Day: agosto 26, 2020

Paulo Fábio Dantas Neto: A mão invisível do caos

O que é politicamente substantivo na negociação em curso entre Jair Bolsonaro e Paulo Guedes?  É parceria (ainda que conflitiva) ou é conflito (ainda que entre parceiros)?

Esse parece ser aspecto ao mesmo tempo incerto e crucial para compreendermos melhor como (e se) os dois estão discutindo sua relação.  Por enquanto quem não tem acesso íntimo ao suposto diálogo pode apenas especular, a partir das pistas de noticiário, de condutas antecedentes dos jogadores e de uma visão nublada do tabuleiro em que jogam. Especulo, portanto, devidamente advertido pelo pensamento de Wanderley Guilherme dos Santos, autor da expressão que empresta título a esse texto especulativo.   

Vejo a relação em causa como conflito de interesses entre dois parceiros de uma parceria que está quase na hora de acabar. Um sinal de desfecho talvez haja quando eles não tiverem nem mais vontade de brigar, ao menos em público. Chegada a hora, aquele que possui mais recursos políticos e também a superioridade hierárquica sacará primeiro e resolverá a seu favor o conflito de interesses. Mas que conflito é esse, afinal? Para tentar responder, prossigo na especulação: Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral.

Desde que a dupla Lula-Palocci se desfez, a conciliação desses dois interesses não está disponível em qualquer dos dois mercados. A crise de 2008 instalou, em ambos, um "Nós X eles " que só não se tornou visível já na eleição de 2010, pela força política que então possuía o "venha a nós". Mas o "lá eles" já se entrincheirava e se armava, no mercado econômico.

O contexto crítico não é propício à renascença de uma ambiguidade benigna que concilie a lógica dos dois mercados. Há quatro anos, entre duas eleições, o ex-presidente Temer tentou, mas seu paz e amor não deu certo. Más línguas dizem que não deu porque, como protagonista, ele estava mais para vampiro e, ao agradar à plateia do mercado econômico, assustou a do mercado político. Penso mais que não deu porque, às vésperas de 2018, os elencos de ambos os mercados com os quais Temer contracenava levaram suas respectivas plateias a pedirem um bis de 2014. Assim, deixaram o protagonista e seu partido pendurados no pincel. E ficou inviável uma alternativa democrática ao conflito bipolar.

Como pensar que, já a meio caminho entre 2018 e 2022 - e em contexto de pandemia, o novo elenco eleito não vai produzir, perante as mesmas plateias, um quarto ato da mesma peça? Se agora o protagonista é um extremista, contar com bonança é, no mínimo, imprudência. Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Isso vale também para o governismo, onde essa inteligência artificial não costuma prevalecer. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho. Assim, o bolsonarismo retirará sua poesia econômica da memória dos anos iniciais de Dilma Rousseff e o liberalismo econômico buscará sua poesia política no voluntarismo do governo Collor.

Trata-se de má notícia para quem, no governo e em certa esquerda que pretende ser seu oposto simétrico, crê e aposta na sustentabilidade da atual aliança governista. Além de não ter fé ideológica na indissolubilidade desse matrimônio, penso que é de interesse público a sua dissolução. Embora não justifique predição eleitoral, não deixará de ser uma brecha na fina camada de cimento que agrega o pacote econômico-social cujo anúncio foi adiado. Para contrapor, à química destrutiva dos infernos, de malvadeza e sedução, uma política social progressista e progressiva, que preserve e alargue o atual patamar de direitos sociais, será preciso que a inteligência artificial da política respeite a mão invisível do caos. Em tempo de penumbra, o futuro a ela pertence e temos acesso a ele só como arma retórica. 

A fritura de Guedes ainda não é explícita talvez porque não seja fácil achar um economista sério que abrace a economia eleitoral de Bolsonaro. Mas não é sensato apostar fichas na paciência política do presidente. O mercado condiciona, mas não decide a ponto de obrigar Bolsonaro a aguardar o máximo consenso possível. Ele sabe que o caminho até 2022, que é seu norte, passa, já em 2020, pelos nordestes de todas as regiões do Brasil, onde o voluntarismo liberal de Guedes é moeda eleitoralmente podre. Então é intuitivo que o divórcio venha, por litígio ou capitulação. E sem longo prazo, porque o prazo está dado, na economia, por emergências da crise e, na política, pela antecipada campanha da reeleição. 

O monopólio da iniciativa pragmática está, no momento, em mãos de um agregado que podemos chamar, grosso modo, de direita voluntarista e dogmática: extrema em política e ultra em economia. Condição que esse agregado ostenta por prerrogativa institucional e por uma momentânea aprovação auferida em pesquisas. O que fazer é a pergunta que ronda todas as outras famílias, da esquerda, do centro e também da centro-direita que reúne democratas conservadores e liberais.  Um léxico antibolsonarista, do ponto de vista político, e não liberal, do ponto de vista econômico, está sendo ensaiado pela corrente hegemônica do PT, saltando por cima da "briga de branco" palaciana. Por outro lado, reunir projetos políticos presentes nas oposições não petistas ao dos liberais perdedores da briga palaciana de agora, parece ser a via na qual Rodrigo Maia já opera, em sintonia com a direção do DEM. São dois eixos principais de articulações paralelas de possíveis candidaturas presidenciais relevantes, antigovernistas e também comprometidas com o sistema político democrático. Próximos a cada um desses eixos, ou entre eles, há outros partidos e nomes com potencial agregador. Suas potências precisam ser consideradas a sério. Ao mesmo tempo precisarão considerar que se chegarem a 2022 como projetos partidariamente delimitados, sacramentarão uma diáspora democrática, como em 2018.

Fora desse quadro referenciado no sistema político, há um lugar distinto para o nome de Sergio Moro. Sem vocação unitária, nem delimitação partidária, aparece como outsider cujas chances são diretamente ligadas ao fracasso de tudo o mais.  O ótimo seria o refluxo da bolha maniqueísta que essa cogitação de candidatura introduz no ambiente político. Um sub ótimo talvez seja sua digestão (mais complexa que a do próprio Guedes) no abraço aglutinador de dissidentes da aventura bolsonarista, que as articulações prudenciais de Maia podem oferecer. Isso pode ocorrer ao menos no primeiro turno, mesmo que não se conecte a uma grande política que se costure no segundo e até retorne ao ninho de onde acaba de sair.  

DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno (pensá-la como possível no primeiro seria excessivo, talvez impróprio bem-querer) de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço.  Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil - sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último.

Nesse sentido, entrevista recente do governador da Bahia a O Globo é sinalização estimulante, desde que não seja só uma voz dissonante e o PT acabe adotando uma política positiva, como até aqui tem sido a do DEM. Os mais céticos talvez possam suspender provisoriamente seus juízos e dar o benefício da dúvida a um realismo moderado, amparado no respeito devido pela política à mão invisível do caos.


*Paulo Fábio Dantas Neto é cientista político e professor da UFBa.


Cristiano Romero: Projeto de nação sem Estado para executá-lo

Constituição de 1988 lançou um projeto de nação

A sociedade brasileira deu um passo enorme em seu processo civilizador ao incluir em sua Constituição direitos e garantias fundamentais que, até então, eram relevadas pelo Estado brasileiro.

Direitos e garantias fundamentais têm como objetivo proteger o cidadão da ação do Estado, além de assegurar o mínimo para que todas as pessoas que vivem neste imenso território, brasileiras e estrangeiras, tenham uma vida digna.

A Constituição de 1988 se inspirou claramente na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), anunciada em 1948, fruto do trauma provocado pela Segunda Guerra Mundial. Aquele conflito decorreu da ascensão de movimentos e grupos políticos extremistas de direita, cujo ideário rejeitava os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita durante a Revolução Francesa de 1789, a primeira tentativa de universalização dos direitos humanos.

O objetivo da Carta Magna brasileira foi conferir dignidade à vida humana e proteção dos indivíduos frente à atuação do Estado, que é obrigado a garantir e prezar por tais direitos e garantias.

Não é fácil a luta das sociedades contra o absolutismo de grupos políticos absolutistas e de Estados fundados em princípios autoritários.

O documento da ONU, do qual o Brasil é signatário, baseou-se no da Revolução Francesa. Somente 199 anos depois, a Ilha de Vera Cruz consolidou um marco legal - a Constituição de 1988 - para universalizou direitos e proteger o cidadão da sanha autoritária de grupos que, mesmo minoritários, decidem a seu bel prazer os destinos do país.

A Carta Magna, entre outras inovações, universalizou o acesso gratuito da população à saúde e à educação. Dois outros exemplos precisam ser mencionados, entre tantos outros: a instituição da aposentadoria rural e a criação de um benefício social - o BPC - que, recentemente, tem sido objeto de acalorado debate.

No primeiro caso, trataram os constituintes de 1988 de entender que o Brasil não poderia ignorar o fato de que, até a década de 1960, a maioria da população vivia no campo. Tendo sido a economia que cresceu de maneira mais rápida na história da humanidade entre as décadas de 1950 e 1970, o processo de urbanização se deu forma acelerada, gerando enorme desigualdade, entre outros problemas sociais de difícil solução. A aposentadoria rural, sem a exigência de contribuição dos beneficiários, foi o reconhecimento de que milhões de brasileiros que trabalhavam no campo não poderiam ser deixados ao relento.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi adotado para atender basicamente a dois públicos: as pessoas que, por deficiência física ou mental, não conseguem trabalhar, e aqueles que, aos 65 anos, vagam pelas cidades, principalmente, as capitais, sem emprego, sem vínculo familiar, sem registro de identidade, muitos, sem memória… A Civilização diz que esses cidadãos têm direito a receber um salário mínimo por mês.

O Brasil escolheu a democracia como regime político e a economia de mercado como regime econômico. Os dois sistemas de convivência humana, organização social, são imperfeitos por definição.

Em ambos, a mercadoria mais valiosa é a informação (usada aqui no seu conceito mais amplo, isto é, sem estar restrito a notícias jornalísticas).

Quem detém mais informação, mais formação, tende a ter vantagens tanto no regime democrático quanto na prosperidade econômico. A democracia e a economia de mercado são uma espécie de corrida - em tese, cabe ao Estado atuar para que todos os “corredores” partam da mesma posição.

À medida que alguns avancem a ponto de ficarem muito distantes dos “retardatários”, cabe ao Estado atuar para diminuir essa distância, em prol do “contrato social” que assegure a sobrevivência da democracia.

Nos regimes democráticos, quem tem poder econômico possui também mais poder políticos sobre os demais cidadãos. É por essa razão que democracia avançadas não permitem, por exemplo, a existência de oligopólios no setor produtivo e financeiro. Porque têm um poder desmedido que torna qualquer democracia num simulacro do que deveria ser.

As alternativas ao binômio democracia-economia de mercado são muito piores. Basicamente, porque negam a característica inerente a todo ser humano, que é o direito à liberdade.

O que tudo disso tem a ver com a previdência rural e o BPC? Ora, nos dois casos, trata-se do reconhecimento de que há falhas nas democracias e em suas respectivas economias de mercado com as quais precisamos lidar. Não é possível que alguém ainda veja mendigos nas ruas e pensem: “São vagabundos que não querem trabalhar”. Nota do redator: a maioria trabalhava em empresas que sucumbiram à sucessão de malfadados planos econômicos; ademais, se esses brasileiros ao menos soubessem da existência do BPC…

Aprendemos, no Brasil, a conviver com a desigualdade e achar que está tudo certo, afinal, o livre arbítrio deve prevalecer sobre todas as coisas. A Constituição diz que não deveríamos pensar assim. Gente de bem neste país, a maioria, se questiona: por que nossas escolas não ensinam às crianças, desde a tenra idade, os princípios civilizadores consagrados por nossa Carta Magna?

A Constituição de 1988 encerra um belo projeto de nação, da nação que não somos. Mas, essa ambição só terá a chance de se materializar quando dotarmos o Estado brasileiro de características que, hoje, ele não tem (este tema será tratado aqui de forma exaustiva daqui em diante). O Estado que temos, concentrador de renda e absolutamente desprovido de instrumentos para exercer seu papel, precisa ser reformulado imediatamente.


Fernando Exman: A fórmula bolsonarista em busca da reeleição

Desafio é conseguir manter a bandeira anticorrupção

O governo vai avançando, no discurso e na prática, em seu plano de ampliar o eleitorado disposto a reeleger o presidente Jair Bolsonaro.

A operação se dá em duas frentes e a primeira é voltada a expandir a base, além dos redutos sob a influência de aliados do Palácio do Planalto e da população ao alcance das novas políticas públicas federais. Em segundo lugar, a tarefa é evitar que eventuais desilusões com a atual administração aproximem os chamados “bolsonaristas raiz” de uma candidatura alternativa no campo conservador nos costumes, liberal na economia e identificada com o combate à corrupção.

No círculo mais próximo do presidente está claro que a aversão à política e o desgaste dos partidos com seguidos escândalos de corrupção, principalmente os protagonizados pelo PT, ajudaram-no a subir a rampa do Planalto. O desafio, a partir de agora, é manter a imagem do governo preservada, ao mesmo tempo em que o Executivo tenta se beneficiar da ampliação de sua base no Parlamento por meio de alianças com algumas dessas mesmas siglas.

A aproximação dos partidos do Centrão também pode facilitar, na visão de integrantes do governo, o trânsito de Bolsonaro nos redutos eleitorais nordestinos. Isso tende a beneficiar ambas as partes, uma vez que em 2018 ele se saiu comparativamente bem em praticamente todos os segmentos do eleitorado, mas pode melhorar muito seu desempenho na região.

Para aliados do presidente, o eleitor nordestino não tem, em geral, preferência partidária. Busca em grande parte dos casos estar próximo do poder público por necessidade e conveniência, ou seja, tende a ser receptivo em relação a quem pretende expandir sua atuação política nesses Estados e possui a máquina em mãos.

Por isso o futuro anúncio do Pró-Brasil e o lançamento do Casa Verde e Amarela podem ser vistos como parte de um esforço de refundação que está em curso no governo. A tentativa de construção de novos parâmetros no relacionamento com os outros Poderes também está nesse contexto.

O lançamento do Casa Verde e Amarela garante desde já, ao presidente e a seus aliados, um instrumento poderoso para sustentar o discurso de que as pessoas, sobretudo as mais carentes, passaram novamente ao centro das preocupações do poder central. O programa reduz a taxa de juros do programa habitacional, permite a renegociação de dívidas e promove um grande esforço de regularização de imóveis.

O poder eleitoral de uma escritura não pode ser menosprezado, assim como não passa despercebido que o programa tenha o ano de 2024 como prazo. As regiões Norte e, claro, Nordeste terão um tratamento diferenciado.

O governo fortalece seu discurso sobre o enfrentamento do deficit habitacional e faz um contraponto ao Minha Casa, Minha Vida petista.

Já o Pró-Brasil tende a propiciar ao governo um reposicionamento em outros campos estratégicos, como as discussões sobre o combate ao desemprego, a redução das desigualdades sociais, o uso mais eficiente dos recursos públicos e o tamanho do Estado.

Se por um lado esse pacotão pode conter o programa social que tentará deixar para trás a marca do Bolsa Família, o Renda Brasil, ele também deve contemplar medidas que buscam reduzir os custos de contratação e visam o aquecimento do mercado de trabalho. A recuperação da economia está no centro dos debates sobre o Pró-Brasil.

Num outro braço do pacote, Bolsonaro pode finalmente atender a uma crescente demanda de congressistas aliados e do setor privado para que envie ao Congresso uma reforma administrativa.

Neste caso, como costuma dizer, a bola passaria a estar com o Legislativo. Os ônus políticos seriam divididos e, num cenário extremo, ele até poderia novamente responsabilizar deputados e senadores por não conseguir implementar sua agenda.

É isso o que autoridades do Executivo têm feito para justificar aos bolsonaristas mais fiéis a demora na entrega de algumas promessas de campanha.

O governo pouco apresentou quando se olha para as pautas de costumes e de ampliação do acesso a armas e munições. Por diversas vezes o Planalto viu suas medidas provisórias ou projetos de lei serem retirados de pauta ou nem entrarem em discussão. Um exemplo recente ocorreu no Senado, que adiou a análise das propostas que alteram regras do Código de Trânsito como o prazo de validade da habilitação, a suspensão da carteira e o uso de cadeirinha para crianças.

Agora, o governo quer aproveitar esta nova fase de relacionamento com os presidentes da Câmara e do Senado para tentar convencê-los a pelo menos colocar em votação os projetos de autoria ou interesse do Executivo, mesmo que eles estejam fadados à derrota. Em outras palavras, defendem que a maioria do Parlamento possa impor sua vontade sobre cada tema e não se dependa da vontade dos presidentes das duas Casas do Legislativo.

O governo sabe que a pauta armamentista enfrentaria dificuldades. Mesmo assim, esse seria um jeito de dar satisfação ao eleitor cativo de 2018, que, por outro lado, assiste ainda impassível ao noticiário sobre as movimentações financeiras realizadas pelo ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz para as contas de integrantes da família do presidente.

Este assunto tira o presidente do sério em suas interações com a imprensa, mas é um tema do qual dificilmente conseguirá fugir quando a campanha se intensificar.

Os governistas intensificaram a estratégia de comunicação para mostrar que nos últimos 600 dias não houve um grande escândalo de corrupção. Eles também têm procurado dar visibilidade aos resultados de operações policiais e esperam poder se beneficiar das dificuldades enfrentadas na Justiça pelo ex-ministro Sergio Moro, que deixou o governo criticando a atuação de Bolsonaro na área. Isso tudo pode não ser suficiente para neutralizar o impacto das notícias relacionadas à atuação de Queiroz. A eleição está longe, mas a disputa ganha cada vez mais forma.


Vinicius Torres Freire:Bolsonaro tem de comprar briga social ou derrubar o teto para bancar plano verde-amarelo

Falta dinheiro para plano verde-amarelo; ideia é mexer em servidores e vinculações

Jair Bolsonaro quer mais do que dobrar a despesa com o Bolsa Família, associar o programa a um plano de emprego e rebatizá-lo de “Renda Brasil” ou de “Alguma Coisa Verde Amarela”. Não há dinheiro.

Assim, o governo faz um psicodrama fiscal em público: “Bolsonaro quer”; “heroica equipe econômica se debate” para encontrar o tutu. Não vai achar a não ser que:

1) derrube o teto de gastos;

2) corte salários de servidores: vai ser a próxima ofensiva, que tem apoio de Rodrigo Maia e ganha ares de campanha;

3) acabe com vinculações e indexação de despesas previstas na Constituição (como o piso para saúde e educação ou o reajuste do salário mínimo pela inflação);

Dado o teto de gastos, apenas é possível aumentar a despesa com o Bolsa Família Amarelo arrumando dinheiro em outra parte do Orçamento (zerando o gasto em obras ou dando cabo de programas sociais como o abono salarial).

Mesmo assim, fica-se longe do Renda Brasil de Bolsonaro: R$ 300 mensais para 20 milhões de famílias daria um aumento de despesa de quase R$ 40 bilhões. Por ora, derrubando o abono e algo mais, haveria pouco mais de metade desse dinheiro.

A história de financiar o Renda Brasil com o fim das deduções com instrução e saúde do Imposto de Renda é ficção (a não ser que se invente gambiarra). Haveria mais receita com esse aumento de imposto, de resto justo, mas o gasto desse dinheiro estaria limitado pelo teto.

Até o final deste mês, o governo tem de mandar para o Congresso o Orçamento de 2021. Em tese, teria de mandar tão logo quanto também as emendas constitucionais que permitiriam reduzir salários de servidores, desvincular despesas e derrubar o abono salarial. Ou então inventar um arranjo qualquer para fazer com que tais dinheiros, quando livres, pudessem ser gastos em outra coisa.

Mais que isso, Paulo Guedes quer vincular a nova renda básica à redução de impostos sobre a folha salarial, para o que conta com uma espécie de CPMF. Note-se o tamanho do salseiro.

O governo vai fazer tudo isso, de uma vez só? Tanta emenda constitucional que mexe com tanta gente, com o funcionalismo e que aumenta imposto?

Além do mais, vazou para os jornais um rumor de que o ministro da Economia quereria também complementar a renda de quem estivesse no Renda Brasil e tivesse emprego “verde-amarelo”, de modo a fazer com que o rendimento final do beneficiário chegasse a pelo menos um salário mínimo. Muito bem, mas não há dinheiro, repita-se, dado o teto etc.

Guedes quer bancar seus programas sem mexer no teto de despesas, fazendo com que o gasto seja mais eficiente e também mais justo em termos sociais, diz. Tudo bem. Em termos econômicos, apenas mudar a despesa de uma rubrica para outra não vai resolver o provável problema de cortar os gastos deste ano de calamidade: uma redução de meio trilhão de reais terá qual efeito na atividade econômica de 2021?

O governo passou uma tinta e consertou a fiação do programa Minha Casa Minha Vida, reinaugurado com o nome de Casa Verde Amarela, mas que terá pouco mais dinheiro e, no fundo, não mexe com o problema urbanístico-social do programa petista. Vai ter juros menores, talvez inclua mais gente e vai renegociar os atrasados (mas, na pobreza ainda mais acentuada de agora, é difícil ver como o calote não voltará a crescer). Não dá para aumentar o Casa do Picapau Amarelo porque, entre outros problemas, não há dinheiro.


Ruy Castro: Bolsonaro infecta pelo ouvido

Como será dizer 'bundão' e 'encher tua boca' com porrada em libras?

Jair Bolsonaro não se contenta em ser visto como desumano, mentiroso, sem compostura, incapaz de governar, conivente com a corrupção, destruidor do meio ambiente, defensor da tortura, amigo de milicianos, subornador de militares, golpista, genocida e cínico. Também é uma ameaça pessoal à saúde pública. Por seu passado de atleta —como ele define sua carreira de terrorista no Exército—, gaba-se de ser inexpugnável à Covid, chamando de bundões os 115 mil brasileiros que já morreram e quem não tem um serviço médico como o dele, pago com o nosso dinheiro.

Suspeita-se de que, ao circular infectado e sem máscara pelo país, Bolsonaro contaminou uma multidão. A prova é a de que as pessoas ao seu redor, constrangidas a não usar máscara, vivem pegando a doença —só os funcionários do Planalto a contraem à média de três por dia. O mais novo infectado é o seu filho Flávio “Queiroz” Bolsonaro. Mas isso não é causa de preocupação porque, por ser filho de quem é, ele está proibido de reagir como um bundão.

Para mim, quem mais corre perigo com Bolsonaro é aquele pobre intérprete de libras que se vê ao seu lado —também sem máscara— nas declarações oficiais. Não sei o nome, idade ou histórico de atleta do tal senhor, mas espero que ele sobreviva aos perdigotos de Bolsonaro, ao tentar converter em sinais os coices do chefe contra as instituições e a verdade.

Por seu visual sóbrio, parece um homem de família, de sólida formação moral, talvez evangélico. Como será, para ele, dizer “bundão” em libras? E como será quando tiver de traduzir expressões como “porra”, “bosta”, “merda”, “putaria”, “filho da puta” e “puta que pariu”, como as que Bolsonaro ejaculou 28 vezes na reunião ministerial de 22 de abril? E o recente “encher tua boca com porrada”?

É o que me faz temer pela saúde do intérprete de libras. Afinal, certas infecções penetram também pelo ouvido.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Hélio Schwartsman: As regras do jogo

No país da gambiarra, nem o Legislativo tem apreço pela previsibilidade das regras

O forte da democracia não é assegurar a escolha de líderes competentes, do que dão testemunho Jair Bolsonaro e Donald Trump, para ficarmos em dois casos gritantes e recentes. É sempre possível comprar os eleitores com programas populistas ou iludi-los com promessas falsas. E isso não é uma falha circunstancial, mas uma característica do sistema. Não dá para livrar-se dela sem se livrar da própria democracia.

Ainda assim, ela é o melhor regime político de que se tem notícia. A aparente contradição se dissolve quando analisamos o pacote de instituições que costumam acompanhar as democracias. Falo de coisas como livre iniciativa, liberdade de expressão, Judiciário independente e previsibilidade das regras do jogo.

É sobre este último item que gostaria de me deter. Um dos mecanismos pelos quais sociedades democráticas tendem a ser mais prósperas que regimes arbitrários é que elas dão aos cidadãos segurança para investir esforços e economias em atividades produtivas. Se eu sei que o soberano não vai amanhã mudar as regras do jogo e se apropriar do que é meu, construo uma fábrica; se acho que ele vai criar problemas, converto tudo em diamantes com os quais posso fugir.

É claro que regras não precisam ser eternas. Elas existem para nos servir, e não nós a elas. Mas previsibilidade não é imutabilidade. Regras podem e devem ser atualizadas para acompanhar a realidade, mas sempre seguindo princípios de impessoalidade, publicidade e anterioridade, que assegurem que ninguém seja pego de calças curtas.

Não acho particularmente boa a regra que impede os presidentes da Câmara e do Senado de buscar reeleição na mesma legislatura, mas é óbvio que eventuais mudanças só poderiam valer para ocupantes futuros desses cargos, não para os atuais. Se nem o Legislativo tem apreço pela previsibilidade das regras, seria melhor decretar de vez que o Brasil é o país da gambiarra.


Míriam Leitão: Insuportável ar das queimadas

As queimadas destroem a floresta. Além disso, a fumaça tóxica invade pulmões e afeta a vida humana. O estudo divulgado hoje procurou medir isso com a ajuda de especialistas em saúde e qualidade do ar. Em agosto de 2019, três milhões de brasileiros foram expostos ao material particulado fino, extremamente nocivo. Em setembro, foram 4,5 milhões. Este ano o problema está aumentando. Destruir a floresta é insensatez por ser a perda de patrimônio para o lucro de criminosos, mas ainda há o risco de intoxicação pelo ar.

A Human Rights Watch, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia fizeram juntos o estudo para identificar internações e atendimentos na rede de saúde pública na Amazônia como efeito das queimadas do ano passado. Houve pelo menos 2.195 internações devido a doenças respiratórias que foram atribuídas às queimadas. Dessas, 467 (21%) foram de bebês de zero a 12 meses e 1.080 foram de pessoas com mais de 60 anos. Ao todo ficaram 6.698 dias hospitalizados para tratar os efeitos dessa exposição à poluição das queimadas.

O esforço das organizações para identificar, medir, mostrar o impacto na população é enorme, mas não consegue quantificar completamente. Seus autores lembram no documento que acabaram de divulgar que muita gente não tem sequer acesso à rede hospitalar.

É mais pesado para os indígenas, porque afeta a sua saúde e sobrevivência, já que eles dependem dos produtos da floresta para comer e viver. Ontem mesmo publiquei no blog a notícia de que líderes indígenas Awá Guajá e Ka’apor em áudios e fotos enviados para o antropólogo Uirá Garcia, professor da Universidade Federal de São Paulo, relatam a invasão das terras indígenas por fazendeiros, madeireiros, estaqueiros, traficantes. Nas fotos se vê o gado pastando em área que era floresta. O fogo faz parte do ciclo do crime. Os grileiros invadem, tiram as melhores madeiras, queimam o resto, e depois preparam o pasto.

“O desmatamento e as queimadas subsequentes frequentemente ocorrem nos territórios indígenas ou em seu entorno, às vezes destruindo plantações e afetando o acesso a alimentos, plantas medicinais e caça” alerta o estudo das organizações HRW, IEPS e IPAM. Elas dizem também que em 2020 a crise pode ser ainda maior porque o desmatamento no primeiro semestre aumentou 25% em relação ao mesmo período do ano passado. “Em abril de 2020, as áreas desmatadas e não queimadas em 2019 somadas às recém desmatadas já totalizavam 4.509 quilômetros quadrados na Amazônia que poderiam ser queimados durante esta estação seca, ou seja, aproximadamente 451 campos de futebol”. Em junho, houve 20% a mais de focos de calor do que no ano passado; em julho, a alta foi de 28%.

O risco este ano é maior também porque as pessoas intoxicadas e que foram aos hospitais, os encontraram lotados de pacientes de Covid-19. Os pacientes ainda correm o risco de contrair o vírus. Nos que estão com a doença, a fumaça agrava o principal sintoma, a dificuldade de respirar.

As queimadas produzem uma mistura de poluentes tóxicos que fica no ar por semana: monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio, carbono negro e marrom, precursores do ozônio. O pior é o material particulado conhecido como PM 2,5 que “penetra facilmente no pulmão e entra na corrente sanguínea permanecendo no corpo por meses após a exposição”. As crianças pequenas são particularmente vulneráveis, alerta o estudo. Esse “ar irrespirável”, como define o estudo, produz doenças crônicas e leva à morte prematura.

Ao fim da leitura, a pergunta que angustia é por que o Brasil aceita o roubo do patrimônio coletivo por um grupo de bandidos? Esse crime traz como efeito colateral a fumaça das queimadas que sufoca os moradores da Amazônia, onerando o sistema de saúde. Isso afeta principalmente as populações indígenas pela distância que eles estão de um posto de saúde. Depois do fogo vem o gado. Lideranças Awá e Ka’apor enviaram ao antropólogo Uirá Garcia um pedido de socorro e fotos do gado dentro de suas terras. Eles se sentem desamparados e ameaçados.

*Para o mestre Washington Novaes, com gratidão por sua luta incansável pelo meio ambiente do Brasil.

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Bernardo Mello Franco: O palavrão que salvou Deltan

Na fase áurea da Lava-Jato, Deltan Dallagnol enchia auditórios para pontificar contra a corrupção. O procurador virou tribuno e lançou uma campanha para endurecer as leis penais. Queria aumentar as penas e reduzir as hipóteses de prescrição.

“Uma das razões centrais da impunidade é aquilo que a gente chama de prescrição. Prescrição é um palavrão jurídico que significa o cancelamento do caso criminal porque ele demorou muito tempo na Justiça”, dissertou, em outubro de 2016. “Você dá um atestado de boa conduta para o criminoso, o corrupto, como se o crime não tivesse acontecido”, prosseguiu, em entrevista a uma rádio paulista.

Um mês antes, Deltan virou alvo de reclamação no Conselho Nacional do Ministério Público. O motivo foi o PowerPoint em que ele apontou o ex-presidente Lula como “comandante máximo” dos desvios na Petrobras.

Em entrevista transmitida ao vivo na TV, o chefe da força-tarefa definiu o petista como o maestro de uma “grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos”. Em outro momento, chamou Lula de “grande general” da roubalheira.

O procurador ainda comparou Lula a um assassino que “foge da cena do crime após matar a vítima e depois busca silenciar as testemunhas”. O falatório foi ilustrado com um diagrama de 14 setas que apontavam para o nome do ex-presidente.

O espetáculo tinha um problema: apesar do discurso inflamado, Deltan não denunciou o ex-presidente por organização criminosa. Ele foi acusado num caso específico, em que teria recebido vantagens da OAS.

No Supremo, o ministro Teori Zavascki reprovou a performance. “Essa espetacularização do episódio não é compatível nem com o objeto da denúncia nem com a seriedade que se exige na apuração”, condenou.

A reclamação se arrastou no CNMP por quatro anos. Com recursos e chicanas que fariam inveja aos réus da Lava-Jato, o procurador conseguiu adiar 42 vezes o próprio julgamento. Ontem seu advogado convenceu o conselho de que o episódio já estava prescrito. Deltan foi salvo pelo “palavrão jurídico” que combatia.


Zeunir Ventura: A pergunta que não cala

Por que mesmo, presidente, Michelle recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?

Nestes últimos dias, incluindo o fim de semana, Bolsonaro voltou a soltar a língua, principalmente contra a imprensa. A um repórter que fez o que ganha para fazer, pergunta, ele respondeu com um “seu safado” e a confissão de que estava com vontade de encher-lhe “a boca na porrada”. A questão tabu, que causou tanta irritação, devia esconder algo de grave: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?” (Fabrício Queiroz, como se sabe, é aquele policial ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, que é investigado pela prática de “rachadinha”, o esquema que consiste em repassar parte do salário ao parlamentar.)

Assim que souberam da reação agressiva do presidente, entidades, associações de classe, personalidades, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a imprensa internacional criticaram o gesto, além de mais de um milhão de internautas, que compartilharam a pergunta sobre Michelle, ou melhor, Micheque, nas redes sociais.

Noutra ocasião, falando de como se livrou da Covid-19, ele tripudiou dos meus colegas: “Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é muito menor. Só sabe fazer maldade, usar a caneta com maldade”. (Alguém precisa lhe dizer que repórter não usa mais caneta, só celular.)

Mas não é só como atleta que o capitão é fogo. “Na política, sou imbrochável (ele acha que é pra sempre). Aliás, não é só na política não, porque eu tenho uma filha de 9 anos de idade que foi feita sem aditivo.” (Pelo jeito, fazer filho sem aditivo é proeza rara.)

Pena que não houve tempo de contar o episódio de 1995, quando dois jovens de classe média o assaltaram, levando a motocicleta e a pistola Glock calibre 380 que carregava debaixo da jaqueta. “Mesmo armado, me senti indefeso”, ele admitiu. Naquela famosa reunião do dia 22 de abril, quando disse que queria armar todo mundo, achei que alguém iria lembrar o roubo: “O que adianta, se eles levam a arma?”.

Ah, sim, ia me esquecendo: Por que mesmo, presidente, Michelle recebeu depósitos de R$ 89 mil de Queiroz?


Elio Gaspari: Por que Queiroz depositou R$ 89 mil?

O MP não tem pressa, só perguntas

Em 2018 Jair Bolsonaro era o presidente eleito quando teve que explicar um depósito de R$ 24 mil feito pelo faz-tudo Fabrício Queiroz na conta de sua mulher. À época ele disse que esse dinheiro se relacionava com uma dívida de R$ 40 mil que o ex-PM tinha com ele.

O senador Flávio Bolsonaro conversou com Queiroz e deu-se por satisfeito: “Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não há nenhuma ilegalidade”.

O vice-presidente eleito Hamilton Mourão acrescentou o essencial elemento de dúvida: “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro.(…) Algo tem, aí precisa explicar a transação.”

Passaram-se dois anos, e nada aconteceu de bom para os Bolsonaros. O depósito de R$ 24 mil podia até ser parte da quitação de uma dívida de R$ 40 mil. Mas o ervanário depositado pelos Queiroz foi de R$ 89 mil. Bolsonaro não gosta de ouvir essa pergunta, mas precisa se habituar a conviver com ela. A ideia de “meter a porrada” em quem a faz é inútil, porque ela virá muitas vezes do Ministério Público. Os procuradores não têm pressa, só perguntas, e até hoje os Bolsonaros não contribuíram para o esclarecimento do que seriam seus rolos com Queiroz.

O que, em 2018, eram movimentações financeiras estranhas de um faz-tudo virou coisa mais pesada. Onze servidores alocados nos gabinetes dos Bolsonaros faziam depósitos nas contas de Queiroz. Entre eles estavam a ex-mulher e a mãe do ex-PM Adriano da Nóbrega, um miliciano foragido, que foi morto numa operação policial no interior da Bahia. Queiroz nunca deu uma explicação convincente para seus rolos. Sumiu e apareceu na casa de Atibaia do advogado Frederick Wassef. O doutor defendia os interesses de Flávio Bolsonaro. Todas as conexões de Queiroz tinham o aspecto comum às malfeitorias da pequena política do Rio de Janeiro, até que os repórteres Luiz Vassalo, Rodrigo Rangel e Fabio Leite revelaram que o doutor Wassef recebeu R$ 9 milhões para defender os interesses da JBS junto à Procuradoria-Geral da República e aos tribunais de Brasília. Em outubro passado, meses antes da manhã em que Fabrício Queiroz foi preso em sua casa, Wassef estava a serviço da empresa. Atravessaram a rua para entrar no Caso Queiroz.

A JBS é hoje a maior empresa do país em receita, superando a Petrobras. Produzindo alimentos, ela foi uma das “campeãs nacionais” durante o consulado petista e tornou-se uma vaca leiteira para as criaturas que habitam aquilo que o doutor Paulo Guedes chamou de “pântano político, (com) piratas privados e burocratas corruptos”. Em 2017 Joesley Batista, um de seus controladores, quase derrubou o governo de Michel Temer gravando uma conversa escalafobética que teve com ele para azeitar o acordo de colaboração que fecharia com o procurador-geral Rodrigo Janot.

Em 2018, quando o Coaf desconfiou das contas de Queiroz, puxando os fios chegava-se aos Bolsonaros e às pizzarias de Dona Raimunda, mãe do miliciano Adriano da Nóbrega. Passaram-se dois anos, nenhuma pergunta foi respondida e, puxando o fio do ex-PM faz-tudo dos Bolsonaros, bateu-se em Wassef, que teve como cliente a JBS, uma das maiores empresas de alimentos do mundo.


Ricardo Noblat: A opção de Bolsonaro pelos mais pobres empareda a oposição

O que estará em jogo em 2022

Jair Bolsonaro se elegeu presidente com o voto dos mais ricos. Quer se reeleger com o voto dos mais pobres.

Os ricos o adotaram há dois anos para derrotar o PT. A classe média também, mas ela sempre foi pouco confiável.

Então Bolsonaro sente muito que sua repentina opção preferencial pelos pobres enfraqueça o ajuste fiscal, mas que assim seja.

Ora, Paulo Guedes, que graça haveria em arrumar o Estado para que outro, e não Bolsonaro, possa depois tirar vantagem disso?

No segundo turno da eleição de 2018, Bolsonaro venceu em 97% das cidades mais ricas, e Haddad em 98% das mais pobres.

Nas regiões mais ricas do agronegócio, Bolsonaro conquistou 61,54% dos votos válidos contra 38,46% de Haddad.

Haddad ganhou na maioria dos municípios – 2.810 a 2.760. Ainda assim, Bolsonaro teve 10,7 milhões de votos a mais do que ele.

Houve um tempo em que o voto dos grotões sustentou a Arena, partido da ditadura militar de 64.

E houve um tempo, mais recente, que sustentou quatro governos do PT. Ou melhor: três governos e meio.

O coração dos grotões sempre bateu mais forte pelos governos ou partidos que atenderam suas carências. Natural.

Graças ao auxílio emergencial por conta do Covid-19, a rejeição de Bolsonaro no Nordeste caiu de 52% em junho para 35% agora.

Guedes quis que o auxílio fosse de 200 reais por mês. O Congresso pediu 500. Bolsonaro deu 600.

O ministro estima que nos primeiros três meses, o auxílio custou a bagatela de 152 bilhões de reais.

Só que ele acabou prorrogado por mais três meses. E será até dezembro. Guedes topa pagar 250. Bolsonaro, 300.

A oposição ao governo está perplexa e sem saber direito o que fazer. Ela governa oito dos nove Estados do Nordeste.

Bolsonaro subtrai o que era dela. Sai Bolsa Família, entra Renda Brasil. Sai Minha Casa, Minha Vida, entra Casa Verde e Amarela.

E sempre gastando um dinheirinho a mais para não parecer apenas maquiagem ou apropriação indébita de marcas famosas.

Se Bolsonaro arrombar as portas dos grotões, dificilmente não será reeleito. Para derrotá-lo, só uma frente ampla de partidos.

Isso só será possível se o PT admitir abrir mão da cabeça de chapa. Mas Lula argumenta que não pode ser assim.

E se nenhum outro candidato de oposição chegar à frente do candidato do PT às vésperas do primeiro turno?

O argumento é fajuto. Um candidato apoiado pelo PT, PSDB, DEM, PSB, PDT e outros partidos poderá deter Bolsonaro.

Tudo o que Bolsonaro quer é ir para o segundo turno contra um candidato do PT. Tudo o que não quer é ir contra outro candidato.

Em 2022, não importa quem vença, desde que não vença o atraso para que não se perpetue.

Uma história que cheira muito mal

Wassef e os Bolsonaro, sempre eles

Cheira mal, muito mal, a história de Frederick Wassef ter recebido repasses de 2,3 milhões de reais de Bruna Boner Léo Silva, sócia da Globalweb Outsouring, empresa que tem contratos com o governo federal. A grana foi repassada para ele entre dezembro de 2018 e maio último. Wassef tornou-se advogado de Flávio Bolsonaro e do seu pai no fim de 2018.

Deixou de ser em junho deste ano quando Fabrício Queiroz, ex-chefe de gabinete de Flávio e parceiro dele em negócios suspeitos investigados pelo Ministério Público Federal do Rio, foi descoberto e preso em sua casa em Atibaia, interior de São Paulo, e sob seus cuidados há mais de 6 meses. À época, Wassef disse que ofereceu abrigo a Queiroz por “razões humanitárias”.

A conta do escritório de advocacia de Wassef recebeu diretamente da Globalweb mais 1,04 milhão durante esse mesmo período. Em 2014, por não ter entregado serviços contratados, a Dataprev, empresa vinculada ao Ministério da Economia, multou a Globalweb em 27 milhões de reais. Com 90 dias de Bolsonaro presidente, o governo suspendeu o pagamento da multa.

Bruna vem a ser filha de Maria Cristina Boner, ex-mulher de Wassef. Em pouco mais de um ano e meio de governo Bolsonaro, a Globalweb ganhou contratos com a União no valor de 53 milhões de reais. Wassef, em outubro passado, quando já advogava para os Bolsonaro, estava a serviço do Grupo JBS junto à Procuradoria-Geral da República. Embolsou por isso 9 milhões de reais.

O Grupo JBS nunca fez distinções entre partidos – desde que eles estivessem no poder ou pudessem alcançá-lo. Distribuiu dinheiro a rodo à esquerda e à direita. Seus principais donos foram presos, delataram e estão soltos. Joesley Batista, um deles, gravou o então presidente Michel Temer dizendo coisas que lhe renderam duas denúncias por corrupção e quase o derrubaram.


Vera Magalhães: Perdemos o trem

Documentário ‘O Fórum’ mostra Brasil deslocado do resto do mundo

O trem que conduz ativistas, chefes de Estado, jornalistas e empresários à idílica cidade de Davos, nos Alpes suíços, funciona como uma metáfora do caminho que o documentário O Fórum, recém-lançado nas plataformas de streaming, mostra, de um mundo em lenta, mas inexorável transformação. E o Brasil que aparece na tela perdeu o trem e ficou perdido na estação.

Não é só a cena da conversa que mais parece uma brincadeira de telefone sem fio entre Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore, que viralizou nas redes sociais como um teaser do documentário, que mostra o quão deslocado o País está. São todos os aspectos abordados, da quarta revolução industrial às emergências climáticas. Somos párias, motivo de piada e preocupação por parte dos atores mais relevantes.

O filme tem duas partes. Uma mais otimista mostra um fórum concorrido em 2018, com Donald Trump posando de dono do mundo, Theresa May ainda não derrotada e um sorridente e galante Emmanuel Macron exalando charme pelos corredores. A edição de 2019 é mais melancólica e cercada de ceticismo, após o Brexit, com a crise comercial entre Estados Unidos e China já deflagrada e com Macron cercado pelos coletes amarelos. Nesse cenário, a presença de Bolsonaro é um constrangimento para todos.

A equipe do premiado diretor alemão Marcus Vetter teve acesso pleno a reuniões preparatórias de Klaus Schwab, fundador e figura central do Fórum, com sua equipe, empresários, ativistas para as duas edições que o filme retrata. Também acompanhou os bastidores, as conversas informais e as iniciativas que acontecem off-Davos, a partir do que é tratado ali.

Schwab tenta fugir de todas as formas do mico de ter de moderar o painel com Bolsonaro. Tenta passar o fardo para o presidente mundial da Nestlé, que declina gentilmente. Sua preocupação com a chegada do presidente brasileiro é mostrada em detalhes. Até que, já nos 15 minutos finais do filme, Bolsonaro entra em cena. Seu bizarro discurso de dois minutos na abertura do evento é mostrado na íntegra, com cenas intercaladas da plateia atônita e o filho 03, Eduardo, filmando tudo com cara de “meu paipai” na primeira fila.

A cena da conversa com Gore dá ainda mais vergonha quando mostrada sem cortes. Bolsonaro está na sala de café absolutamente deslocado, acompanhado apenas de Ernesto Araújo. Na conversa com Gore, além de tratar Alfredo Sirkis como seu “inimigo na luta armada”, uma mentira completa e desnecessária, ainda termina o breve e desastrado encontro dizendo que sabe quem o ex-vice-presidente norte-americano é, e não o tem como inimigo.

Em seguida Bolsonaro é abordado por Jennifer Morgan, diretora-executiva global do Greenpeace, que diz que ficou satisfeita em ouvir seu compromisso com a preservação da Amazônia. Bolsonaro não a olha nos olhos, não responde e diz só um “thank you” enfezado ao final. Em seguida, ela tira sarro com uma colega ativista por ter conversado com o presidente brasileiro, e a interlocutora ri de sua “coragem”.

É esta a imagem do Brasil que emerge de um filme que mostra ainda outros líderes mundiais em ação para mitigar os efeitos crise ambiental no mundo. “Pronta?”, pergunta Schwab a Angela Merkel. “Estou sempre pronta”, responde ela, sem a enorme entourage do presidente brasileiro (outro motivo de chacota dos organizadores).

O documentário deixa claro que as discussões sobre mudança de mentalidade de nações e empresas em relação ao meio ambiente não são acessórias, mas essenciais. Isso era verdade no pré-pandemia e será no pós. O Brasil não está no mesmo vagão de todos os demais tomadores de decisões, inclusive os investidores. Passamos vergonha e ficamos perdidos na estação junto com Bolsonaro.