Day: agosto 25, 2020

Cristovam Buarque: A última trincheira da escravidão

Durante os 350 anos da escravidão, intelectuais, políticos, padres, empresários, trabalhadores brancos, viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança. Demorou para surgirem reações contra maus tratos que sofriam os escravos, tais como a proibição do tráfico, o ventre livre, a liberdade dos sexagenários, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem a meta de assegurar que o filho do pobre tenha acesso à mesma escola do filho do rico.

Inspirada desde o exterior, a defesa da Abolição só surgiu depois de três séculos de escravidão, e sob a desconfiança geral da sociedade: por ser vista como uma utopia impossível, desnecessária, contra a natureza das coisas e ameaçadora do estabelecimento social. Os humanistas que eram contra os maus tratos não conseguiam ver a possibilidade, nem a razão, para o fim do sistema arraigado sob visão hegemônica de que a desigualdade entre raças era natural, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda. Até o final da luta, a bandeira da Abolição foi carregada por poucos. A trincheira contra ela tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não-escravos não aceitaram dar os mesmos direitos aos ex-escravos e seus filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos, ricos, na maior parte brancos. A luta atual pela igualdade na qualidade da educação tem este mesmo lento ritmo. As pessoas começam a ter sentimentos de vergonha pelo atraso educacional no país, a perceber que a evolução tecnológica está exigindo conhecimento, mas sem aceitar a ideia de que a escola deve ser a mesma para ricos ou pobres.

Quase 100 anos depois da Abolição, criamos um sistema de escolas pública municipais, programas para merenda e livro didático, Emenda Calmon; determinamos obrigatoriedade de matrícula dos 6 anos até os 14 anos; depois desde os 4 anos até os 17, implantamos Fundef, Fundeb, PNE-I, PNE-II, Piso Nacional Salarial, mas não nos atrevemos a uma estratégia educacionista. Nenhum partido, nenhum governo, de direita ou de esquerda, defende e se compromete com uma estratégia com duas metas: o Brasil ter educação com a qualidade das melhores do mundo, e toda criança ter acesso igual a esta educação, independente da renda ou do endereço de sua família. Eleitores e eleitos, não acreditam ou não querem, tanto quanto na escravidão muitos não queriam a Abolição e outros não acreditavam que ela fosse possível.

A igualdade escolar é o gesto que ficou faltando na Abolição. A desigualdade na qualidade da escola é um resquício da escravidão, sua última trincheira. Mas a ideia educacionista não seduz a opinião pública. Nem mesmo o movimento negro tem esta bandeira para completar a Abolição, porque se concentra na luta correta, mas insuficiente, para beneficiar os afrodescendentes que terminaram o ensino médio e querem entrar na universidade, mas sem lutar pela alfabetização dos pobres na idade certa, pela erradicação do analfabetismo que ainda tortura 12 milhões de adultos, e garantir a cota de 100% dos jovens brasileiros concluírem o ensino médio com qualidade e qualidade igual. Comportamento parecido com o dos antigos humanistas contra maus tratos, mas sem aceitar a Abolição.

A última trincheira da elite social e econômica é manter para seus filhos o privilégio de uma escola com mais qualidade do que a escola dos filhos dos pobres. Por isto é difícil um pacto social para uma estratégia que objetive colocar a educação brasileira entre as melhores do mundo, e que todas as escolas sejam concessão pública, abertas para todos os alunos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos abolicionistas, não podemos deixar de lutar por esta bandeira, ainda sabendo que até mesmo aqueles que se incomodam com o vergonhoso quadro de nossa educação vão continuar defendendo os paliativos que caracterizavam os humanistas-contra-os-maus-tratos. Da mesma maneira que o “fim do tráfico” o “ventre livre”, a “alforria dos sexagenários”, a prorrogação do Fundeb é um passo positivo, mas muito distante da Abolição Educacional: escola com a mesma qualidade para todos, independente da renda e do endereço: a implantação de um Sistema Unificado Federal de Educação.


Cristina Serra: O tumor Bolsonaro

As instituições, até a imprensa, absorveram Bolsonaro como corpo doente se acostuma a hospedar tumor, que um dia mata o hospedeiro

Não sou ombudsman, mas me permito usar este espaço para algumas reflexões. No sábado, o editorial desta Folha trouxe o título “Jair Rousseff”. O texto se refere ao desequilíbrio das contas públicas no governo da ex-presidente e à tentação do atual fazer o mesmo.

A fusão dos dois nomes é um ultraje à ex-presidente. O título chamativo não poderia ter prevalecido sobre o simples bom senso ou o respeito à história de Dilma Rousseff. Na aprovação do impeachment na Câmara, Bolsonaro votou em homenagem ao torturador Brilhante Ustra, algoz da ex-presidente quando de sua militância contra a ditadura. “O pavor de Dilma Rousseff”, tripudiou o então deputado.

Bolsonaro deveria ter saído preso da Câmara naquele dia por apologia à tortura, crime de lesa-humanidade. E, no entanto, aquele foi o ato inaugural de sua ascensão ao poder. Que fizeram as instituições? Câmara? Supremo? Ministério Público? Funcionaram “normalmente”.

Mas a assimilação de Bolsonaro como algo natural pelas instituições começou muito antes. No fim dos anos 1980, o Superior Tribunal Militar ignorou as provas de que o então capitão participara de um plano para explodir bombas em quarteis e o absolveu.

Foi a deixa para Bolsonaro iniciar carreira parlamentar tão longeva quanto medíocre, marcada por ofensas a mulheres, negros e homossexuais e pela defesa da tortura e da execução de uns “30 mil”.Sua atuação parlamentar foi tratada como rebotalho caricato e extemporâneo da ditadura. Conselho de Ética? Corregedoria? Ah, sim, as instituições funcionaram “normalmente”.

E assim chegamos ao ponto em que milhões de eleitores identificaram nele o comando e a síntese do autoritarismo brasileiro. As instituições, inclusive a imprensa, absorveram Bolsonaro como um corpo doente se acostuma a hospedar um tumor. Um dia, o tumor explode e mata o hospedeiro. A propósito: “Presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”.


El País: Os 89.000 reais pagos a Michelle Bolsonaro são a ponta do iceberg em esquema envolvendo dinheiro vivo

Investigado por confisco de salário de servidores, Queiroz fez repasses a integrantes do clã presidencial que podem chegar a 450.000 reais em depósitos, pagamento de boletos e mensalidade escolar

Os 89.000 reais depositados por Fabrício Queiroz e por sua mulher na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro são a ponta do iceberg de uma relação financeira obscura que envolve o clã do presidente da República e o ex-assessor parlamentar ligado a milicianos. Os depósitos para Michelle foram revelados pela revista Crusoée pela Folha.Mas não é só isso: pagamento de boletos, parcela de apartamentos, mensalidades escolares e até plano de saúde são alguns dos favores feitos por Queiroz para familiares do presidente. No total, o valor repassado por Queiroz a parentes do mandatário pode chegar a quase 450.000 reais, e a origem do dinheiro ainda é um mistério: as autoridades acreditam que se trata de um esquema de rachadinha, uma prática ilegal que consiste no confisco de parte do salário de assessores ―algo que a família sempre negou. O caso é alvo de investigação pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, mas atualmente se encontra suspenso devido a manobras da defesa de Flávio, que luta para conseguir direito ao foro. Até o momento Michelle não é investigada.

O comentário mais recente do presidente sobre o dinheiro depositado para Michelle foi truculento: ele disse ter vontade de “encher de porrada” a boca do repórter que lhe questionou sobre o assunto, no domingo. A ameaça provocou uma avalanche de críticas nas redes sociais, que repetiram a pergunta do jornalista com um tuitaço indagando: “Jair Bolsonaro, por que Queiroz depositou 89.000 na conta da primeira-dama?”. Nesta segunda-feira o mandatário voltou a atacar a imprensa durante evento em Brasília, referindo-se aos jornalistas presentes como “bundões” que morreriam caso contraíssem a covid-19.

Seja como for, até o momento não há uma resposta do presidente sobre os depósitos. Mas em 2018 ele já havia se manifestado sobre os cheques. “Emprestei dinheiro para ele [Queiroz] em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou”. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), no entanto, não identificou o empréstimo feito pelo presidente, segundo foi noticiado à época. Bolsonaro, então, admitiu que pode ter “errado” ao omitir o empréstimo e a quitação do mesmo na sua declaração anual de imposto de renda.

Mas a relação entre Queiroz, que está em prisão domiciliar desde 14 de agosto, e a família presidencial é mais complexa do que um empréstimo não declarado. Os problemas dos Bolsonaros envolvendo o ex-assessor começaram no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. O primogênito do clã ocupou uma vaga na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro de 2003 a 2019, e empregou o aliado da família como assessor. Queiroz é amigo de longa data de Jair: eles se conheceram no Exército nos anos de 1980, quando serviam na Brigada de Infantaria Paraquedista e estavam lotados na Vila Militar, no Rio de Janeiro. De lá para cá, pescarias, festas e jogos de futebol aprofundaram os laços entre os dois. Gozando da confiança do deputado Flávio, Queiroz emplacou cinco parentes no gabinete, dentre elas sua mulher, Márcia de Oliveira Aguiar, e duas filhas (sobre as quais pesa a suspeita de serem funcionárias fantasma). Ele também foi responsável por empregar a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega, um dos chefes do grupo de assassinos conhecido como Escritório do Crime, morto pela polícia da Bahia em fevereiro deste ano.

De acordo com o MP-RJ, ao menos treze assessores que atuavam no gabinete de Flávio fizeram repasses para Queiroz, que movimentou quase três milhões de reais em sua conta bancária entre 2007 e 2018. Mais de dois milhões deste valor tiveram sua origem em centenas de transferências bancárias e depósitos em dinheiro vivo realizados por outros assessores. Em entrevista ao canal SBT, o ex-assessor afirmou que é um “homem de negócios”, e que os valores dizem respeito a negócios de compra e venda de carros usados.

Segundo as investigações, os valores repassados para Queiroz eram então canalizados para o deputado de diversas maneiras, fossem depósitos ou via pagamento de despesas pessoais do parlamentar. Os promotores apuram o pagamento de mais de 100 boletos bancários referentes às mensalidades escolares das filhas de Flávio, bem como do plano de saúde da família, segundo revelou o jornal O Globo. Os valores chegam a 261.000 reais, e não foram localizados débitos na conta do deputado ou de sua esposa que indiquem que foram eles que quitaram os débitos. Flávio afirmou que o assessor era responsável pelo pagamento de algumas de suas despesas pessoais, mas que a origem dos recursos é lícita. No pedido de prisão de Queiroz feito pelo MP, no entanto, os promotores afirmam que o dinheiro utilizado “não proveio das fontes lícitas de renda do casal”, e coloca Flavio no comando de uma “organização criminosa”.

Além dos boletos pagos, Queiroz teria feito um depósito de 25.000 reais na conta bancária da esposa de Flávio, Fernanda Bolsonaro, em 2011. Em depoimento ao Ministério Público, o senador negou pagamentos do assessor à sua mulher: “Não sei a origem do dinheiro, mas dá uma checada direitinho que eu tenho quase certeza que não deve ter nada a ver com Queiroz. Queiroz nunca depositou dinheiro na conta da minha esposa, pelo que eu saiba”, afirmou.

Os negócios imobiliários do clã

Existe um outro fio da investigação do MP-RJ envolvendo Flávio que vai além dos repasses já identificados por parte de Queiroz. Um relatório dos promotores obtido pela revista Veja levanta a suspeita de que o hoje senador realizou uma série de negócios imobiliários com a finalidade de lavar dinheiro fruto da suposta rachadinha. Ele teria lucrado mais de 3 milhões de reais com a venda de 19 salas e apartamentos nas zonas Sul e Oeste do Rio. De acordo com o documento, existem “suspeitas de subfaturamento nas compras e superfaturamento nas vendas”, o que teria sido feito, de acordo com a linha de investigação, para “simular ganhos de capital fictícios” e encobrir “o enriquecimento ilícito decorrente dos desvios de recursos” de assessores do gabinete. Em nota, Flávio afirmou que “os valores informados [na reportagem] são absolutamente falsos e não chegam nem perto dos valores reais”. Ele também criticou os vazamentos de dados da investigação.

Em outro negócio, Flávio fez um depósito de 638.400 reais em dinheiro na conta de um corretor de imóveis para, segundo relatório do MP, ocultar valores fruto das rachadinhas. Posteriormente o deputado vendeu os dois apartamentos adquiridos em Copacabana com um lucro de 292%, algo atípico para os padrões do mercado. O primogênito de Bolsonaro não é o único da família a fazer negócios imobiliários com dinheiro vivo. De acordo com reportagem da revista Época, Ana Cristina, que foi casada com Jair de 1997 a 2008, negociou durante o período do matrimônio 14 imóveis cujo valor alcança 5,3 milhões de reais. A maioria das transações foi feita em espécie.

Desde que as movimentações suspeitas envolvendo Queiroz vieram à tona, no final de 2018, Flávio luta para que seu caso fique fora da primeira instância, alegando que na condição de parlamentar ele teria direito ao foro privilegiado, que tiraria as investigações das mãos do MP-RJ. Os promotores do caso recorreram, e agora a questão está nas mãos do STF, que deve decidir em breve de quem é a competência para investigá-lo. Existe a expectativa de que o ministros da corte optem por mandar o caso de volta para a primeira instância, tendo em vista que a jurisprudência vigente tem sido de garantir direito ao foro especial apenas quando os supostos ilícitos foram cometidos no mandato em questão, o que não é o caso de Flávio.


Pablo Ortellado: A hora de Paulo Guedes

Se o bolsonarismo sobreviveu a uma ruptura com o lavajatismo, tudo indica que pode sobreviver a um rompimento com o liberalismo de Paulo Guedes

O bolsonarismo foi um movimento político concebido em 2018 a partir da articulação do conservadorismo moral, sobretudo aquele de orientação religiosa, com o lavajatismo e o liberalismo econômico.

Os dois primeiros tinham uma base social mobilizada sobre a qual se construiu a campanha eleitoral. Apesar de afinidades internas, a aliança se desfez com a saída do governo do ex-ministro Sergio Moro. Será que a aliança com o liberalismo, que é de conveniência, consegue resistir às pressões sobre Paulo Guedes?

A força de mobilização do lavajatismo vinha da grande popularidade da Operação Lava Jato e da vitoriosa campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff. A força do conservadorismo moral, por sua vez, vinha do punitivismo penal, que é muito popular, e da campanha das igrejas cristãs contra a ideologia de gênero.

Já o terceiro componente, o liberalismo, não tinha base social significativa. Mas era fundamental porque conferia a um projeto político insurgente legitimidade junto às elites econômicas.

A aliança do conservadorismo com o liberalismo de Guedes não está ancorada em afinidades doutrinárias —como as que existiam com o lavajatismo com quem compartilhava uma inclinação punitivista. Além disso, não dispõe dos laços históricos de compromisso que conservadorismo e liberalismo econômico desenvolveram nos Estados Unidos.

À medida que Bolsonaro compreende que sua popularidade depende da expansão dos programas sociais, Guedes está cada vez mais em perigo. Moro parecia mais indemissível e partiu sem fazer grande estrago.

O radicalismo doutrinário de Guedes tem feito com que reiteradamente busque financiar programa social com cortes em outros programas sociais e que busque compensação fiscal com a introdução de um imposto regressivo parecido com a CPMF.

Quando uma abordagem de senso comum recomendaria financiar uma expansão do sistema de proteção social com um pequeno aumento da carga tributária sobre os ricos ou com um corte nas renúncias fiscais, Guedes tirou do seguro desemprego para financiar o primeiro emprego; agora está querendo tirar do abono salarial para dar ao Renda Brasil e não desiste da obsessão de criar um imposto como a CPMF. Se política social traz popularidade, não faz sentido tirar de uma para dar para outra.

Cedo ou tarde, Bolsonaro vai perceber que não precisa de um ultraliberal na pasta da economia —e que, como Lula demonstrou, é perfeitamente possível combinar uma política econômica razoavelmente responsável, do ponto de vista fiscal, com políticas sociais de impacto.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Almir Pazzianotto Pinto: O mercado de trabalho e a pandemia

Este ano já é perdido. O governo deve cuidar para a crise não pôr a perder a próxima década

Recebo frequentes convites para participar de reuniões virtuais com o propósito de prever como serão as relações de trabalho em 2021. Prever é profetizar. Profeta, na acepção da palavra, é “alguém por meio de quem se dá a conhecer a vontade e o propósito divinos” (Luc 1:70; At 3:18-21). O Velho Testamento foi revelado a profetas como Moisés, Samuel, Zacarias, Jeremias, Ezequiel. Para os islamitas, Maomé foi o profeta a quem Alá, o único Deus, incumbiu de escrever e difundir o Corão.

A pandemia do coronavírus não foi profetizada. Não tivemos um Moisés a quem Jeová incumbisse de nos alertar sobre a praga destinada a ficar. É impossível dimensionar o tamanho do prejuízo. Sabemos apenas que o número de mortos e de infectados supera as piores estimativas e que a quantidade de empresas quebradas, de empresários falidos, de desempregados, de desocupados e desalentados tende a aumentar.

O mundo ficou mais pobre e o Brasil retrocedeu.

Somos mais de 210 milhões de habitantes de um continente chamado Brasil. O coronavírus cumpriu duplo papel: revelar a verdade oculta por falsas estatísticas e aprofundar a crise cujos primeiros sinais foram emitidos nos anos 1980.

Como ficará o mercado de trabalho após a pandemia? A pergunta exige respostas objetivas e convincentes. Antes que se instalasse já se sabia que a carência de emprego é um dos piores flagelos da humanidade Há mais de 20 anos os dados da Organização Internacional do Trabalho já o denunciavam. Farta literatura europeia examinava o tema em tom pessimista. Não se tratava apenas de problemas de desindustrialização ou de pobreza. Países ricos acusavam elevadas taxas de desemprego atribuídas à globalização, à informatização, à robotização e, mais recentemente, à inteligência artificial.

Como poderemos reencontrar o caminho do desenvolvimento? Como gerar milhões de empregos para jovens, adultos e idosos, brancos, negros e pardos, qualificados ou não qualificados? O primeiro obstáculo é a insegurança jurídica. Não há como ignorar. O temor ao passivo oculto aterroriza o empregador brasileiro. No terreno dos industrializados não estamos entre os exportadores porque os custos finais nos impedem o acesso ao mercado externo.

Ouço falar de avalanche de reclamações ajuizadas por empregados que se sentem lesados por medidas provisórias destinadas a preservar empregos e empresas. Se a ameaça não for de pronto afastada, o projeto de recuperação econômica nascerá morto ou aleijado. Gerar empregos não é mero ato de vontade. Exige planejamento correto e elevados investimentos. Alguém já se perguntou quanto custa criar e sustentar postos de trabalho? Quem desejar saber indague ao pequeno empresário.

O esforço de reconstrução econômica exigirá esforços a que não estamos habituados. Serão indispensáveis espírito de solidariedade, disposição para o sacrifício, boa-fé nos contratos, investir e enfrentar os pesados riscos do negócio.

O economista americano James Tobin, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, escreveu: “Nossa população aspira a um padrão de vida cada vez melhor, geração após geração. Para satisfazermos essas aspirações precisamos de contínuo crescimento da produtividade e, em consequência, precisamos de mais poupança, mais investimentos, mais pesquisas e desenvolvimento, mais tecnologia nova e melhor sistema educacional”. Em síntese, tudo o que nunca tivemos.

Os profetas da Bíblia não eram economistas. Não dispunham de consultores, bibliotecas, estatísticas. Revelavam o futuro como porta-vozes de Deus. O que profetizaram continua a ser lido e respeitado, independentemente dos resultados colhidos ao longo da História da humanidade. No mundo contemporâneo não temos profetas. Foram substituídos por sociólogos, economistas, cientistas políticos, institutos de pesquisas, calculadoras, computadores e jornalistas. Ainda assim, profetizar na política e na economia quase sempre traz maus resultados.

O ano de 2020 já é perdido. Não se trata de profecia, mas da constatação da realidade. O governo deve cuidar para que a crise não ponha a perder a próxima década. Com 15 milhões de desempregados, outros tantos desocupados, 65 milhões de dependentes do auxílio emergencial, a indústria, o comércio e o turismo quase paralisados, como serão as festas do Natal e de passagem de ano? Haverá dinheiro para férias, pagamento do 13.º, presentes, reuniões familiares, almoços e reuniões de confraternização?

Algumas boas experiências, porém, ficarão. Reaprendemos como é agradável ficar com a família e ter tempo para ler. Desenvolvemos o sentido da solidariedade. Adquirimos o hábito da compra pela internet, sem idas e vindas ao shopping ou ao supermercado. Dominamos a técnica das reuniões por videoconferência. O trabalho à distância mostrou-se produtivo. Veio para ficar. Economiza espaço, dinheiro, estimula a criatividade, valoriza a independência, cria oportunidades, oferece conforto e permite minutos de lazer.

Como se diz na França, à quelque chose malheur est bon (há males que vêm por bem).

*Advogado, foi ministro do trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Vera Magalhães: O que fez o presidente se calar o faz explodir

O mesmo assunto que fez Jair Bolsonaro se calar nos últimos meses foi responsável por sua explosão de violência com um jornalista anteontem. Trata-se do caso Fabrício Queiroz, o calcanhar de aquiles da família Bolsonaro. A pergunta feita ao presidente não foi acessória: o que explica 21 depósitos, no total de R$ 89 mil, da família de Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro?

Não era a única possível concernente ao caso que envolve rachadinha do gabinete do filho Flávio. Por que Queiroz fez depósitos regulares na conta do ex-chefe? Por que os funcionários do gabinete de Flávio depositavam a maior parte de seus salários na conta de Queiroz? Por que Queiroz pagava prestações do patrão?

Nenhuma pergunta autoriza um presidente a responder ameaçando “encher de porrada” a boca do profissional. Esse tipo de arroubo não é exceção. Trata-se do comportamento de Bolsonaro como homem público desde sempre.

Mas a prisão de Queiroz e o cheiro do impeachment o levaram a se recolher e a fingir um republicanismo que não tem nem nunca terá. E a soltura do homem-bomba e sua ligeira subida na pesquisa o deixaram à vontade para voltar a exibir as garras autoritárias.

Tanto que ontem dobrou a aposta, colocando sua milícia para falsear as circunstâncias da agressão e chamando jornalistas de “bundões” numa sinistra cerimônia para “celebrar” a “vitória” contra a covid-19.

Bolsonaro não se moderou, e não o fará a não ser que seja obrigado pelas instituições e pela sociedade. Começou anteontem com uma reação forte e uníssona contra a mais recente barbárie. Mas é preciso mais.

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Ricardo Noblat: Não se peça a Bolsonaro o que ele não tem para dar

E assim será até o fim

E se tivesse sido o contrário? Se um jornalista, cansado de ouvir o presidente Jair Bolsonaro mandar calar a boca, tivesse respondido: “Minha vontade é encher tua boca na porrada”?

Certamente teria sido preso e acusado pelo crime de desacato à autoridade. E Bolsonaro, 48 horas depois, estaria soterrado por mensagens de solidariedade de meio mundo ou do mundo todo.

Mas foi o contrário. E como reagiram as instituições, as cabeças coroadas da República e as personalidades da área dos negócios sempre tão aflitas com os arroubos presidenciais? Brandamente.

O general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse: “Coisas pessoais do presidente, não me compete tecer comentários. Eu não estava junto, não sei… Deixa para lá isso aí”.

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, encontrou a quem culpar: os agentes de segurança de Bolsonaro que não o afastaram a tempo dos jornalistas.

Rodrigo Maia, presidente da Câmara, lamentou o episódio, defendeu a liberdade de imprensa, mas foi logo dizendo que não era motivo para abertura de um processo de impeachment.

Se não é quebra de decoro um presidente da República ameaçar encher de porrada a boca de uma pessoa, não importa quem seja, o que é quebra de decoro exigido pelo cargo?

Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo é crime de responsabilidade, segundo a lei do impeachment invocada para derrubar Collor e Dilma.

“Minha vontade é encher tua boca na porrada”, disse Bolsonaro no último domingo em resposta à pergunta por que Queiroz depositou 89 mil reais na conta da primeira-dama Michelle.

Imagine a mesma coisa dita pelo presidente dos Estados Unidos (‘My will is to fill your mouth with fights’). Ou pelo presidente da França (‘Ma volonté est de vous remplir la bouche de combats’).

Ou pela 1ª ministro da Espanha (‘Mi voluntad es llenarte la boca de peleas’). Ou pela 1ª ministra da Alemanha (‘Mein Wille ist es, deinen Mund mit Kämpfen zu füllen’).

Em tais países, seria algo impensável. Na Rússia de Putin (‘Moya volya – napolnit’ vash rot drakami’) daria em nada. Na Turquia de Erdogan (‘İsteğim ağzını kavgalarla doldurmak’), também.

Teria saído mais barato para Bolsonaro responder por que Queiroz depositou 89 mil reais na conta de Michelle. Mas o ex-paraquedista não está e jamais estará à altura do cargo que exerce.

Candidatou-se a presidente para ajudar a carreira dos filhos. Não pensou que se elegeria. Desatou no choro ao saber que fora eleito. Tomou posse sem projeto de governo. Improvisa desde então.

O ministro Fabio Faria, das Comunicações, saiu, ontem, de uma conversa com Bolsonaro comemorando: “Aviso aos torcedores do caos e do conflito diário: perderam. A paz continua”.

Qual o quê! Em mais uma cerimônia de exaltação à cloroquina no Palácio do Planalto, Bolsonaro afirmou que jornalista, se infectado pelo coronavírus, tem mais chance de morrer por ser “bundão”.

“[Jornalista] só sabe fazer maldade, usar caneta com maldade em grande parte. Tem exceções, como aqui o Alexandre Garcia. A chance de sobreviver é bem menor do que a minha”, debochou.

A ninguém deve se pedir o que não tem para dar. Afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, Bolsonaro só tem a oferecer o comportamento bárbaro do qual dá exemplos diários.

E assim será até o fim.

No meio do caminho de Paulo Guedes tem uma pedra

Manda quem pode, obedece quem tem juízo

Mais acertado seria dizer que no meio do caminho de Paulo Guedes, ministro da Economia e ex-Posto Ipiranga do governo, tem uma rocha. E uma rocha difícil de ser movida. Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro disse que o auxílio emergencial seria prorrogado até o fim do ano, mas que não poderia ser mais de 600 reais. Talvez fosse metade disso.

Ou Guedes não quis acreditar no que escutou ou discordou da promessa. Em conversa, ontem, com Bolsonaro, propôs um auxílio de 270 reais. Antes pensava em 200 reais. O presidente aborreceu-se, mandou ele repensar a proposta e cancelou o anúncio marcado para hoje do pacote de medidas econômicas e sociais embrulhado por Guedes. Aplicou um duplo corretivo no ministro.

É para ser do jeito que ele imagina. E Guedes havia marcado o anúncio para hoje sem consultá-lo, nem ao general Braga Neto, chefe da Casa Civil da presidência da República. Para deixar Guedes ainda mais desconfortável, Bolsonaro anunciará, hoje, o programa Casa Verde e Amarela, do ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, ex-parceiro e agora rival de Guedes.

Salvo pequenas mudanças, o Casa Verde e Amarela é o antigo Minha Casa, Minha Vida, lançado no final do segundo governo de Lula. Bolsonaro se entusiasmou com a ideia de se apropriar de marcas do PT para pavimentar seu projeto de reeleição. Sua recente opção preferencial pelos pobres poderá render-lhe o segundo mandato. É isso o que espera, Guedes concorde ou não.


Eliane Cantanhêde: 115 mil ‘bundões’?

Bolsonaro: ‘tem de enfrentar o vírus como homem’ e ‘bundão’ tem mais chance de morrer

Tardou, mas não falhou. O Jairzinho Paz e Amor jogou a toalha e, no domingo, emblematicamente à entrada da Catedral de Brasília, foi o que ele nunca deixou e nunca deixará de ser: Jair Messias Bolsonaro, sempre no ataque, beligerante, grosseiro, despejando sua ira nos repórteres que deixam famílias e amores em casa e enfrentam a covid-19 para cobrir as atividades do presidente-candidato até aos domingos. E ele não deixou barato. Ontem, voltou à carga.

Um repórter fez uma pergunta não só válida, mas obrigatória, e Bolsonaro reagiu à la Bolsonaro: “Vontade de encher a tua boca de porrada”. Pior para ele. A pergunta viralizou, replicada em mais de um milhão de posts em português e outras línguas – “Presidente, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil do Fabrício Queiroz?”. De boca calada, Bolsonaro some das manchetes e sua popularidade sobe. Quando fala, volta às manchetes, choca o País e passa vergonha no mundo.

Apoiadores registraram o golpe e, na tentativa de se contrapor ao tsunami da internet, editaram o vídeo, sem a pergunta do repórter e deturpando a fala de um feirante. Ele convidava Bolsonaro para visitar “a feirinha na catedral”, mas a legenda diz que é para visitar “a filha na cadeia”. Daí a reação do presidente. Feirante, filha, feira, cadeia… Uma lambança. Mas há quem acredite!

Bolsonaro continuou sem explicar os depósitos e não cogitou pedir desculpas ao jornalista, mas poderia ao menos ficar calado. Até ficaria, não fosse Bolsonaro. E, assim, um evento ontem no Planalto virou um festival de vexames. Começa pelo nome: “Vencendo a covid-19”. Vencendo o quê? Com mais de 115 mil mortos e 3,5 milhões contaminados, o Brasil é o segundo País mais atingido pela pandemia no mundo e virou referência de erros, descaso e falta de coordenação federal. Até o “amigão” Donald Trump já disse isso mais de uma vez.

Segundo: como fazer um evento sobre a pandemia sem dar uma palavra sobre os muitos milhares de mortos? Sem conforto para as famílias e amigos? Sem solidariedade aos que pegaram o vírus, muitos com sequelas graves? A quem o presidente pensa que está enganando ao esconder a realidade? Aliás, ele continua enganando e se enganando quando diz que “sempre foi um atleta das Forças Armadas”. “Sempre”? Como assim? Ele foi do Exército há bem mais de 30 anos e saiu pela porta dos fundos, depois de alucinações com bombas em quartéis.

Numa cerimônia de derrotados para comemorar uma vitória imaginária, não poderia faltar cloroquina. Catados a dedo, compareceram bolsonaristas dispostos a corroborar o constrangedor “Vencendo a covid-19”, badalar um medicamento que não tem comprovação contra esse vírus em lugar nenhum do mundo e dizer amém a qualquer outra barbaridade do presidente.

No triste espetáculo, Bolsonaro se vangloriou do “histórico de atleta” e de ter tido uma forma amena da covid-19, para provocar os jornalistas:

“Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Assim, ele atacou não só os jornalistas, a quem quer “encher de porrada”, mas os 115 mil que morreram e os que pegaram a forma mais grave – os fracotes, “bundões”. Como já ensinou Bolsonaro, “tem de enfrentar o vírus como homem, não como moleque”. Ou seja, cara a cara, sem isolamento, aglomerado, sem máscara, sem álcool em gel. Tudo frescura.

A ameaça de “dar porrada” foi diante da Catedral de Brasília e o título do vídeo deturpado, sem a pergunta do repórter sobre o “Queiroz”, é um versículo da Bíblia: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Nada mais apropriado ao momento que vive o Brasil. A verdade está aí, escancarada, à vista de todos. Pena que milhões se recusam a admiti-la e a se libertar.


Carlos Andreazza: O minion dribla-teto

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família

Bolsonaro opera na ambiguidade. A história do veto presidencial afinal mantido sobre a possibilidade de aumentar salários de servidores públicos é exemplar da maneira propositalmente dúbia como manipula suas relações. No caso, com o que se chama de controle de gastos.

Lembremos.

Ainda em maio, ele autorizara que sua liderança apoiasse um acordo, no Senado, que abriria generosa janela de exceções à regra imposta até dezembro de 2021; arranjo por meio do qual várias categorias — inclusive as forças de segurança pública, que lhe compõem a base — poderiam ter reajustes na remuneração. Uma disposição segundo a qual — conforme já indicara a reforma da Previdência dos militares — alguns grupos seriam privilegiados; o que expunha um rigor fiscal destinado só aos outros.

O acordo foi fechado; os privilegiados, definidos. Ocorre, porém, que Paulo Guedes chiou. (Mas sem chamar o acerto apoiado pelo presidente de “criminoso”, né?) Para me valer da imagem formulada pelo ministro na famosa reunião de 22 de abril, ou era granada no bolso de todo servidor (“o inimigo”), ou nada feito. Bolsonaro recuou — e disse, traindo o pactuado, que vetaria o parágrafo cuja inclusão endossara. Vetou. Mas não sem demora. Entre o compromisso verbal com o veto e o veto em si, passaram-se 20 dias. Prazo no curso do qual aumentos para policiais pipocaram Brasil adentro; inclusive aquele que o próprio presidente deu à PM do DF.

E então, só então, passada a boiada, vetou. Difícil imaginar que tenha armado essa farra seletiva sem o aval de Guedes. Afinal, na prática, cumpriu a palavra dada ao ministro. Ficaram todos satisfeitos. Como todos satisfeitos ora estão com o efeito saneador da ação de Rodrigo Maia — a quem foram pedir arrego — para reverter, na Câmara, a rebeldia fiscalmente irresponsável (atitude “criminosa”, segundo o seletivo Guedes) do traído Senado.

Bolsonaro é ambíguo. Mas é Bolsonaro; em matéria econômica, mistura de Dilma Rousseff, Paulinho da Força e Ernesto Geisel. Um corporativista, que sentou o Planalto sobre o projeto de reforma administrativa. Um militar formado sob a fé num milagre econômico que faz Brasil Grande, de súbito —dada a circunstância pandêmica — diante da perspectiva de um Bolsa Família para chamar de seu.

Dúbio; mas um peão de bomba fiscal— a quem se deu caneta carregada — com três décadas de potencial atômico demonstrado, à parte o urânio enriquecido pela porteira de oportunidades aberta pela peste. Daí por que só mesmo a perplexidade com agentes do mercado — mui pouco patriotas — surpreendidos pelo risco de a popularidade ascendente do presidente, derivada em boa medida da fluência do auxílio emergencial, consolidar a irresponsabilidade fiscal como tendência.

Não é tendência. (Nunca foi.) Não há impasse; não mais há (se é que houve) disputa dentro do governo. Bolsonaro já fez a escolha. (Há 30 anos.) Vai gastar. É obra. A peleja agora é somente acerca de como bancar a conta. Essa é a missão dada pelo mito; todas as partes, liberal-guedistas e militar-desenvolvimentistas, movendo-se para encontrar a solução pagadora.

A peleja agora também sendo, pois, por quem terá a primazia no acesso à carteira do brasileiro. Que não se tenha dúvida — se ainda não deixei suficientemente claro: Guedes está no páreo; com CPMF, com tudo. Já topou o jogo. Pede alguma discrição, mas aceita aquele desagravo fúnebre à porta do Alvorada quando a rapaziada expuser excessivamente a corrida por custear a campanha do chefe a 2022.

A não ser na fachada, nunca houve competição entre austeridade fiscal e pulsão gastadora. Nunca, fica-teto versus derruba-teto. Não há fura-teto. O debate sobre a derrubada do teto de gastos, hoje, não tem lugar, senão na falácia discursiva por meio da qual Guedes disfarça a fabulosa flexibilidade de sua cervical liberal. “O teto sou eu” — sugere o ministro, definindo, como critério para sua permanência no governo, a improvável implosão da âncora fiscal. Isso enquanto ele próprio cuida de buscar brechas — vide o que tentou embutir no Fundeb — para driblar o teto.

Não é fura-teto. É fica-teto e dribla-teto. Guedes — antes de tudo um minion — sendo a perfeita encarnação do dribla-teto. Esta, a competição que há: entre dribla-tetos; sobre quem melhor oferecerá condições para financiar a reeleição de Bolsonaro.

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família. Tenta costurar essa marca para si —para se fortalecer ante os militar-desenvolvimentistas, que propõem sustentar a vitória do chefe com obras de infraestrutura e de desenvolvimento regional. Se o auxílio emergencial é a garantia de porção expressiva da popularidade de Bolsonaro, calcula o ministro da Economia, o programa que o substituirá, o Renda Brasil, seria a perenização dessa popularidade. É como Guedes quer bailar. Ou tentar; porque o Ministério da Economia tem sido ruim de projeto.

Para o caso de falhar, e sem muito chororô no mercado, Roberto Campos Neto já está no aquecimento. Vida que segue — dirá o presidente.


Bernardo Mello Franco: Não era moderação, era medo da polícia

Jair Bolsonaro voltou a dar chilique ao ser questionado sobre os rolos da família. No domingo, um repórter do GLOBO perguntou por que Fabrício Queiroz depositou R$ 89 mil na conta da primeira-dama. O presidente fez careta, chamou o jornalista de “safado” e ameaçou silenciá-lo na base da “porrada”. Só não quis explicar a transação suspeita.

Bolsonaro já havia apresentado uma versão capenga para os cheques de Michelle. Em dezembro de 2018, ele disse ter emprestado R$ 40 mil ao ex-PM. O dinheiro teria sido devolvido à primeira-dama porque o capitão, muito ocupado, não tinha tempo de ir ao banco.

No domingo, o presidente foi confrontado com mais uma história mal contada: o valor pingado na conta de Michelle foi mais que o dobro do admitido. Sem resposta, Bolsonaro agrediu o autor da pergunta. Reação típica de quem não consegue se explicar.

O capitão mirou no jornalista, mas acertou o próprio pé. Ao destratar o repórter, ele chamou mais atenção para os repasses à primeira-dama. A pergunta sobre os R$ 89 mil se espalhou nas redes. Milhões de brasileiros ficaram sabendo do que o presidente tentava esconder.

O novo ataque à imprensa mostra que é tolice acreditar na fantasia de um Bolsonaro moderado. Nos últimos dois meses, vendeu-se a ideia de que o presidente teria abandonado o extremismo e as ameaças de golpe. O candidato a ditador teria aprendido, enfim, a conviver com a democracia.

Não era moderação, era medo da polícia. Bolsonaro adotou a tática do silêncio quando Queiroz foi preso. Bastou o sargento sair da cadeia para o capitão voltar a ser quem sempre foi. Um político autoritário, que trabalha para implodir o sistema que o elegeu.

O presidente tenta calar a imprensa porque não tolera ser fiscalizado. Quer destruir os freios e contrapesos que limitam o exercício do poder. Sua meta é governar uma nação de bajuladores, como os que foram aplaudi-lo ontem no Planalto. Com 115 mil mortos, o governo promoveu uma cerimônia para cantar vitória sobre o coronavírus. Poderia ser Belarus, mas é o Brasil de 2020.


Míriam Leitão: Palavras torpes e mente autoritária

O presidente Jair Bolsonaro deveria ter se antecipado e prestado contas ao país das muitas dúvidas sobre as finanças da sua família. A nação tem o direito de saber. O jornalista do GLOBO fez a pergunta certa e necessária. A ameaça de “encher a sua boca de porrada” que ele disparou ao repórter é recorrente e reveladora. Ele quer uma imprensa domesticada que o exalte, como todo ditador. Bolsonaro tem um projeto autoritário de poder, já demonstrou inúmeras vezes, verbaliza com frequência, distorce, mente, atropela limites institucionais, e usa as Forças Armadas como escudo para ameaçar os outros brasileiros. As autoridades do Congresso e da Justiça que não querem ver essa realidade, colaboram com esse projeto.

Ontem o país ultrapassou os 115 mil mortos pela pandemia. Na cerimônia “Brasil vencendo o Covid-19” — fora do tom e sem propósito — o presidente foi aplaudido de pé dentro do Palácio do Planalto depois de agredir os fatos, a imprensa e o ex-ministro da Saúde. Congratulou seu governo por ter indicado o uso da cloroquina, disse que muitas das 115 mil vidas perdidas poderiam ter sido salvas com o remédio, jogou culpas sobre Luiz Henrique Mandetta, repetiu que o Supremo “o alijou” do combate à pandemia e depois ofendeu de novo os jornalistas.

— Aquela história de atleta… que o pessoal da imprensa vai para o deboche. Mas quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor. Só sabe fazer maldade, usam a caneta com maldade.

Além de tentar atingir os jornalistas com mais uma palavra torpe, o que ele faz é ofender os doentes e até os mortos. Se ele define como bundões os que têm mais risco de morrer, se ele vive se referindo ao seu passado de atleta e diz que a doença tem que ser enfrentada “como um homem”, os que perderam a batalha têm culpa de seu próprio destino?

A pessoa pública deve prestar contas e esclarecer zonas de sombra e dúvidas. É inerente aos cargos que ocupam. Não há motivo aparente para que Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia façam depósitos na conta de Michelle Bolsonaro. Eles eram funcionários do gabinete do filho mais velho do presidente. O caso todo é uma coleção de dúvidas. Os excessos de depósitos em espécie na conta de Flávio Bolsonaro, os funcionários fantasmas que ocupavam aquela folha salarial, ter parentes do miliciano Adriano da Nóbrega entre esses falsos servidores. De um lado, o senador Flávio Bolsonaro em vez de se explicar, faz chicana. De outro, o presidente da República, em vez de responder, ameaça de agressão física o jornalista que perguntou. Mais de um milhão de tuítes repetiram a mesma pergunta e ela permanece no ar. Por que aqueles depósitos foram feitos na conta da mulher do presidente?

O risco de o país se acostumar está presente o tempo todo. Nos pouco mais de 60 dias em que Bolsonaro falou menos barbaridades, muitos passaram a considerar que agora ele estava estabilizado, teria sido enquadrado pelas instituições. O ministro Jorge Oliveira disse ao “Valor” que o presidente é “veemente”. Ora, ministro, procure outra palavra que defina com mais exatidão a arrogância, a agressividade, os ataques do presidente aos que ele escolheu como inimigos.

Quando Bolsonaro moderou o tom não foi por ter entendido o decoro do cargo, mas porque teve medo. Ele submergiu logo após Queiroz ter sido encontrado na casa do advogado Frederick Wassef que defendeu o presidente e era advogado de Flávio quando abrigou a peça-chave para esclarecer o que se passava no gabinete do agora senador.

Bolsonaro tem usado as Forças Armadas no mesmo estilo de Hugo Chávez. Como Chávez, ele chegou ao governo pela via democrática, como o ex-ditador venezuelano ele também não tem apreço pelas instituições democráticas. Na Venezuela, o orçamento privilegiou os gastos da Defesa para costurar essa lealdade militar. Essa história não terminou bem lá, não terminará bem aqui, a menos que o país se defenda de um jogo já conhecido. O passo agora é usar os recursos públicos para cimentar seu populismo. Na Venezuela foi assim também. O dinheiro dos nossos impostos deve chegar a quem mais precisa, mas não pode ser apresentado como doação do líder magnânimo às massas. Contudo, é para sustentar essa visão que se trabalha no governo em todas as áreas, inclusive na economia.


Merval Pereira: Decadência

O que é mais grave, torcer para que o presidente morra de Covid-19 ou ameaçar alguém fisicamente? “Minha vontade é encher sua boca de porrada”, essa foi a reação do presidente Jair Bolsonaro ao ser perguntado por um repórter do Globo sobre as razões de sua mulher, Michelle, ter recebido R$ 89 mil de Fabricio Queiroz.

Já o colunista Hélio Schwartsnan escreveu um artigo na Folha de S. Paulo cujo título era “Por que torço para que Bolsonaro morra”. Por causa dele, o ministro da Justiça André Mendonça pediu à Polícia Federal que investigue o jornalista com base na Lei de Segurança Nacional, que define como crime “caluniar ou difamar os chefes dos três poderes federativos”.

Só que, pelo Código Penal, desejar a morte de alguém não é crime, nem de calúnia nem de difamação, enquanto a frase de Bolsonaro para o repórter pode ser considerada “crime de ameaça”, previsto no artigo 147 do Código Penal, que consiste no ato de “ameaçar alguém, por palavras, gestos ou outros meios, de lhe causar mal injusto e grave”.

Mas essas considerações são apenas laterais, o que importa mesmo é que Bolsonaro não tem a menor capacitação para ser presidente da República. Em qualquer país do mundo poderia ter sido eleito presidente, casos dos Estados Unidos de Trump, ou primeiro-ministro, da Itália de Silvio Berlusconi, mas nenhum país sério do mundo aceitaria impassível a quebra decoro permanente, por atitudes, palavreado e mentiras, de seu presidente.

Crimes de responsabilidade em série já foram cometidos por esse autoritário, candidato a ditador. Bolsonaro simplesmente acha que o poder do presidente da República é ilimitado, não aguenta manter relações republicanas com as instituições, muito menos com a opinião pública.

Acha que não tem que dar satisfação a ninguém, que é absurdo perguntar a ele qualquer coisa, e que não tem que dar explicação para casos como esse. A pergunta do porquê de sua mulher Michele ter recebido R$ 89 mil do Fabricio Queiroz é absolutamente importante para sabermos o que está acontecendo no Brasil e naquela família, envolvida em falcatruas e corrupção de baixo calão, baixo nível.

Bolsonaro acha que pode dar esse tipo de resposta a uma pergunta totalmente cabível, que não tem nada de oposição. É um fato denunciado pela revista Crusoé e depois confirmado, com aditivos, pela Folha de S. Paulo que D. Michele recebeu R$ 89 mil do Queiroz. Tudo indica que esse dinheiro pode ser fruto da “rachadinha”, da qual ele e os filhos teriam se beneficiado, de acordo com as acusações do Ministério Público.

Absurdo ter que aceitar um presidente desse nível cultural e de educação baixíssimo, sem que haja uma reação forte da sociedade. Também aí a pandemia ajudou Bolsonaro, não somente com o auxílio emergencial de R$ 600, que ele queria que fosse de R$ 200. O Congresso está funcionando remotamente, e a população, constrangida pelo necessário distanciamento social, não pode se mobilizar para manifestações públicas de protesto.

A maior prova de que o país está decadente é Bolsonaro ser presidente. Agora ele se fortalece com ações populistas; quer aumentar o Bolsa Família, mas o país não tem dinheiro, está completamente quebrado. Brasil é um país decadente, à deriva, com um governo completamente fracativo.

Até a alta corrupção, que ele dizia combater, não combate nada. Demitiu o ministro Sérgio Moro, ajuda, incentiva o projeto de acabar e desmoralizar a Lava-Jato, e já houve várias denúncias de corrupção no governo.

No Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), houve uma compra bilionária de computadores que ninguém sabe quem autorizou. Edital que licitava a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino, gasto estimado de R$ 3 bilhões, teve que ser cancelado por tratar-se de uma grossa maracutaia.

Alunos de escolas públicas pelo Brasil receberiam mais de um computador, em alguns casos até cinco. Mas não era um programa social do governo, apenas uma manipulação de números para beneficiar alguém. O edital foi cancelado, mas ninguém foi punido.

Ontem, o verdadeiro Bolsonaro voltou à ação, com a grosseria e a selvageria que lhe são características. O “paz e amor”, que ficou quieto durante alguns meses com medo da prisão do Queiroz, era fake.