Day: agosto 24, 2020

Sergio Lamucci: Os riscos da acomodação

O que se passa em áreas como educação, saúde, ambiente e relações exteriores está longe de ser normal

Com a atitude menos beligerante de Jair Bolsonaro desde junho e o aumento recente da popularidade do presidente, os graves equívocos e retrocessos do governo em diversas áreas começam a ficar em segundo plano. As políticas para setores como educação, saúde, ambiente, relações exteriores e cultura continuam preocupantes, mas esses temas têm perdido destaque, num momento em que a discussão se concentra nos contornos da política fiscal de 2021 e na formatação do Renda Brasil, um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família. A iniciativa deve ser lançada depois do fim do auxílio emergencial - o principal fator por trás da melhora da aprovação de Bolsonaro.

O futuro do teto de gastos e o desenho de um programa como o Renda Brasil são assuntos sem dúvida importantes, que terão papel relevante na definição da segunda metade do atual governo. No entanto, além do impacto negativo de curto prazo, as políticas para áreas como educação, saúde e ambiente terão grande influência nas perspectivas de longo prazo do país, e o que se vê nesses segmentos é grave.

A educação, por exemplo, será decisiva para o país enfrentar o problema crônico da baixa produtividade. A saída do inacreditável Abraham Weintraub do ministério foi uma boa notícia, mas Milton Ribeiro, o novo ministro, ainda não deixou claro qual será a sua orientação para a área. Ribeiro não deverá buscar o confronto ideológico aberto e sem sentido como fazia Weintraub, mas por ora não há indicações de que ele vai concentrar esforços em temas cruciais, como os problemas de aprendizagem na educação básica. Com mais de um ano e meio de governo, o ministério segue sem norte numa área em que o Brasil não pode perder tempo, dada a péssima qualidade do ensino na maior parte do país.

A falta de rumos é ainda mais clara no Ministério da Saúde. Depois de substituir Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich ficou menos de um mês como ministro, tendo pedido demissão em 15 de maio. No meio da pandemia, a pasta é tocada por um interino que não é da área, o general Eduardo Pazuello. Bolsonaro minimizou o tempo todo a gravidade da covid-19, defendendo o uso da cloroquina, um medicamento sem eficácia comprovada para combater a doença.

O país já registra quase 115 mil mortes pela covid-19, número que poderia ser menor se houvesse uma maior coordenação das autoridades dos três níveis de governo. Isso não existiu principalmente devido à atitude de Bolsonaro de não dar importância ao problema e pressionar o tempo todo pela reabertura da economia. Há sinais de redução da quantidade de óbitos, mas eles ainda permanecem em nível elevado.

No ambiente, a situação é crítica. De agosto de 2019 a julho de 2020, o desmatamento na Amazônia cresceu 33,3% em relação aos 12 meses anteriores. Empresários e investidores do Brasil e do exterior têm mostrado descontentamento com a política ambiental brasileira, pedindo ao governo que combata as queimadas na floresta, como na carta enviada por CEOs de grandes empresas ao vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal.

Além dos efeitos desastrosos sobre o ambiente em si, essa política pode afetar as exportações do agronegócio e afastar parte do investimento estrangeiro do país, num quadro em que empresas e fundos exibem preocupação cada vez maior com a sustentabilidade. Há também o risco para acordos comerciais, como o fechado entre o Mercosul e a União Europeia (UE). Na sexta-feira, foi a vez de a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, manifestar dúvidas sobre o acerto, dada a situação da Amazônia.

Na visão do governo brasileiro, a Alemanha seria um dos países europeus que teriam uma visão mais favorável ao acordo, que encontra oposição mais forte em nações como a França e a Holanda, por exemplo. Agora, a própria Angela Merkel indicou ter resistências ao tema.

A política externa é outra fonte de problemas. O alinhamento automático de Bolsonaro ao governo de Donald Trump pode ser prejudicial ao país. Se o democrata Joe Biden ganhar as eleições deste ano nos Estados Unidos, o Brasil deverá ter dificuldades no relacionamento com a nova administração americana. A política ambiental brasileira, por exemplo, seria vista com maus olhos por um governo comandado por Biden.

Os conflitos gratuitos com a China também são preocupantes. Entrar em confronto com o principal destino das exportações brasileiras não é obviamente uma estratégia das mais inteligentes.

Além dessas quatro áreas, há problemas graves nas políticas do governo para a cultura e para minorias. Esse inventário aponta para questões conhecidas, mas que parecem atrair hoje menos atenção, ainda que sigam preocupantes.

Bolsonaro passou a evitar os confrontos quase diários que marcaram grande parte de seu governo, embora ontem tenha tido uma recaída, ao atacar um repórter de “O Globo”, ao ser perguntado sobre depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro (ler mais em Presidente ataca repórter por pergunta sobre Queiroz). De todo modo, sem o presidente entrar em conflito frequente com o Judiciário e o Legislativo e com a imprensa, parece haver uma acomodação quanto a políticas do governo que causam problemas para o país em áreas sensíveis. E, com o auxílio emergencial de R$ 600, a popularidade do presidente voltou a melhorar.

Nesse cenário, as discussões têm se concentrado principalmente no futuro do teto de gastos e no novo programa de transferência de renda. São temas de fato muito relevantes - a política fiscal a partir de 2021 será essencial para a sustentabilidade das contas públicas e para o crescimento, enquanto o Renda Brasil poderá ser uma nova etapa das políticas sociais num país extremamente desigual, nos dois casos com grande impacto sobre as eleições presidenciais de 2022.

O que se passa na educação, saúde, ambiente e relações exteriores, porém, está longe de ser normal. Dar menos atenção ao que ocorre nessas áreas tem e terá um custo elevado para o país.


Bruno Carazza: Não faço mais previsões

Como em tudo o mais, 2020 será imprevisível eleitoralmente

Em 2018 eu passei boa parte da campanha eleitoral argumentando que o fim das doações empresariais e a criação do fundão eleitoral iriam beneficiar os grandes partidos e seus caciques regionais, levando a uma baixa renovação do Congresso. Abertas as urnas, saí com uma lição e um alento. O aprendizado foi que cada eleição tem a sua dinâmica própria, e não é recomendável fazer prognósticos olhando pelo retrovisor. Se algo me serviu de consolo, foi que o oráculo de analistas e cientistas políticos muito mais experientes e gabaritados falhou igualmente - embora não faltem por aí profetas do acontecido que, diante do resultado das urnas, tascam sempre o famoso “eu já sabia”.

Reza a lenda entre políticos e cientistas sociais que as eleições municipais são uma prévia dos pleitos estaduais e federal que ocorrerão dois anos depois. A explicação faz sentido: realizadas no meio dos mandatos do presidente, governadores e congressistas, as escolhas de prefeitos e vereadores funcionam como uma grande pesquisa nacional sobre o desempenho dos mandatários atuais, além de se prestar à construção de plataformas de apoios e articulações locais que serão de grande valia logo à frente.

A partir de segunda-feira (31/8), partidos em todo o país começam a fazer as suas convenções para a escolha dos candidatos. Trata-se do primeiro movimento oficial de um jogo que tem muito a revelar sobre as alavancas e engrenagens da política brasileira atual, com componentes pessoais, institucionais e conjunturais.

Não é que meu palpite para 2018 estivesse totalmente errado. Muitos “donos” de partidos, bem como seus filhos, filhas e esposas conseguiram se eleger. O problema foi a confluência de duas forças que apareceram com potência máxima naquele ano e levaram a uma renovação maior do que eu previa: a indignação popular contra políticos tradicionais, que cobrou seu preço de figurões envolvidos nas investigações da Lava-Jato, e o efeito Bolsonaro, em cuja onda se elegeram dezenas de candidatos novatos e desconhecidos.

Neste ano saberemos a quantas anda o poder desses dois fatores. O efeito midiático das investigações de corrupção, que foi determinante para o desempenho ruim dos maiores partidos da Nova República (MDB, PSDB e PT) em 2018, perdeu muito do seu ímpeto. Por outro lado, o bolsonarismo chega a seu primeiro pleito municipal sem partido - o Aliança pelo Brasil não conseguiu obter as assinaturas necessárias para o seu registro - e sem o elemento surpresa que tanto o ajudou dois anos atrás.

E por falar em Bolsonaro, interessa saber como as redes de transmissão em massa de mensagens pelas redes sociais vão atuar em nível municipal, principalmente depois das ações judiciais e das medidas internas promovidas pelas gigantes de tecnologia sob o pretexto de conter a disseminação de “fake news”.

Outra incógnita diz respeito à conjuntura econômica e social nestes tempos de covid-19. Em que medida a gestão da crise de saúde por parte do presidente, governadores e prefeitos afetará os resultados das urnas? E de que forma os efeitos econômicos gerados pela política de distanciamento social, o alívio dado pelo auxílio-emergencial e as centenas de milhares de mortes vão se relacionar na decisão de voto do eleitor?

Ainda sobre o coronavírus, as eleições deste ano também lançam dúvidas sobre a eficácia das velhas táticas de campanha. Mesmo com a flexibilização gradativa das medidas de isolamento, sem vacina uma parcela considerável da população ainda não se sente segura a aglomerar. Isso afeta bastante o corpo a corpo com eleitores, marcado por comícios, reuniões e visitas. Fazer campanha em tempos de covid será um interessante experimento social.

E já que o assunto é estratégia, não podemos perder de vista o poder de dinheiro nas eleições. Graças ao fundão eleitoral, os campeões de voto em 2018 ficarão com a maior parcela do bolo de R$ 2 bilhões a ser distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral: PT e PSL, cada qual com R$ 200 milhões, estarão bem à frente de MDB (R$ 150 mi), PP e PSD (R$ 140 mi cada), PSDB (R$ 130 mi) e DEM (R$ 120 mi) - para ficar só nos principais agraciados. Transformar dinheiro em votos é a maior missão desses partidos.

Com relação às outras fontes de recursos, temos uma certeza e duas dúvidas. Graças a uma mudança nas regras de financiamento, candidatos somente poderão custear 10% de seus gastos com recursos próprios. Resta saber se isso será suficiente para conter o poderio de candidatos ricos na hora do voto. Aliás, a crise econômica vai limitar o volume de doações de pessoas físicas, de pequenos doadores que doam por vaquinhas virtuais a grandes aportes feitos pelos bilionários donos das maiores empresas brasileiras?
Do ponto de vista institucional, a disputa deste ano traz também uma outra inovação. A proibição de coligações entre partidos para os cargos legislativos deve levar a um número recorde de candidatos a prefeitos e vereadores, causando uma pulverização que tornará a escolha ainda mais difícil para os eleitores.

Por fim, as eleições municipais deste ano serão importantes para aferirmos se haverá crescimento nas urnas de duas forças não partidárias que vêm ganhando importância nos últimos anos e assumiram um importante protagonismo durante o governo Bolsonaro: os “partidos” evangélico e militar. Com ideologia clara, formação de quadros, penetração em diversas legendas e presença disseminada por todo o território nacional, esses dois grupos têm todas as condições para ampliar sua representatividade na política brasileira.

Como não poderia deixar de ser, 2020 será um ano imprevisível também em termos eleitorais. É totalmente incerto como esse conjunto de fatores irá definir o futuro da política brasileira em 2020 e além. Mas eu já aprendi a lição: em eleições, não faço mais previsões.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Valor: Dogma e temor de reeleição mantêm teto de pé, diz Lara

Para economista, mecanismo inviabiliza a retomada

Por Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

SÃO PAULO - O teto de gastos tem data marcada para ruir, mas sobrevive com base em dois pilares, o dogma do mercado e o receio do Congresso de que sua derrubada favoreça a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O economista André Lara Resende tem interlocução suficiente no mercado e no Congresso e independência de ambas as instâncias para fazer uma afirmação dessas sem rodeios.

É um sequestro mútuo, sem vítimas inocentes. O mercado se ampara no teto de gastos porque acredita que o Brasil tem que continuar a remar contra a maré mundial e usa o fantasma da confiança do investidor para pressionar o Congresso a manter barreiras artificiais contra o gasto público.

O Congresso é mais sensível ao gasto, visto que depende dele para arrumar voto, mas vale-se do fantasma da fuga de capitais para negociar sua autorização, seja pela disputa entre beneficiários das liberações de verbas, seja porque teme que o maior deles seja a reeleição do presidente em 2022.

Os argumentos de Lara Resende são conhecidos. Se o Brasil ultrapassar os 100% na relação dívida/PIB, será um entre tantos do clube. A convivência com déficits, ainda que durante alguns anos, não é mais tratada, em lugar algum, como uma ameaça, mas como uma alavanca necessária para tirar economias do buraco em que a pandemia as meteu. E como o país não tem dívida externa, mas doméstica, falar em fuga de capitais é enganação.

O setor público deve atuar na indução do investimento privado e na incorporação das massas excluídas. Não é pela obsessão pelo equilíbrio orçamentário que se vai chegar a um ou a outro. Desde a crise de 2008 ruiu a crença de que a emissão de moeda provoca inflação. O controle de gastos deve evitar que interesses patrimonialistas deles se apropriem, mas não por ser um valor em si mesmo.

Essa obsessão freia, por exemplo, a convergência em torno de uma proposta de reforma tributária. São tantos os empecilhos criados pelos setores que podem vir a ser atingidos pelas medidas de simplificação que Lara Resende não vê outra saída senão aceitar um gasto compensatório, ainda que temporário, para mitigar perdas e permitir a reforma.

O risco a ser evitado, diz, é o da reforma da Previdência, que, tratada como a grande panaceia, acabou se mostrando como necessária, mas insuficiente, porque mais danosa ao INSS do que ao setor público.

Ex-presidente do BNDES, Lara Resende não gosta do Pró-Brasil nem conhece as mudanças que o ministro Paulo Guedes pretende fazer no programa. Tem certeza, porém, que uma agência de investimentos públicos, capaz de uma alocação eficiente para o desenvolvimento, com a mediação do Congresso, teria hoje um papel mais importante para a economia do que um Banco Central independente.

O economista vê uma conversão dessa natureza como um cavalo de pau difícil para as convicções do ministro, de quem foi colega na PUC-Rio, de cátedra e das peladas entre professores. Alguma mudança, porém, parece estar se operando, como adiantou o Valor na sexta-feira, na disposição do ministro em reformular e incorporar o Pró-Brasil, hoje capitaneado pelas pastas do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e Infraestrutura (Tarcísio Freitas) em aliança com os ministros de extração militar do Palácio do Planalto.

Junte-se a isso a reunião entre Guedes e o grupo de parlamentares que negocia a perenização de um programa de renda básica após o fim da vigência do auxílio emergencial. Os parlamentares presentes saíram com a impressão de que o governo está disposto a viabilizá-lo, ainda que não esteja claro como.

A pretensão, explicitada aos parlamentares, é levar adiante não apenas a junção do Bolsa Família, do salário família e do abono salarial como a incorporação de créditos a serem devolvidos do imposto decorrente da unificação do PIS e Cofins. São planos que dependem de, pelo menos, duas mudanças de intrincada costura: o fim do abono e a aprovação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). À tarefa some-se ainda a aprovação do imposto sobre transações eletrônicas que viria a financiar a retomada do investimento público, além da desoneração da folha.

É tudo difícil, mas um primeiro obstáculo foi tirado da frente na semana passada. Enquanto o ministro se reunia com os parlamentares da frente pela renda básica, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), conduzia a sessão que manteve o veto ao reajuste do funcionalismo.

Surgiu uma brecha de convergência que aponta, paradoxalmente, para o desmonte, explícito ou disfarçado, do teto de gastos. Essas ideias amadurecem no governo e no mercado. No BTG Pactual, por exemplo, já há conselheiros convertidos às ideias de Lara Resende.

No mesmo dia de sua última fala pública, no Fórum de Desenvolvimento, do economista Raul Velloso, um grupo de economistas, em grande parte de instituições financeiras, fez um manifesto em defesa do teto. O texto não abre mão do teto, mas reconhece o mérito, para a eficiência econômica e para o bem-estar da população, da expansão dos gastos assistenciais e de infraestrutura. Desde que reduzidas despesas obrigatórias, como as de pessoal.

Foi nesse sentido que avançou a manutenção do veto ao aumento do funcionalismo na semana passada e é nessa direção também que aponta a proposta de emenda constitucional do gatilho de gastos em tramitação no Senado. É uma proposta que veda reajustes, suspende promoções e proíbe concursos. Ao fim e ao cabo, aperta a máquina pública para alocar recursos em obras e renda básica.

Para chegar à proposta de Lara Resende e evitar a deterioração dos serviços públicos, precisaria avançar na direção de um governo digital, cujos ensaios malogrados levaram à saída do secretário de desburocratização, Paulo Uebel.

A PEC está no Senado, onde o jogo ficou mais instável com a derrota do governo na votação dos vetos presidenciais. É por meio dela, porém, que se pode fazer uma reforma administrativa disfarçada, enquanto a proposta do governo não vem. Na hipótese de a celeuma de o teto de gastos se acomodar aos interesses de lado a lado, esta será a nova frente de batalha.

Os economistas liberais e lideranças como Rodrigo Maia cobram a redução da máquina pública, necessária mas de alto custo político. Trata-se de outra convergência, com vetores distintos da defesa do teto, mas cujo pedágio também é o desgaste do presidente.


Demétrio Magnoli: A vida de uma menina

A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes

A menina de 10 anos violada pelo tio monstruoso foi submetida a novo estupro quando uma certa Sara Giromini, acompanhada por sua malta de idiotas, começou a berrar diante do hospital em que se fazia o aborto legal. O ato dos extremistas nada tem a ver com crenças religiosas, ainda que as manipule como pretexto. No seu rastro, pegando carona nas justas expressões de indignação, emergiu o discurso dos arautos do aborto irrestrito, que só serve para congelar um debate público indispensável.

As religiões, sem exceção, celebram a vida. Sara e seus baderneiros desprezam a vida singular da menina, enquanto fingem defender a Vida genérica, com maiúscula. Transformando a vítima em símbolo de pecado, usam-na como bucha de seus canhões ideológicos. A perversidade dos extremistas deve ser comparada à do estuprador: como no caso dele, a menina desempenha a função de corpo inerte destinado à satisfação das vontades de seus captores.

Os jihadistas falam em nome do Islã, mas para negá-lo. Os desordeiros do hospital, tal qual os jihadistas, tomam o cristianismo como refém para veicular um programa político. São, uns e outros, renegados da religião à qual, hipocritamente, juram fidelidade. Os cristãos têm o dever, tanto cívico quanto religioso, de repudiar os aprendizes de terroristas que insultavam médicos e familiares da vítima.

A lei brasileira só admite o aborto em situações excepcionais, como a da menina violada. Há bons argumentos para revisá-la, mas eles são soterrados sob o clamor de certas correntes feministas embriagadas pela ideologia.

O aborto irrestrito seria, segundo tal ponto de vista, uma decorrência do direito das mulheres a seu “próprio corpo”. Não é preciso invocar princípios religiosos para apontar a falácia. O feto é um “outro corpo”, num duplo sentido. Biologicamente, tem potencial de vida autônoma. Socialmente, é assim reconhecido por leis como a licença-maternidade, que assegura à gestante tempo e remuneração para cuidar de um ser ainda não nascido, e pelo custeio público do acompanhamento pré-natal.

“Meu feto, minha decisão soberana e exclusiva.” A legalização irrestrita do aborto baseada nessa premissa radicalmente individualista implicaria, no plano lógico, a supressão da legislação de proteção à maternidade. Por extensão, abalaria os alicerces filosóficos das leis que responsabilizam solidariamente mãe e pai pela nutrição, saúde e educação dos filhos menores. O estandarte do feminismo niilista ajusta-se bem à visão ultraliberal de uma sociedade sem leis sociais — mas, paradoxalmente, costuma ser desfraldado por movimentos de esquerda.

Nada disso significa que a criminalização do aborto deva ser admitida num Estado laico. A menina conseguiu extrair legalmente o embrião, mas mulheres adultas precisam, de modo geral, recorrer a clínicas ilegais, caras ou perigosas. Definir o aborto como crime é produzir uma crise crônica de saúde pública. Uma solução encontra-se na combinação da oferta ampla de anticoncepcionais com a legalização limitada da interrupção da gravidez.

Diversos países aceitam o aborto nos meses iniciais de gravidez, apenas depois de sessões obrigatórias de aconselhamento psicológico do casal. Por essa via, o poder público passa a mensagem de que a interrupção da gravidez é um gesto extremo, um direito condicional e socialmente tutelado. Procura conciliar, assim, imperativos de saúde pública, direitos da mulher e o princípio moral da proteção de vidas potenciais.

A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes — ou seja, de preservar uma pluralidade de direitos. O conceito não cabe na mente de fanáticos, para quem um princípio único, fundamental e sagrado, fecha todas as janelas de debate.

Sara e sua malta de estupradores simbólicos são execráveis, mas não destituídos da esperteza típica dos extremistas. O ato provocativo tem a finalidade de deflagrar uma guerra ideológica com a vertente niilista do feminismo. No fragor da batalha, perderíamos a chance de discutir a sério nossa anacrônica legislação sobre aborto.


Cacá Diegues: Um culto de crueldade

O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX

Os antropólogos brasileiros nos falam de nossa formação, a partir do encontro entre os nativos e os civilizados, navegantes sujos e doentes, ávidos por riquezas, moralmente dispostos a tudo para não perder a oportunidade que a vida, Deus ou a sorte lhes davam com o novo mundo, prontinho para ser usado e explorado pela cobiça deles. Do outro lado, estavam, como escreveu Darcy Ribeiro, “a inocência e a beleza encarnadas”, um povo original, tentando entender aquela gente tão diferente. O poder acabou nas mãos dos que chegavam, os que escreveram a história e decretaram o que somos, um povo ao mesmo tempo cruel e generoso.

Hoje, no Brasil, vivemos um culto da crueldade. Não estamos nos referindo apenas aos grupos radicais de direita no poder ou ligados ao poder, que propõem a eliminação dos que não pensam como eles. Estamos falando de hábitos e costumes populares, de inesperadas ações cotidianas, quase sempre espontâneas, às vezes até inocentes.

A mais recente demonstração dessa perda de generosidade, em nome de regras e leis sobre as quais não refletimos, é o caso da menina de 10 anos, de São Mateus, no Espírito Santo, que apareceu grávida em decorrência do estupro sistemático de seu tio, praticado desde seus 6 anos de idade. Durante quatro anos, uma criança sofre tal violência, sob pretextos que a mente perversa do adulto deve ter criado, e grande parte da população pune (ou deseja punir) a vítima.

Segundo nos informa Flávia Oliveira, sempre atenta à desigualdade no país, só em 2018, mais de 21 mil bebês nasceram de mães com menos de 14 anos de idade. É nessa faixa de idade materna que se encontra o maior número de óbitos infantis, determinado pelas condições sociais e de saúde das mães precoces. Nosso Código Penal considera crime a relação sexual com menores de 14 anos, mesmo quando consentida. Conheço uniões com enorme diferença de idade em que os cônjuges são felizes até hoje. É muito difícil legislar sobre o amor, ele é sempre uma exceção. Mas a lei não impede que, no Brasil, quatro meninas nessa faixa etária sejam estupradas por hora.

A capixaba poderia, pelo menos, passar anônima por essa tragédia, no início de sua vida condenada ao sofrimento. Mas o fundamentalismo religioso, hoje exercido de modo medieval por parte de nossas autoridades, não deixou que nem isso ocorresse com essa vítima de nossa crueldade. Uma tal de Sara de muitos sobrenomes, ex-assessora e declarada discípula da ministra Damares Alves, pastora no Ministério da Mulher (?), Família (??) e Direitos Humanos (???), descobriu e deu, em redes sociais, o nome, o endereço da família e as características da menina de São Mateus (que seria negra, pobre e criada pelos avós). Ela anunciou o hospital em que a mãe violentada faria o aborto legal, incentivando grupos religiosos a se manifestar contra a interrupção da gravidez. A menina acabou tendo que deixar o Espírito Santo, indo se cuidar no Recife.

O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX, estabelecida por motivos políticos e hereditários. Nem Cristo, nem nenhum dos fundadores de sua Igreja, se manifestou sobre o assunto. É difícil estabelecer regras rígidas para essa questão, mesmo que apenas do ponto de vista civil. Mas, em qualquer circunstância, para qualquer civilização, povo ou religião, é claro que o estupro é uma barbárie que não pode ser consagrada como boa origem de uma vida. Muito menos quando se trata de uma criança, que terá sua vida destruída por um erro ou um crime que não foi ela que cometeu.

Os que se manifestaram contra o aborto da menina não foram apenas militantes políticos que estão sendo processados por atividades antidemocráticas ou religiosos ignorantes e intolerantes, mas também autoridades formais de uma Igreja que tem hoje um líder que pensa, o Papa Francisco. Em que país estavam essas autoridades quando tantos meninos e meninas pobres foram mortos por balas perdidas ou bem miradas no alvo? Nunca vi nenhum deles acender velas públicas por essas crianças, como João Pedro, Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Agatha, Ketellen e muitos outros. Essas, sim, são mortes que podiam ter sido evitadas.


Celso Rocha de Barros: A eleição de 2020 será normal?

A Lava Jato, a antipolítica e o rescaldo de 2013, fatores que complicaram a eleição de 2018, parecem ter morrido

A próxima eleição para prefeito é especialmente difícil de prever: não tem nenhum modelo de ciência política que incorpore os efeitos de uma pandemia que matou 110 mil pessoas e impedirá a campanha de rua, ou a ressaca de uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ou o desmonte aberto, sem resistência, do principal fator que explicou a eleição de dois anos atrás (a Lava Jato).

O presidente da República, que até outro dia tentava o autogolpe, não montou um partido para si, porque achava que não ia ter mais que se preocupar com essas coisas. O ciclo político de indignação que começou em 2013 parece ter terminado com o exercício do poder pelos que têm dinheiro e armas da maneira mais aberta, criminosa e impune possível.

E o impressionante é que a eleição de 2020 pode ser a mais “normal” desde 2013, justamente por isso. Os fatores que complicaram 2018 —a Lava Jato, a antipolítica, o rescaldo de 2013— parecem ter morrido no desabamento posterior.

Talvez por isso, pode haver um retorno à política mais pé no chão.

Muitos candidatos que lideram as pesquisas são administradores cujas gestões são, ou foram, razoavelmente aprovadas: Eduardo Paes, Alexandre Kalil, Bruno Covas. Mesmo onde a esquerda tem chances de vencer, trata-se de lugares onde ela é ou já foi poder várias vezes.

Se esses candidatos estabelecidos forem vencedores, 2020 pode ser o anti-2018, não, necessariamente, por ser anti-Bolsonaro, mas por ser anti-antissistema, do mesmo modo que o governo é anti-antifascista.

Nesse cenário, pode ser uma eleição “fria”, sem os grandes entusiasmos dos últimos anos, que, repito, parecem ter sido desperdiçados.

Mas é cedo para cravar isso. Em primeiro lugar, há a possibilidade de o auxílio emergencial reforçar Bolsonaro como cabo eleitoral. Se a eleição se nacionalizar, ela pode esquentar, e os bolsonaristas tentarão avançar sobre as posições da centro-direita com o populismo robusto de que falamos na última coluna. Se você confia que um Bolsonaro fortalecido dessa maneira não voltará a ser golpista, você é mais otimista do que eu.

A nacionalização da eleição poderia, em tese, ser boa notícia para a esquerda, que vai muito mal nas pesquisas até agora. A campanha pode ser a primeira grande chance para a esquerda denunciar Bolsonaro.

Mas a esquerda brasileira vive um momento difícil. A falta de campanha de rua é um problema para a militância. Mais do que isso, há uma disputa pela liderança do bloco da esquerda cujo resultado ainda é incerto, o que se reflete na fragmentação das candidaturas.

É perfeitamente possível que, em algumas cidades, a soma dos votos de esquerda seja significativa, mas os progressistas fiquem fora do segundo turno. Espero ter a chance de discutir as várias opções da esquerda nas próximas colunas.

No fundo, a eleição de 2020 será um bom momento para a centro-direita descobrir se valeu a aposta de não derrubar Bolsonaro. Se a eleição for normal, ela deve ser a grande vencedora da rodada. Aumentarão as chances de uma coalizão liderada por Doria, Moro ou Luciano Huck, mas, sobretudo, aumentarão as chances de estabilização institucional.

Por outro lado, se Bolsonaro sair vitorioso e ressurgir como fator de instabilidade, a turma do deixa-disso de 2020 pode se arrepender de suas escolhas.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)


Carlos Pereira: Só, com o povo ou com os partidos

Pesquisa identifica três estratégias para governos presidencialistas minoritários

Jair Bolsonaro tem sido acusado de trair seus eleitores em função de escolhas inconsistentes na forma de lidar com a condição de governo dividido, situação na qual o partido do presidente não controla a maioria de cadeiras em uma ou nas duas casas legislativas.

O livro The Politics of Divided Government, editado por Gary Cox e Samuel Kernell, é um dos poucos que estudam como governos presidencialistas minoritários se comportam e delineiam os vários caminhos que o presidente pode seguir para lidar com esse desconforto. Os autores identificam três estratégias para presidentes que se deparam com governos divididos.

A primeira é a do “go it alone”; ou seja, quando o Executivo decide não barganhar com os legisladores. Em vez disso, decide usar os recursos constitucionais e legais disponíveis de forma unilateral. A vantagem dessa estratégia é colocar o Legislativo numa posição reativa à iniciativa do presidente como se fosse um fait accompli, o que diminuiria as chances de reversão pelo Legislativo. O perigo associado à estratégia do “eu sozinho” são potenciais impasses e crises políticas com disputas abertas, podendo levar até a conflitos institucionais.

A segunda opção é a do “go public”, quando o presidente faz compromissos diretamente com os eleitores, sem a mediação das instituições e partidos. Nesse caso, o público age como intermediário entre o Executivo e o Legislativo. O objetivo é aumentar os custos de defecção dos legisladores e, assim, fortalecer a sua posição nas negociações com o Legislativo. Essa estratégia, entretanto, produz resultados positivos para o Executivo apenas no curto prazo, pois gera animosidades crescentes entre legisladores que se sentem pressionados e expostos à opinião pública. A qualquer sinal de vulnerabilidade do presidente, os legisladores podem querer dar o troco, não apenas com a imposição de derrotas no Congresso, mas colocando em risco o próprio mandato presidencial.

A terceira estratégia de governos minoritários é a do “bargain within the beltway”; ou seja, acordos em que os principais ganhadores seriam os próprios políticos em oposição aos interesses e prioridades da população em geral. Neste caso, tanto Executivo como Legislativo sabem que precisam negociar e chegar a um acordo. Contudo, nenhum dos dois quer dar o primeiro passo e parecer politicamente fraco.

Portanto, os acordos são adiados até o último minuto, táticas de blefe são adotadas, negociações sobre certas políticas são priorizadas em relação a outras, e assim por diante até uma posição de compromisso ser tenuamente encontrada na última hora e não necessariamente de forma republicana. O risco desta estratégia é que nenhuma aliança substancial e estável tende a ser alcançada. Mesmo quando maiorias são acertadas, tendem a ser cíclicas e episódicas não sendo garantia sólida para o governo governar e de se proteger contra potenciais ameaças de impeachment.

Nesses 20 meses de governo, é possível identificar que Bolsonaro adotou, de forma quase que sequencial, essas três estratégias. Inicialmente, preferiu governar sozinho, renegando os partidos e acusando-os de fazer parte da política tradicional. Quase como um desdobramento complementar da primeira estratégia, também se utilizou fartamente de conexões diretas com o público para pressionar e desgastar o Legislativo e suas lideranças. Ultimamente, no entanto, vem construindo alianças políticas com os partidos do chamado Centrão por meio de barganhas cujos objetivos e termos de troca, até o momento, não são claros nem seguros.

Diante das sucessivas derrotas e desgastes com o Legislativo durante esse período, fica claro que nenhuma dessas três estratégias de governar na condição de minoria está sendo bem-sucedida. Condições institucionais e políticas para a formação de uma coalizão majoritária e estável não faltam no presidencialismo multipartidário brasileiro. Além do mais, a preferência mediana do atual Congresso é muito próxima daquela do presidente. Por que então “trair” seus eleitores apenas pela metade?


Ricardo Noblat: Cala boca já morreu, Bolsonaro!

Presidente ameaçou encher jornalista de porrada

E a festa marcada para esta manhã no Palácio do Planalto que celebraria o sucesso do governo Bolsonaro no combate ao Covid-19? Seria aberta à imprensa. Continuará sendo? Está mantida? E se um jornalista resolver perguntar ao presidente porquê Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia Aguiar depositaram 89 mil reais na conta de Michelle, a primeira-dama?

Alguns poucos bolsonaristas de raiz exultaram com a reação de Bolsonaro à pergunta de um repórter feita quando ele saía, ontem, de mais uma visita dominical à Catedral de Brasília. Sempre que sabe há aglomeração de turistas à porta da catedral, Bolsonaro vai até lá a pretexto de rezar. É mais uma oportunidade para tirar fotos com apoiadores, abraçar criancinhas e distribuir sorrisos.

Tudo teria saído como previsto não fosse a pergunta que o deixou furioso: “Presidente, porquê Queiroz depositou 89 mil reais na conta de dona Michelle?” A pergunta era mais do que pertinente. No final de 2018, quando o Ministério Público Federal do Rio revelou que Queiroz depositara 24 mil reais na conta de Michelle, Bolsonaro espontaneamente correu a explicar-se.

Jurou que o dinheiro era o pagamento de uma dívida contraída por Queiroz com ele. Lembrou que os dois eram amigos há mais de 30 anos e que não era a primeira vez que emprestara dinheiro a Queiroz. Semanas depois, sem que ninguém lhe perguntasse, corrigiu-se. A dívida não era de 24 mil, mas de 40 mil. Mas não adiantou se ela foi paga integralmente.

Num primeiro momento, a pergunta do repórter ficou sem resposta. Enquanto caminhava, Bolsonaro comentou com os seguranças que o cercavam que ainda daria uma porrada “na boca daquele cara”. Como o repórter repetiu a pergunta, finalmente encarou-o e disse: “Minha vontade é encher sua boca de porrada”. Em seguida, pressionado pelos seguranças, foi para casa.

“Ele voltou! Ele voltou!”, transbordavam de felicidade apressados bolsonaristas nas redes sociais antes de serem sufocados por milhares de mensagens em sentido contrário que se limitavam a reproduzir a pergunta do repórter. Não teve mais para nada. A hashtag Queiroz reinou soberana durante pelo menos 8 horas como o assunto mais comentado do Twitter no Brasil.

Por que tamanho espanto diante da ameaça do presidente de encher a boca de um jornalista com porrada? Até começar a fingir ser o que não é, Bolsonaro defendeu a tortura, o torturador Brilhante Ustra, lamentou que a ditadura não tivesse matado um número maior de presos políticos e quase foi condenado por dito que só não estuprava uma deputada porque ela era feia.

Bolsonaro reconciliou-se, afinal, com ele mesmo. Deve estar se sentindo muito melhor, mais leve, mais à vontade para frustração dos que imaginavam tê-lo convertido em um presidente normal. Tirou um peso insuportável nas costas. Se quiser, vai retomar o hábito de mandar jornalista calar a boca, provocar a Justiça, hostilizar o Congresso e bater no Centrão.

Êpa! Chega de exagero. Ameaçar encher a boca de jornalista com porrada não é motivo para abertura de processo de impeachment, concluiu o deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Provocar a Justiça não seria recomendável, pois dela dependem as investigações sobre seus filhos. Tampouco bater no Centrão do qual depende hoje para aprovar projetos no Congresso.

É hora de Bolsonaro dar mais força a Paulo Guedes, o ministro da Economia. Se fizer isso, todos os pecados lhe serão perdoados pelos que de fato mandam no país. Vida que segue até a próxima recaída.

O governo nada em dinheiro quando é para atender aos militares

Gasto polêmico
O Ministério da Defesa já empenhou 145,3 milhões de reais para a compra de um microssatélite que fará o monitoramento da devastação da Amazônia, segundo o jornal GLOBO.

Tudo estaria certo, tudo muito bem, não fosse por um fato: o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, órgão do governo, tem um microssatélite tão ou mais moderno e já faz esse serviço.

O custo do microssatélite para que os militares possam chamar de seu é 48 vezes maior do que a verba prevista no Orçamento deste ano para projetos de monitoramento da área e risco de incêndios.


Leandro Colon: Ao ameaçar repórter, Bolsonaro prova que fase paz e amor é fake

Bastaram poucos minutos de contato com a imprensa para Bolsonaro ser Bolsonaro

O tal Jair Bolsonaro "paz e amor" das últimas semanas é um grande disfarce. É fake.

Não foram necessários cinco minutos de contato com a imprensa para Bolsonaro ser Bolsonaro.

Questionado sobre os cheques depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle, o presidente ameaçou o repórter Daniel Gullino, do jornal O Globo.

"A vontade é de encher sua boca com porrada", disse o presidente valentão na frente dos profissionais de imprensa, ao lado da Catedral de Brasília.

Bolsonaro já mandou repórteres da Folha "calarem a boca" e prestigiou protestos palco de agressões físicas a profissionais de imprensa.

Mandou uma banana aos jornalistas, numa cena grotesca na porta do Alvorada, e estimulou insultos por parte dos seus apoiadores na residência oficial.

Talvez passe pela cabeça do presidente que, ao ameaçar, agredir e ofender repórteres, a imprensa se intimide e pare de questioná-lo sobre temas graves que o envolvem.

Bolsonaro pode até pagar de brigão e querer encher de porrada a boca de um repórter, mas precisam sair da dele as razões convincentes sobre o dinheiro que caiu na conta da primeira-dama entre 2011 e 2016.

Relembremos. Foram 27 movimentações. Só Queiroz depositou 21 cheques, que somam R$ 72 mil. Sua mulher, Márcia Aguiar, repassou outros R$ 17 mil por meio de cinco cheques.

Até agora, Bolsonaro não deu sua versão sobre as transações do ex-assessor investigado pelo esquema das "rachadinhas" no Rio.

Desde a prisão de Queiroz (hoje em domiciliar), em 18 de junho, o presidente evita contato mais próximo com a imprensa. Foge dela.

Ao mesmo tempo, baixou a temperatura da crise com o STF e o Congresso e adotou uma agenda populista de viagens para promover obras, entre elas a de uma barragem que rompeu no Ceará, expondo ao perigo 2.000 pessoas.

No campo da popularidade, Bolsonaro cresce nas ruas, como mostrou o Datafolha. No da honestidade, faltam explicações.


El País: Bolsonaro ameaça bater em repórter e rede faz eco à pergunta “Por que Michelle recebeu 89.000 reais do Queiroz?”

Presidente se irritou quando indagado sobre repasses à primeira-dama feitos por ex-assessor. Pergunta virou enxurrada em mobilização no Twitter com mais de 1 milhão de mensagens

O presidente Jair Bolsonaro voltou a atacar a imprensa neste domingo, e desta vez disse ter vontade de “encher de porrada” um repórter. O motivo para a ameaça foi ter sido questionado, por um jornalista de O Globo, sobre os motivos pelos quais Fabrício Queiroz, ex-assessor do seu filho Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e investigado por confisco de salários de servidores, ter repassado 89.000 reais para a conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. A informação foi revelada por uma reportagem da revista Crusoé.

Em um primeiro momento, de acordo com o jornal Folha de S. Paulo, o presidente rebateu perguntando ao jornalista sobre os supostos repasses mensais feitos pelo doleiro Dario Messer, preso na Operação Lava Jato e agora colaborador da Justiça, à família Marinho, proprietária da Rede Globo e do jornal O Globo. Após a insistência do repórter sobre os pagamentos à primeira-dama, Bolsonaro respondeu: “A vontade é encher tua boca com uma porrada, tá?”. O mandatário foi indagado por mais essa agressão a um profissional de imprensa. Mas ele ignorou os questionamentos. Jogou por terra, também, a ideia de que está se ajustando ao decoro do cargo.

Com um histórico longo de agressões verbais a jornalistas, ao vivo e nas redes sociais, o presidente teve de encarar uma reação imediata desta vez. Assim que a notícia com e a ameaça circulou, um movimento ganhou o Twitter: repetir a pergunta feita pelo profissional do Globo: “presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu 89.000 de Fabrício Queiroz?” Jornalistas, artistas e até políticos aderiram ao movimento. Do deputado Major Olímpio, ex aliado do presidente, a parlamentares do Partido Novo, até atrizes globais como Bruna Marchezine e Paolla de Oliveira. O tema foi parar nos assuntos mais comentados da rede e ganhou a adesão até em forma de desenho. A cartunista Laerte desenhou a pergunta que o mandatário não quis responder. Segundo Fabio Malini, pesquisador das mídias sociais, a pergunta foi repetida no twitter a cada 40 segundos. Ao final, foram mais de 1 milhão mensagens com a mesma pergunta.

O escândalo envolvendo Fabricio Queiroz, ex-assessor por anos da família Bolsonaro pressiona o Planalto. A investigação principal é contra o senador Flávio Bolsonaro que, assim como Queiroz, é alvo de um inquérito que apura se houve confisco de parte de salários dos servidores e lavagem de dinheiro. A trama, no entanto, é mais complexa por causa de depósitos do ex-assessor e família feitos à primeira-dama.

Crusoé revelou que o ex-assessor do senador Flávio e ex-policial militar Fabrício Queiroz depositou pelo menos 21 cheques na conta de Michelle. As transações, feitas entre 2011 e 2018. Conforme a revista, as transferências foram identificadas na quebra de sigilo bancário de Queiroz.A revelação contraria a versão dada pelo presidente Bolsonaro de que o depósito no valor de 24.000, desde dezembro de 2018 era parte do pagamento de um empréstimo de 40.000 que fizera ao ex-policial. Desde que esses novos valores foram revelados, Bolsonaro não apresentou a razão dos depósitos terem ocorrido para sua mulher.

Protesto de entidades

Só no primeiro semestre de 2020, presidente Bolsonaro fez 245 ataques contra o jornalismo. O monitoramento foi feito pela Federação Nacional dos Jornalistas. Conforme a instituição, foram 211 casos de descredibilização da imprensa, 32 ataques pessoais a jornalistas e 2 ataques contra a federação. “É lamentável que mais uma vez o presidente reaja de forma agressiva e destemperada a uma pergunta de jornalista. Essa atitude em nada contribui com o ambiente democrático e de liberdade de imprensa previstos pela Constituição”, protestou Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ). “É uma tentativa de intimidação da imprensa, buscando impedir questionamentos incômodos”, disse o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Paulo Jeronimo.

Também o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou ao O Globo que “a liberdade de imprensa é um valor inegociável numa democracia”.


Fernando Gabeira: Uma versão musical do Orçamento

Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte

No momento em que se discute um tema tão áspero como o Orçamento, lembrei-me de uma velha canção chamada “Matilda”, de um gênero antigo como o calipso, cantada por Harry Belafonte, hoje com 93 anos.

“Matilda, Matilda, Matilda, she take me money and run Venezuela” — dizia a letra. A idade atrai certas loucuras. Como essa de lembrar “Matilda” ao analisar os movimentos de Bolsonaro na articulação do Orçamento.

Bolsonaro previu uma destinação para as Forças Armadas maior do que para a Saúde e a Educação. O desejo de fazer dos militares sócios do governo é um traço comum entre o Brasil de hoje e a Venezuela bolivariana. Muita grana para a Defesa, militares em postos-chave, tudo isso revela que, ao se preparar para uma guerra imaginária, o governo tem em mente a verdadeira defesa que lhe interessa: a de si próprio contra uma eventual oposição popular.

Existe uma diferença, entretanto.

Os militares na Venezuela são acusados de corrupção por apoiar um governo do qual talvez discordem ideologicamente. No Brasil não há indícios de corrupção. O máximo que pode existir são algumas benesses que fundem salário e soldo.

Aqui há proximidade ideológica. Os militares, por uma bizarra concepção de Defesa, gostariam de ver o progresso clássico na Amazônia, como se a floresta em pé nos tornasse mais vulneráveis. E gostariam também de integrar os índios à sociedade abrangente: um só povo e um só Deus facilitam a Defesa nacional.

Bolsonaro prepara seu próprio Bolsa Família. Com a ajuda emergencial, percebeu o crescimento de sua popularidade. Pessoalmente, era contra a ajuda. No passado, acusava o PT de comprar votos com ela.

Em certos temas, esquerda e direita acham que escrevem a história e não percebem que são escritas por ela. O apoio de regiões mais carentes ao governo tem sido uma constante, uma vez que, em certa medida, dependem da ajuda oficial. Elas são as últimas a abandonar um governo decadente, mesmo no período da ditadura militar.

Se as pessoas desfavorecidas sentem que o governo alivia seu fardo, elas estão dispostas até a lutar por ele. Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte.

Nesse sentido que canto: Bolsonaro pega a grana e foge para a Venezuela. Naturalmente, as pessoas vão dizer: não é sustentável destinar tanto dinheiro para a Defesa nem manter grandes programas assistenciais.

Não discuto isso. Por acaso a Venezuela é sustentável? No entanto, Maduro sobrevive. O que interessa a ele não é a sustentabilidade nacional, e sim a do governo.

Nem interessa às Forças armadas de lá o fato de o país, pelo crescimento da pobreza, tornar-se mais vulnerável. A sensação corporativa é a de um poder crescente.

É sempre possível argumentar que políticas como a Educação e a Saúde influem diretamente no bem-estar das pessoas mais pobres. Neste momento de pandemia, a Educação é uma resignada lacuna, e a Saúde usa um orçamento de guerra.

Meu problema não é cantar calipsos na quarentena. Mas simplesmente tentar entender alguns enigmas como o de um presidente que se torna mais popular num país que entra em recessão. Há várias saídas para a Venezuela, de avião a Caracas, por terra até Santa Elena. Não esperava encontrar uma na própria discussão do Orçamento.

Não creio que Bolsonaro tenha tomado essa decisão consciente. Apenas tento imaginar as possibilidades futuras. A sedução das Forças Armadas e uma base popular não bastam para nivelar as experiências com a Venezuela. O Congresso é conquistável por métodos historicamente consagrados. A tentativa de destruir ou simplesmente arruinar uma parte da imprensa é idêntica. Resta um Supremo que também muda, embora demande algum tempo para a reposição de ministros.

Aqueles que se deslumbram com uma pseudonormalidade deveriam, pelo menos, levar em conta o processo de reorganização da inteligência estatal voltada basicamente a julgar pelos primeiros passos, a monitorar opositores. O movimento não cessa, nós é que, às vezes, não o notamos.


O Globo: Bolsonaro acumula ataques verbais a jornalistas e veículos de imprensa

Presidente já se dirigiu a repórteres com frases homofóbicas e de cunho sexual, além de ter sugerido obstáculos à atividade da imprensa

RIO — O ataque do presidente Jair Bolsonaro a um repórter do GLOBO neste domingo é mais um episódio de uma série de agressões verbais à imprensa durante o atual governo. O presidente, que declarou ter vontade de "dar porrada" no jornalista ao ser perguntado sobre cheques repassados pelo policial reformado Fabrício Queiroz à primeira-dama Michelle Bolsonaro, terminou 2019 com 116 ataques à imprensa contabilizados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

Leia o posicionamento: O GLOBO repudia ataque do presidente Jair Bolsonaro a repórter do jornal

Neste ano, durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro seguiu reagindo de forma agressiva a perguntas de jornalistas, inclusive mandando a imprensa "calar a boca". Relembre a seguir alguns dos episódios de ataques do presidente:

Lauro JardimJair Bolsonaro acordou novamente como o motor de uma crise no seu próprio governo

'Cara de homossexual terrível'

Em dezembro, Bolsonaro já havia atacado a imprensa ao ser questionado sobre a investigação da prática de rachadinha envolvendo um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Queiroz, ex-assessor de Flávio e suspeito de articular o desvio de verba pública na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), foi alvo de busca e apreensão do Ministério Público do Rio (MP-RJ) no fim do ano passado. A operação também mirou uma loja de chocolates, suspeita de ser usada para a prática de lavagem de dinheiro, que tem Flávio entre seus sócios.

SonarApós Bolsonaro atacar repórter, internautas indagam: 'Por que recebeu R$ 89 mil de Queiroz?'

Questionado sobre o assunto na entrada do Palácio da Alvorada, Bolsonaro se dirigiu de forma homofóbica a um repórter do GLOBO e afirmou que o jornalista tinha "uma cara de homossexual terrível".PUBLICIDADE

Reação: Entidades criticam ameaça de Bolsonaro a repórter do GLOBO

À época, questionado também sobre os cheques repassados por Queiroz a Michelle, o presidente afirmou não ter um recibo do suposto empréstimo feito ao ex-assessor de seu filho, e voltou a se dirigir de forma ofensiva aos jornalistas:

— Pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, está certo? Querem comprovante de tudo — disse Bolsonaro.

Rodrigo MaiaSobre ameaça de Bolsonaro: 'Liberdade de imprensa é inegociável'

'Ela queria dar o furo a qualquer preço'

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro insultou uma repórter do jornal "Folha de S. Paulo" com uma insinuação de cunho sexual. Durante entrevista na porta do Alvorada, enquanto interagia também com apoiadores, o presidente referiu-se ao depoimento de Hans River do Nascimento, ex-funcionário de uma agência de disparos em massa por WhatsApp, concedido à CPMI das Fake News.

No depoimento, o ex-funcionário mentiu sobre a conduta da jornalista, que fazia uma reportagem sobre supostos disparos ilegais na eleição presidencial de 2018. Bolsonaro reproduziu a versão mentirosa de Hans River, usando um trocadilho:

— Ela (repórter) queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim — afirmou o presidente.

Nas redes: De Caetano Veloso a Felipe Neto, internautas repetem pergunta após Bolsonaro atacar repórter do GLOBO

Em nota conjunta divulgada à época, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirmaram que Bolsonaro "repete as alegações que a Folha já demonstrou serem falsas" e que os ataques do presidente "são incompatíveis com os princípios da democracia". A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que também condenou a fala de Bolsonaro, afirmou que "este comportamento misógino desmerece o cargo de Presidente da República".

'Cala a boca, não perguntei nada'

Em maio, perguntado se havia pedido a substituição do superintendente da Polícia Federal (PF) no Rio, Bolsonarou reagiu aos gritos com a frase "cala a boca, não perguntei nada".

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que havia deixado o cargo duas semanas antes, declarou à época que o presidente tentava interferir politicamente na PF. Bolsonaro, depois de mandar a imprensa calar a boca, afirmou que o então superintendente do Rio, Carlos Henrique Oliveira, estava deixando o cargo "para ser diretor-executivo" da corporação, nomeação feita na semana seguinte.

Na ocasião, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) afirmou, em nota, que o presidente mostrava "sua incapacidade de compreender a atividade jornalística", além de externar "seu caráter autoritário".

Ameaças à atividade jornalística

Em mais de uma ocasião, Bolsonaro já insinuou que poderia impor obstáculos à atividade de empresas de comunicação. Em outubro do ano passado, após a TV Globo veicular reportagem sobre a investigação do caso Marielle Franco com o depoimento de um dos porteiros do condomínio onde morava Bolsonaro, o presidente acusou a emissora de "canalhice" e "patifaria", e sugeriu que poderia não renovar a concessão do canal.

Em abril deste ano, na mesma entrevista em que disse "e daí?" ao ser questionado sobre as mortes em decorrência do novo coronavírus, Bolsonaro voltou a insinuar que "se não tiver tudo certo, não renovo a (concessão) de voces nem a de ninguém", usando a expressão "imprensa lixo".

No fim do ano passado, o presidente disse que havia determinado o cancelamento de todas as assinaturas da "Folha de S. Paulo" em órgãos do governo federal, e recomendou também, em tom de ameaça, que os anunciantes do jornal deveriam "prestar atenção". Em outra entrevista, também em 2019, o presidente voltou a se dirigir a anunciantes, ao declarar que não compraria produtos com publicidade veiculada no jornal.

— Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S. Paulo. Qualquer anúncio que faz na Folha eu não compro aquele produto e ponto final — afirmou.