Day: agosto 22, 2020

Paul Krugman: As ações estão subindo. Assim como a miséria

A economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições

Na terça-feira, o índice de ações S&P 500 registrou uma alta recorde. No dia seguinte, a Apple se tornou a primeira empresa americana da história a ser avaliada em mais de US $ 2 trilhões. Donald Trump está, claro, tentando nos convencer de que o desempenho do mercado de ações comprova que a economia se recuperou do coronavírus. Uma pena para os 173 mil americanos que morreram, mas, como ele diz, “essas coisas acontecem”.

Mas a economia provavelmente não está parecendo assim tão bem aos olhos dos milhões de trabalhadores que ainda não conseguiram seus empregos de volta e que acabaram de ver seu auxílio-desemprego cortado. O benefício suplementar de U$ 600 por semana promulgado em março expirou, e a substituição que Trump propôs é, em essência, uma piada de mau gosto.

Mesmo antes do corte da ajuda, a quantidade de pais de família relatando dificuldades para dar de comer aos filhos estava crescendo rapidamente. Esse número com certeza aumentará nas próximas semanas. E também estamos prestes a ver uma enorme onda de despejos, porque as famílias não estão mais recebendo o dinheiro de que precisam para pagar o aluguel e porque a proibição temporária aos despejos, assim como o auxílio suplementar ao desemprego, acabou de expirar.

Mas como pode haver essa desconexão entre a subida das ações e o crescimento da miséria? Os caras de Wall Street, que adoram letras e siglas, estão falando de uma “recuperação em forma de K”: valorização das ações e aumento da riqueza individual no topo da pirâmide, queda da renda e forte sofrimento na base. Mas isto é uma descrição, não uma explicação. O que está acontecendo de fato?

A primeira coisa a notar é que a economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições. O índice econômico semanal do Federal Reserve de Nova York sugere que, embora tenha atingido seu ponto mais baixo alguns meses atrás, a economia ainda se encontra em uma depressão mais profunda do que em qualquer momento da recessão que se seguiu à crise financeira de 2008.

E, desta vez, as perdas de empregos se concentram entre os trabalhadores com salários mais baixos – ou seja, precisamente os americanos sem recursos financeiros para enfrentar tempos difíceis.

Mas e as ações? A verdade é que os preços das ações nunca se ligam intimamente ao estado da economia. Como diz uma velha piada de economistas, o mercado previu nove das últimas cinco recessões.

As ações sofrem, sim, o impacto de crises financeiras, como as rupturas que se seguiram à quebra do Lehman Bros. em setembro de 2008 e o breve congelamento dos mercados de crédito em março. Fora isso, os preços das ações seguem bastante desconectados de coisas como emprego ou mesmo PIB.

E, hoje em dia, a desconexão está ainda maior do que de costume.

Pois a recente ascensão do mercado foi amplamente impulsionada por um pequeno número de gigantes da tecnologia. E os valores de mercado dessas empresas têm muito pouco a ver com seus lucros atuais, muito menos com o estado da economia em geral. Em vez disso, esses valores refletem as percepções dos investidores sobre um futuro bem distante.

Veja o exemplo da Apple, com sua avaliação de US $ 2 trilhões. A Apple tem um índice preço/lucro – a relação entre sua avaliação de mercado e seus lucros – de cerca de 33. Uma maneira de olhar para esse número é dizer que apenas 3% do valor que os investidores colocam na empresa reflete o dinheiro que eles esperam ganhar ao longo do próximo ano. Eles esperam que a Apple seja lucrativa daqui a alguns anos, mas pouco se importam com o que acontecerá na economia americana nos próximos trimestres.

Além disso, os lucros que as pessoas esperam que a Apple obtenha daqui a alguns anos estão especialmente grandes porque, afinal, onde mais elas vão botar seu dinheiro? Os rendimentos dos títulos do governo americano, por exemplo, estão bem abaixo da taxa de inflação projetada.

E a avaliação da Apple na verdade está menos exagerada do que a de outras gigantes da tecnologia, como Amazon ou Netflix.

Portanto, as ações das gigantes da tecnologia – e as pessoas que as possuem – estão em alta porque os investidores acreditam que se sairão muito bem no longo prazo. A economia em recessão pouco importa.

Infelizmente, os americanos comuns obtêm muito pouco de sua renda com ganhos de capital e não podem viver de projeções otimistas sobre suas perspectivas futuras. Não adianta muito dizer ao proprietário do apartamento que você aluga para não se preocupar com sua atual incapacidade de pagar o aluguel, porque você com certeza terá um ótimo emprego daqui a cinco anos. Esse argumento só fará com que você seja expulso do apartamento e jogado na rua.

Então, esta é a atual situação dos Estados Unidos: o desemprego ainda está extremamente alto, em grande parte porque Trump e seus aliados primeiro não quiseram levar o coronavírus a sério, depois pressionaram por uma reabertura antecipada da economia em um país que não atendia a nenhuma das condições para a retomada dos negócios – e até agora se recusam a apoiar estratégias básicas de proteção, como o uso generalizado de máscaras.

Apesar desse fracasso épico, os desempregados ficaram com a cabeça fora da água durante meses graças ao auxílio federal, que ajudou a evitar uma catástrofe humanitária e econômica. Mas agora a ajuda acabou. E Trump e aliados estão encarando o iminente desastre econômico com a mesma seriedade com que encararam o iminente desastre epidemiológico.

Tudo sugere que, mesmo que a pandemia enfraqueça – o que não é, de forma alguma, uma certeza –, estamos prestes a ver um grande aumento na miséria nacional.

Ah, mas as ações estão em alta. Então por que deveríamos nos preocupar?

* Tradução de Renato Prelorentzou.


Marcus Pestana: Irresponsabilidade e fakenews também têm limites

Volto hoje ao tema do confronto entre liberdade de manifestação e controle social sobre abusos e crimes cometidos nas redes sociais. Confesso que escrevo com uma ponta de revolta e indignação. Por um lado, porque uma fakenews fez a mim e muitas pessoas sofrerem com a antecipação da morte de um grande amigo. Por outro lado, chegamos ao limite da atrocidade, desrespeito e crueldade no caso da criança grávida de 10 anos, que desde os seis é vítima de abuso sexual, exposta publicamente pela suposta líder protofascista Sara Winter. Felizmente, a Justiça, o Ministério Público e o próprio YouTube já tomaram providências para punir exemplarmente os algozes de uma indefesa criança.

No dia 7 de agosto, fiz entrevista no perfil do Instagram @amatutina, sobre os “Engenheiros do Caos” do suíço-italiano Giuliano da Empoli. Há uma vasta literatura recente sobre a crise da democracia. Mas o livro de Empoli desnuda como as plataformas digitais foram manipuladas ilegitimamente no nascimento do movimento italiano “5 Estrelas”, no plebiscito do Brexit, na campanha de Trump e como isto chegou ao Brasil pelas mãos do estrategista-chefe da Casa Branca no início da administração de Donald Trump, Steve Bannon.

A crise da democracia tem como pano de fundo as mudanças da economia capitalista que resultaram numa sociedade mais complexa e fragmentada, os sucessivos escândalos de corrupção mundo afora que desmoralizaram as elites dirigentes tradicionais e o surgimento de novos movimentos fora da órbita do sistema como o ambientalista, o feminista, o LGBT, o antirracista, o evangélico, etc. E o advento das redes sociais que jogaram lenha nesta fogueira permitindo a individualização da participação política e social.

Os “Engenheiros do Caos” patrocinaram, em escala global, o “populismo autoritário”. A revolução digital não carrega, em si, valores éticos e morais. A qualidade do uso das ferramentas digitais está nas mãos de quem as usa.

Giuliano da Empoli mostra em seu livro que os “Engenheiros do Caos” não se preocupam com a verdade ou a mentira, o real ou o irreal, a coerência. Querem apenas e a qualquer custo instrumentalizar as redes, prender audiência, mobilizar seguidores e criar uma corrente de opinião a favor de determinadas ideias e candidatos. Empoli cita um senador americano que disse certa vez: “cada um tem o direito às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”. Os “Engenheiros do Caos” criam seus próprios fatos.

Como as forças democráticas e progressistas podem enfrentar este monstro sem precisarem se igualar em práticas condenáveis e ilegítimas? Primeiro, como sugeriu um dos nossos maiores youtubers, Felipe Neto, educação digital. Em segundo lugar, construir a rede dos algorítimos e atores do bem e da verdade. Sem fakenews, sem agressividade e promoção do ódio, privilegiando o debate democrático e a promoção de consensos. E usar uma linguagem mais leve, transgressiva, bem humorada, como sugeriram o próprio Empoli no debate com Fernando Gabeira no “Sempre um Papo” de Afonso Borges, com base em experiência de Taiwan na pandemia e dos jovens que esvaziaram comício de Trump através do aplicativo TikTok, e o humorista Marcelo Adnet no Roda Viva. Por último, uma boa Lei de controle social sobre as redes, sem afetar a liberdade de opinião e a privacidade das pessoas.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB – MG))


Demétrio Magnoli: O lado bom do cancelamento

Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual

Na Ilustríssima, Rosane Borges cancelou pela milésima vez Lilia Schwarcz, num artigo caudaloso, balofo, que classifica o texto da cancelada como “ruim” mas jamais consegue preencher o qualificativo com um mísero argumento.

O texto é ruim porque Borges diz que é, do alto do seu pódio autoconstruído do “lugar de fala”. Wilson Gomes, na mesma Ilustríssima (16/8), explicou o mecanismo inteiro. Assim, adiciono apenas uma proposta dirigida às plataformas virtuais: dividam as redes em dois setores, separados pela fronteira da prática do cancelamento.

A dinâmica do cancelamento, destinada a produzir uma reserva de mercado, segue as lógicas sectárias típicas das cisões e expurgos dos partidos marxistas. Borges mirou a já canceladérrima Lilia para cancelá-la “melhor”, assegurando um lugar na dianteira da fila dos arautos da Verdade Identitária. Os canceladores, explicou Gomes, só cancelam eficientemente camaradas canceladores —ou seja, aqueles que comungam a mesma religião e, como Lilia, prestam-se ao papel de beijar os pés dos seus algozes.

Mas o “lugar de fala” não perdoa: é preciso pedalar sempre, como fazem os ciclistas. A prática tem que ser reiterada até o infinito, por meio de sucessivos cancelamentos voltados para eliminar concorrentes num mercado altamente competitivo. Como a seita de canceladores não controla um aparato estatal totalitário, a mera humilhação em rede substitui, teatralmente, os campos de trabalho forçado, as torturas e os fuzilamentos.

Aí, surge minha única divergência com Gomes, que declara-se triste diante do espetáculo. Acho, pelo contrário, que a pantomima tem o potencial de divertir os que não pertencem à seita. É como assistir aos folguedos de crianças no recreio. Pode ser intrigante, com a condição de que não percamos muito tempo.

Em vista disso, sugiro às plataformas a seleção prévia dos participantes de redes sociais baseada na auto-descrição. Os aderentes à prática canceladora ficam em redes exclusivas; os demais, que a rejeitam, inscrevem-se em redes assentadas no princípio da divergência civilizada. Desse modo, os adultos podem debater sem ruídos incômodos, enquanto as crianças brincam com seus pares.

Sofistico a sugestão: todos os participantes teriam o direito de visualizar passivamente o que acontece na rede à qual não pertencem. O recurso ofereceria aos adultos uma janela de entretenimento. Mas, sobretudo, daria às crianças canceladoras uma oportunidade de descobrir os benefícios do intercâmbio democrático de pontos de vista. Otimista, aposto na conversão de uma fração estatisticamente significativa dos canceladores.

Há que distinguir os fenômenos. A política identitária racialista, com seu cortejo de leis raciais e “racismo reverso”, é coisa séria. O rastro que ela forma envenena a luta antirracista, avoluma a onda de ressentimentos que nutre o racismo tradicional, ergue o picadeiro ocupado pelos Sérgio Camargos, alarga o eleitorado da extrema-direita. Já o cancelamento identitário em rede social não passa de uma ramificação periférica, uma disputa menor por prestígio, convites e financiamentos.

Os rituais de cancelamento só provocam prejuízos sociais quando escapam à esfera das redes, restringindo o debate plural na imprensa, no meio editorial ou nas universidades. Isso existe, extensivamente, nos EUA —e começa a se manifestar, ainda de forma embrionária, no Brasil.

A carta aberta publicada pela Harper’s, que reuniu figuras ideologicamente tão distantes quanto Salman Rushdie, Noam Chomsky, Wynton Marsalis e J. K. Rowling, alerta para esse perigo real.

Minha proposta contribui para minimizá-lo. Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual. Todos poderão cotejar os debates travados entre não-canceladores com as exibições purificadoras dos canceladores profissionais. Que tal?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Folha de S. Paulo: Teto de gastos, a âncora da estagnação brasileira e da crise social

Profissionais que trabalham com economia assinam manifesto pela extinção da Emenda Constitucional nº95

A grande recessão brasileira iniciada no primeiro trimestre de 2015 deu ensejo à construção de uma narrativa equivocada a respeito dos problemas da economia brasileira, focada quase que exclusivamente no desequilíbrio fiscal do setor público. Segundo ela, desde o início da década de 1990, o Brasil teria um desequilíbrio fiscal estrutural, caracterizado pelo crescimento excessivo dos gastos primários do setor público a um ritmo superior ao do PIB (Produto Interno Bruto).

Esse crescimento excessivo dos gastos públicos teria ensejado um aumento contínuo da carga tributária para a manutenção, a partir de 1999, de um superávit primário adequado para garantir a sustentabilidade da dívida pública no longo prazo. Ainda segundo essa narrativa, o crescimento contínuo da despesa primária e da carga tributária seria insustentável no longo prazo, de maneira que, em algum momento, um ajuste fiscal estrutural seria necessário para interromper uma suposta “morte súbita” da economia.

Ao longo dos anos de 2015 e 2016 foi sendo construído um consenso entre os economistas do mercado financeiro, a grande mídia e a maioria dos membros do Congresso Nacional a respeito da necessidade de introdução de um teto de gastos na Constituição Federal.

Não ficaram de fora desse consenso representantes diretos e indiretos dos setores produtivos que sustentavam serem também as despesas primárias de cunho social as responsáveis pela inibição das ações dos governos no apoio e fomento dos investimentos nos projetos produtivos da economia. Esse mecanismo de controle fiscal, introduzido pela Emenda Constitucional nº95, prevê o congelamento do gasto primário real da União, por um período de 20 anos, a partir de sua promulgação em 2016.

A ideia subjacente ao teto de gastos consiste em realizar um ajuste fiscal duradouro por meio da redução da despesa primária como proporção do PIB, recuperando o superávit primário estrutural do setor público e reduzindo o seu endividamento, o qual havia aumentado quase 20 p.p do PIB no período 2014-2016.

O curioso, no mínimo, é que precisamente o biênio 2015-16 caracterizou-se não pela suposta “gastança” do governo, mas pelo mergulho da economia, das receitas e pelo aumento da conta de juros já em meio à austeridade.

De todo modo, ainda durante os debates sobre a Emenda Constitucional nº95, vários economistas já haviam alertado para a insustentabilidade do teto de gastos no médio prazo. Em primeiro lugar, o congelamento da despesa primária da União em termos reais implicaria uma redução do gasto primário per capita devido ao crescimento da população brasileira a um ritmo de 0,8% a.a.

Num país com notórias deficiências nas áreas de saúde, educação, saneamento, moradia e segurança, não é uma ideia sensata perseguir essa redução. Alguma dose de prudência e bom senso apontava para a necessidade de se permitir, ao menos, o crescimento da despesa primária no mesmo ritmo do crescimento da população brasileira.

Um segundo problema com o teto de gastos é que a maior parte das despesas primárias da União —gastos com previdência social e com os salários dos servidores públicos— afeta o conjunto dos cidadãos portadores de direitos sociais e∕ou laborais (inclusive os servidores estáveis concursados) e é imprescindível para a execução das próprias políticas públicas.

Com efeito, os gastos com a previdência social, com mais de 30 milhões de beneficiários, têm um crescimento médio de 3,5% a.a. em termos reais, refletindo o ritmo de crescimento da força de trabalho no período em que as pessoas que se aposentam a cada ano entraram no mercado de trabalho. A folha de salários dos servidores públicos da União, incluindo civis, militares e inativos, por seu lado, tem oscilado em torno de 4,3% do PIB nos últimos 20 anos, não é explosiva, não cresce automaticamente —pois não há data base no serviço público—, e tampouco pode ser reduzida abruptamente ao sabor do ciclo político sem ferir a Constituição e desorganizar a prestação de serviços à população.

Nesse contexto, até o momento, as variáveis de ajuste de curto prazo foram as políticas sociais de educação, saúde e assistência e os investimentos da União, notadamente os investimentos em infraestrutura, necessários para aumentar a produtividade média da economia brasileira e a competitividade das empresas brasileiras nos mercados doméstico e internacional.

Não por acaso, a introdução de uma restrição fiscal exógena e autoimposta, que não decorre da incapacidade de financiamento do governo, coincidiu, passada a crise de 2015-2016, com um ritmo de crescimento de apenas 1,2% a.a no período 2017-2019, valor 57% inferior ao observado entre 1980-2014.

Ela fez com que a economia brasileira apresentasse a mais lenta recuperação cíclica já registrada e a taxa de desocupação sempre acima de 11%, extremamente elevada mesmo antes da recente crise sanitária. No final de 2019, o PIB brasileiro ainda se encontrava 5,5% abaixo do valor observado em 2014, mesmo com o avanço de várias reformas econômicas, como as trabalhista e previdenciária, que segundo a cartilha liberal resultariam em maior crescimento da economia.

A eclosão da pandemia do coronavírus em 2020 exigiu a adoção do mais amplo programa de transferência de renda da história do país a fim de evitar o colapso econômico e social. Em função desse dispêndio absolutamente necessário, a União deverá apresentar déficit primário inédito e um aumento expressivo da relação dívida pública/PIB, a qual deverá ultrapassar os 90% ainda neste ano.

O aumento da dívida pública como proporção do PIB tem levado os arautos do austericídio fiscal a propor o regresso do governo à trajetória de cortes de gasto já em 2021, defendendo a PEC 186 (Emergencial) —que aciona o gatilho de redução de até 25% das horas trabalhadas dos servidores federais com correspondente redução nos vencimentos—, a desvinculação de recursos da saúde e educação, ou mesmo nova rodada de reforma previdenciária.

Dessa forma, o ultraliberalismo brasileiro ignora o debate sobre política fiscal nos países desenvolvidos, onde a tônica tem sido a necessidade de continuar com estímulos fiscais para manter a atividade econômica, por intermédio do investimento público na descarbonização da economia, para atender a dupla necessidade de criar emprego e renda, e contribuir para o enfrentamento do grave problema ambiental e humano do aquecimento global.
O argumento de que o controle da dívida pública a fórceps levará a uma percepção favorável dos investidores externos é falacioso, e mesmo impatriótico, pois não se sustenta em qualquer base teórica e muito menos comprovação histórica.

Esquecem-se os defensores dessa suposta alternativa que o mundo inteiro estará, nos próximos anos, às voltas com a recuperação das economias nacionais. O fator primordial que sustenta expectativas favoráveis e ânimo para investimentos privados em um país alicerça-se em políticas públicas eficazes que respeitam compromissos ambientais assumidos e que buscam construir uma ambiência institucional estável e social mais justa.

O retorno da austeridade fiscal em 2021, propugnado sem constrangimentos pelo mercado financeiro, significará a maior contração fiscal da história do Brasil, pois promoverá uma redução no gasto primário como proporção do PIB de 27% para 19% num período de 12 meses. Tal contração fiscal, no contexto de uma economia com enormes níveis de ociosidade, com um PIB ao final deste ano pelo menos 10% inferior ao registrado em 2013, levará a um novo mergulho recessivo com aumento da desigualdade na distribuição de renda, com consequências sociais —e econômicas— imprevisíveis. A proposta de “furar o piso”, com redução da carga horária dos servidores, ademais, comprometerá ainda mais a prestação de serviços públicos de saúde, educação, etc. para a parcela da população brasileira mais atingida pelos efeitos da pandemia.

Deve-se deixar claro que o aumento do endividamento público é um fenômeno global, não apenas restrito ao Brasil, e que não existe evidência na literatura econômica nem na experiência internacional sobre a existência de um limite máximo para a relação dívida pública/PIB. Com efeito, países como a Itália e a Espanha, que não possuem dívida pública denominada na sua própria moeda, deverão ultrapassar, respectivamente, a marca de 150% e 120% do PIB para o endividamento público em 2020.

O Brasil possui uma grande vantagem com respeito a esses países, pois quase 100% da dívida pública brasileira é denominada em moeda nacional e é retida principalmente por residentes no Brasil. Um cenário de fuga de capital, por medo de uma eventual crise de confiança na sustentabilidade da dívida pública, é altamente improvável em nosso país, senão impossível. E mesmo que ocorresse, o Banco Central do Brasil possui os instrumentos necessários para lidar com essa eventualidade.

Isso posto, os economistas e profissionais que trabalham com economia abaixo assinados vem por meio desta se manifestar publicamente pela extinção da Emenda Constitucional nº95, dada a necessidade de se retirar as restrições autoimpostas aos gastos de investimento e demais despesas obrigatórias da União pelo teto de gastos.

A pandemia reforçou a necessidade de um pacto social mais harmônico. No Brasil, além de uma urgente reforma tributária progressiva, é imprescindível substituir o conjunto de regras fiscais atrasadas, sobrepostas e anacrônicas. Precisamos de novos instrumentos fiscais que permitam uma estabilização do ciclo econômico, viabilizem o aumento dos investimentos públicos e garantam as políticas de transferência de renda e a prestação de serviços públicos de qualidade.

Esses são elementos centrais à reorganização econômica e social do Estado, para que este possa atuar em benefício da grande maioria da população brasileira. Para fazer frente aos desafios do Século 21, é preciso repensar a atuação do Estado, o que necessariamente passa por uma revisão daquilo que sabemos que já não funciona.

ASSINAM ESTE TEXTO:
Ademir Figueiredo
Adhemar S. Mineiro
Adilson Soares
Adriana Amado
Adriana Marques da Cunha
Adriano Vilela Sampaio
Adroaldo Quintela Santos
Agnaldo Quintela dos Santos
Alan Hercovici
Alex Palludeto
Alex Rabelo Machado
Alexandre Favaro Lucchesi
Alexandre R. Motta
Aline Souza Magalhães
Ana Carla Magni
Ana Carolina Wanderley Beltrão
Ana Cláudia Arruda
Ana Cristina Cerqueira
Ana Georgina da Silva Dias
Ana Lucia Carvalho Santos
Ana Lúcia de Miranda Costa
Ana Rosa Ribeiro de Mendonça
Anderson Henrique dos Santos Araújo
André Biancarelli
André Amaral de Araújo
André Calixtre
André de Queiroz Faria
André L. Scherer
André Luis Campedelli
André Luiz de Miranda Martins
André Nassif
André Paiva Ramos
André Roncaglia
Andréa Costa Magnavita
Andrea Rodrigues Ferro
Ângela Medrado Brasileiro
Antonio Carlos de Moraes
Antonio Carlos Filgueira Galvão
Antonio Corrêa de Lacerda
Antonio Jose Alves Junior
Antonio Lassance
Antonio Melki Jr.
Antônio Negromonte Júnior
Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva
Áquilas Mendes
Aristides Monteiro Neto
Artur Ortiz de Araújo
Bárbara Cecilia M. F. De Souza
Bárbara Vallejos Vazquez
Bernardo Karam
Betty Nogueira Rocha
Bráulio Santiago Cerqueira
Bruno Andrade
Bruno de Araújo Andrade
Bruno Farias Stern
Bruno Leonardo Barth Sobral
Bruno Moretti
Bruno Setton
Camila Ugino
Camilo Bassi
Caren Freitas
Carlos Álvares da Silva Campos Neto
Carlos Cabral
Carlos Eduardo de Freitas
Carlos Eduardo Fernandez da Silveira
Carlos Pinkusfeld Bastos
Carmem Feijo
Carmen Garcia
Carmen Lúcia Castro Lima
Célia Vieira
César Roberto de Leite da Silva
Cezar Augusto Miranda Guedes
Christian Velloso Kuhn
Christiane Senhorinha Soares Campos
Cícero Péricles de Carvalho
Cid Olival Feitosa
Claudemir Galvani
Claudia Hamasaki
Claudia Beatriz Le Cocq D'Oliveira
Claudio Amitrano
Cláudio Antônio de Almeida
Cláudio da Costa Manso
Clovis Roberto Scherer
Cristiane Kerches da Silva Leite
Cristina Lemos
Daniel dos Santos
Daniel Negreiros Conceição
Daniel Negreiros Conceição
Daniela Freddo
Daniela Salomão Gorayeb
Danilo Severian
Danilo Spinola
David Deccache
Davyson Demmer Guimarães Barbosa
Débora Freire Cardoso
Denise Guichard Freire
Denise Lobato Gentil
Diego Farias de Oliveira
Dilson Renan de Souza
Dimas Alcides Gonçalves
Diogo Vieira Mazeron
Dione Conceição de Oliveira
Douglas Santos Nascimento
Édrio Donizetti
Edson Domingues
Edson Rodrigues
Eduardo Baumgratz Viotti
Eduardo Costa Pinto
Eduardo Fagnani
Eduardo Luiz de Mendonça
Eduardo Moreira Garcia
Eduardo Rodrigues da Silva
Eduardo Silva Ramos
Eliane Araújo
Elias Jabbour
Elisangela Luiza Araújo
Elmer Nascimento Matos
Emanuel Lucas de Barros
Emílio Chernavsky
Enildo Meira
Eron José Maranho
Esther Bemerguy
Esther Dweck
Eurílio Pereira Santos Filho
Euriques Fernandes Carneiro
Eustáquio José Reis
Evilásio Salvador
Fabiano Abranches Silva Dalto
Fabiano Camargo da Silva
Fábio Di Natale Guimarães
Fábio Eduardo Iaderozza
Fábio Guedes Gomes
Fábio Terra
Fabrício Missio
Fátima de Lourdes Aragão de Carvalho
Fernanda Cardoso
Fernanda Esperidião
Fernanda Feil
Fernanda Serralha
Fernando Ferrari Filho
Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt
Fernando Pacheco Dias
Fernando Pedrão
Fernando Sarti
Flávia Vinhaes
Flávio Cruvinel Brandão
Flávio José Domingos
Flávio mesquita Saraiva
Flávio Tavares de Lyra
Francisco Carneiro De Filippo
Francisco José Couceiro de Oliveira
Francisco Wagner Alves Rodrigues
Francyelle do Nascimento Santos
Frederico Gonzaga Jayme junior
Frednan Bezerra dos Santos
Gabriel Squeff
Gelton Pinto Coelho Filho
Gilberto Líbanio
Gina G. Paladino
Glaucia Campregher
Glaudionor Gomes Barbosa
Guilherme Carneiro Leão de Albuquerque Lopes
Guilherme da Costa Delgado
Guilherme Magacho
Guilherme Maia Rebouças
Guilherme Narciso de Lacerda
Guilherme Santos Mello
Gustavo Falcão
Gustavo Machado Cavarzan
Gustavo Souza Noronha
Helena Lastres
Helena Maria Martins Lastres
Hélio Mairata
Hugo Carcanholo Iasco Pereira
Hugo da Gama Cerqueira
Inês Patrício
Ingo Luger
Ismeralda Barreto
Jaderson Goulart Junior
Jales Costa
Jamile Souzza
Janice Câmara
Janúzia Souza Mendes
Jarpa Aramis Ventura de Andrade
Jason Tadeu Borba
Jennifer Hermann
João Carlos Nery de Brito
João Hallak Neto
João Ildebrando Bocchi
João Machado Borges Neto
João Santiago
Joaquim Andrade
Jorge Abrahão de Castro
Jorge Alano S Garagorry
Jorge Felix
José Antônio Lutterbach Soares
José Augusto Costa Lopes
José Carlos Peliano
José Celso Cardoso Jr.
José de Ribamar Sá Silva
José Eduardo Roselino
Jose Farias Gomes Filho
José Gabriel Porcile Meirelles
José Geraldo França Diniz
José Luis Oreiro
José Luiz Fevereiro
José Márcio Rego
José Mauro Gomes
José Moraes Neto
José Raimundo Barreto Trindade
José Rubens Damas Garlipp
José Sérgio Gabrielli de Azevedo
José Tavares Bezerra Júnior
José Valdecy Guimarães Júnior
Juan Pablo Painceira
Juarez V. Pont
Julia Braga
Júlia Marinho Rodrigues
Juliana de Paula Filleti
Juliana Pinto de Moura Cajueiro
Júlio Batista
Júlio Fernando Costa Santos
Julio Manuel Pires
Jurandir Santos de Novaes
Kalinka Martins
Ladislau Dowbor
Lafaiete Neves
Laudeny Fábio Barbosa Leão
Lauro Mattei
Lavínia Maria de Moura Ferreira
Lena Lavinas
Liana Carleial
Lícia Maria França Cardoso
Licio da Costa Raimundo
Lourival Batista de Oliveira Júnior
Luciano Dias de Carvalho
Luciano Manarin Dagostini
Luciano Pereira da Silva
Luís Carlos Garcia de Magalhães
Luis Gustavo Martins
Luís Otávio Reiff
Luiz Antônio Elias
Luiz Fenelon Pimentel Barbosa
Luiz Fernando de Paula
Luiz Filgueiras
Luiz Gonzaga Belluzzo
Luiz Gustavo de Oliveira da Silva
Luiz Martins de Melo
Magda Barros Biavaschi
Manuel Ramon Souza Luz
Marcel Guedes Leite
Marcelo Álvares de Lima Depieri
Marcelo Manzano
Marcelo Miterhof
Marcelo Pereira Fernandes
Marcelo W Proni
Márcia Flaire Pedroza
Marcio Pochmann
Marco Crocco
Marco Flávio Resende
Marcus Maia Antunes
Maria Angélica Borges Bocchi
Maria Aparecida de Paula Rago
Maria Carolina Capistrano
Maria Christina Cunha de Carvalho
Maria Cristina de Araújo
Maria Cristina Mascarenhas
Maria das Graças B. de Carvalho
Maria de Lourdes Rollemberg Mollo
Maria Fernanda Cardoso de Melo
Maria Luiza Falcão Silva
Maria Luiza Levi
Maria Luiza M. S. Marques Dias
Mariano Matos Macedo
Mariel Liberato Schwartz
Mário Jackson Siqueira Bayma Filho
Mário Rodoarte
Mário Theodoro
Marta Castilho
Marta Skinner
Martha Cassiolato
Maurício Borges Lemos
Maurilio Procópio Gomes
Mauro Osório
Mauro Patrão
Max Leno de Almeida
Miguel Huertas Neto
Mirian Beatriz Schneider
Mônica Beraldo Fabrício
Monica Landi
Nathalie Beghin
Nelma Souza Tavares
Nelson de Chueri Karam
Nelson Nei Granato Neto
Nelson Victor Le Cocq
Nicia Moreira da Silva Santos
Norma Cristina Brasil Casseb
Odilon Guedes
Orlando Ramos Moreira
Pablo SergIo Mereles Ruiz Diaz
Patrícia Cunha
Paulo César Machado Feitosa
Paulo Dantas
Paulo Gil Holck Introini
Paulo Kliass
Paulo Ricardo S Oliveira
Paulo Roberto Bretas
Paulo Sérgio Fracalanza
Pedro Garrido
Pedro Miranda
Pedro Noblat
Pedro Paulo Branco
Pedro Paulo Pettersen
Pedro Paulo Zahluth Bastos
Rafael Quevedo do Amaral
Rafael Ribeiro
Ramón García Fernández
Ranieri Muricy Barreto
Raphael Bicudo
Raul Ristow Krauser
Regina Maria d'Aquino Fonseca Gadelha
Reginaldo Muniz Barreto
Reinaldo Campos
Renata Lins
Ricardo Carlos Gaspar
Ricardo Carneiro
Ricardo de Melo Tamashiro
Ricardo Karam
Ricardo Lacerda
Ricardo Lobato Torres
Roberto Boccacio Piscitelli
Roberto Conceição dos Santos
Roberto Resende Simiqueli
Rodolfo Guimarães Regueira da Silva
Rodolfo Viana
Rodrigo Romeiro
Rodrigo Vilela Rodrigues
Rômulo Batista Sales
Ronaldo Coutinho Garcia
Rosa Maria Vieira
Rosa Maria Marques
Rosana do Carmo Ñ Guiducci
Rosângela Ballini
Roseli Faria
Rubens Sawaya
Samy Kopit
Sandro Silva
Sarah Regina Nascimento Pessoa
Sérgio Fornazier
Sérgio Guimarães Hardy
Sérgio Mendonça
Sidneia Reis Cardoso
Sílvio Humberto Cunha
Simone Deos
Sólon Venâncio de Carvalho
Tania Bacelar
Tânia Cristina Teixeira
Tereza Pozzeti
Thiago de Moraes Moreira
Thiago Rabelo Pereira
Thiago Varanda Barbosa
Thiago Xavier
Tiago Couto Porto
Tiago Oliveira
Ubajara Berocan Leite
Valcir Santos
Valdeci Monteiro
Valéria Moraes
Valéria Rezende de Oliveira
Vanessa Petrelli Corrêa
Vânia Souza
Verlane Aragão Santos
Victor Emmanuel Feitosa Hortencio
Victor Leonardo Figueiredo Carvalho de Araujo
Virgínia Oliveira
Vitor Hugo Tonin
Vítor Lopes de Souza Alves
Viviane Freitas Santos
Volnandy de Aragão Brito
Walbert Ribeiro Moreira Júnior
Weslley Cantelmo.
Wilnês Henrique


Adriana Fernandes: A caneta Bic de cada um

Bolsonaro parece estar caindo na tentação de que sua caneta pode tudo. Não pode.

O presidente Jair Bolsonaro costuma dizer que assina os documentos da Presidência com uma caneta Bic. Foi assim no termo da sua posse no cargo em janeiro de 2010 e segue nos dias atuais.

A pandemia da covid-19 encheu de tinta a caneta presidencial com bilhões de reais para gastos. São valores tão altos que muito provavelmente Bolsonaro não teria condições de assinar até o final de um eventual segundo mandato, caso consiga a sua reeleição para qual já está trabalhado desde agora.

Passados 20 meses de governo e cada vez mais confortável com a sua Bic, o presidente parece estar caindo na tentação que acomete muitas autoridades que desembarcam em Brasil. A de que a sua caneta pode tudo.

Não pode.

Quando essa visão chega à esfera orçamentária e o bom senso vai embora, o perigo ronda e acende os sinais de alerta da burocracia estatal.

O exemplo mais recente tem sido a discussão enviesada que tomou conta do Orçamento de 2021 na Junta de Execução Orçamentária, que define as diretrizes para a destinação e depois execução das despesas aprovadas pela lei orçamentária.

Primeiro foi a tentação de usar recursos via o orçamento de guerra da pandemia da covid-19 para bancar investimentos em obras de infraestrutura e outras tentativas para poder liberar mais dinheiro até o final do ano, quando as regras fiscais estão suspensas por conta do coronavírus.

Agora, o que se vê é a estratégia de reforçar a todo custo o orçamento do Ministério da Defesa em detrimento de outros gastos em áreas mais importantes, como saúde e educação.

Se não bastassem os gastos com a reformulação das carreiras militares, o presidente determinou um aporte ainda maior do já turbinado orçamento da Defesa. Como? Adiando o censo de 2020 previsto para 2022.

São cerca de R$ 2 bilhões a mais a custo sem precedentes para o trabalho de pesquisa do IBGE, o planejamento das políticas publicas e a transferências de recursos para Estados e municípios. A contagem populacional é determinante para a repartição. É bom lembrar que o censo, previsto para esse ano, já tinha sido adiado para 2021.

O risco de um novo adiamento, sem uma justificativa plausível, certamente pode levar a uma judicialização dos municípios que se sentirem prejudicados.

Como explicou o presidente do IBGE, distribuição do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) está congelada esperando o censo de 2020. “Isso é muito grave porque o censo de 2022 só vai ter resultado em 2023. Vai ter 13 anos sem nenhuma informação demográfica ”, disse o ex-presidente do IBGE, Roberto Olinto, ainda incrédulo com tamanha audácia do governo de fazer essa proposta, revelada em reportagem do Estadão dessa semana.

O que chamou atenção na decisão de ampliar em R$ 2,27 bilhões o orçamento para a área militar foi o comunicado da ampliação do Orçamento para os militares foi feito pelo secretário de Orçamento do Ministério da Economia, George Soares, em ofícios nos quais afirma que os pedidos foram feitos por Bolsonaro.

Quem conhece a burocracia de Brasília sabe que esse foi um ato de cautela e cuidado com assinatura da sua caneta Bic. Depois dos inúmeros processos abertos pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no rastro das manobras contábeis da ex-presidente, conhecidas como pedaladas fiscais, que atingiram servidores da elite do funcionalismo, ficaram muitas sequelas.

As carreiras que compõem o Ministério da Economia, diferentemente da maioria de outras carreiras existem há muito tempo com servidores que foram recrutados em concursos muito difíceis, com os da Receita, Tesouro e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Um técnico experiente, por exemplo, não foi condenando por que tinha registrado nos seus e-mails todas as advertências feitas ao seu superior, o ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin. Na época, os técnicos se rebelaram numa reunião, como está relatado no livro “Perigosas Pedaladas” do jornalista João Villaverde. Muitos desses processos ainda estão em andamento. Um deles com resultado recente, cinco anos depois das pedaladas.

Com certeza é de se imaginar que outras canetas Bic estão dando alertas ao presidente.


Ricardo Noblat: Desabafo da mulher de Queiroz indica que o casal viveu cativo

Hóspedes forçados do advogado dos Bolsonaro

Os áudios com o desabafo de Márcia de Aguiar, mulher de Fabrício Queiroz, divulgados pela VEJA, deixam claro que ela e o marido sentiam-se como prisioneiros de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro e do seu pai, o presidente Jair Bolsonaro. Uma história bem diferente da contada pelo advogado quando a polícia prendeu Queiroz em sua casa no município paulista de Atibaia.

Na versão de Wassef, ele se comoveu com a situação de Queiroz a quem nunca vira antes, procurou-o sem que ninguém o orientasse a fazê-lo e ofereceu abrigo para ele, sua mulher e parentes. Só por “razões humanitárias”, como disse. Queiroz tornara-se um dos homens mais procurados do país pela imprensa, e mais tarde, pelo Ministério Público Federal do Rio que queria interrogá-lo.

Por que Queiroz e a mulher aceitariam a oferta de abrigo feita por um desconhecido? Por que passariam a confiar em um homem que emergiu assim do nada, sem que ninguém o recomendasse? Não faria o menor sentido. Elementar: Wassef deve ter sido bancado por alguém com bastante influência sobre o casal Queiroz. E não é tão difícil imaginar quem foi direta ou indiretamente.

Os áudios de Márcia datam de novembro do ano passado quando ela e o marido eram hóspedes de Wassef, mantidos numa espécie de cativeiro e contrariados por serem impedidos de sair de lá. Em conversas com a advogada Ana Flávia Rigamonti, contratada por Wassef para vigiá-los junto com um empregado da casa, Márcia traiu toda a sua insatisfação com a vida que levava.

Contou que, ao longo de um ano, fora obrigada a abrir mão de sua vida particular, privar-se de ir ao médico até para fazer exames de rotina e, em alguns momentos, não podia sequer utilizar o celular. As medidas cautelares foram ditadas pelo “Anjo”, codinome de Wassef, segundo o Ministério Público Federal, empenhado em manter sob segredo o paradeiro de Queiroz.

“A gente não é foragido. Isso está acabando comigo, amiga, acabando. De boa mesmo. Está acabando”, diz Márcia a Ana Flávia. “Está me destruindo por dentro. Eu estou aqui me desabafando, porque não consigo passar isso para ele [Queiroz]. E a minha preocupação é esse stress, esse emocional dele abalado, piorar a situação dele com essa doença”.

Ana Flávia retruca: “Eu sei que ele não está bem. Ele está tentando se distrair. Mas a gente sabe que não está fácil. (…) Ele mesmo falou para o Anjo: ‘Olha, eu não estou aguentando mais. Quero ir para minha casa’”. E Márcia completa: “Eu estou vendo que todo mundo está vivendo a sua vida. Agora, a gente não. Então, somos foragidos para viver fugindo? Não é possível isso, entendeu?”

Márcia não estava com Queiroz quando ele foi preso em 19 de junho último. Havia uma ordem de prisão contra ela. Márcia fugiu e só reapareceu quando o marido deixou a cadeia no dia 10 de julho para cumprir prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Desde então ela está ao lado dele, também com tornozeleira. O Ministério Público Federal aposta que um deles acabará delatando.

A prisão de Queiroz foi responsável pela radical mudança de comportamento do presidente Bolsonaro. Saiu de cena o incendiário, o promotor de crises, o falastrão, o agitador que marcava presença em manifestações de rua hostis à democracia. Entrou em cena o presidente moderado, que loteia cargos do governo com os partidos e chama os parlamentares de “sócios”.


Julianna Sofia: A terceira torre

Aumento para servidores na pandemia seria ato covarde

Na fatídica reunião de 22 de abril, Paulo Guedes (Economia) elencou a Jair Bolsonaro e seu gabinete ministerial as torres do inimigo que o governo tinha por objetivo derrubar. A primeira era o que chamou de excesso de gastos na Previdência. Jaz tombada, na avaliação do ministro. A segunda: os juros altos —missão, por ora, cumprida.

“Todo mundo tá achando que tão distraído, abraçaram a gente, enrolaram com a gente. Nós já botamos a granada no bolso do inimigo. Dois anos sem aumento de salário. Era a terceira torre que pedimos pra derrubar. Vamos derrubar agora. Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas.”

Guedes referia-se às despesas com o funcionalismo e ao congelamento de salários dos servidores, dispositivo enxertado no socorro a estados e municípios em crise. Vangloriava-se por barrar aumentos até 2021, camuflando a inépcia em entregar a esperada reforma do Estado, apesar de suas festejadas credenciais econômicas.

Na articulação pelo congelamento, o ministro levou uma rasteira do chefe, que avalizou uma lista de exceções à regra antiaumento e depois viu-se obrigado a vetar tal lista.

Nesta semana, a bazuca contra a terceira torre voltou-se na direção de Guedes. O Senado derrubou o veto de Bolsonaro —ato covarde perante um país de 12,3 milhões de desempregados e com 46% da população afetada pela redução de renda na pandemia.

De memória curta, o presidente incorporou o discurso da austeridade. Guedes acusou o Senado de cometer crime e pediu colo a Rodrigo Maia (Câmara) e ao centrão. Na cooptação, valeu-se das moedas de troca usuais: emendas parlamentares e dinheiro para socorrer setores com poder de lobby. Estratégia exitosa e veto mantido. À espreita, o Senado promete dar o troco pelo selo de Casa da temeridade fiscal, impondo derrotas em pautas caras ao governo.

Para acalmar o comichão da gastança eleitoral, o Planalto acena com pacote de bondades na próxima semana. O Renda Brasil desencantará.


Míriam Leitão: Festival de sandices que exaure o Brasil

Este governo é uma fábrica de ideias péssimas. Algumas delas parecem, no primeiro momento, mentira. Taxar desempregado para financiar um programa de emprego e ainda batizá-lo de verde e amarelo. Adiar de 65 para 70 anos a idade na qual o idoso da extrema-pobreza terá direito a receber integralmente o Benefício de Prestação Continuada. Pegar dinheiro do Bolsa Família para financiar propaganda do Planalto. Todas essas ideias já foram derrotadas, felizmente. Mas o que elas têm em comum? Uma insensibilidade social que chega a ser caricata.

A nova péssima ideia, que no primeiro momento pareceu fake news, é a de adiar o Censo para 2022 e usar os recursos para reforçar o orçamento do Ministério da Defesa. O país simplesmente não pode mais atrasar o registro do seu retrato demográfico, de todas as múltiplas informações que só se consegue com o Censo. Ele fica mais urgente porque já foi adiado por um ano, por causa da pandemia, e porque em 2015 não foi feita a contagem da população.

O vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que isso está em análise. O IBGE nada tem a dizer oficialmente sobre o assunto. O temor cresce porque, apesar do excelente quadro técnico do IBGE, a atual direção do órgão sofre de excessiva submissão ao Ministério da Economia, como ficou demonstrado no episódio dos cortes no orçamento do Censo. Mourão argumentou que os projetos do Ministério da Defesa estão atrasados. Se a construção de uma fragata for adiada o país não vai naufragar. Mas sem dados para orientar as políticas públicas ficará à deriva.

Algumas ideias mostram um governo sem rumo, que atira a esmo. Aliás, como gosta de atirar. Ele decidiu vetar máscaras em comércio, escolas, igrejas. Felizmente o Congresso derrubou. Tentou tirar a obrigatoriedade de cadeirinha de segurança para criança e aumentar a quantidade aceitável de infrações do trânsito. O Ministério da Economia quis adiar a vigência do Fundeb para 2022, o que criaria um caos no ano que vem. O presidente mandou o Exército produzir milhões de comprimidos de cloroquina e o presidente chegou a correr atrás de uma ema para persuadi-la a ingerir a medicação. O Ministério da Justiça fez um dossiê contra policiais que se declaram antifascistas, ato que serve como autodeclaração da tendência política desta administração. Falou-se em reduzir de 8% para 6% o recolhimento do FGTS, tirando do trabalhador para ajudar o patrão. Cada uma que parece duas.

Há ideias que são fixas. A melhor representante dessa categoria persistente é a CPMF. Não há uma proposta que saia do Ministério da Economia que não seja condicionada à criação do imposto de nome não dito, mas de feição fácil de reconhecer.

Quando as sandices são empilhadas e analisadas percebe-se que não há um centro gerador das más ideias. Há método na coisa. O governo segue as modernas técnicas de gestão descentralizada. De cada ponto pode sair maluquice. Essa de trocar o Censo por armamento, por exemplo, não se sabe de onde surgiu. É tão ruim que seu autor não teve a coragem de defendê-la publicamente. Mourão falou porque foi perguntado e deu uma esperança: dependerá do Congresso.

O ex-presidente do IBGE Roberto Olinto definiu a proposta como “escândalo inaceitável” e explicou algo que não ocorreu aos nossos governantes. “Ter o Censo é também fazer a defesa do país”, porque, como explicou à repórter Adriana Fernandes do “Estadão”, “é muito mais estratégico ter o conhecimento do país”. O Brasil muda muito, é complexo, tem enormes desigualdades e carências, e sairá ainda mais desigual desta pandemia. Que cabeça pode conceber a proposta que, como disse Olinto, “rompe qualquer protocolo de produção de estatística mundial de qualidade”?

Muitas das ideias ruins são derrotadas depois de batalhas no Congresso, na Justiça ou no debate público. Mas elas todas juntas mostram que, se vivo fosse, o genial Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta, poderia reinaugurar o que ele batizou de “festival de besteiras que assola o país”. Hoje, o termo “sandice” define mais precisamente certas ideias governamentais. E em vez de assola, talvez a palavra “exaure” seja mais exata. O país está esgotado de tanto brigar pelo que é óbvio, pelo que deveria estar claro, pelo que já estava garantido. Agora será necessário lutar para que o IBGE faça o Censo. Que insensatez.


Merval Pereira: Apoio incipiente

O presidente Bolsonaro criou um monstro que pode engoli-lo, o Congresso. Revitalizado no início do governo, quando o presidente ainda tentava governar sem os partidos, imaginando que o poder do Executivo era insuperável, o Congresso, com especial atuação da Câmara presidida por Rodrigo Maia, assumiu a direção dos trabalhos de aprovação das reformas.

Chamou a si a tarefa de reformar a Previdência Social, mesmo atrapalhada pela ambiguidade de Bolsonaro, que até o último minuto incluiu categorias que lhe são caras nas exceções da nova legislação.

Até fazer o acordo com o Centrão, renegando tudo o que dissera na campanha eleitoral e nos meses iniciais de seu governo, Bolsonaro recebeu dos parlamentares demonstrações cabais de que sem eles não governaria.

A recente votação do veto ao aumento de servidores públicos enquanto perdurar a pandemia da Covid-19 demonstra bem como a relação do presidente com uma base parlamentar ainda incipiente pode trazer novos problemas para o governo.

Teve que contar com o presidente da Câmara para organizar sua base para derrotar a decisão do Senado, que derrubara o veto do presidente. Mas criou diversos atritos com os senadores, a começar com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que não quis presidir a reunião do Congresso porque já imaginava que o governo poderia ser derrotado e não queria se indispor com o governo, com cujo apoio conta para poder se reeleger.

Agora, com os ataques do ministro da Economia, Paulo Guedes, aos senadores que votaram pela derrubada do veto, Alcolumbre já não pode se omitir, pois nada importa o apoio de Bolsonaro se os senadores não quiserem reelegê-lo. “Aqui não tem voto de cabresto”, avisou um senador, referindo-se tanto a Bolsonaro quanto a Alcolumbre.

Para manter seu prestígio interno, Alcolumbre terá que colocar seu prestígio externo em jogo. A boca grande do ministro Paulo Guedes mais uma vez o coloca em confrontação com o Congresso, mas desta vez também o presidente Bolsonaro não quer afrontar seus novos aliados.

Quando Paulo Guedes ou outro ministro agredia o Congresso, recebia palmas do presidente Bolsonaro. Foi assim que o ex-ministro Abraham Weintraub começou sua derrocada, flagrado dizendo que mandaria para a cadeia “todos aqueles vagabundos”, a começar pelo Supremo.

Dito em reunião fechada, não haveria problema. Tendo o ministro Celso de Mello mandado divulgar o vídeo da reunião, tornou-se insustentável sua permanência no cargo. Desta vez, Guedes errou no timing político. Chamar os senadores que derrubaram o veto de “criminosos” foi um excesso, mesmo que se leve em conta que estava tomado por uma “santa indignação”, um sentimento justo diante da irresponsabilidade de permitir aumentos nesta crise econômica que tentamos atravessar.

O problema é que quem fala muito corre o risco de dar bom dia a cavalo, já diz o ditado popular. Guedes fala muito, e nem ele nem o governo são coerentes na maior parte das vezes. Os senadores já ressuscitaram na internet pelo menos duas declarações do ministro da Economia defendendo que os servidores que estão na frente de combate à Covid-19 seriam exceções no congelamento dos salários.

O veto do presidente foi contrário ao combinado com os parlamentares, e por isso formou-se um ambiente propício à sua derrubada. Muitos senadores espalharam que Bolsonaro queria o veto, o que parecia plausível diante das suas incoerências. Bolsonaro chama seus novos parceiros do Centrão de sócios. “Sócios no bom sentido”, alertou, assim como avisa, quando diz que ama um homem, que “é um amor hétero”.

Bolsonaro e suas contradições profundas.

Confissão
A decisão do Senador Flavio Bolsonaro de não aceitar a acareação com seu suplente Paulo Marinho sobre a acusação deste de que recebeu informações antecipadas sobre a Operação Furna da Onça e demitiu seu amigo Fabrício Queiroz para tentar apagar os rastros da “rachadinha” que ele comandava, demonstra receio de cair em contradição e ser pego na mentira. Uma confissão de culpa indesmentível.


Cristovam Buarque: Falta Nabuco

Educação no Brasil continua entre as piores no mundo

No século XIX, adotamos políticas em favor dos escravos — fim do tráfico, ventre livre, liberdade a sexagenários — sem defesa da Abolição. A maldade no tratamento aos escravos ficou mitigada, mas a barbaridade do regime continuou, amarrando a economia e comprometendo a decência. Em 1888, os abolicionistas venceram a luta pelo fim do sistema escravocrata, mas até hoje mantemos uma trincheira da escravidão: a reserva da educação de qualidade para poucos.

Desde 1980, diversas medidas beneficiam a educação — Emenda Calmon, merenda, livros didáticos, Fundef, Fundeb, PNE-I e II, BNCC, piso salarial — mas ela continua entre as piores e mais desiguais no mundo, emperrando a eficiência da economia e dificultando a justiça social.

Quando imaginamos a tragédia que ocorreria se o Fundeb fosse extinto, em 31/12 próximo, sua prorrogação deve ser comemorada. Mas, ao lembrar que já está em vigor há dez anos, imaginamos que, apesar de alguma melhora, a educação ainda não dará o salto de que precisamos. Devemos parabenizar os que não deixaram o Fundeb acabar e até conseguiram ligeiro aumento de recursos. Parabenizá-los como a Rio Branco, pelo ventre livre; Eusébio de Queiroz, pela proibição do tráfico, Saraiva e Cotegipe, pela Lei dos Sexagenários. Mas nenhum deles foi um Nabuco, e o Fundeb está longe de ser nossa “Lei Áurea do século XXI”: educação entre as melhores do mundo e com qualidade da escola igual para todos.

Para concluir a Abolição, será necessário mais do que leis, uma estratégia com a meta de colocarmos nossa educação entre as melhores do mundo e igual para todos os brasileiros, independentemente da renda e do endereço da criança. Para isso, tratar educação de base como questão nacional, implantarmos um Sistema Unificado Nacional de Educação, com carreira federal para os professores, definição de padrões nacionais para edificações e equipamentos, todas as escolas em horário integral, todas como concessão federal. Uma estratégia educacionista que derrube a última trincheira da escravidão, rompa as amarras ao nosso desenvolvimento e construa justiça social.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Sérgio C. Buarque: A inteligência e a barbárie

Cem mil pessoas seguiram o cortejo fúnebre de Leon Trotsky na Cidade do México, onde vivia exilado, numa homenagem póstuma a um dos políticos e intelectuais mais brilhantes e incômodos do século XX. Exilado e perseguido pela implacável polícia secreta de Stalin, desde que foi expulso da União Soviética em 1929, Trotsky foi assassinado pelo stalinista Ramón Mercader que conseguira se insinuar como simpatizante, na fortaleza onde vivia o líder revolucionário.

Com um golpe de picareta de alpinismo, Mercarder atingiu diretamente o cérebro do qual germinavam ideias e análises políticas e textos literários fascinantes, força moral e política formada na condução da revolução, que ameaçavam a ditadura de Stalin. O filósofo alemão Walter Benjamin manifestou profunda emoção com a leitura de “Minha Vida”, autobiografia de Trotsky escrita no exílio, e Bertolt Brecht, mesmo tendo ligação com o stalinismo, teria dito que “Trotsky bem poderia ser o maior escritor europeu do seu tempo” (Patrick Deville em Viva!).

No exílio, Trotsky padeceu a angústia de acompanhar, impotente, a execução pela máquina de Stalin de todos os líderes e dirigentes da revolução e a eliminação de toda a sua família, especialmente seus filhos, e dos seus seguidores politicos na União Soviética (submetidos a tortura e humilhação nos manipulados Processos de Moscou) e onde mais o trotskismo germinava, como na guerra civil espanhola. Lênin tinha morrido bem antes, Trostky foi expulso e Stalin ficou livre para promover a destruição em massa de homens superiores a ele em força moral, inteligência, cultura e formação política. Mas o “profeta banido”, expressão de Isaac Deutscher no título do terceiro livro da biografia de Trostky, era reconhecido mundialmente como personagem central na revolução russa (tanto ou mais do que Lênin), mobilizando figuras importantes do socialismo em vários países, convencidos da “degeneração burocrática” do sistema soviético.

No entanto, intelectuais e militantes de esquerda em todo mundo preferiam acreditar que todos esses dirigentes revolucionários tinham traído a revolução, a perceber a violência ditatorial de Stalin e o culto à personalidade. O poeta chileno Pablo Neruda, prêmio Nobel de literatura, utilizou sua influência para concessão de asilo político a David Siqueiros, muralista mexicano que liderou a primeira tentativa, fracassada, de eliminação de Trotsky. É surpreendente e mesmo incompreensível que milhões de pessoas no mundo inteiro tenham aceitado, justificado e até apoiado os julgamentos, as torturas, a humilhação e o fuzilamento de todos os líderes da revolução russa e de Leon Trotsky.

O mundo mudou radicalmente nesses 80 anos e o trotskismo não permite entender a complexidade da sociedade capitalista contemporânea e o “socialismo real”, que o próprio Trotsky denunciava como um socialismo burocrático, desmontou por conta das suas próprias contradições. Longe de pensar em “ditadura do proletariado” e em economia estatizada e centralmente planejada (como pensava Trotsky e Stalin), o humanismo dos socialistas neste século XXI deve ser democrático, tem que conviver e administrar o mercado e deve se apoiar num Estado provedor de serviços públicos, principalmente da educação pública de qualidade que ofereça igualdade de oportunidades. Se Trotsky vivesse hoje, provavelmente seria um destacado líder social-democrata.

*Sérgio C. Buarque, economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.


Marco Aurélio Nogueira: Pandemia – o antes, o durante e o depois

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade

Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.

São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar comum.

Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.

O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como reagir.

A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus, especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.

Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.

A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo é ingênua. A competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A Sputnik, russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de uma “guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021, não há como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será feita sua aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a ideia for imunizar a população terrena. Além disso, o mundo superconectado, frenético e desigual em que vivemos é propício a novas ondas pandêmicas.

O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e sacrifícios. Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas, governos de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade, que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma vida com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais tempo em casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.

Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus vagões e ônibus que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar, com suas interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade. O que tem mais importância e valor? Como voltar a olhar para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da vida aberta, sem freios? Como controlar nossos desejos e pulsões, recompô-los e deixá-los fluir de outro modo? Teremos de experimentar de maneira distinta o prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?

São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam o enigma freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de “mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de nos haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da psicanálise, conhecimento e informação.

A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de sensações e possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações éticas e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição, difícil como qualquer outra.

A educação é o recurso de que dispomos para construir atitudes cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam um mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da escola, mas de educação com E maiúsculo.

Resta saber se venceremos a batalha.

*Professor titular de teoria política da Unesp