Day: agosto 28, 2020

Reinaldo Azevedo: Guedes e Bolsonaro são reacionários desiguais e combinados

No idílio passadista do presidente, filho de pobre trabalha e o do rico estuda

Paulo Guedes salta na frigideira porque seu modo de ser reacionário não combina com o de seu chefe, Jair Bolsonaro. O tal "Big Bang" do ministro da Economia —o dito "plano econômico-social"— promove uma redistribuição da pobreza entre os pobres. Seu chefe achou a coisa explícita demais, com potencial eleitoral danoso.

No universo recriado por Guedes, o Brasil continuará a ser o país em que, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, os 10% mais ricos ficam com 55% da renda. O problema não está aí. Ocorre que o 1% dos ricos de verdade —coisa de 1,4 milhão de adultos— ficam com mais da metade: 28,3%.

Não fiz a conta. Talvez seja o caso de saber quanto detêm do tal bolo aqueles que formam o 0,1%, a "crème de la crème" da concentração de renda. Os liberais de fancaria que andam por aí a vomitar obscenidades logo vociferam: "Ninguém é pobre porque o outro é rico. É preciso esforço!".

Fruto da indolência, quem sabe?, os 50% mais pobres têm de se contentar com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos. A seu modo, Guedes até quer fazer alguma correção. Pretende acabar com a dedução no Imposto de Renda dos gastos com saúde e educação. Topa mexer naqueles 10% que concentram 55% da renda, mas nunca no 1% que abocanha 28,3%. Quanto ao 0,1%, bem…

O ministro é um reacionário antipopulista. E é aí que seu modo de fazer o Brasil andar para trás se choca com o do chefe. O "Mito" descobriu o potencial eleitoral do assistencialismo agressivo e precisa do voto de milhões. Ao comandante da Economia, basta o apoio da Faria Lima, com a concordância, é certo!, do presidente.

A questão, por enquanto sem resposta, é como "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos" sem que os primeiros reajam nas urnas. Será Bolsonaro, no confronto com Guedes, um pouco mais, digamos, "progressista"? Respondo com um fato. Na terça (25), ao falar na abertura do congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o presidente lembrou que começou a trabalhar aos dez anos, num boteco, por decisão de seu pai, e fez a defesa aberta do trabalho infantil.

Com gramática sempre peculiar, mandou brasa: "Meu primeiro emprego, sem carteira assinada obviamente, eu tinha dez anos de idade. Foi no bar do seu Ricardo, em Sete Barras, no Vale do Ribeira. (…) E bons tempos, né?, onde (sic) menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum". Aplausos.

Antes ainda da posse, em dezembro de 2018, Guedes afirmou que os 30 anos de ineficiência da social-democracia seriam interrompidos por ao menos quatro anos de liberalismo associado ao conservadorismo. É mesmo?

Numa democracia, conservadores aceitam o progresso social e buscam conservar o molde institucional. Já os reacionários pretendem fazer o país marchar para trás, conservando não instituições, mas iniquidades —e, se possível, ressuscitando fantasmas. A depender do caso, podem ser disruptivos, golpistas.

No idílio passadista bolsonariano, filho de pobre trabalha e o do rico estuda, reproduzindo, assim, um e outro, o ciclo de desigualdade. Nessa perspectiva, dispensa-se um Estado que possa já nem se diga corrigir as injustiças, mas, ao menos, capacitar um pouco mais a criança pobre para uma disputa de… desiguais.

Ainda que aos trancos e barrancos e, às vezes, recuos, o mundo caminha tendo como norte a justiça social. Logo, toda ação reacionária será sempre contra os desvalidos, os que podem menos, os injustiçados. Existe, sim, o bom conservador. Mas inexiste o reacionário virtuoso.

Bolsonaro cobra de Guedes que coloque uns tostões a mais no bolso dos pobres para que as urnas sustentem seu propósito de resgatar aquele passado idílico, em que filho de pobre trabalha feliz para honrar a sujeição histórica de seu pai. Vivemos o momento glorioso de uma tensão entre reacionarismos distintos e combinados.


Vinicius Torres Freire: BC dos EUA toma decisão histórica e que pode ajudar até o Brasil

Fed muda sistema de metas de inflação e talvez enterre o modelo dessa política tal como a conhecemos

O Banco Central dos Estados Unidos tomou uma decisão que pode dar uma mãozinha para o Brasil e para o controle da nossa dívida pública. Trocando em miúdos, quer dizer que as taxas de juros por aqui talvez também possam ficar mais baixas por mais tempo, tudo mais constante. Como é historicamente óbvio, sempre podemos nos arrebentar por vontade própria, não importa o ambiente econômico mundial. Mas é uma ajuda.

A decisão do Fed é uma providência candidata a entrar para os livros de história econômica. Altera ou talvez enterre a política de metas de inflação tal como a conhecemos, ideia que dominou a teoria e prática de política monetária no último quarto de século.

No que tem de essencial e mais simples, a decisão é uma formalização de providências que vêm sendo adotadas pelo menos desde 2019. O Fed agora afirma explicitamente que vai procurar atingir sua meta de inflação de modo ainda mais flexível. Declara de antemão que não vai elevar sua taxa básica de juros assim que a inflação estiver perto de 2% e subindo. Caso não esteja ocorrendo de fato uma alta de preços desembestada ou alguma anomalia qualquer, vai tolerar inflação além de 2% e deixar como está para ver como é que fica.

Isto é, o Fed vai mirar em uma espécie de média móvel de inflação, apurada em alguns anos, aliás como já se acha correto fazer com metas fiscais (de contenção de déficit das contas públicas).

Qual o motivo? O Fed quer evitar uma alta precoce dos juros, os básicos e os da praça financeira, logo que a inflação esteja perto da meta. Caso a meta seja perseguida a ferro e a fogo, pode haver uma alta de juros que prejudique a recuperação do nível máximo ideal de emprego ou que crie a expectativa de que os preços possam congelar ou cair de novo, em seguida ao aperto monetário: recessão ou estagnação inúteis.

Mais que isso, o presidente do Fed, Jay Powell, disse que um baixo nível de desemprego pode ser compatível com inflação controlada. Um mercado de trabalho aquecido parece estar deixando de causar pânico. Na prática, não era esse o entendimento do Fed em 2015, quando o BC americano passou a elevar os juros, havia quase sete anos no nível zero.

Bom nível de emprego e inflação baixa foi o que se viu Estados Unidos nos anos de crescimento depois da Grande Recessão. Aliás, por motivos variados e objeto de grande controvérsia, não tem havido inflação no mundo rico, seja por repressão salarial, salários baixos, globalização, tecnologia, demografia, “estagnação secular”, o que seja.

Outro motivo da mudança do Fed é a dificuldade dos BCs de estimular a atividade econômica quando as taxas de juros de curto prazo estão a zero ou perto disso; quando, mesmo bulindo com taxas de prazo mais longo, as economias mal reagem. Qual a alternativa? Indicar que as taxas ficarão baixas por muito tempo, o que já vinha sendo feito na base de conversa (“forward guidance”), agora formalizada: a meta de inflação será encarada de modo muito mais flexível.

Em suma, acredita-se que seja possível reduzir a volatilidade econômica se existir uma compreensão de que a inflação vai flutuar em torno de certo nível (baixo), por vezes abaixo, por vezes acima, sem levar o BC a adotar medidas dramáticas.

Não é uma lição a ser imediatamente aproveitada no Brasil, ocioso dizer. No entanto, o experimentalismo pragmático que se tem visto desde 2008, mais por precisão do que por boniteza, poderia inspirar também nossos economistas.


Hélio Schwartsman: Guedes subiu no telhado?

O ministro tolera certo nível de pressão do chefe, mas deve haver linha vermelha além da qual ele não vai

Nada indica que Paulo Guedes deixará o governo nos próximos dias. Ele parece ter assimilado bem a patada pública que o presidente Jair Bolsonaro lhe desferiu. Mas a contradição fundamental não irá embora. O objetivo do equilíbrio fiscal, do qual Guedes é um emblema, não é facilmente conciliável com a ideia de engordar programas sociais permanentes para ajudar o presidente numa eventual reeleição.

Meu palpite é que Guedes e o teto de gastos é que irão embora. O ministro tolera certo nível de pressão do chefe, mas deve haver uma linha vermelha além da qual ele não vai. Não estou seguro de que o capitão reformado se conformará à zona de conforto do ministro.

Bolsonaro, embora já tenha dito que o Bolsa Família era um jeito de comprar o voto do “idiota” e assegurado que não recorreria a esse tipo de expediente, sentiu o gostinho de surfar na popularidade que programas assistenciais propiciam ao governante sob o qual se materializam e quer criar um para chamar de seu, o Renda Brasil.

Não acho que seja tão simples. O que conferiu bons índices de aprovação ao presidente foi a ajuda emergencial, que vai de R$ 600 a R$ 1.200. E o próprio Bolsonaro já reconheceu que isso não pode ser mantido. Muito em breve esse auxílio será interrompido. Mesmo que a equipe econômica encontre uma fórmula para assegurar um Renda Brasil de R$ 300, estamos falando de um programa de valor substancialmente menor e que atingirá muito menos beneficiários do que os que hoje recebem a ajuda de emergência. Como as pessoas irão reagir?

De um modo geral, o cérebro responde com mais intensidade a perdas do que a ganhos. Embora estejamos navegando em terra incógnita eu não me surpreenderei com uma onda de mau humor em relação ao governo, em especial porque é difícil vislumbrar um cenário em que a economia pós-pandêmica cresça com tanto vigor que compense o fim da ajuda de emergência.


Ruy Castro: Como ser tapeado - e gostar

Nasce um otário por minuto, dizia Barnum; adivinhe quem concorda com ele

Steve Bannon, estelionatário americano inspirador da família Bolsonaro, foi apanhado desviando o dinheiro que seus seguidores supunham ter doado para construir um muro separando os EUA do México. Bem feito para esses seguidores, cujo apoio a projeto tão infame merecia mesmo ter ido para o bolso de seu criador. Mas duvido que tenham se revoltado ao se verem feitos de bobos por Bannon. O otário não se revolta.

“Nasce um otário por minuto”, sentenciou outro americano, P.T. Barnum (1810-1893), showman, político, filantropo, criador do circo moderno e teórico da arte de tapear. Barnum não se referia só ao otário ocasional, que um dia caiu num golpe, mas ao otário renitente, capaz de cair sempre no mesmo golpe.

Vide os corolários de sua tese: “Toda pessoa que foi tapeada uma vez pode ser tapeada de novo”; “Pode-se tapear o máximo de pessoas pelo máximo de tempo”; “Quanto maior o golpe, mais os que caem nele gostam”; e um que se aplica tão bem ao Brasil: “Ninguém jamais perdeu dinheiro por superestimar a ignorância do povo americano”.

Um deputado, por exemplo, que nomeie funcionários fantasmas em seu gabinete, pagos pelo dinheiro público, e use um terceiro para drenar 80% dos salários deles e depositá-los em sua conta, passando primeiro por uma lavanderia que pode ser, digamos, uma loja de chocolates, e tomando o cuidado de fazer isso em dinheiro vivo para evitar radares fiscais —não será isto um golpe delicioso, já que parte do dinheiro foi desviado do bolso inclusive dos que votam no deputado?

E não será melhor ainda quando se sabe que foi praticado por uma família inteira durante 30 anos, envolvendo suas mulheres, ex-mulheres e filhos de várias extrações, tanto para receber quanto para transferir, e os eleitores da dita família acham tudo muito natural?

Não admira que o chefe desta família viva chamando as pessoas de otários. Ele sabe o que diz.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Celso Ming: Umas e outras maldades de uma nova CPMF

Quanto mais se examinam as distorções que esse tributo pode trazer, mais ele se torna inaceitável

Dia após dia, vão aparecendo novas maldades embutidas no projeto da nova taxa sobre movimentações financeiras, cujo nome, sobrenome e sigla seriam Imposto sobre Transações Financeiras, ITF.

Na última quarta-feira, a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, confirmou que esse novo tributo não se restringiria apenas a operações digitais, como tantas vezes afirmara o ministro Paulo Guedes. Mas, como disse ela, alcançará “todas as transações da economia”.

Também não é verdade que se trata de uma alíquota baixa, de apenas 0,2%. Ela incidirá sobre as duas pontas de cada transação, tanto sobre quem paga quanto sobre quem recebe. Ou seja, a alíquota verdadeira é 0,4%, mais alta do que o 0,38% cobrado pela antiga CPMF, que atingia apenas a ponta do pagamento.

Isso significa muita coisa. Recolherá o ITF tanto quem estiver pagando pelo pãozinho com cartão de crédito como também o padeiro. Significa, também, que o contribuinte brasileiro pagará também pelo consumo no exterior. Se ele liquidar sua conta com cartão de crédito, terá de recolher automaticamente os 6% do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre câmbio (conversão da moeda estrangeira em reais), mais o 0,2% dessa nova taxa. O turista estrangeiro que quitar suas contas no Brasil com cartão de crédito não estará sujeito ao imposto, mas quem dele receber terá de recolher sua parte.

Se o que a assessora especial Vanessa Canado está dizendo for confirmado e se todas as transações financeiras estiverem sujeitas a esse tributo, então teremos uma penca de distorções no sistema financeiro do País.

A primeira delas está na Bolsa. Pagar mais 0,4% por compra e venda de ações pode comer um pedaço importante do retorno da operação. Os negócios day trade, por exemplo, poderiam ficar inviabilizados. O mercado secundário perderá liquidez, com prejuízo para todo o mercado de capitais.

E vejam a situação da caderneta de poupança. Hoje, o rendimento mensal não passa de 0,125%. Se o depósito já comerá 0,2%, porque será preciso transferir da conta corrente para a conta de poupança, e se a retirada comerá outro 0,2%, então, só esse imposto estará queimando mais de três meses de rentabilidade.

Impacto semelhante acontecerá sobre os fundos de investimento que já estão sujeitos ao Imposto de Renda e à taxa de administração – e, com o novo imposto, terão sua rentabilidade corroída por mais 0,2% no momento da aplicação e outro 0,2% no momento da retirada. Ou seja, o estrago desse imposto sobre o rendimento do mercado financeiro, num ambiente de juros reais quase negativos, será substancialmente maior do que no tempo da CPMF, quando os juros básicos eram superiores a 10% ao ano.

Se esse ITF for aprovado, outra distorção será a enorme propensão ao uso de dinheiro vivo para pagamento de contas, que seria para fugir pelo menos de uma perna do imposto. O padeiro, acima citado, por exemplo, preferirá receber em dinheiro. E o mesmo acontecerá com outros recebedores de pagamentos: o feirante, o médico, a escola, o dentista… Por aí se vê que a demanda por papel-moeda tenderá a se multiplicar a ponto de não haver lobo-guará que dê conta do serviço.

Para evitar pagamentos em moeda, o governo parece propenso a adotar os dispositivos do efeito Ives Gandra. Explicação: o tributarista Ives Gandra Martins, nesse episódio mui amigo do contribuinte, sugeriu ao governo que um grande número de “pagamentos por fora”, feitos com o objetivo de fugir ao ITF, poderia ser evitado se a PEC do novo tributo incluísse cláusula que torna inválidas transações cuja taxa não tivesse sido recolhida.

Assim, negócios com imóveis, com veículos e outras operações que exijam registro em cartório ou equivalente perderiam validade caso o interessado não apresentasse algum comprovante do devido recolhimento do tributo.

Nas últimas semanas, apareceram mais análises que diziam mais ou menos o seguinte: esse novo imposto é mesmo perverso, mas é melhor engolir essas perversidades e garantir as receitas necessárias para a recuperação da atividade econômica do que continuar no sufoco em que estamos.

Mas quanto mais se examinam as distorções que esse tributo poderá trazer, mais ele se torna inaceitável.


Elena Landau: Universo em desencanto

Vontade de apagar a História é característica de governos autoritários como este

Um amigo da família, publicitário da Kibon, era responsável por batizar os novos produtos da marca. Estava com especial dificuldade para o nome de um sorvete de frutas. Inquieto, taciturno, trancado em seu escritório, não queria ouvir um pio das crianças brincando. E nós, amedrontadas, obedecíamos. Até que um dia ele sai eufórico pela casa gritando: “Jajá de coco”, enquanto socava o ar como Pelé.

Essa lembrança me veio à cabeça logo que soube do nome do novo plano do governo, a ser lançado em um Big Bang Day. Imagino um grupo de técnicos reunidos em uma mesa na Esplanada a socar o ar, eufóricos com o grande achado.

O suposto plano é apenas um apanhado de iniciativas dispersas. Mistura assuntos emergenciais com questões estruturais. Não traz respostas de curto prazo para a saída da pandemia, nem projeto de longo prazo de crescimento. Nada de abertura comercial, redução drástica nos gastos tributários, revisão de regime especial do IR, abertura comercial, privatização ampla e reforma administrativa. E um choque educacional, nem pensar. Ainda tem a CPMF, é claro.

Mantém a aparência de um discurso de responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo que acena com obras públicas e ampliação de programas como 0 Minha Casa, Minha Vida. Tudo com foco no Nordeste, mesmo sendo o déficit habitacional maior no Sudeste. Populismo é tudo igual. A exploração da tragédia social segue como a principal política econômica do País.

O teto se mantém como ficção. O pacote não estabelece claramente os mecanismos e gatilhos que o preservariam. Mesmo porque o presidente não está preocupado com o assunto. O teto vai morrendo por falência múltipla dos órgãos, em decorrência da doença crônica do clientelismo brasileiro.

Os saudosos do nacional desenvolvimentismo têm a romântica ideia de que gasto não importa, desde que se faça direito. Gastar bem no Brasil, isso sim, seria um novo Big Bang. O vice Mourão acaba de anunciar a compra de um satélite desnecessário. A desculpa é sempre a tal da soberania nacional, que também justifica a permanência de tantas estatais nas mãos do governo. A Valec deve atender a algum critério de soberania que me escapa.

Na reciclagem de ideias, até a capitalização da Eletrobrás, que perambula desde 2017, entrou na lista. Deverá ser modificada no Senado. E aposto que sai piorada. O Tesouro vai acabar pagando por ela em vez de receber. Nem sua privatização, nem a venda antecipada dos contratos da PPSA, vão transformar o modus operandi do Estado brasileiro.

Muda o governo e só muda o cliente. Empresas que interessam aos militares se mantêm intocadas e ainda recebem reforços financeiros. O expediente de capitalização de estatais é outra peneira oficial no teto. No apagar de 2019, foram R$ 10 bilhões em uma tacada. Agora, governo pede mais R$ 500 milhões ao Congresso. Mais uma vez, entre as contempladas, está a Emgepron. Corvetas e fragatas é a pauta prioritária.

O esforço de marketing não resolve. O plano está mais para a teoria do estado estacionário. De todo jeito, o dia do Big Bang foi adiado para a semana que vem ou por 13,7 bilhões de anos. Tendo o ministro da Economia como átomo primordial, talvez melhor não arriscar mesmo. Vai quê.

Bolsonaro parece que não gostou das propostas. Claro, só pensa na reeleição. O que importa é a continuidade do auxílio, o resto é perfumaria. Quer um programa assistencialista de fácil entendimento para oferecer. A diferença de R$ 30 no valor do auxílio, combinado com o fim do abono salarial, inviabilizou o anúncio do plano. Não foi o ambiente pesado no Senado, por conta de mais uma declaração desastrosa de Guedes, nem mesmo o crime de ameaça física do presidente da República a um repórter que fez a pergunta que não vai calar: “Por que sua esposa recebeu R$ 89 mil de Queiroz?”.

Quanto mais confusão na economia, melhor. Muda o foco. STF, trapalhadas dos filhos e a ameaça Queiroz o calaram, mas ele não mudou. Segue firme na agenda: militares, assistencialismo e obscurantismo. Contando com a fidelidade de todos seus ministros, inclusive Guedes, que não está sendo fritado. Apoia o projeto ideológico clientelista e só sai quando não for mais útil para o chefe. Vai taxando livros, coisa de elite, enquanto isenta a linha branca e mantém a Zona Franca.

Bolsonaro reclama da imprensa. Mas não foi cobrado pela passividade da Damares diante dos ataques de fanáticos religiosos a uma criança; pelo envio do quadro de Djanira, “Orixás”, para os porões do Palácio do Planalto nem mesmo pelo uso do avião da FAB por garimpeiros ilegais. A invasão da Cinemateca passou batida. Lá, além dos filmes nacionais, estão as imagens que carregam a memória do nosso País. Correm o risco de se perderem.

A vontade de apagar a História, o desprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos andam juntos em governos autoritários como este. Um cidadão que pensa, imagina, cria e desenvolve senso crítico, incomoda muito. Deve dar mesmo vontade de encher a boca de cada um de porrada.

*Economista e advogada


Eliane Cantanhêde: Na frigideira com Moro

Bolsonaro tem os votos e as decisões, Guedes tem duas opções: engolir em seco ou cair fora

Desta vez, o presidente-candidato Jair Bolsonaro acertou duplamente, no conteúdo e na forma. O que resolve a questão do desenvolvimento e da renda é mesmo o emprego e foi uma bela sacada anunciar que não vai “tirar de pobres para dar a paupérrimos”. Quem há de discordar? De quebra, é bom slogan de campanha, pois atinge quem tem um mínimo de bom senso e os alvos do presidente, o Nordeste e os de baixa renda, ou seja, o eleitorado que parecia cativo do PT.

De fato, causou espanto a “mágica” do ministro Paulo Guedes para financiar os devaneios populistas e a campanha à reeleição do presidente: tirar de abono salarial, salário-família, seguro-defeso (para pescadores artesanais) e até do Farmácia Popular (remédios grátis para, por exemplo, hipertensão e diabetes). A explicação dos burocratas é que há muita fraude, muito rico tirando ‘casquinha’. Ou seja: se a água da banheira está suja, jogue-se o bebê fora.

Bolsonaro disse “não” para Paulo Guedes, que já reclamou da “debandada” do seu time e ainda tem de ouvir calado a crítica pública do presidente a quem sobrou. E foi antes de a assessora Vanessa Canado responder à pergunta que não queria calar: o “novo imposto” de Guedes é, sim, a velha CPMF. E isso balança o tripé da política econômica: Bolsonaro, Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que ora se alia a Guedes, a favor do teto de gastos, ora a Bolsonaro, contra a CPMF.

Com o técnico Guedes em baixa, Bolsonaro e Maia ficam mais à vontade em seus planos políticos. Um só pensa em 2022, o outro finge que não, mas vai tentar se reeleger à presidência da Câmara em fevereiro de 2021. E os dois podem se ajudar. Bolsonaro vai inclusive abandonando o “Jairzinho Paz e Amor”, reassumindo sua verdadeira identidade, das armas e da guerra, e encenando a mesma peça da fritura de subordinados.

Planalto e Economia dão a mesma versão: o presidente adora Guedes, Guedes adora o presidente e ninguém sai. Mas os fatos jogam o ministro na fogueira onde já arderam Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Joaquim Levy, Ricardo Galvão, Regina Duarte. Sabe-se lá por que, Bolsonaro não resolve as coisas no seu gabinete, olho no olho. Parece que a fritura só tem graça com público, claque, câmeras. O presidente dá um solavanco no sujeito numa entrevista. O mercado treme, os setores envolvidos tomam as dores e vem o deixa-disso. No fim, ou a vítima se demite, como Moro e Levy, ou é demitida, como Mandetta e Galvão.

O fato é que o presidente descobriu, aliviado, que ninguém é mesmo insubstituível. Diziam que, se Moro caísse, o governo caía junto. Moro se foi e nada aconteceu. Mito por mito, os bolsonaristas jogaram fora o ministro junto com a Lava Jato e ficaram com o capitão. Dizem agora que, se Guedes cair, o mercado abandona o barco. Que nada! Com outro Paulo Guedes, o mercado se acomoda direitinho.

A questão não é só política e econômica, é também aritmética. Nem o Guedes que aí está nem um outro Guedes qualquer tem poderes mágicos para somar dois mais dois e dar três. Nem para manter o teto de gastos e ao mesmo tempo fazer o que Bolsonaro quer. Mas Bolsonaro é quem tem voto e quem decide as prioridades para gastos e cortes. Se Guedes não gostar, tem duas alternativas: engolir em seco ou jogar a toalha. A ver.

R$ 1 bilhão
Enquanto o STF não anula a delação premiada de Joesley e Wesley Batista, a PGR analisa uma repactuação que pode custar caro aos irmãos da JBS: R$ 1 bilhão. E justamente quando o ex-presidente Temer é inocentado em primeira e segunda instâncias e surge o estranhíssimo envolvimento de quase R$ 10 milhões dos Batistas com Frederick Wassef.


Ricardo Noblat: Bolsonaro serve mais dois sapos para Paulo Guedes engolir

Mais gastos de olho na reeleição

Nada pode estar tão intragável que não possa piorar. A Paulo Guedes, que por enquanto permanece como ministro da Economia, o presidente Jair Bolsonaro serviu mais dois sapos.

Primeiro sapo: sob pressão de ministros e de políticos por mais recursos para o Plano Pró-Brasil de retomada dos investimentos, Bolsonaro destinou 6,5 bilhões do Orçamento para obras públicas..

Metade desse valor será aplicada em obras indicadas por parlamentares a serem executadas em seus redutos eleitorais. Guedes só queria liberar 4 bilhões.

Segundo sapo: Bolsonaro autorizou a Polícia Federal a abrir concurso para a admissão de mais dois mil agentes. Em breve, deverá fazer o mesmo com a Polícia Rodoviária Federal.

Parecer do Ministério da Economia diz que contratações estão proibidas pela lei que congelou reajustes dos servidores até o fim de 2021. O Ministro da Justiça convenceu Bolsonaro do contrário.

É possível que se defina hoje o valor do auxílio emergencial prorrogado contra o Covid-19. Bolsonaro quer pagar 300 reais. Guedes, 250. O tamanho desse sapo definirá o futuro do ministro.

Acordo Mercosul e União Europeia faz água graças à Argentina, diz Mourão

Vice-presidente finge que não vê a devastação da Amazônia

De duas, uma. Ou o vice-presidente Hamilton Mourão pouco entende de Amazônia e de acordos comerciais, ou entende, mas não pode falar a verdade a respeito.

O general se orgulha de ter cara de índio. E de ter servido ao Exército na Amazônia durante muitos anos. Graças a isso assumiu recentemente o comando do Conselho Nacional da Amazônia.

O acordo comercial do Mercosul com a União Europeia faz água porque Alemanha, França, Holanda, Noruega e Irlanda reprovam a maneira como Brasil cuida da Amazônia. Ou melhor: descuida.

Pois Mourão preferiu jogar a culpa pelo eventual naufrágio do acordo nas costas da Argentina, em sua situação econômica e de saúde. Por Covid-19, morre-se mais aqui do que na Argentina.

Mourão também preferiu culpar a imprensa pelo que afirmou na semana passada Angela Merkel, a primeira-ministra alemã. Ela disse que o desmatamento da Amazônia só tem feito aumentar.

Os atuais níveis das queimadas na Amazônia “são como agulha no palheiro”, minimizou Mourão. Segundo ele, o Brasil é tratado com preconceito por outros países, mas que não é vilão ambiental.

Como não é? Em comparação com o primeiro semestre do ano passado, a devastação da Amazônia em igual período deste ano aumentou 25% – exatos 3.069,57 quilômetros a mais.

Quando se fala da Amazônia, os sentimentos dos brasileiros são de tristeza, indignação, vergonha e medo, conferiu pesquisa da Federação Brasileira de Bancos e do Ipespe, divulgada ontem.

Oitenta e três por cento dos entrevistados dizem estar pouco ou não estar satisfeitos com preservação da Amazônia. A insatisfação se espalha por todas as faixas etárias e todos os níveis de ensino.

No primeiro ano da Amazônia sob Bolsonaro, houve uma explosão de 34% no desmatamento em relação ao ano anterior. Só Mourão não viu. Nem Bolsonaro. Nem os militares que apoiam o governo.


César Felício: Não vale o escrito

Da forma como pode ser feita, mudança corrói democracia

O acordado prevalece sobre o legislado. Esse é o espírito, tão em sintonia com os novos tempos, da argumentação que o Senado apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa da reeleição para as presidências das Casas do Congresso. A Constituição, em seu artigo 57, parágrafo 4, é um tanto quanto explícita: o mandato dos presidentes do Senado e da Câmara é de dois anos, “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.

No parecer do secretário-geral da Mesa do Senado, esta norma não pode ser levada a ferro e fogo. A peça constata uma obviedade: circunstâncias políticas fizeram com que na Constituição de 1988 se mantivesse o princípio criado no regime militar de se impedir a reeleição indefinida dos presidentes das duas Casas, porque é disso que se trata. A partir dessa constatação, a de que o Congresso constituinte criou normas não porque Deus as esculpiu em uma pedra, mas por circunstâncias políticas, chega-se ao desfecho surpreendente: como as circunstâncias políticas são outras, o texto do parágrafo quarto do artigo 57 merece ser declarado caduco.

A reeleição, seja de quem for, presidente da República, da Câmara, do Senado, governador ou prefeito, já não é algo saudável para um dos pilares básicos da democracia, que é a competição política. Da forma como querem fazer, contudo, é pior. Muito pior. Corrói outros princípios.

A Constituição sempre é um produto de sua época, mas com regras que precisarão necessariamente valer para outros tempos. Por isso tanto é melhor quanto mais enxuta for, o que não é o caso da brasileira. O pecado da prolixidade em 1988 é remediado pela emenda constitucional, e o texto da Carta já foi modificado mais de cem vezes.

A ninguém havia ainda ocorrido argumentar no Judiciário que, como 32 anos se passaram, a regra estabelecida não vale mais. É o que prega o Senado. Se a tese emplacar, por que outros limites constitucionais precisarão ser obedecidos? Por que o presidente só pode se candidatar a reeleição uma vez? Por que os ministros do Supremo precisam se aposentar aos 75 anos? Tudo dependerá da existência ou não de justificativas do ponto de vista histórico ou político para que se diga se o escrito vale ou não.

Um dos argumentos dos defensores da tese é que já houve uma interpretação criativa do texto constitucional em 1999, quando Antonio Carlos Magalhães (1927-2006) se reelegeu na presidência do Senado.

Foi o primeiro a cruzar esta fronteira, mas tratava-se de uma legislatura diferente. Abrir a exceção para a mesma legislatura significa criar a possibilidade de se eternizar o comando.

O acordo que pode se forjar para que se acolha no Supremo a tese de reeleição dentro da mesma legislatura é uma possibilidade concreta, porque seria tentador para as cúpulas dos Três Poderes.

O Supremo hipertrofiaria ainda mais seu status, porque ganharia a faculdade de decretar que dispositivos constitucionais perdem a validade porque a banda agora toca diferente.

O presidente também teria ganhos potenciais. Presidentes da Câmara e do Senado que são eternos candidatos à reeleição podem ter menos interesse em se indispor com a base governista.

Quanto à cúpula do Legislativo, não há nem muito o que dizer. Um presidente da Câmara que pode se reeleger ganha um poder de fogo imenso frente a seus rivais. É um pouco fantasioso achar que Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia não concorreriam em situação de imenso favoritismo.

Talvez mais importante do que esses fatores seja o enfraquecimento mútuo do sistema de contrapesos. Legislativos, Executivo e Judiciário podem se tornar feudos, em jogo permanente de defesa e proteção mútua.

Falta alternativa
Um dos 18 pré-candidatos a prefeito de São Paulo, a ser oficializado no dia 5, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) é acima de tudo realista e pragmático. “Essa eleição municipal para a oposição será um momento de acúmulo de forças”, diz. Silva concorre em São Paulo de olho em 2022, momento em que o PCdoB será submetido às novas regras de cláusula de barreira e as forças contra o presidente Jair Bolsonaro terão escolhas difíceis a fazer.

“Pelo andar da carruagem, Bolsonaro chega em 2022 competitivo. E essa competitividade tem a ver com a ausência de uma alternativa crível a ele ”, diz.

Para Silva, a oposição estará fadada a conversar em 2021 para fornecer ao país esta tal alternativa crível. “Uma temporada de diálogo vai se abrir para uma gestação, que precisa de uma abertura”, aposta.

“O bolsonarismo está ancorado na antipolítica. Uma nação precisa de uma estratégia e isso nós não temos na mesa”, afirma.

O pré-candidato pensa que o PT que sairá das urnas municipais não terá como fornecer uma saída para o problema. “Considero que o PT cumpriu sua missão. Eu aplaudo a trajetória do PT e penso que é necessário construir uma alternativa renovada. O PT pode participar, mas já teve a oportunidade de ser protagonista”.

Já em relação ao PDT, o tom é bem menos assertivo. “O PDT e o Ciro não tiveram as oportunidades que o PT teve de governar o país. Mas não é de bom tom que nessa fase sentemos à mesa para discutirmos nomes”.

Com respeito ao próprio partido, eternamente ameaçado pela cláusula de barreira, Silva pensa que será de interesse geral na Câmara estudar uma saída para o fim das coligações proporcionais e “redesenhar o sistema político do Brasil”.

Refazer o sistema político é criar brechas para permitir a coligação por outros meios, como por exemplo a federação partidária, no modelo uruguaio da Frente Ampla. A montagem de blocos unidos tanto na eleição como no exercício do mandato poderia se dar inclusive em torno de um nome independente, sem filiação partidária.

É algo que pode interessar as siglas fora do ambiente da esquerda. Partidos tradicionais, como o DEM, podem ter redução de bancada. Siglas vocacionadas para o Legislativo, como o PSD, estarão diante de um dilema. Do mesmo modo a mudança pode interessar aos novos amigos de Bolsonaro, como PP, Republicanos e PL, que teriam assim como embarcar na canoa da reeleição e receber dividendos na eleição de deputados e senadores.

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Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Míriam Leitão: O grande risco dos improvisos

Por que acabar com o Bolsa Família? Um programa bom, reconhecido no mundo inteiro, com um foco claro, aperfeiçoado ao longo do tempo por especialistas que entenderam a sua lógica e metodologia. Falta à equipe econômica humildade e conhecimento da engenharia social. Além disso, faz falta um verdadeiro ministério da área social. Esse governo já demonstrou o quanto pode errar com seus improvisos e oportunismo.

O governo Lula derrapou no início com o Fome Zero. Como marca era bom, mas na prática a ideia era uma distribuição de vouchers como o food stamps, política americana dos anos 1950. Não ficou de pé. Houve um debate intenso, com duas vantagens: cientistas sociais que entendiam do assunto no governo participaram dele e o país tinha a experiência da Bolsa Escola que levou muita informação para a mesa de discussão. A política pública nasceu em Brasília, em 1995, na gestão de Cristovam Buarque. Depois foi implantada em Campinas e em Belo Horizonte. Por fim foi adotada, com valor pequeno, no governo federal. Havia sido feito um cadastro que depois foi ampliado. A pergunta era: quantos são e onde estão os invisíveis? O Estado foi buscá-los.

O foco da política é a mulher pobre, para “ajudá-la no grande desafio de criar uma família enfrentando dificuldades econômicas e muitas vezes as flutuações da vida pessoal”, como conta um dos primeiros economistas a me explicar a importância da focalização das políticas sociais. O alerta é que não se pode acabar com o Bolsa Família sem uma discussão ampla, objetiva, com especialistas e baseando-se em dados. Só assim se saberá como e por que mudar. Descaracterizar o programa pode trazer muitas consequências negativas, além de criar uma escada para um populista com claro projeto autoritário.

— O Bolsa Família é como o Pelé: reconhecido como exemplo de excelência mundo afora, apesar de não ser totalmente aceito pelos brasileiros. Mas talvez porque é um programa para mulheres e pobres, e com crianças, ele agora é motivo de experimentos sociais desabridos. Planejam engoli-lo em um programa não para crianças, mas para corrigir imperfeições do mercado de trabalho — avalia este economista.

Esse é um dos erros. Um programa para criar empregos é uma coisa, a rede de proteção social é outra. Qual é o foco desse Renda Brasil, que se quer vincular a um “emprego verde e amarelo”? Aliás, é a reapresentação da ideia de criação de um subemprego formal, um trabalhador com menos direitos e uma empresa que não contribua para a Previdência. Assim, aprofunda-se o problema da descapitalização do sistema previdenciário.

Uma coisa é certa: este governo sabe cometer erros como nenhum outro. O Ministério da Economia quer acabar com o abono salarial porque jovens da classe média estão recebendo o benefício no começo da carreira profissional. Ora, basta estabelecer a renda familiar como uma pré-condição. Quer acabar com o seguro-defeso porque tem fraude. Ora, que tal combater a fraude? O governo pode aproveitar e aprender a combater as extravagantes fraudes no auxílio emergencial. Estimular a entrada de jovens no mercado de trabalho é fundamental, mas é outro programa.

A engenharia social do Bolsa Família deu mais certo porque se baseou em experiências exitosas. A condicionalidade na época era a presença da criança na escola, mas acabou sendo a porta de entrada de outras políticas públicas. Ruth Cardoso, com uma equipe interdisciplinar de excelentes especialistas, desenvolveu o Bolsa Escola Federal. Sob essa base, o PT construiu a mais bem-sucedida e mais bem focalizada política de transferência de renda do Brasil. Foi uma construção coletiva. Todos viram isso. Bolsonaro, na quarta-feira em Ipatinga, disse o seguinte: “passamos por tantos problemas no passado e nenhum outro presidente lembrou do povo para dar uma aspirina sequer”. O que é isso? Uma mentira dita pelo presidente da República.

Não se improvisa em política social. O país tem imensa desigualdade e está agora diante da necessidade de dar amparo a quem está momentaneamente sem capacidade de gerar sua renda. O governo Bolsonaro vai improvisar. Por arrogância, por oportunismo eleitoreiro, por desconhecer a complexidade de se montar um eficiente programa social. O risco de errar é enorme.


Bernardo Mello Franco: As façanhas do Zero Um

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal restringiu a farra do foro privilegiado, que protegia políticos investigados por corrupção. A decisão já rompeu a blindagem de deputados, senadores, ministros e outros figurões da República. Só não atinge Flávio Bolsonaro, o primogênito do capitão.

Em janeiro de 2019, o Zero Um conseguiu a primeira façanha. O ministro Luiz Fux suspendeu as investigações sobre o vaivém de dinheiro em seu antigo gabinete no Rio. Flávio ainda não havia tomado posse como senador, mas alegava já ter direito ao foro no Supremo. Fux aceitou a conversa e concedeu a liminar. Ao fim do recesso, o ministro Marco Aurélio Mello cassou a decisão e devolveu o caso para a primeira instância.

O filho do presidente não desistiu. Em junho passado, ele alcançou a segunda façanha. A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio inventou uma nova figura jurídica: o foro privilegiado de ex. Apesar de já ter deixado de ser deputado estadual, o senador ganhou direito a ser julgado no órgão especial do TJ. Tudo sob medida para livrá-lo do juiz Flávio Itabaiana, que mandou prender o ex-PM Fabrício Queiroz.

Ontem Flávio conseguiu a terceira façanha. A Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer contrário ao Ministério Público do Rio e favorável ao senador. O documento foi assinado por Humberto Jacques de Medeiros, o vice de Augusto Aras.

A PGR defendeu que a Segunda Turma do Supremo rejeite a reclamação dos promotores contra o TJ. Na prática, isso significaria livrar o senador da primeira instância. E abriria caminho para anular tudo o que a investigação já descobriu, incluindo os cheques de Queiroz para a primeira-dama.

O procurador Humberto foi ousado. No parecer, ele falou em “mandatos cruzados” e escreveu que Marco Aurélio “não disse qual juiz seria competente” para julgar o Zero Um. O ministro não pertence à Segunda Turma, mas esclarece que não tem dúvidas: o caso deve ser devolvido à primeira instância. “O Supremo já bateu o martelo sobre isso”, sentenciou à coluna. “O Humberto foi meu aluno, mas não seguiu minhas lições…”.


Merval Pereira: Mandatos cruzados

Surpreendente, devido às posições anteriores de contenção do foro privilegiado, mas nem tanto, pelas decisões recentes alinhadas ao governo Bolsonaro, o posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR), defendendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) recuse o recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que questiona decisão do Tribunal de Justiça do Rio a favor do foro privilegiado do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” não tem como prosperar se a jurisprudência do Supremo for seguida, como tem sido até hoje.

O caso mais emblemático é o do atual deputado e ex-senador Aécio Neves, cujos casos foram enviados para a primeira instância em decisões das Primeira e Segunda Turmas. No de Flavio Bolsonaro, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio fez com que as investigações voltassem para o STF.

Estavam na primeira instância pelo entendimento de que os casos ocorreram quando ele era deputado estadual, e, portanto, pela interpretação do Supremo de 2018 de que o foro privilegiado só serve para crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, não tinham nada a ver com o atual cargo de senador.

A grande discussão levantada tanto pela defesa de Flavio Bolsonaro quanto pela PGR é sobre “mandatos cruzados” ou “mandatos prolongados”, quando um político passa de um cargo para outro em eleições seguidas, que não estariam tratados na decisão do Supremo. “Da mesma forma que não há definição pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre ‘mandatos cruzados’ no nível federal, também não há definição de ‘mandatos cruzados’ quando o eleito deixa de ser representante do povo na casa legislativa estadual e passa a ser representante do Estado da Federação no Senado Federal (câmara representativa dos Estados federados)”.

Alegando que não há essa definição, a PGR diz que a reclamação do Ministerio Público do Rio é indevida pois “não pode ser usada para alcançar entendimento inédito” no STF. Essa falta de definição é questionada em particular por muitos dos ministros do Supremo, mas o ministro Marco Aurélio Mello já se pronunciou na ocasião, afirmando que a decisão "desrespeitou, de forma escancarada" o entendimento do STF sobre o alcance do foro privilegiado.

A Primeira Turma do STF, acompanhando por maioria o parecer do próprio Marco Aurélio, decidiu no ano passado enviar para a Justiça Federal de São Paulo inquérito que investigava denúncias de dirigentes da JBS sobre fatos ocorridos quando Aécio Neves era senador por Minas Gerais.

Os deputados estaduais são julgados pelos Tribunais de Justiça, mas deputados federais e senadores são da alçada do Supremo. Diferentemente de Flavio Bolsonaro, que mudaria de instância, Aécio Neves poderia alegar que continuava sob a jurisdição do STF, pois passou de senador a deputado federal.

Mas o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu que os casos aconteceram num mandato que já se esgotara e, portanto, o deputado mineiro já não não tinha foro privilegiado em relação a eles. Por esse entendimento majoritário no STF, tanto Aécio quanto Flavio não têm mais o mandato em que os fatos ocorreram, e portanto devem ser julgados como qualquer outro cidadão, na primeira instância.

Também os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em que o presente caso de Flavio Bolsonaro será julgado, enviaram inquéritos de Aécio para a Justiça Eleitoral. A maioria dos ministros do Supremo considera desnecessária a especificação cobrada pela Procuradoria-Geral da República, pois ambas as Turmas têm usado a mesma interpretação da legislação.

Se houver, no entanto, uma mudança de entendimento da Segunda Turma, é certo que será preciso uma revisão do plenário, para dirimir dúvidas sobre os “mandatos cruzados”. Mesmo que a decisão futura do plenário não favoreça a tese do Tribunal de Justiça do Rio, que lhe deu foro privilegiado no STF, o senador Flavio Bolsonaro não perderia esse privilégio, pois a lei só retroage em benefício do réu, nunca contra.