Day: agosto 21, 2020

Míriam Leitão: O veto, o governo e as contradições

O Senado errou e, felizmente, a Câmara corrigiu a tempo, mantendo o veto do presidente Bolsonaro à permissão de aumento de salário de certas categorias de servidores. Mas esse caso é complexo e emblemático das contradições do governo. Há um fenômeno no Brasil que poderia ser definido como sensibilidade fiscal seletiva. Atinge a equipe econômica, o próprio ministro Paulo Guedes, e principalmente o presidente Jair Bolsonaro. Guedes disse que o Senado cometeu crime contra o país. Bolsonaro declarou que não poderia governar se o veto fosse derrubado, num exagero bem conveniente. Quando o presidente cria despesas corporativas é também crime contra o país e impedimento a que se governe?

Bolsonaro é errático em matéria fiscal. Ele inicialmente não queria que houvesse proibição de reajustes a servidores federais. O ministro da Economia então incluiu esse ponto no acordo de transferência de recursos para estados e municípios para valer para toda a federação. O presidente decidiu proteger alguns. Demorou 20 dias para sancionar a lei dando tempo, assim, de aprovar aumentos de salários de policiais civis e militares do Distrito Federal, Amapá, Roraima e Rondônia, e também para votar uma reforma na carreira dos policiais federais. Os adicionais dos salários das Forças Armadas estavam fora dessa proibição de reajuste, sob o argumento de que haviam sido garantidos pela reforma da previdência dos militares.

Quando eleva as despesas públicas para beneficiar os grupos que protege, Bolsonaro não considera que isso inviabilize o governo, nem o ministro Paulo Guedes acha que é traição ao Brasil. A ambiguidade fiscal do presidente é sempre justificada pelo ministro da Economia. Ele repete que o presidente teve “60 milhões de votos”, por isso é natural que ele tome essa ou aquela medida, mesmo que seja o oposto do recomendável. Bolsonaro podia ser deputado dos militares e policiais, mas não pode ser o presidente de algumas categorias. Um presidente corporativista é uma contradição ambulante.

O número com o qual o governo tentou assombrar o Brasil não fica de pé. Ninguém sabe de onde saíram aqueles R$ 130 bilhões de custo. Parlamentares que defendiam o veto não entenderam o cálculo e falavam em algo em torno de R$ 10 bi ao governo federal em 18 meses. Economistas do setor privado que concordam com o veto também faziam contas nessa faixa de estimativa. Seja qual for o dado, o Senado estava errado por dois motivos. Haveria impacto nas contas públicas, ainda que não fosse trivial calcular. O outro ponto que mostra o quanto o Senado errou é ignorar o que está acontecendo no mercado de trabalhadores do setor privado. Há uma devastação de emprego e renda em curso. Dez milhões de pessoas deixaram a população ocupada porque seus empregos sumiram. Outros dez milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram redução de salário. Os servidores, que estão protegidos do risco de demissão, teriam ainda reajustes?

A história inteira desse projeto mostra a quantidade de problemas que o governo consegue criar pela sua articulação trôpega e os improvisos do ministro da Economia. A Câmara aprovou uma proposta de transferência de recursos para os estados e municípios, dado que o governo não tomava qualquer iniciativa para ajudar os estados, além do aumento do FPE. Paulo Guedes reagiu à proposta dizendo que era uma irresponsabilidade fiscal, um cheque em branco. Rodrigo Maia, que tem orgulho de sua agenda em prol da estabilidade fiscal do país, ficou ofendido. Guedes foi então ao Senado para mudar o projeto da Câmara. Levou ao senador Davi Alcolumbre um projeto próprio. Ele foi aprovado, mas nele os senadores incluíram que haveria exceções para algumas categorias na proibição de reajustes e foi isso que Bolsonaro vetou.

Agora, o Senado, ao qual o ministro acorreu na sua briga com o presidente da Câmara, acabou derrubando o veto, e ontem, por ironia, o governo precisou do deputado Rodrigo Maia para manter o veto. Desde cedo, o presidente da Câmara trabalhou para articular a manutenção do veto, fez uma declaração criticando os termos usados por Guedes para se referir à decisão do Senado e fez uma sustentação do microfone no lugar do líder com uma argumentação simples: alguém pode dar aumento? Não. Então por que derrubar o veto? Tudo teria sido mais fácil, simples, se houvesse uma boa negociação e o governo não fosse essa fábrica de atritos em todas as áreas.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro posa de responsável fiscal e fatura politicamente a crise do veto

Presidente aproveitou bobagem do Senado para fazer gol político, mas gosta de um gasto

Os senadores deram uma oportunidade para Jair Bolsonaro fazer um show de responsabilidade fiscal. O presidente fez pose no noticiário e no delírio das mídias sociais. Faturou politicamente uma bobagem demagógica do Senado. Só que não se trata disso, de responsabilidade.

O Senado havia derrubado veto de Bolsonaro a um parágrafo da lei de socorro a estados e municípios. A lei proíbe reajustes de salários e outros aumentos de despesas com servidores de todo o país até o fim de 2021. O parágrafo vetado abria exceção para profissionais de saúde, de assistência social, de limpeza, de policiais etc. envolvidos no combate à pandemia.

Nesta quinta-feira (20), a Câmara validou o veto, em um dia agitado como se estivessem reconstruindo os muros da Bastilha fiscal. Sim, o reajuste não faz mesmo sentido. Sim, há cheiro de queimado na praça financeira. Desde a segunda semana de agosto, as taxas de juros de prazo mais longo voltaram a dar saltos (em julho, haviam voltado a níveis pré-pandemia). Mas quem fez a chacrinha “fura-teto” foi o próprio governo, que de resto não tem projeto organizado para nada, das contas às “reformas”.

Bolsonaro não liga muito para o tamanho da despesa a não ser que: 1) veja uma possibilidade de fazer show midiático; 2) apareça um rolo com consequências notáveis para a sua reeleição.

O presidente quer o monopólio da concessão de benefícios e favores. Diminuiu o alcance da reforma da Previdência, deu reajustes para policiais, para as Forças Armadas e bilhões para uma estatal da Marinha fazer navios. Sabota o quanto pode a reforma administrativa e avacalha emendas constitucionais de redução de despesa com servidores que seu próprio ministro da Economia manda para o Congresso.

O próprio Bolsonaro apoiava a exceção que acabou enfim por vetar, por insistência de Paulo Guedes. Ele mesmo cruza a bola que cabeceia para fazer o gol da confusão permanente que é seu desgoverno.

O governo, de resto, fez um show com o tamanho dessa crise do veto. O Senado de fato colocou mais água no moinho das tentativas de elevar gastos, manobras avacalhadas para dar um jeito no teto de despesas sob o pretexto de estimular a economia e atenuar problemas sociais. Nada disso vai prestar, posto dessa maneira. Mas o governo superfaturou essa crise.

Segundo o governo e seus economistas, a derrubada do veto reduziria em dois terços a economia prevista com a proibição de reajustes, coisa de quase R$ 90 bilhões. Esse número não parece fazer sentido algum.

A derrubada do veto não implicaria reajustes, para começar. Para continuar, a despesa com “remuneração de empregados” nos estados e municípios foi de uns R$ 662 bilhões em 2019 (o governo federal está fora da conta porque se supõe que não concederia reajustes, certo?). Seria preciso dar baitas reajustes a todos os funcionários do país inteiro para essa conta parecer razoável.

E daí? Daí que a discussão é uma mixórdia de baixo nível, condizente, portanto, com esse governo. Nas mídias sociais, era possível ler o povo bolsonariano dizendo que os senadores haviam se dado reajustes, por exemplo.

O arranca-rabo desnecessário e de fancaria ajuda a complicar a vida de Guedes no Congresso, em particular no Senado, a quem acusou de cometer “um crime”, o que deixou a turma possessa por lá. A gente podia ouvir senador dizendo “quero ver o seu Guedes vir aqui com cara de pau falando de concórdia e pedindo suas reformas”.

Bolsonaro deve ter ficado feliz como pinto no lixo, na confusão, no caos que o revigora.


Rogério Furquim Werneck: Sob o teto de gastos

É preciso saber ir além do jogo de cena e dos esforços de manutenção das aparências

A questão não é saber se e quando Paulo Guedes sairá do governo. O que de fato importa é se houve mudança decisiva e inequívoca na forma como o Planalto percebe as possibilidades de condução da política fiscal no país. E, quanto a isso, já não há margem a dúvidas. Não há mais como alimentar ilusões sobre o real compromisso de Jair Bolsonaro com a preservação do teto de gastos.

É preciso saber ir além do jogo de cena e dos esforços de manutenção das aparências que terão lugar nas próximas semanas. E perceber, em meio ao discurso ambíguo de Bolsonaro, que a restrição de gastos passou a ser vista como um estorvo. Ao mesmo tempo que já não esconde que está explorando subterfúgios de contabilidade criativa para violá-la, o presidente declara-se disposto a patrocinar mudanças na legislação que garantam o disparo dos gatilhos requeridos para a preservação do teto.

Mas é bom lembrar que o propósito do teto e dos gatilhos é gerar desconforto. Fazer o sistema ranger. A ideia é que a compressão automática da remuneração dos servidores públicos — por redução de salários e de jornada de trabalho — e o risco de shutdown iminente da administração pública possam engendrar o senso de urgência que se faz necessário. E sirvam para dar ao Executivo, ao Congresso e ao Judiciário a convicção requerida para viabilizar formas mais racionais e sustentáveis de contenção de gastos.

Mas quem, a esta altura dos acontecimentos, acredita mesmo que Bolsonaro estará disposto a empatar seu capital político na aprovação de medidas que assegurem o disparo de gatilhos tão desgastantes de preservação do teto, como o que impõe compressão substancial nas remunerações dos funcionários públicos federais?

É preciso ter em conta que, por sete mandatos de deputado federal, Bolsonaro se dedicou, quase exclusivamente, à agenda sindicalista de defesa dos interesses de militares e policiais. E que, no ano passado, o presidente se permitiu patrocinar recomposição considerável da remuneração dos militares, na contramão do esforço de ajuste fiscal que se fazia necessário. Tampouco se pode esquecer a forma ostensiva com que, há poucos meses, o presidente atrasou a sanção da legislação que vedava reajustes salariais na esfera estadual, para que policiais militares escapassem à proibição e tivessem seus salários generosamente reajustados a tempo.

Salta aos olhos que Bolsonaro fará o que for possível para evitar um gatilho de compressão dos salários dos servidores federais. Pela mesma razão que não deixou que o projeto de reforma administrativa decolasse.

Embalado agora por seu bom desempenho nas pesquisas de opinião, Bolsonaro está convencido de que a pandemia não lhe causará tanto desgaste quanto temia. E que o segredo da reeleição continua o mesmo: expansão do gasto público. Quer turbinar o Bolsa Família, com o programa Renda Brasil, para preservar o ganho de popularidade que lhe foi propiciado pela concessão do auxílio emergencial. E está prestes a deslanchar centenas de projetos empacotados no novo Pró-Brasil.

Há poucos meses, ainda havia quem acreditasse que a batalha da preservação do teto de gastos seria marcada por um grande embate entre o ministro da Economia, solidamente respaldado pelo presidente da República, de um lado, e todo o resto da Esplanada dos Ministérios e boa parte do Congresso e do Poder Judiciário, de outro. Já está mais do que claro, contudo, que tal batalha está fadada a assumir configuração bem mais simples: um cabo de guerra, a cada dia mais desgastante, entre o Ministério da Economia e o Planalto. Alguém tem dúvida sobre que lado, afinal, prevalecerá?

Foi sob a sombra do teto de gastos que se pôde montar o espetáculo fenomenal de uma economia com inflação ineditamente baixa, taxa real de juros próxima de zero e contas fiscais escancaradamente insustentáveis. O que ainda não se sabe é com que rapidez tal espetáculo será inviabilizado, quando se disseminar a percepção de que a prometida preservação do teto se mostrou fantasiosa.


Reinaldo Azevedo: O Congresso é bom; o governo, horrível

Bolsonaro e Guedes falam asneiras, e depois cabe ao Parlamento corrigir os desatinos

Pois é… Jair Bolsonaro e Paulo Guedes fazem e falam asneiras —iguais ou desiguais, elas sempre se combinam—, e cabe ao Congresso, particularmente a Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, corrigir os desatinos. É o caso do reajuste de algumas categorias profissionais dos servidores. Às vezes, dá certo, como nesta quinta. O veto presidencial foi mantido por 316 votos a 165.

Mas Guedes não sossega. Ele já está cavando uma nova crise com a sua proposta da “PEC-Combo”, que pretende juntar tudo ao mesmo tempo agora: PEC emergencial, pacto federativo e, de aperitivo, a nova CPMF bombadona. Quem não sabe aonde vai escolhe qualquer caminho. E o Congresso que se vire.

Voltemos ao veto. Não se chega a bom lugar com dados falsos. Era mentira que “o dinheiro da Saúde seria usado para pagar servidores”. Isso é facilitação estúpida. O auxílio emergencial repõe parte do ICMS e do ISS e não sai com carimbo.

Mais: se todas as categorias excepcionadas na proposta aprovada pelo Congresso tivessem o reajuste, em todas as esferas, a conta chegaria a R$ 98 bilhões, não a R$ 130 bilhões. Mas quem disse que seria assim? É um chute. União, governadores e prefeitos agiriam como ordem unida? Aplicando o mesmo índice? Ora…

Os tais R$ 130 bilhões eram tão verdadeiros como os supostos R$ 280 bilhões que a União teria de desembolsar caso tivesse vingado o texto aprovado na Câmara no dia 13 de abril, que previa reposição a estados e municípios por seis meses, tendo como referência o arrecadado em 2019.

O Planalto não gostou e foi bater às portas do Senado. E lá se fechou a proposta que acabou aprovada: o governo impôs o congelamento como condição para a reposição —e olhem que o Congresso, na prática, não precisava de aval nenhum— e concordou em excluir as categorias profissionais que lidam diretamente com a Covid-19.

E aí Guedes estrilou a passou a pregar o veto àquilo que o próprio governo havia negociado. Na malfadada reunião ministerial do dia 22 de abril, o ministro, com aquele seu jeito desassombrado de quem não sabe o que fazer, mas tem sempre uma metáfora explosiva, definiu o congelamento: “Nós já botamos a granada no bolso do inimigo; dois anos sem aumento de salário”.

O radicalismo de Guedes não é coragem. Costuma se voltar contra quem pode menos. É falsa a informação de que o congelamento alcança todos os servidores. O governo garantiu, por MP, o reajuste a policiais militares, civis e bombeiros do DF e a parte dos PMs de Amapá, Roraima e Rondônia.

Atenção! A MP foi enviada um dia antes de o presidente sancionar o texto com os vetos pedidos por Guedes. Às enfermeiras que enfrentam a Covid-19, granada; aos policiais do DF, grana. Bolsonaro sabe ser essa a PM mais bem paga do Brasil, porque os recursos saem da União. A concessão do reajuste cria demanda por aumento nas PMs dos demais estados, e os governadores que se virem com o congelamento.

Noto adicionalmente que os Catões da moralidade pública e da severidade com o cofre assistem impassíveis à esbórnia com o orçamento da Defesa. E ninguém diz que se tira verba da Saúde para investir em canhão, não é mesmo, Guedes?

Então ficamos assim: o governo trapaceou, desde sempre, no congelamento dos salários. E, quando algo dá errado, apela-se a Rodrigo Maia, sempre ele!, para tentar resolver o problema. Até porque Guedes já saiu chutando os países baixos dos senadores.

Sim, há lá no Congresso notáveis nulidades e muita gente mixuruca que foi eleita porque tornada celebridade nas redes. Na média, no entanto, essa legislatura tem sido notavelmente eficaz. Em vez de ofender os parlamentares, Guedes deveria lhes ser grato pela reforma da Previdência, pela PEC do Orçamento Paralelo e pela aprovação do auxílio emergencial.

Memória rápida: perplexo, o ministro não sabia o que fazer. No auge da alienação, propôs mandar para casa, sem salário, trabalhadores formais e pagar três mensalidades de R$ 200 aos informais. Bolsonaro já teria sido pendurado pelos pés em praça pública.

O Congresso os salvou. E o fez de novo nesta quinta.


Bruno Boghossian: Supremo escancara ação do governo contra opositores de Bolsonaro

Presidente blinda extremistas enquanto ministério monitora policiais críticos ao Planalto

Quando o STF mandou bloquear páginas de bolsonaristas que espalhavam mensagens de ódio e defendiam um golpe de Estado, em julho, o governo se apressou para socorrer os acusados. O próprio presidente acionou o tribunal e pediu que fossem reativadas as contas dos militantes –incluindo uma extremista que usa a rede para praticar crimes.

Jair Bolsonaro mobilizou a Advocacia-Geral da União em defesa daquela tropa. Nenhum dos alvos era agente público, mas o presidente cobrou a suspensão da medida e tentou blindar o grupo que fazia um trabalho sujo a seu favor.

Esse mesmo governo moveu sua máquina para cercar um conjunto de seus críticos. A produção do dossiê do Ministério da Justiça que fichou professores e 579 policiais identificados como antifascistas foi suspensa nesta quinta (20) pelo Supremo. No julgamento, os ministros do tribunal escancararam o monitoramento de opositores de Bolsonaro.

Os autores do documento diziam que as informações coletadas eram todas públicas, mas tentaram camuflar o objetivo da papelada. O tribunal mostrou que o problema era o critério de escolha dos alvos.

“Uma coisa são relatórios para verificar eventuais manifestações que possam interromper, como houve com a greve dos caminhoneiros, o abastecimento. Outra coisa é começar a planilhar, estado por estado, policiais que são lideranças contra o governo. Qual é o interesse disso?”, perguntou Alexandre de Moraes.

Luís Roberto Barroso lembrou que a exploração política de órgãos de segurança remete a regimes autoritários. Ele disse que a bisbilhotagem de adversários é “completamente incompatível com a democracia” e sugeriu que os alvos deveriam ser os fascistas e não os antifascistas.

Os integrantes do tribunal ressaltaram que o trabalho de inteligência é fundamental, mas apontaram que investigações do tipo devem ser direcionadas, por exemplo, àqueles que tramam contra as instituições. Até aqui, no entanto, o governo preferiu proteger alguns deles.


Bernardo Mello Franco: O guru dos impostores

Steve Bannon foi o principal estrategista da campanha que levou Donald Trump à Casa Branca. O ideólogo mostrou como usar as redes para disseminar ódio e desinformação. Ajudou a transformar um magnata folclórico em fenômeno eleitoral.

Trump ganhou votos com promessas mirabolantes, como a construção de um muro na fronteira entre os EUA e o México. A ideia não saiu do papel, mas ajudou Bannon a ficar mais rico. Ontem ele foi preso, acusado de desviar dinheiro de uma vaquinha virtual. Arrecadou US$ 25 milhões a pretexto de erguer a barreira contra imigrantes.

No livro “Os engenheiros do caos”, o italiano Giuliano Da Empoli conta como o propagandista transportou lições dos videogames para a política. Aoatuar na indústria de jogos eletrônicos, Bannon descobriu a existência de comunidades digitais com milhões de participantes. Seus fóruns eram terreno fértil para difundir boatos e teorias conspiratórias.

Com a ajuda de algoritmos, os ambientes foram replicados para turbinar a campanha republicana. Atraíram eleitores que se sentiam desprezados pelo sistema e excluídos do banquete da globalização. Era uma massa invisível para os políticos e os institutos de pesquisa, que apostaram na vitória de Hillary Clinton.

O triunfo do bufão alçou Bannon ao estrelato mundial. No primeiro mês de governo, ele foi parar na capa da “Time”, apresentado como “O Grande Manipulador”. Empolgado com a fama, começou a articular uma Internacional da extrema direita. Aproximou-se de populistas como o britânico Nigel Farage, o italiano Matteo Salvini e o húngaro Viktor Orbán.

O propagandista rompeu com Trump, mas continuou a ser visto como guru por uma legião de impostores. Em 2018, ele foi procurado por Eduardo Bolsonaro para dar conselhos à campanha do pai. Depois escalou o deputado como líder do seu movimento nacional-populista na América Latina.

Após a prisão de ontem, Trump tentou se distanciar do ex-aliado picareta. Em Brasília, a família presidencial preferiu o silêncio.


Eliane Cantanhêde: Bem feito!

Com prisão de Steve Bannon, lá se vai o guru internacional da direita e dos Bolsonaro

Bem feito para os idiotas que doaram mais de US$ 25 milhões para construir um muro entre os Estados Unidos e o México, ou seja, entre países, pessoas, famílias, humanidade e desumanidade. Pensavam que estavam comprando cimento e tijolos, mas estavam financiando os luxos de tipos abomináveis como Steve Bannon, ex-estrategista de campanha e de governo de Donald Trump e idolatrado pelo presidente Jair Bolsonaro, seus filhos, ministros e puxa-sacos em geral.

Num mundo tão globalizado quanto desigual, é chocante que o presidente e tantas pessoas na maior potência defendam um muro para se isolar de pessoas consideradas menos gente, menos humanas. Deveriam fazer o oposto e doar para famílias, velhos e crianças viverem com dignidade, mas, em vez de contribuir com a igualdade, os doadores incautos do muro aprofundam a desigualdade: eles lá, com sua miséria e sem horizonte; nós cá, com a nossa pujança e egoísmo. Dúvida: quem vai lavar as privadas e cuidar das crianças dos doadores? Mas essa é outra história.

Entre os que fizeram papel de bobos, pode haver americanos de diferentes origens e até imigrantes… latinos. Latinos construindo muro contra latinos. Com uma curiosidade: Donald Trump tem ojeriza a imigrantes, mas é casado com uma eslovena. Logo, a ojeriza não é ao imigrante, é ao pobre, perseguido, desvalido. Branca, bonita e capaz de se imiscuir na elite, aí pode.

Dos doadores para o mais ilustre beneficiário dessa roubalheira, Steve Bannon, que chegou aos píncaros da glória quando Trump foi alçado da condição de anticandidato ridículo e inviável à de presidente do país com mais dinheiro, armas, votos e poder do mundo. A vitória de Trump subiu à cabeça de Bannon, que decidiu expandir seus dotes políticos para o nefasto Brexit no Reino Unido, as eleições de Polônia, Hungria e países da África e… a política brasileira. Como conselheiro do presidente Jair Bolsonaro.

Fogo e Fúria – Por Dentro da Casa Branca de Trump, do jornalista Michael Wolff, editora Objetiva, traça um perfil preciso não apenas do próprio Trump, mas também dos seus principais assessores no poder e do próprio Bannon e sua expertise: manipulação. Dizem que “a esperteza, quando é demais, devora o dono”. E assim ele acabou expelido do círculo íntimo do presidente e do próprio governo. Mas não perdeu a pose.

O documentário The Great Hack, da Netflix, mostra como Bannon surfou na onda da já banida empresa Cambridge Analytica para capturar e manipular corações e almas mundo afora e instalar algo apocalíptico, a dominação do mundo pela direita. Uma extrema-direita muito particular de Steve Bannon, agora preso no seu próprio país por criar uma rede para enganar os trouxas e engordar suas contas pessoais.

Há fotos, posts e informações públicas à vontade comprovando o encanto do presidente Bolsonaro com Bannon. Dele, do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro, do chanceler trumpista Ernesto Araújo e do assessor internacional idem, Filipe Martins, com um troféu: a foto do jantar que o presidente brasileiro ofereceu em Washington, com Steve Bannon sentado à esquerda e quem à direita? Olavo de Carvalho. O guru internacional, o guru tupiniquim.

A prisão de Bannon pode abortar o projeto mais grandioso dos Bolsonaros: a criação de um “Foro de São Paulo” à direita. Nem foro de direita, nem o novo partido Aliança pelo Brasil, nem a garantia de reeleição de Trump e, agora, a toxicidade de Bannon. O que o “03” vai fazer com boné “Trump 2020”? A campanha do pai vai de vento em popa no Brasil, mas o bolsonarismo corre o risco de afundar no mundo, junto com Trump, Bannon e tipos assim.


Ricardo Noblat: Aperta o cerco ao senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um

Depósitos suspeitos em dinheiro vivo

O primogênito do presidente Jair Bolsonaro tem mais o que fazer em setembro do que atender à convocação do Ministério Público Federal do Rio para ser acareado com o empresário Paulo Marinho. Foi o que disseram seus advogados, e, como senador, ele tem de fato o direito de escolher dia e hora para depor.

Marinho disse que às vésperas da eleição presidencial de 2018, Flávio foi avisado por um delegado da Polícia Federal que seu assessor Fabrício Queiroz seria em breve um dos alvos de uma operação de combate à corrupção, e que o fato poderia prejudicar a candidatura do seu pai, líder das pesquisas.

Foi o próprio Flávio quem teria revelado isso à Marinho, na casa do empresário. Queiroz foi demitido no dia seguinte, bem como uma de suas filhas, funcionária do gabinete de Bolsonaro, o pai, em Brasília. Flávio admite a reunião com Marinho, mas nega o teor da conversa. Um dos dois, portanto, mente. Daí a acareação.

Não seria difícil descobrir quem fala a verdade. Segundo Marinho, ao saber que o delegado tinha um comunicado importante a lhe fazer, Flávio mandou três emissários ao seu encontro. A quebra do sigilo telefônico dos três indicaria se eles trocaram informações a respeito, mas um juiz proibiu que isso fosse feito.

Mesmo assim avançam as investigações do Ministério Público Federal e aperta o cerco em torno do senador. Extratos bancários da loja de chocolates de Flávio no Rio mostram depósitos em dinheiro vivo sucessivos, com o mesmo valor, entre março de 2015 e dezembro de 2018. O Jornal Nacional cruzou os dados.

Chama atenção a quantidade de depósitos em dinheiro vivo na conta da franquia feitos de maneira fracionada e muitos com valores redondos. Foram 63 depósitos de R$ 1,5 mil em espécie, 63 de R$ 2 mil e 74 de R$ 3 mil. Dos depósitos no valor de R$ 3 mil, 12 foram na boca do caixa e 62 no terminal de autoatendimento.


Merval Pereira: Outros recados

O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou de maneira expressiva, por 9 votos a 1, sua posição em defesa do Estado de Direito ao proibir o ministério da Justiça, com evidente efeito para todos os demais órgãos do governo Bolsonaro, de fazer dossiês “sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo”, seguindo o voto da relatora, ministra Carmem Lucia.

Mas, ao mesmo tempo, o julgamento serviu para demonstrar que continuamos nos guiando por regras de compadrio e leniência, esta por parte do Procurador-Geral Augusto Aras. Os ministros que criticaram tão duramente os dossiês não aceitaram investigar o ministro da Justiça e Segurança Pública André Mendonça ´(foto) por ter mandado fazê-lo, aceitando a cândida explicação de que ele só teria começado a ser feito no dia 24 de abril, por coincidência o dia em que o ministro anterior, Sérgio Moro, pediu demissão do cargo.

Como é humanamente impossível que um dossiê iniciado num dia determinado estivesse, meses depois, tão recheado de informações, parece claro que essa explicação merece pelo menos ser investigada. Se o dossiê é obra do ex-ministro Sergio Moro, desafeto do presidente Bolsonaro, por que André Mendonça não denunciou sua existência assim que tomou conhecimento dele pela imprensa?

Se não foi ele o autor da ordem, por que não suspendeu o dossiê assim que a imprensa denunciou sua existência? Por que, considerando grave a existência de tal dossiê, ao demitir o servidor responsável Secretaria de Operações Internas (Seopi) não renegou publicamente a prática de espionagem? Por que passou dias negando sua existência, e até mesmo se recusou a entregá-lo à ministra Carmem Lucia, alegando cinicamente que ela não havia pedido, só o fazendo depois que o Congresso o pressionou?

Só existe uma explicação para o que aconteceu: no interregno entre a saída de Moro e a chegada de Andre Mendonça, alguém iniciou o dossiê e o foi alimentando aproveitando-se do vácuo de poder. Se aconteceu assim, e Mendonça explicou aos ministros do STF, nós os cidadãos, deveríamos ter sido avisados.

O Supremo, que deu duros recados ao presidente Bolsonaro em seus votos a favor dos direitos do cidadão, mandou também outro, talvez tão importante quanto para nosso futuro: pode nomear André Mendonça para a próxima vaga do ministro Celso de Mello que ele será recebido muito bem.

Quem resumiu o pensamento da Casa foi o presidente de saída Dias Toffoli em seu voto contra o dossiê elaborado no Ministério da Justiça sobre antifascistas: “Como presidente do STF, registro a atuação de sua excelência: (André Mendonça, ministro da Justiça) atuou da maneira mais correta, deu toda a transparência a esse STF”. Toffoli afirmou sobre o dossiê que “Governos anteriores tinham, ministros da Justiça anteriores tinham”, sem, no entanto, dar notícia de onde tirou essa informação.

O único que fez uma acusação sem insinuações foi o ministro Gilmar Mendes, que afirmou, atribuindo indiretamente o dossiê a Sérgio Moro: “A produção desses relatórios tem ocorrido durante grande parte do tempo de instalação do atual governo, não se tratando apenas de atos especificamente praticados na atual gestão da pasta da Justiça”.

As atuações do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, e do advogado-geral da União, José Levi do Amaral, foram na mesma linha, a de negar a existência de tal dossiê que acabou sendo muito real para os ministros do Supremo. A alegação foi de que não havia nenhuma investigação criminal em curso, mas apenas informações públicas coletadas para prevenção da segurança governamental.

O Procurador-Geral chegou a argumentar que as informações coletadas no dossiê não prejudicaram ninguém, como se isso fosse o bastante para inocentar o governo Bolsonaro. Quanto às informações serem públicas, mas organizadas em fichários com os nomes dos cidadãos, significa não apenas que elas estavam sendo seguidas, como que os serviços de informação continuam usando a imprensa como fonte primária. Os arquivos do SNI também tinham recortes sobre as pessoas investigadas, e nem por isso elas deixaram de sofrer perseguições, prisões e torturas.

Como advertiu a ministra Carmem Lucia “(…) Não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para escolher informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade.”


Maria Cristina Fernandes: Auxílios contaminam disputa municipal

Prefeitos e vereadores aprovam versões semelhantes à ajuda federal e podem fazer desta eleição a mais favorável aos detentores de mandato desde a redemocratização

O bônus que o auxílio emergencial trouxe para a popularidade do presidente da República inspirou prefeitos e vereadores que disputarão as eleições de novembro a criar programas parecidos ou incrementar aqueles já existentes nos municípios. A implantação do benefício é apenas mais um de conjunto de fatores que pode fazer desta eleição a disputa mais favorável, desde a redemocratização, para aqueles que já detêm mandato no Executivo ou Legislativo.

Entre os municípios que adotaram a medida contam-se tanto aqueles que criaram o benefício por lei aprovada nas Câmaras de Vereadores com duração prevista para a pandemia, como Altamira (PA), Niterói (RJ), Serra (ES) e São Cristóvão (SE), quanto outros que aumentaram a base de beneficiários de programas já existentes, como Campinas (SP). Contam-se também aqueles com benefícios destinados a categorias profissionais específicas, como em São Paulo (SP) e Campina Grande (PB).

A criação do benefício, porém, está longe de ser pacífica nos municípios. Em Serra, por exemplo, município da Região Metropolitana de Vitória, cuja população de mais de meio milhão de habitantes supera a da capital capixaba, colocou prefeitura e Câmara em lados opostos.

Os vereadores aprovaram o benefício municipal de R$ 500 por três meses para trabalhadores informais com renda de até três salários mínimos, com previsão para atingir 42 mil famílias. O prefeito Audifax Barcelos (Rede), que ruma para concluir seu segundo mandato, barrou e os vereadores derrubaram o veto.

A prefeitura alegou que a Câmara não pode criar despesas - esta onerará os cofres municipais em R$ 63 milhões - e os vereadores rebateram com o argumento de que a emenda constitucional que estabeleceu o estado de calamidade pública no país abriga sua vigência.

O benefício causa conflitos até mesmo em municípios em que prefeitos e vereadores disputam a atenção dos eleitores, como Altamira. Domingos Juvenil (MDB) é candidato à reeleição na cidade que fica a 816 quilômetros de Belém, tem 115 mil habitantes e apenas nove leitos de UTI. Enviou para a Câmara projeto que contava, para sua viabilidade, com recursos das emendas impositivas dos vereadores para somar R$ 2 milhões. Previa-se a destinação de R$ 900, em três parcelas, para o pagamento a cinco mil pessoas.

Definiram-se como elegíveis para o recebimento feirantes, carroceiros, catadores, ambulantes, taxistas e mototaxistas, motoristas de aplicativos e pequenos produtores rurais. No decreto que regulamentou a distribuição do benefício, porém, a prefeitura determinou que apenas aqueles que não tivessem sido agraciados com o auxílio emergencial federal poderiam receber o benefício municipal

A regulamentação gerou revolta entre moradores e troca de acusações entre vereadores e prefeito. Como o benefício foi regulamentado apenas em meados de julho, a grande parte dos elegíveis tinha a expectativa de que o programa pudesse esticar o período em que receberiam ajuda, iniciado em abril com a primeira parcela do programa federal. Reportagem da TV Vale do Xingu, afiliada do SBT, deu conta de que se não for possível acumular, apenas 20 mototaxistas receberão o auxílio municipal.

Dois municípios que aprovaram o benefício para catadores de materiais recicláveis, São Paulo e Campina Grande adotaram critérios distintos. No mesmo valor de R$ 600 e pela mesma duração de três meses, o benefício poderá ser acumulado com o auxílio federal na capital paulista, mas não na cidade paraibana.

Em grande parte dos municípios, os projetos foram aprovados em julho, com validade até o período que antecede as eleições. Em Niterói, porém, tramitação e aprovação do benefício foram concomitantes às do auxílio federal, com a conclusão de ambos no fim de março.

Além do benefício de R$ 500 para famílias de baixa renda ao longo de três meses, ao custo de R$ 54 milhões, a Prefeitura de Niterói também enviou para a Câmara um crédito especial para pequenas empresas e cooperativas, de até R$ 250 mil, além de profissionais liberais, de até R$ 25 mil.

O programa, com custo de R$ 35 milhões para os cofres municipais, cobrirá os juros dos empréstimos realizados durante a pandemia. O terceiro projeto enviado e aprovado pela Câmara Municipal foi o financiamento do salário de funcionários para empresas que se comprometeram a não demitir. Os programas concorrem com o do governo federal no escopo e na vigência. O prefeito, Rodrigo Neves (PDT), está no segundo mandato.

As entidades que agregam gestores municipais, como a Frente Nacional de Prefeitos, não têm levantamentos sobre o número de cidades que adotaram programas do gênero. Seu presidente, Jonas Donizette (PSB), prefeito de Campinas, diz que grande parte dos municípios adotou alguma ação de complementariedade de renda, ainda que a maior parte o tenha feito de maneira mais focalizada que o governo federal.

Em Campinas, por exemplo, cidade do pioneiro Bolsa Escola, programa anterior ao Bolsa Família, a prefeitura ampliou a base de beneficiários de um auxílio alimentação (R$ 94) de seis mil para 26 mil pessoas e facultou seu uso também para a compra de produtos de higiene.

São Cristóvão, na Região Metropolitana de Aracaju, também optou por um programa focalizado. O projeto aprovado pela Câmara Municipal em maio contemplou servidores que tiveram seus contratos suspensos na pandemia, como professores, motoristas e merendeiros. A prefeitura se comprometeu a pagar 30% do salário base desses profissionais por três meses e recontratá-los com a volta das atividades.

A adoção de programas de transferência de renda por prefeituras alinhadas aos partidos da base do presidente Jair Bolsonaro foi facilitada pelo favorecimento nos repasses. Como mostrou “O Globo” (17/8), a média de verba por habitante liberada para prefeitos de centro ou direita até julho foi 56% maior do que aquela enviada a municípios comandados por legendas de oposição.

O pagamento desses benefícios, ainda que muito distintos em valor e amplitude, complementará uma gama de outros incentivos para a vantagem do detentor de mandato. Fica mais difícil distinguir a distribuição de cesta básica para famílias afetadas para a pandemia daquela destinada à arregimentação do voto. A pandemia dificulta, por exemplo, a campanha de quem pretende se fazer conhecido porque inibe reuniões e o corpo a corpo tradicional das eleições municipais. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Lara Mesquita diz que a imprevisibilidade da pandemia sobre o resultado das eleições é comparável àquela que sobreveio à facada sofrida pelo presidente Jair Bolsonaro na disputa presidencial.

À força redobrada do situacionismo, num período em que a máquina pública ganhou peso no giro da economia, somem-se as dificuldades da campanha virtual para aqueles que disputam pela primeira vez. Por mais que a internet barateie a divulgação das campanhas, muitos segmentos de mais baixa renda ainda têm limitação de acesso.

São pessoas que não conseguem baixar o aplicativo da Caixa Econômica Federal para fazer o cadastro do auxílio emergencial ou para que os filhos acompanhem aulas A distância, o que dirá para seguir campanhas eleitorais, diz Lara. Além disso, as novas normas eleitorais também restringiram o alcance tanto do WhatsApp quanto do Facebook nas campanhas.

Essas dificuldades podem vir a colocar em xeque a previsão, feita por muitos analistas, de que a campanha de 2020 seria recordista em número de candidatos. A previsão se baseia nas mudanças já aprovadas para a eleição de 2022, o fim das coligações nas eleições proporcionais e a cláusula de desempenho. Ambas as mudanças pairam como uma guilhotina não apenas sobre a existência de pequenos partidos mas também sobre os planos de expansão das legendas médias.

Ex-deputado federal, articulador, nos anos 1980 da Frente Liberal que elegeu Tancredo Neves e criou o PFL, além de fundador do PSD, Saulo Queiroz conhece como poucos as armadilhas do mercado eleitoral. E diz que os partidos terão que fortalecer seus quadros municipais porque atingir o coeficiente eleitoral numa disputa de uma eleição sem coligações, como a de 2022, vai ser muito mais difícil.

A disposição para disputar mesmo com chance nula de eleição é tarefa de militantes locais dos partidos. É a formação dessa militância que está em jogo nessas eleições. Vem daí a expectativa de que aumente o número de candidaturas. A Proposta de Emenda Constitucional que adiou as eleições municipais para novembro, estabeleceu 26 de setembro como data limite do registro de candidatos na Justiça Eleitoral.

Incentivos, portanto, para uma campanha com número recorde de candidatos não faltam. Só que ninguém contava com a pandemia. O espraiamento da doença, especialmente em comunidades mais pobres, fez surgir novas lideranças que atuam na mobilização de moradores para a proteção de suas famílias, na arregimentação de doações e na pressão sobre o poder público.

Por mais que o coronavírus tenha feito surgir uma nova geração de militantes locais empenhados na defesa de suas comunidades, o desestímulo pode ser ainda maior - a começar do reforço inédito, para aqueles que são candidatos à reeleição, dos pacotes de transferência de renda.

É uma sinuca tanto para os vereadores, que aprovaram a maioria desses pacotes, mas que não recebem crédito por eles, como também para aqueles que querem entrar no jogo e não são identificados como aptos a batalhar pela manutenção, cada vez mais em risco, dos benefícios.


Bolívar Lamounier: Os guizos falsos da alegria

Toda sociedade é continuamente corroída por conflitos individuais e coletivos. É por isso que o Estado, tendo como uma de suas missões fundamentais a manutenção da ordem, não se pode apoiar exclusivamente na força. Entre a estrutura social e o poder público sempre há uma “ponte”, quero dizer, um conjunto de ideias e símbolos mediante o qual a sociedade se vê e diz como quer ser num futuro não muito distante.

O conjunto de ideias a que acima me referi é o que os discípulos de Max Weber designam como “princípios de legitimidade” e os marxistas, como “ideologia”. A expressão “projeto nacional”, muito difundida no Brasil, sugere algo intelectualmente “trabalhado”, subestimando a contribuição anônima do povo para a formação de tais ideias – daí me agradar mais a expressão “filosofia pública”, cunhada pelo jornalista americano Walter Lippmann.

Neste momento em que o Brasil começa a se livrar de uma tralha ideológica acumulada ao longo de três décadas, penso ser útil pôr em relevo algumas etapas e aspectos de nossa “filosofia pública”, remontando aos anos 40.

Valendo-se de contribuições de vários escritores e artistas (que não necessariamente a apoiavam, ça va sans dire), a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) estimulou a difusão de uma imagem idílica de um país pacífico, que não fazia a menor questão de ser governado democraticamente. O que assegurava nosso aconchego tropical não era a igualdade de oportunidades, conceito próprio do liberalismo vigente nos países capitalistas avançados, sempre sujeitos a conflitos “artificiais”, mas a própria estrutura de oportunidades, notadamente nosso enorme estoque de terras, ou seja, o fato de que entre nós, “em se plantando, tudo dá”.

“Corrigindo” a figura do “homem cordial” proposta por Sérgio Buarque de Holanda, o poeta Cassiano Ricardo, diretor da Folha da Manhã, órgão oficial do regime estado-novista, escreveu que não se tratava propriamente de cordialidade, mas de “uma bondade por temor de Deus, por ausência de atritos econômicos, por mestiçamento conciliador de arestas psicológicas e raciais, por índole herdada do português, pela soma de tendências contrárias mas coincidentes na direção de certos objetivos, por euforia espacial, por sentimento de hospitalidade provindo do aborígine, por nenhuma filosofia sobre o destino”.

Nos anos 50, uma nova “filosofia pública” se delineia. Com a industrialização e a urbanização, nossa sociedade tornava-se conflituosa; as “arestas” começavam a machucar, mas não havia motivo para desesperança. Bem ao contrário, as dificuldades aumentavam porque havíamos de fato embarcado no milagroso trem do desenvolvimento econômico. Luís Costa Pinto, um dos principais sociólogos da época, escreveu: “O desenvolvimento cria problemas que só mais desenvolvimento pode resolver”. E não há que esquecer: vivíamos a democracia sorridente de Juscelino Kubitschek e de um sentimento nacional que se adensava graças à quantidade de talento que despontava na música, nas artes, no futebol…

Interrompida pela crise de 1961-1964, a democracia sorridente desembocou no golpe de 1964. Em seus estágios iniciais, o regime militar tratou de se legitimar invocando o combate “ao comunismo e à corrupção”, mas já a partir de 1967 a “filosofia” voltou a ser desenvolvimentista. A legitimidade do poder e a integração da sociedade passaram a depender estreitamente do crescimento econômico e de um nacionalismo vagamente redefinido como aspiração ao status de potência (o “Brasil Grande”). Como filosofia pública, era pouco, até porque o poder militar passou a ser questionado por violações dos direitos humanos e, de um modo geral, por seu caráter autoritário.

Uma terceira etapa se configura nos anos 80. A partir desse ponto, que ganhou corpo na Constituinte de 1987-1988, a nota dominante passou a ser redistributiva. Urgia reduzir a pobreza e as desigualdades. A nova imagem era a de uma sociedade profundamente desigual e, por isso, tensa e crescentemente violenta. Era, pois, imperativo promover uma enérgica ampliação de direitos, adequadamente lastreados em garantias constitucionais e judiciais.

O problema foi, por um lado, que as demandas sociais subjacentes na sociedade haviam se intensificado enormemente e passado a contar com uma elite política, cultural, clerical, etc. capaz de as vocalizar com veemência; e, por outro, que, ao mesmo tempo, o precedente modelo de crescimento econômico, iniciado nos anos 50, entrara em colapso. Desde a virada dos anos 80 para os anos 90, o País vivia a crise da dívida externa e um quadro interno de estagflação e crescente desemprego.

Na primeira metade dos anos 90, o Plano Real estabilizou a economia, interrompendo a descomunal perversidade das inflações altas que se embutira no modelo de crescimento econômico desde o início dos anos 60. Abria-se, assim, a possibilidade do efetivo abandono de tal modelo, mantendo a ênfase redistributiva insculpida na Constituição de 1988, sem dúvida, mas em bases modernas e sustentáveis, devidamente ancorada em reformas estruturais.

Desgraçadamente, o que os treze anos e meio de Lula e Dilma Rousseff nos brindaram foi justamente com o oposto. A busca irrealista do crescimento acelerado resultou numa recessão sem precedentes. A redução da pobreza (mais de 50% da sociedade se alçara à classe média, lembram-se) hoje colide com o trágico quadro de 11 milhões de desempregados. A Petrobrás de joelhos e uma onda de corrupção quiçá sem paralelo no planeta vieram de lambuja. Como o morango da torta.

*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor do Augurium Consultoria, membro da Academia Paulista de Letras, é autor do livro 'Tribunos, Profetas e Sacerdotes: Intelectuais e Ideologias no Século 20' (Companhia das Letras)


Sergio Fausto: A aposta de Bolsonaro

Para reeleição, presidente conecta-se aos pobres pela via do conservadorismo de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia

Seis meses e 100 mil mortos depois do início da pandemia, Bolsonaro segue vivo e competitivo para a disputa presidencial de 2022. Continua a manter entre 30% e 35% de apoio nas pesquisas de opinião. Mas sua base social está se deslocando: ao longo dos últimos meses, o presidente perdeu terreno nas faixas de renda e educação mais altas e ganhou espaço em setores mais pobres da população, graças ao aumento da transferência direta de renda para esses setores.

Também sua base política se alterou, com redução do peso relativo dos fiéis de primeira hora e ampliação da presença de parlamentares ligados à política tradicional. São movimentos incipientes, que mal comparando lembram os que Lula levou a cabo com maestria para sair do córner político na crise do mensalão e reeleger-se com folga dois anos depois. Eles coincidem com um recuo na escalada de confrontação contra o STF, governadores e prefeitos em que se engajou Bolsonaro a partir do início da pandemia.

Estaria em curso um processo de ajustamento do atual governo a padrões mais normais, no sentido de frequentes, na história brasileira? Não creio.

Longe de ser uma decisão estratégica, o recuo na escalada de confrontação é tático e circunstancial, provocado pelo medo decorrente de investigações que apontam para o núcleo de articulação da rede bolsonarista, no qual figuram com destaque os seus filhos. A interação entre os processos investigatórios e a dinâmica política é um jogo de vários lances, apenas iniciado. Um jogo no qual Bolsonaro jogará pesado, pois sabe o que está em jogo.

Tampouco o deslocamento da base social de apoio ao presidente é fruto de uma decisão estratégica. Foi do Congresso a proposta de triplicar o valor do programa de auxílio emergencial proposto pelo Executivo, contra a vontade do Ministério da Economia. Bolsonaro intuiu a oportunidade e agarrou-se a ela. Sem o bote salva-vidas do auxílio emergencial, sua popularidade se situaria hoje abaixo da linha d’água dos “mágicos” 30%.

Em que pese ter sido ampliada, a base parlamentar de Bolsonaro é volátil. Quando o bote salva-vidas do auxílio emergência for desinflado, pela impossibilidade fiscal de manter a transferência de renda nos níveis atuais, os cálculos políticos podem ser refeitos. Será conflituoso, dentro e fora do governo, o embate em torno do nível e da composição do gasto “sustentável” ao fim do estado de calamidade pública.

Sabe-se que mediar conflitos não é uma especialidade do presidente. Nem dentro do sistema político, nem na sociedade, muito menos quando se somarem essas duas fontes de pressão, como é previsível quando passarmos da emergência econômica e sanitária à fase crônica da crise e da pandemia, com mais pobreza e mais desemprego do que até aqui se viu e sem estado de calamidade pública para poder gastar sem limite.

Antecipando dificuldades políticas, Bolsonaro se prepara. O recado dado pelo presidente a seus ministros na famigerada reunião de 22 de abril - “o meu sistema pessoal de informação funciona, mas o oficial desinforma” - foi entendido. Decreto do fim de julho oficializou a reestruturação da Agência Brasileira de Inteligência para dotá-la das competências destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”.

Há razões para ver nas mudanças na Abin a preparação do governo para possíveis cenários de aguçamento do conflito social e político. O dossiê preparado pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 pessoas, a maioria servidores públicos, conhecidos por suas posições contrárias ao atual governo, é um preocupante sinal antecedente.

Em paralelo, assiste-se à crescente militarização do governo. Com a nomeação do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde, a presença de militares no ministério alcançou a marca dos dois dígitos. Segundo levantamento do Tribunal de Contas, o número de integrantes das Forças Armadas com cargos no governo mais do que dobrou desde 2018.

Em que pese o comportamento exemplar dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, tornou-se difícil separar com clareza o governo das Forças Armadas. O presidente tudo faz para identificar a sua administração com os militares. De um lado, para se aproveitar do prestígio das Forças Armadas. De outro, para manipular o medo de uma intervenção militar na vida política.

Em meio a uma pandemia que no Brasil não parece ter fim e sem recuperação econômica importante à vista, temos um governo sem projeto, chefiado por um presidente que se divide entre dois objetivos: proteger a si e aos seus e viabilizar sua reeleição. A chamada “agenda Guedes” feneceu antes de ter florido. A sétima cavalaria dos investimentos estrangeiros não dá sinais de que virá salvar o país da recessão ou do baixo crescimento.

Para navegar contra vento e maré, agarrado ao mastro oscilante do “centrão” e ao que sobrar do bote salva-vidas do auxílio emergencial, o capitão lança ao mar as bandeiras da luta anticorrupção e da antipolítica (já bem esfarrapadas), além da “agenda Guedes”. A identificação com os militares terá custos crescentes para a instituição das Forças Armadas e rendimentos decrescentes para o presidente, pois aquelas não escaparão do desgaste de se misturar ao governo.

Contudo, Bolsonaro conta ainda com trunfos, além da vantagem de ser o incumbente. Das três bandeiras que o elegeram, a “proteção dos valores da família” por ora continua firme em suas mãos. Se o liberalismo econômico com verniz acadêmico perde valor, um livre-mercadismo mais primitivo e rudimentar se apresenta como alternativa. Bolsonaro o tem cultivado nas críticas às restrições sanitárias, o que encontra apoio em uma sociedade na qual trabalhar em casa é privilégio de uma minoria e o respeito às regras coletivas em nome do bem comum está longe de ser generalizado.

O terceiro trunfo é a pobreza, que vem aumentando e aumentará ainda mais, ampliando a potência eleitoral do que um jornalista sagaz, Bernardo Mello Franco, apelidou de “Bolsa Capitão”. Seu maior trunfo, no entanto, é ter até aqui jogado sozinho, sem adversário político à altura.

Se ainda é cedo para fazer prognósticos certeiros para 2022, já se pode ver a aposta que Bolsonaro fará em busca da reeleição: conexão direta com as massas pobres e microempreendedores invisíveis pela via do conservadorismo moral de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia.

Em meio a muita incerteza, uma coisa me parece certa: Bolsonaro terá dificuldades para unificar o campo conservador, pelo enfraquecimento do PT, de um lado, e pelo surgimento de alternativas no campo da centro-direita, de outro. Ao degolar Luiz Henrique Mandetta e peitar Sergio Moro, o capitão pode ter cometido seu maior erro político.

*Sergio Fausto é cientista político