e nucleares e fronteiras. Se deixou explícita uma disputa ali foi aquela com a China pela diplomacia da vacina. Um (Xi) tratou dela como bem público e se comprometeu a dar prioridade de acesso a países em desenvolvimento e o outro (Putin), ofereceu-a de graça aos funcionários das Nações Unidas.

É bem verdade que são dois chefes de Estado que não enfrentam esse problema chamado eleição. Podem se dar ao luxo de exibir altruísmo ao mundo e a seus nacionais num contraponto a um presidente, como Trump, que não baixa as armas nem sob uma pandemia. Tem alguma outra doença em curso, além da covid-19, a assolar a humanidade quando o candidato à reeleição na mais rica democracia do mundo precisa contornar uma doença que já tirou a vida de 200 mil cidadãos para ganhar a disputa.

Uma patologia da mesma família atinge o Brasil. O chefe de Estado, mesmo não estando em campanha eleitoral, precisa fazer igual contorcionismo para falar sobre a doença que levou seu país, com 138 mil mortos, a ultrapassar, em proporção de vítimas, os EUA de sua inspiração.

Não faltam menções apenas à doença no discurso de Trump e Bolsonaro. Inexistem referências à pobreza ou à desigualdade. Talvez não precisassem imitar Macron que, em seu discurso quilométrico (sete vezes maior do que o de Trump e quatro vezes maior que o de Bolsonaro), fez 30 referências à doença, e nove aos seus efeitos sobre pobreza e desigualdade.

Trump, no entanto, limitou-se a dizer que produziu um número recorde de ventiladores, reduziu o índice de fatalidade e está empenhado na busca por uma vacina. No resto do discurso, a doença foi apenas um trampolim para culpar a China e a Organização Mundial de Saúde. Em plena pandemia, achou por bem informar ao distinto público que os EUA gastaram U$ 2,5 trilhões nos últimos quatro anos (mais do que as despesas feitas para o combate à doença e a seus efeitos) em defesa: “Temos as Forças Armadas mais poderosas do mundo”.

Bolsonaro seguiu a mesma trilha. Fez quatro menções aos militares e uma única - equivocada - sobre médicos e enfermeiras que estão no campo de batalha da pandemia (“[O governo] estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença”).

Quem assistiu ao discurso de Bolsonaro não tomou conhecimento sobre iniciativas que poderiam ter contido a doença, como, por exemplo, uma testagem maciça, mas foi informado da presença militar em Roraima que, dias antes, servira de palanque para o secretário de Estado, Mike Pompeo, se dirigir aos eleitores anti-Maduro da Flórida.

Em 2019 os militares tinham ficado ausentes do tresloucado discurso com o qual Bolsonaro se apresentou ao mundo numa guerra santa contra o socialismo de Fidel Castro. Desta vez, o comando de caça aos comunistas ficou de fora - assim como do discurso de Trump - e os militares ocuparam o espaço.

Saem os socialistas e entram aqueles que ameaçam a soberania brasileira na Amazônia. O tema, que tinha ficado ausente do discurso de 2019, teve, desta vez, sete menções - todas contestadas por quem entende de floresta.

O peso que deu ao tema só foi comparável ao de Xi, sendo que o presidente chinês se comprometeu com metas ousadas de redução de gases-estufa enquanto Bolsonaro só mostrou compromisso com a desinformação. Nem polemizar conseguiu. Ao contrário de 2019, quando Macron fez do clima e da Amazônia seu cavalo de batalha, com mais de 20 menções ao tema, desta vez o presidente francês citou os embaraços climáticos de passagem e, com a arapuca já armada no acordo da União Europeia com o Mercosul, passou reto diante da Amazônia.

O discurso soberanista não devolve as onças-pintadas ou os milhares de hectares queimados nem contém a ameaça sobre centros de excelência na produção de dados sobre as florestas brasileiras. Sem defesa para a covid-19, no entanto, foi o que restou a Bolsonaro.

A aposta de Trump de que o “vírus chinês” o eximirá de suas responsabilidades será testada em pouco mais de um mês. A de Bolsonaro ainda tardará, mas esquenta os motores contra as “instituições internacionais” de preservação ambiental. Busca um inimigo externo para a dificuldade de o Brasil atrair capital e gerar emprego. Na tentativa de copiar Trump, mimetiza Nicolás Maduro.

Ainda que tenha maioria parlamentar, dois ministros a mais no Supremo e avance sobre instituições de controle, o presidente pode acabar, como Maduro, só com seus fardados na batalha. A palavra “democracia”, mencionada até por Xi e Putin, não apareceu na fala de Bolsonaro - nem na de Trump.


Vinicius Torres Freire: A novela dos pobres no governo Bolsonaro

Depois de semanas de reviravoltas, não há dinheiro para Bolsa Família gordo

Na história da TV, ficou célebre um método para dar um jeito em novelas com enredo enrolado, insolúvel e cheio de personagens: matar todo o mundo. Por enquanto, parece esse o destino da novela da criação de um Bolsa Família Verde Amarelo. Afora mágicas e milagres, não há solução a não ser matar esse plano ou matar um personagem qualquer que ainda não entrou na dança.

Além da confusão no “núcleo pobre” desse drama, há risco de a história ficar ainda mais enrolada no “núcleo politico”, pois o governo quer mesmo criar uma CPMF ou “tributos alternativos”, no dizer de Paulo Guedes.

No antepenúltimo capítulo da novela, Jair Bolsonaro proibira “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. No penúltimo episódio, governo e parlamentares governistas teriam acertado que bancariam o Bolsa Família encorpado tirando dinheiro de quem recebe benefícios do INSS e do gasto em saúde e educação.

No capítulo desta quarta (23), Bolsonaro teria vetado o corte de aposentadorias e assemelhados, dizem deputados. Outros afirmam que a proposta de congelar o reajuste do salário mínimo não passaria mesmo (o salário mínimo é o valor do piso dos benefícios previdenciários e assistenciais). Dizem também que não aprovam o fim do reajuste obrigatório da despesa mínima em saúde e educação (isto é, da correção ao menos pela inflação). Mesmo que aprovassem a correção obrigatória, haveria reajuste de qualquer maneira.

Para recordar: o Bolsa Família encorpado não pode então ter dinheiro do fim do abono salarial, do seguro-desemprego sazonal para pescadores, do congelamento de benefícios do INSS ou de saúde e educação. Deputados vetam também, claro, qualquer mexida nos fundos constitucionais (como os que dirigem recursos às regiões).

No entanto, os parlamentares governistas dizem que o plano é criar um programa de renda básica que pague cerca de R$ 226 a 24 milhões de famílias. Trata-se um aumento de R$ 30 bilhões na despesa do Bolsa Família (ora orçada em quase R$ 35 bilhões para 2021).

Não haverá dinheiro, nem mesmo esfolando os servidores públicos no limite previsto pelas emendas constitucionais enviadas pelo governo ao Congresso no final de 2019 (a Emergencial e a do Pacto Federativo). Não haverá fundos mesmo se forem cortados penduricalhos de funcionários da elite salarial ou “enxugando a máquina”, já na penúria.

Note-se que a despesa da Previdência vai continuar a crescer, mesmo com a reforma —aliás, não está crescendo porque o número de beneficiários está quase congelado.

Ressalte-se que um Bolsa Família encorpado seria uma despesa obrigatória grande sem fonte regular de financiamento. Mais ainda: se a renda mínima fosse criada e a despesa da Previdência continuar a crescer (e vai), minguaria até a seca o dinheiro para investimento em obras.

Assim, a criação de uma fonte de recursos para uma renda mínima é conflito político na certa, mui provavelmente com os servidores, alternativa restante. Caso o governo insista na CPMF ou no “tributo alternativo”, vai juntar o sururu ao salseiro. O governismo ora mais encorpado no Congresso aceita discutir o imposto, mas a opinião de líderes é que há pouca disposição de levar o assunto adiante.

Por fim: aumentar a receita de impostos não resolve o problema de financiamento da renda mínima, do investimento ou do que for, dado o teto de gastos. Podem cobrar CPMF, “taxar grandes fortunas”, o hectare de mata queimada ou o ouro de Marte que não adianta: não se pode aumentar despesa. Tem de tirar de alguém para dar aos paupérrimos.


Bruno Boghossian: Guedes se associa ao centrão para ganhar poder de barganha

Ministro cede a parlamentares e abre portas de estatais para indicações políticas

Paulo Guedes não era fã de deputados e senadores quando chegou a Brasília. Apesar de ter chancelado a campanha de um candidato que havia passado três décadas no Congresso, o ministro usava a expressão "criaturas do pântano político" para se referir a grupos que "se associaram contra o povo brasileiro".

Por quase dois anos, ele se queixou desses monstrengos. Sugeriu dar uma "prensa" nos parlamentares, disse que eles não se importavam com as criancinhas e ainda rompeu com o presidente da Câmara.

Agora, algo mudou —e não foram os políticos. O ministro afirmou a aliados que vai abrir portas de estatais e outros órgãos para o centrão. Segundo uma reportagem da Folha, Guedes avisou que vai discutir com o Planalto nomes indicados pelos partidos que apoiam o governo.

Mais que uma jogada pragmática, trata-se de uma capitulação. Além de demolir de vez o discurso de Jair Bolsonaro contra o loteamento de cargos, a decisão fragiliza ainda mais a agenda de privatizações de Guedes. Ocupar empresas com políticos é a maneira mais eficaz de garantir que eles continuem por lá.

O ministro reconheceu que o centrão dá as cartas na política e na economia. Até aqui, o Congresso fez o que quis: impediu reduções de benefícios sugeridas por Guedes, aumentou o auxílio emergencial proposto pelo governo e aprovou o perdão de dívidas das igrejas com a Receita.

Ele percebeu também que não pode contar com o próprio chefe para salvá-lo desses dribles. Guedes protestou e conseguiu que Bolsonaro barrasse a anistia para os líderes religiosos. Na mesma hora, o presidente incentivou uma traição ao ministro com a derrubada do veto.

Fragilizado, Guedes decidiu se associar aos parlamentares do centrão no momento em que sua plataforma se torna alvo de questionamentos até de investidores. A manobra dá ao ministro algum poder de barganha em Brasília, mas o histórico da relação sugere que as "criaturas do pântano político" continuarão no comando dessa agenda.


Maria Hermínia Tavares: Tragédia de erros

Subserviente a Trump, o Brasil não dá contribuição positiva à crise da Venezuela

Antes que o patético discurso do presidente na ONU lhe roubasse a cena, o chanceler Ernesto Araújo serviu de escada para que, na sexta (18), o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, em visita a Roraima, despejasse pesados ataques contra o governo ditatorial da Venezuela. Em Washington, todos sabem que suas palavras tinham como verdadeiros destinatários os eleitores do sul da Flórida, onde se concentram comunidades de exilados cubanos e venezuelanos, cujos votos serão importantes para Donald Trump.

No capítulo "Venezuela libre", do livro de memórias dos seus tempos de Casa Branca —"The Room Where It Happened" (A sala onde tudo acontecia)—, John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump, acusa seu antigo chefe de ter uma política em relação a nosso vizinho "descontroladamente errática", ditada por sua agenda pessoal e obsessão pela reeleição.

Assim, o que o ministro das Relações Exteriores considera "parceria profícua e profunda" entre Brasil e Estados Unidos é pura vassalagem. Ela destrói a relação adulta que o país havia construído com a potência do Norte, em que cabiam autonomia na defesa dos interesses nacionais quando divergentes e cooperação em muitas áreas de interesse comum.

A Venezuela vive hoje sob uma ditadura que persegue, tortura e mata opositores, que destruiu a economia e produziu enorme catástrofe social, levando quase 18% da população a buscar refúgio nos países vizinhos. Com o populismo autoritário, a Venezuela é o foco de uma crise que transbordou suas fronteiras.

Da sua complexidade falam com competência Monica Hirst, Carlos Lujan, Carlos Romero e Juan Gabriel Tokatlian, autores do estudo "A Internacionalização da Crise da Venezuela", recém-publicado pela Fundação Friederich-Ebert, da Alemanha.

Ali se vê como a polarização interna, as desacertadas políticas dos EUA, a participação da China e da Rússia em apoio ao governo de Maduro, bem como o "vazio político regional", enfraqueceram qualquer solução pacífica e negociada.

O Brasil não é o único responsável pela falta de mecanismos regionais de negociação. Mas o fato de ter abandonado o pouco que havia e de ter colocado nebulosa ideologia acima da busca por uma agenda comum, por limitada que fosse, certamente contribuiu para a desarticulação presente.

Subserviente a Trump e de costas para a América do Sul, o Brasil tornou-se incapaz de dar uma contribuição positiva. A grandiloquência vazia dos discursos do governo sobre a parceria com os Estados Unidos seria cômica não estivesse contribuindo para uma tragédia.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap


Ascânio Seleme: Tirem os pés do meu pescoço

Ruth Bader Ginsburg foi uma heroína

Ícone. Foi muito apropriado o uso deste termo por jornais para designar a juíza da Suprema Corte americana Ruth Bader Ginsburg, falecida há uma semana. RBG, como era conhecida, foi uma das mais importantes figuras da Justiça americana. Mais até do que um ícone. Uma heroína que trabalhou a vida inteira para mudar a legislação nos pontos em que discriminava a mulher. “RBG transformou os papéis de homens e mulheres na sociedade”, disse a jornalista Linda Greenhouse, que cobre a Suprema Corte americana há 30 anos para o “New York Times”.

Estudante de Direito na Universidade Harvard nos anos 50, quando a escola tinha apenas nove mulheres num grupo de 500 alunos, RBG entendeu cedo que ser mulher era obstáculo para quase tudo. Seu engajamento definitivo em favor da emancipação feminina ocorreu alguns anos depois, quando, graduada, tentou obter um emprego nos escritórios de advocacia de Nova York. Foi rejeitada por todos. “Não contratamos mulheres.” Virou professora e, depois, ativista na União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU).

Se o gatilho que disparou sua obsessão foi o fato de ela própria ter sido vítima de discriminação, é verdade que um germe já havia sido introduzido pela sua mãe, de quem ouviu um conselho que repetiu inúmeras vezes. “Seja uma dama e seja independente”. Ser uma dama significava jamais abrir mão de sua condição feminina. Ser independente queria dizer lutar por condições iguais às dos homens para se emancipar.

RBG iniciou sua carreira de advogada nos anos 70, na ACLU. Suas causas foram sempre contra leis que discriminavam mulheres. Durante anos advogou diante da própria Suprema Corte. Ela entendia que “a divisão por gêneros não ajuda a manter a mulher num pedestal, mas sim numa jaula”. Ganhou quase todas as questões que levou aos tribunais e acabou se transformando numa das maiores referências do feminismo, inspiração para homens e mulheres em todo o mundo.

Ao ser indicada para a Suprema Corte pelo então presidente Bill Clinton, em 1993, RBG passou da condição de ícone para a de pop star. Sua imagem frágil, tinha 1,50m, seu rosto fino e seus óculos grandes e grossos se tornaram parte inseparável da paisagem feminista. Estava em todas. Percebia que, quanto mais se expunha, mais passava sua mensagem. Não houve questão que tratasse da condição legal da mulher de que ela não participasse e, quase sempre, ganhasse. Fez história mesmo nas causas que perdeu.

Em 2006, a Suprema Corte julgou o caso de Lilly Ledbetter contra a Goodyear, que alegava ter recebido salário menor do que funcionários homens que exerciam função igual. Como a petição foi feita depois da aposentadoria, a Corte entendeu que o prazo caducara e negou equiparação retroativa. O voto vencido de RBG mudaria a legislação. Ela disse que as mulheres “são vítimas da discriminação salarial” e exortou o Congresso a corrigir o erro cometido pela Corte Suprema. O Congresso corrigiu o erro e aprovou lei definindo que crimes de discriminação contra mulheres nunca mais vencerão por decurso de prazo.

O trabalho infatigável de RBG ajudou a dar visibilidade a questões muitas vezes ignoradas, que poderiam resultar em aumento de riquezas e renda em todo o mundo. Um estudo do Instituto McKinsey, de 2015, demonstrou que, se as mulheres fossem incorporadas ao mercado de trabalho regular, em condições iguais às dos homens, US$ 12 trilhões (R$ 66 tri) seriam acrescidos à economia global em dez anos, um aumento de 11% para o PIB planetário.

A desigualdade de gênero é quase tão limitadora e opressora quanto o racismo. Só será derrotada se for combatida por homens e mulheres indistinta e permanentemente. Ruth Bader Ginsburg gostava de repetir uma frase da primeira feminista americana, a abolicionista Sarah Grimke (1792-1873). “Não peço nenhum favor para o meu sexo. Peço apenas aos meus irmãos que tirem seus pés dos nossos pescoços”. RBG passou sua vida tratando de tirar pés de homens dos pescoços de mulheres. Ela morreu, mas sua luta continua.