Day: agosto 20, 2020
Eliane Brum: O “gado humano” que Bolsonaro leva ao matadouro
No país em que a maioria da população é reduzida à sobrevivência, quem são os burros e os mal-informados?
O Brasil superou as 100.000 mortes por covid-19 e, na velocidade atual em torno de 1.000 mortos por dia, poderá chegar aos 200.000 ainda em outubro. E então a Folha de S.Paulo estampa na manchete de 15 de agosto a conclusão da pesquisa do Datafolha: “para 47% dos brasileiros, Bolsonaro não tem culpa pelas 100 mil mortes por covid-19”. Nenhuma culpa. O Brasil tem 21 novos casos/dia por 100.000 habitantes, quando a média global é 3. Mesmo vilões como os Estados Unidos de Donald Trump têm 17 novos casos/dia por 100.000 e a Índia de Narendra Modi, 5. Mesmo com as evidências de negligência intencional e deliberada na relação com a pandemia, que já motivou três petições de crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, a mesma pesquisa já tinha mostrado que Bolsonaro alcançou sua melhor aprovação desde o início do mandato: 37% de ótimo ou bom. A melhora é puxada especialmente pelos mais pobres e pelo Nordeste do Brasil, região onde ele teve menos votos em 2018. A rejeição caiu enquanto o número de mortos explodiu. Por que quase metade dos brasileiros se comportaria como “gado humano”, como tem sido chamada, e aceitaria Bolsonaro conduzi-la alegremente para o matadouro?
A conclusão mais fácil, amplamente difundida nas redes sociais, é a de que as pessoas são burras. E também mal-informadas. O auxílio emergencial de 600 reais por mês para os mais pobres devido à pandemia teria feito com que Bolsonaro fosse visto momentaneamente como o capitão dos pobres. A desinformação seria por conta de que o Governo federal foi obrigado pelo Congresso a pagar 600 reais. Bolsonaro não queria passar dos 200. O campo da esquerda, que quase dois anos depois da eleição ainda não foi capaz de fazer oposição efetiva a Bolsonaro, apavora-se porque o Governo emite sinais de que o Bolsa Família do lulismo pode virar o Renda Brasil do bolsonarismo. E, se isso acontecer, Bolsonaro tem mais chances de se reeleger em 2022.
O que é ser burro e o que é ser inteligente, porém, não é uma definição fácil, muito menos simples. Grande parte da população brasileira vive apenas o dia de hoje. Para a maioria, o mês seguinte já é longe demais. A ideia de futuro é considerada um privilégio dos mais ricos, e este é um dado muito importante, porque emancipação política só é possível com pessoas que têm acesso à ideia de futuro. Quando o futuro se torna um privilégio dos mais ricos, e não um direito assegurado a todos, a maioria é condenada ao presente. E o presente é movido por comer ou não comer, ter um lugar para dormir ou ser despejado, manter-se respirando.
A realidade é que os 600 reais do auxílio emergencial garantiram uma renda inédita a pelo menos 65 milhões de brasileiros e suas famílias. E, quando o benefício acabar, o que pode acontecer em seguida, voltarão a ter que se virar com muito menos, num país com um número ainda maior de desempregados e com a recessão se ampliando. Segundo artigo de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretor-geral e diretor de Pesquisas do Datafolha, “dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva [de Bolsonaro], pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo governo”.
Vale a pena ressaltar que o que se chama de classe média no Brasil, assim como aqueles que se entendem como classe média, nada têm de média. Em São Paulo, por exemplo, segundo a calculadora preparada pelo Nexo, se você ganha 12.000 reais por mês já faz parte do seletíssimo clube do 1% mais rico do Brasil. A tabela tem suas limitações, mas cada um pode calcular sua renda em comparação com o restante da população e ter uma ideia muito aproximada da situação.
O Brasil tem a segunda pior concentração de renda do mundo, conforme o Relatório de Desenvolvimento da ONU: o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país. Só perde por muito pouco para o Catar, onde a concentração de renda chega a 29%. Este é o tamanho do abismo da desigualdade brasileira. Vale a pena lembrar ainda que os bilionários não são 1%, como se costuma dizer no senso comum —e sim 0,00003% da população global. Mais especificamente 2.153 pessoas como eu e você, que concentram 60% mais riqueza material que quase 7,8 bilhões de pessoas da mesma espécie.
O mundo tem uma pessoa bilionária para cada 3,7 milhões de outras. No Brasil, segundo o último ranking da Forbes, há 45 pessoas bilionárias. Quarenta e cinco. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira, cerca de 104 milhões de pessoas, vivia em 2018 com 413 reais de renda mensal. Não há futuro para a maioria com essa desigualdade monstruosa. Só um presente vergonhosamente precário. E o presente vergonhosamente precário é, neste momento, ainda absurdamente precário, mas menos precário com o auxílio emergencial de 600 reais —composto por recursos públicos, mas interpretado como uma benemerência de Bolsonaro.
A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (e, antes dele, em níveis consideravelmente menores, nos governos do PSDB de FHC), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. Isso, é necessário assinalar, não é pouca coisa. A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.
Para diminuir a desigualdade é preciso fazer mudanças estruturais capazes de reduzir os privilégios da minoria mais rica e taxar pesadamente as grandes fortunas. Só assim se garante uma redistribuição mais igualitária da riqueza existente. O Governo mais próximo de um ideário social de esquerda no Brasil, o de Lula, era um governo de conciliação. Lula e principalmente Dilma Rousseff sacrificaram a Amazônia e o Cerrado, assim como bandeiras históricas como a da reforma agrária, para garantir a massiva exportação de matérias-primas durante um momento de crescimento da economia global, especialmente da China. Era a fórmula —limitada, como se viu— para os pobres ficarem menos pobres e, ao mesmo tempo, os ricos mais ricos.
Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico —alimentação, transporte, saúde e educação— e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum. Se o mundo é hoje extremamente desigual, o Brasil, com seu tamanho continental e 210 milhões de habitantes, é o exemplo mais eloquente da violência representada pelo sequestro do futuro da maioria da população, reduzida ao esgotamento cotidiano dos corpos para manter-se respirando.
Diante das condições de vida absolutamente precárias da maioria dos brasileiros e do súbito aumento da renda com o auxílio emergencial, o surpreendente não é que a aprovação de Bolsonaro suba durante a pandemia. O surpreendente é que isso seja uma surpresa. Se a reação previsível e lógica dos mais pobres é uma surpresa para parte da população, especialmente no campo da esquerda, quem então são os burros e os mal-informados sobre o que se passa no país?
O boicote intencional de Bolsonaro ao enfrentamento da covid-19 pode ser comprovado por atos documentados no Diário Oficial da União, além de uma comunicação feita deliberadamente para desinformar a população. As pesquisas também provam que são os mais pobres, e a maioria dos mais pobres no Brasil é negra, que morrem mais de covid-19. No Campo Limpo, um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos de São Paulo, a letalidade da covid-19 por 100.000 habitantes é altíssima —52%. Já nos bairros mais ricos, com IDH mais alto, como Pinheiros, a taxa é de 5%. Na maior cidade do Brasil, há 10 vezes mais letalidade por covid-19 nos bairros mais pobres quando comparados aos mais ricos.
Como então é possível que a melhoria nos índices de aprovação do antipresidente seja justamente puxada pelos mais pobres? A resposta também pode ser buscada na precarização da vida. O que chamamos de povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que só vivem porque teimam. A história do Brasil é uma trajetória de espoliação de matérias-primas extraídas da natureza e, no caso da maioria da população, de corpos escravizados e depois brutalmente explorados. O que se transmite de pai e mãe para filhos e filhas é que a sobrevivência não é garantida, ela é arrancada. A morte é normalizada.
A história das famílias mais pobres é uma história em que os filhos mortos são contados junto com os vivos. As mulheres sabem que parte da sua prole pode morrer pelas condições precárias da vida, pela falta de acesso à saúde, à água, a saneamento básico e também a alimentos. Também sabem que morrer por violência é uma probabilidade, especialmente se seu filho for negro, seja pelas balas da polícia, da milícia ou por assalto. Há periferias do Brasil em que você pode bater aleatoriamente em uma fileira de portas e todos terão uma morte ou mais para contar, por violência e/ou por falta de condições de saúde.
A tragédia crônica do Brasil é ter um povo para quem a morte por doenças evitáveis e por violência é normalizada porque foram colocados na condição de matáveis e de morríveis desde a formação do país. Não é um povo, é uma massa de desesperados extremamente criativos que vem resistindo há séculos contra todas as formas de extermínio.
O que quero explicitar é que os brasileiros mais pobres vivem sujeitados a aceitar a perda dos que amam. Esta é uma das faces mais horrendas da desigualdade, mas o horror desta face nunca a impediu de ser aceita como normal, em especial pelos mais ricos, inclusive os que se consideram classe média. Neste sentido, a covid-19 é mais uma forma de morte. Se as outras mortes não são evitadas, por que esperar que um governante evitasse esta?
Para suportar o horror de estar na condição dos que podem morrer por aquilo que não mata os brancos e os mais ricos —ou pelo menos que mata muito menos os brancos e os mais ricos—, uma parcela significativa dos brasileiros atribui seu destino à vontade divina. Pelo menos, neste caso, podem rezar, pagar o dízimo para o pastor, tentar reverter o destino ou, pelo menos, encontrar um sentido para suas tantas perdas numa vontade superior. Numa realidade que parece imutável, o que não se pode entender, como a vontade de um deus, pode ser mais suportável do que a explicação de que a sua vida pouco importa para quem tem seu destino terreno nas mãos.
Assim, a covid-19, tanto quanto as outras doenças, também é considerada culpa de ninguém. Nem mesmo de Bolsonaro, apesar dos seus vômitos públicos de irresponsabilidade. O “E daí?” de Bolsonaro é apenas um degrau a mais, por ter sido dito em voz alta, para o grande “e daí?” histórico, permanente e persistente vivido pelos mais pobres ao longo de gerações e de Governos. Para alguns fiéis de determinadas igrejas neopentecostais, pragas do gênero já estão inclusive previstas na Bíblia. As doenças são em geral uma alegoria com muita ressonância numa população cada vez mais evangélica. A pergunta do Datafolha pode nem fazer muito sentido para uma parcela da população: como assim um presidente vai ter culpa por uma doença? Doença acontece, é fatalidade, quando não enviada por Deus para castigar a imoralidade reinante.
Isso é ignorância? Pode ser. Mas é principalmente sobrevivência, inclusive psicológica. Se você aceitou que a perda e a morte fazem parte do seu lugar no mundo, como fizeram parte antes do destino de seus pais e avós, o que importa é garantir a comida, o gás, o puxadinho para quem sobrar. Garantir os 600 reais. E quando os 600 reais acabarem? O amanhã é longe. Não há futuro para quem foi reduzido ao hoje. Se a maior parte da população está na condição de matável e de morrível —e isso nunca mudou, nem nos melhores anos do governo Lula—, qual é a surpresa no fato de que os 100.000 mortos não impactem negativamente na aprovação de Bolsonaro e que os 600 reais impactem positivamente? De novo, quem são os burros e os mal-informados?
Neste momento, há um debate sobre as variáveis. Bolsonaro cada vez mais se descola da agenda neoliberal de Paulo Guedes, com a qual de fato nunca se importou, era apenas seu passaporte para ter o apoio dos representantes do que chamam de “mercado” na eleição. Rifou meses antes Sergio Moro e a classe média que ele representava, isso quando o próprio Moro já tinha rifado antes sua reputação e levado para o esgoto um pedaço da Operação Lava Jato. A Bolsonaro interessa o poder e a proteção da sua família. E se o poder é o único princípio, nenhum problema em se unir ao Centrão no momento em que se vê acuado pela aproximação cada vez maior das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, as rachadinhas no gabinete do filho zeroum e o envolvimento com as milícias do Rio. Há chances consideráveis de que em algum momento próximo Bolsonaro possa mesmo rifar Guedes e se tornar o novo pai dos pobres, fazendo a migração do auxílio emergencial para o Renda Brasil, mirando seus dedos de arminha na reeleição de 2022.
E a oposição? Bem, é preciso entender que quem fez a oposição mais efetiva à extrema direita de Bolsonaro foi a direita. O presidente do Câmara, Rodrigo Maia (DEM), assim como governadores até ontem aliados, como João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro. Hoje, com Bolsonaro fazendo os giros necessários para agradar a uma parcela dessa direita, Rodrigo Maia está confortavelmente sentado sobre a pilha de quase 60 pedidos de impeachment e chegou a dizer em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que não vê Bolsonaro praticando crime nenhum que justifique a abertura de processo de impedimento no Congresso.
No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o ministro mais ligado à política partidária de direita e de centro-direita, passou meses batendo duramente no governo. Recentemente, alertou os generais de Bolsonaro sobre o risco de serem atingidos por denúncias de genocídio relacionadas à atuação deliberadamente catastrófica do Governo na covid-19. Dias atrás, porém, assinou uma decisão liminar considerando que Fabrício Queiroz, ex-PM e assessor do senador Flávio Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, têm o direito de cumprir prisão em casa em vez de na cadeia. Decisão bastante incomum dada a trajetória do casal, ele escondido por meses e ela foragida. Por coincidência —ou não—, a decisão vem num momento em que as investigações por corrupção e envolvimento com milícias chegam mais perto de Bolsonaro, mas ele faz acenos a partidos como o MDB de Michel Temer, seu mais recente conselheiro, que chegou a ser enviado em missão oficial ao Líbano pelo novo amigo.
E a esquerda partidária? Esta não conseguiu fazer oposição efetiva até hoje. Enquanto parte da direita dá sinais de estar se acertando com a extrema direita bolsonarista, o PT não consegue se acertar com a esquerda nem para disputar a Prefeitura de São Paulo nas próximas eleições municipais. Com a ameaça de o Renda Brasil substituir o Bolsa Família na memória da população, os petistas se moveram para estimular a memória do povo. A realidade mostra, porém, que memória curta é questão de sobrevivência para grande parte da população. Num país em que uma renda de 600 reais por mês é a maior alcançada por dezenas de milhões de pessoas numa vida inteira, o que se pode esperar? Vivem como se não houvesse amanhã porque há mesmo grandes chances de não haver.
Se a direita se acertar com a extrema direita, ainda que momentaneamente, o Brasil vai viver uma situação inédita: no pior Governo da história da República, com quatro petições por crimes contra a humanidade perpetrados por Bolsonaro no TPI e mais de 110.000 mortos de covid-19 não haverá nenhuma oposição partidária. Sim, porque a esquerda está ocupada brigando entre si e fazendo oposição a si mesma.
Quando uma parte significativa da população aprova Bolsonaro e diz que ele não tem culpa nenhuma pela covid-19, essa parcela está fazendo a única política que conhece. Graças a essa adesão, Bolsonaro vislumbrou um caminho para ser reeleito e, pela primeira vez, cogita garantir sua popularidade distribuindo renda para os mais pobres. Justo ele, que foi o único presidente da redemocratização que não citou a redução da pobreza num discurso de posse, está revendo sua posição. Quem conseguiu esse feito? Não foi a oposição nem foi a esquerda. De novo e pela última vez: quem são os burros e os mal-informados?
É claro que se trata de Bolsonaro. Se ele vislumbrar outro caminho para garantir a reeleição, salvar sua família —e a si mesmo— das investigações ou para consumar o golpe de forma mais clássica, o Renda Brasil pode desaparecer do horizonte das possibilidades em um segundo. Da mesma forma, se ele mudar de conveniência, os novos amigos podem virar inimigos de novo em menos de 24 horas. No momento, porém, sem combinar entre si, mas combinados pela experiência dos séculos, os que só têm o dia de hoje para viver elogiam o coronel da ocasião, neste caso um capitão reformado que gosta de armas e de bombas, e o absolvem de todos os pecados. Esse cenário de adesão também pode mudar da noite para o dia, caso não exista algum tipo de continuidade do auxílio emergencial.
O mais surpreendente na pesquisa do Datafolha é justamente o outro lado: que, neste Brasil precarizado e povoado por desesperados, 52% da população ache que Bolsonaro tem alguma culpa pelos 100.000 mortos —a maioria— ou toda a culpa —uma minoria. Sinal de que as forças emergentes dos Brasis que seguem avançando pelas fissuras e pelas bordas têm se movido —e muito— por um país em que futuro não seja coisa de rico. Sinal também de que há muitos entre os mais pobres que, contra todas as estatísticas, se recusam a seguir reduzidos à exaustão dos corpos e vêm lutando ferozmente pelo exercício da solidariedade, pela responsabilidade coletiva e pelo direito ao futuro. E esta é uma notícia incrível, que aponta para a resistência.
Ainda um acréscimo: para quem chama os bolsonaristas e também os brasileiros pobres, que neste momento aprovam Bolsonaro, de “gado humano”, um aviso. A boiada, quando é brutalmente empurrada para o matadouro, sofre horrores, esperneia, os olhos parecem saltar das órbitas, se mija de pavor. Tenta desesperadamente escapar.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Cora Rónai: A menina
Uma criança abandonada no meio de uma guerra ideológica sádica em que o que menos importa é o seu bem-estar
A menina não é uma exceção. Todos os dias, sete dias por semana, semana a semana, mês a mês, 365 dias por ano, seis meninas, entre 10 e 14 anos, são internadas em hospitais brasileiros para fazer abortos ou para tratar das consequências de abortos mal feitos, improvisados. Seis meninas estupradas, seis meninas grávidas. Por dia. Todos os dias. Vá saber quantas sequer chegam aos hospitais, quantas não levam a gravidez a termo, quantas abortam em casa, quantas apenas têm seus filhos por aí e morrem como crianças para se tornar mulheres partidas, mães de outras meninas que, meninas, vão ser estupradas e ter outras meninas e outras e outras, num círculo vicioso de perpétuo descaso.
A menina só virou exceção por causa da covardia da equipe médica que a atendeu inicialmente no Espírito Santo, e que não só a obrigou a atravessar o país em busca de socorro como, provavelmente, vazou a notícia do que lhe acontecia para a curriola pestilenta que cerca o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (que ironia).
A menina só virou exceção porque Sara Giromini, filha espiritual da ministra Damares, a expôs na internet, e fundamentalistas religiosos fizeram tanto barulho que, hoje, quando a gente diz "a menina", todos sabem de qual menina estamos falando.
A menina.
A vítima de uma sucessão de crimes, do estupro e da incúria familiar à indizível atitude da equipe do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, que se recusou a cumprir a lei, passando pela exposição do seu nome na internet e pelo furor de hipocrisia que a perseguiu em casa e na porta do hospital.
Os obscurantistas que se manifestaram contra o direito de uma criança de dez anos de continuar a viver como criança são tão criminosos quanto o tio que a estupra desde os seis.
Uma inocente cercada de culpados e de gente má, uma criança abandonada no meio de uma guerra ideológica sádica em que o que menos importa é o seu bem-estar. Dom Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife, chegou a dizer que, "se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa, culminando com violento estupro, gravíssimo foi o aborto realizado em Recife, quando todo o esforço deveria ser voltado para a defesa das duas crianças, mãe e filha".
Não, Vossa Excelência Reverendíssima; o aborto realizado no Recife foi uma benção, um milagre da lucidez operando num país tenebroso. Não há "mãe" nessa história horrenda, há apenas uma criança violentada, que não tem condições físicas ou psíquicas de exercer a maternidade.
Num mundo digno e são, líderes religiosos teriam dado apoio à vítima, e não respaldo ao crime. Mas Dom Fernando foi secundado pelo presidente da CNBB, Dom Walmor, para quem é "lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses cuja mãe é uma menina de dez anos".
Eu queria muito saber a opinião do Papa Francisco sobre esses dois senhores. O Papa Francisco lançou no começo desse ano um livro sobre tolerância e paz para crianças, e dizem que ele é um homem bom.
Gabriela Prioli: Meu Deus, que bandeira é essa?
É loucura ou verdade tanto horror perante os céus?
Nesta semana, um episódio nos fez duvidar da humanidade. Uma menina de dez anos, estuprada dentro de casa havia quatro, ficou grávida de seu agressor. Menina que é, foi ao hospital porque estava com dor de barriga. Descobriu-se grávida.
Autorizada pela Justiça para agir como já prevê a lei, pôde interromper a gravidez fruto do estupro (hipótese de aborto legal prevista no artigo 128, II, do Código Penal), que oferecia risco não só à criança feto mas também à criança mãe (hipótese de aborto legal prevista no artigo 128, I, do Código Penal).
Teve início o espetáculo macabro: uma ministra do governo comenta o caso e irrompe a frente antiaborto.
A técnica usada? Constrangimento e ameaça. Os gritos de "assassina" em frente ao hospital me lembraram Castro Alves clamando ao Deus dos desgraçados: seria loucura ou verdade tanto horror perante os céus?
A crueldade da turba diante do hospital pode nos fazer esquecer que eles não são os únicos representantes da fé. O intolerável carrega perigos que vão além da crueldade e do absurdo. Nietzsche nos alerta que, observado por tempo demais, o abismo olha para dentro de nós. Ao condenarmos o intolerável, precisamos cuidar para não nos tornarmos intolerantes.
Nem todo religioso é fanático, e essa constatação simples tem relevância fundamental num país em que o Estado é laico, mas o eleitorado, em grande parte, é cristão.
Há mais lideranças entre os cristãos do que conhecem aqueles que vivem fora da igreja. Para cada Mal —a exclusão do final do nome serve a dois propósitos, o de ressaltar a qualidade e o de não dar visibilidade— existem outros tantos bons.
Precisamos desse diálogo e dessa cooperação, pois também é cidadão quem traz um terço, Bíblia ou o evangelho na mão. Se uma mulher não fala por todas as mulheres, um negro não fala por todos os negros, um cristão não fala por todos os cristãos. A generalização presta serviço ao fanatismo, porque reduz uma coletividade diversa e complexa ao barulho e ao oportunismo.
Ascânio Seleme: E o Rio, como fica?
Se dependesse do prefeito, melhor seria deixar o debate para a última hora
Em três meses os cariocas vão eleger o sucessor do bispo Marcelo Crivella ou reconduzir o atual prefeito para um novo mandato de quatro anos. Embora a questão política nacional seja enorme, e quase sempre prioritária, não dá para ignorar a urgência da eleição municipal. Mesmo tendo população e orçamento maiores do que de alguns estados brasileiros, o Rio não deixa de ser uma cidade onde pessoas moram, estudam e trabalham. É no Rio, e não em Brasília, que os cariocas andam de ônibus. É nos hospitais da cidade que tratam da saúde e nas escolas municipais que seus filhos estudam. Chegou a hora de prestar atenção ao Rio.
Se dependesse do prefeito, melhor seria deixar o debate para a última hora mesmo. Enquanto isso, ele iria consolidando suas posições entre os evangélicos e fortalecendo seus laços com Bolsonaro e família. Crivella é o pior prefeito do Rio dos últimos anos, mas não é bobo. Ele já mapeou muito bem o caminho que pode levá-lo à reeleição. Em primeiro lugar, grudou no presidente como uma ostra na pedra. Mesmo nos momentos ruins, sempre esteve ao lado de Bolsonaro, não porque antecipava a sua recuperação, mas por falta de opção mesmo. Hoje, com a melhora dos índices de aprovação de Bolsonaro, Crivella cresce.
Seu primeiro movimento em favor da confirmação desse apoio já foi dado. O bispo quer a deputada Major Fabiana como sua candidata a vice. Ela é do PSL, partido do qual Bolsonaro está se reaproximando. Se o entendimento entre o partido e o presidente desandar, Fabiana será ejetada. Crivella sabe fazer o jogo político, o que ajuda a fortalecer sua posição eleitoral. Uma candidatura que até outro dia parecia fadada ao fracasso hoje pode muito bem constar da cédula do segundo turno. Seu sucesso ou fracasso vai depender de como reagirão seus adversários.
O principal concorrente de Crivella é o ex-prefeito Eduardo Paes, cujo maior problema é ser sempre associado ao grupo do ex-governador Sérgio Cabral, responsável pela sua indicação na primeira eleição a prefeito e de quem foi secretário. Este fantasma com certeza será lembrado na campanha. As delações premiadas da Lava-Jato não o alcançaram e ganhou todas as ações movidas contra ele; mesmo assim, é por aí que será bombardeado. Hoje, é réu em ação iniciada pelo Ministério Público assim que anunciou sua candidatura.
Paes é de longe o mais forte dos opositores de Crivella. Ele lidera todas as pesquisas e talvez seja o único capaz de ganhar do atual prefeito ainda no primeiro turno. Mas dependerá muito de como vai construir sua campanha. Com certeza, ele será atacado pelo bispo e, se não reagir com a mesma intensidade, pode ficar pelo caminho. Flancos frágeis Crivella tem aos montes, difícil é saber por onde começar.
Como o crescimento da aprovação de Bolsonaro alavancará Crivella, Paes terá de brigar pelos eleitores que lhes deram a vitória nas duas eleições que ganhou no Rio. Os votos de opinião não serão suficientes para elegê-lo, como não bastaram para seu adversário Fernando Gabeira na eleição de 2008. Será nas periferias das grandes cidades que os candidatos a prefeito apoiados por Bolsonaro testarão a força eleitoral do auxílio emergencial. Crivella vai navegar nesta onda. E é lá que Paes terá de garimpar.
Para derrotar o pior prefeito da história do Rio, Eduardo Paes terá também que ser capaz de se articular com os partidos de esquerda. Se souber dividir, poderá somar e ganhar.
Ditadura do tráfico
O cenário lembra os piores momentos da ditadura, quando pessoas eram sequestradas, torturadas, assassinadas e enterradas em covas clandestinas por forças policiais ou militares. O cemitério do tráfico do Salgueiro é tão grotesco quanto o de Perus, em São Paulo, por reunir sob o mesmo terreno corpos de dezenas de pessoas. No Salgueiro, os restos são de traficantes de facções concorrentes, de moradores da comunidade desobedientes e de policiais. Em Perus, pelo menos 20 corpos encontrados em valas clandestinas pertenciam a desaparecidos políticos, inimigos do regime militar.
Ribamar Oliveira: Remanejar verbas para garantir investimentos
Saúde e educação sofrerão cortes neste ano
O ministro da Economia, Paulo Guedes, encontrou uma forma de atender ao desejo das alas militar e política do governo por mais investimentos em infraestrutura neste ano, sem furar o teto de gastos. A equipe econômica está finalizando um projeto de lei, que deverá ser enviado ao Congresso Nacional nos próximos dias, remanejando verbas orçamentárias no valor de até R$ 5 bilhões. A estratégia é reduzir as dotações de alguns setores, que não ainda não foram empenhadas, como as da saúde e da educação, e aumentar os investimentos.
Tudo será feito, segundo fonte credenciada ouvida pelo Valor, respeitando os gastos mínimos previstos na emenda constitucional 95/2016 para a saúde e a educação. O projeto de lei (PLN) em elaboração será submetido ao Congresso, que dará a última palavra. Está descartada, portanto, a edição de medida provisória abrindo crédito extraordinário para fugir do teto de gastos, como inicialmente foi pensado pelo ministro chefe da Casa Civil, Braga Netto, e pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
As Secretarias de Orçamento Federal e do Tesouro Nacional estão fazendo levantamentos para identificar as áreas do governo que estão com “excesso” de verbas e que podem ser remanejadas para outros ministérios, particularmente o da Infraestrutura e o do Desenvolvimento Regional. As alas militar e política querem concluir investimentos em rodovias e em obras de combate à seca no Nordeste. Apenas as dotações que ainda não foram empenhadas poderão ser remanejadas. Ou seja, só aquelas para as quais o governo ainda não autorizou o gasto, que é a primeira fase da execução orçamentária.
A área de educação deverá perder recursos, pois a dotação para este setor está bem acima do mínimo constitucional, como informou a fonte do governo. A área da saúde também está bem acima, pois o governo destinou uma grande quantidade de recursos para o setor no combate aos efeitos da pandemia da covid-19, por meio de créditos extraordinários.
Outros setores do governo também poderão perder recursos. Em defesa de sua estratégia, o governo alega que, se as verbas não forem remanejadas, haverá um “empoçamento”, ou seja, mesmo que o gasto seja autorizado, o Ministério ou órgão não conseguirá gastar os recursos neste ano e o dinheiro ficará no caixa, sem uso. Até junho, o “empoçamento” já atingia R$ 31,1 bilhões. Desse total, o Ministério da Cidadania tinha R$ 8,1 bilhões, o Ministério da Saúde, 6,1 bilhões e o Ministério da Educação, R$ 3,9 bilhões.
Com a estratégia, a equipe econômica espera diminuir as pressões de ministros e aliados políticos contra o teto de gastos. Mas, certamente, enfrentará resistências da oposição ao governo no Congresso, pois deputados e senadores terão dificuldade, especialmente em ano eleitoral, em cortar verbas para a saúde e a educação, mesmo que seja para aumentar investimentos em áreas estratégicas.
Agora, o problema da área econômica é encontrar espaço dentro do Orçamento de 2021 para os investimentos. A proposta orçamentária ficou muito difícil de fechar, pois o teto de gastos foi reajustado em apenas 2,13%. As despesas discricionárias (investimento e custeio da máquina administrativa, exceto gasto com pessoal) ficarão abaixo de R$ 100 bilhões, de acordo com fontes do governo, ante um valor de R$ 120 bilhões previsto para este ano.
O governo só conseguirá fechar a proposta sem cortar ainda mais os investimentos se o Congresso adiar a derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à desoneração da folha de salários de 17 setores da economia e se conseguir adiar algumas despesas para 2022, como é o caso do Censo Demográfico, feito pelo IBGE, previsto para o próximo ano.
No caso do veto à desoneração, os aliados do governo estão tentando adiar a decisão do Congresso para setembro, após o envio da proposta orçamentária no dia 31 de agosto, pois, nesse caso, caberá aos parlamentares dizer onde cortarão outras despesas para compensar esse gasto. A desoneração representa uma despesa para o Tesouro, submetida ao teto. Ele é obrigado, por lei, a compensar a Previdência Social pela perda de receita com a desoneração.
Inadimplência histórica
Neste mês, poderá ocorrer uma das maiores inadimplências de tributos federais da história, pois as empresas terão que pagar duas parcelas do PIS/Cofins (referentes a março e julho) e duas parcelas da contribuição patronal de 20% sobre a folha de salários ao INSS (referentes a março e julho).
Como todos se recordam, uma das medidas de combate aos efeitos da recessão econômica provocada pela pandemia foi o adiamento do pagamento de alguns tributos, o que é conhecido na área técnica como diferimento. O PIS/Cofins referente a março, que seria pago em abril, foi adiado para agosto, o mesmo acontecendo com a contribuição patronal ao INSS devida em março.
A medida representou um alívio naquele momento para as empresas, mas agora chegou o momento de pagar a conta. O Valor perguntou à Receita Federal se não teme um elevado grau de inadimplência em agosto, devido ao fato de que as empresas ainda estão em fase de recuperação e muitas delas não terão condições de pagar duas parcelas das três contribuições no mesmo mês.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Receita disse que “diversos indicadores já apontam em direção a uma recuperação da economia”. Segundo ela, as vendas no Brasil no mês de junho mostraram o maior patamar do ano de 2020, pois tiveram um resultado 15,6% maior que o de maio deste ano e de 10,3% superior ao de junho de 2019. Além disso, observou, em junho, todas as regiões brasileiras mostraram recuperação no ritmo de vendas, tanto em valor como em quantidades de notas emitidas.
De qualquer forma, é uma aposta, cujo resultado saberemos mais adiante. O ideal talvez fosse encarar o problema e propor o pagamento parcelado dos atrasados.
Maria Cristina Fernandes: A capitulação bandeirante
Previsão de déficit empurra Dória para reforma administrativa desgastante na Assembleia Legislativa
O governador de São Paulo liderou a resistência federativa à escalada obscurantista do presidente da República na pandemia. Jair Bolsonaro saía à rua beijando crianças, João Dória nunca aparecia sem máscara. Um dizia que o Brasil não podia parar, o outro pregava o confinamento. Contra a cloroquina federal, ergueu-se a ciência bandeirante.
Cinco meses depois do início da batalha contra o coronavírus, a capital paulista conseguiu derrubar para a metade o número de óbitos registrados no pico da doença. Ainda é cedo, porém, para se cantar vitória contra a covid-19. Não bastassem os ônibus e os bares lotados, o projeto de lei 529, enviado pelo governador em regime de urgência, caiu na Assembleia Legislativa como uma capitulação.
Enquanto o presidente foge de uma reforma administrativa e negocia com o Congresso uma claraboia sobre o teto de gastos para abrigar um programa que dê continuidade ao auxilio emergencial, os governadores estão acuados. Sem o bônus de popularidade com o qual o auxílio brindou Bolsonaro, preparam-se para enfrentar 2021 sem os repasses extras aprovados pelo Congresso e tendo que retomar o pagamento de suas dívidas, suspenso até dezembro.
Em São Paulo, a resposta foi um projeto que revira a administração pública de ponta-cabeça. Privatiza o zoológico e nove parques, extingue a empresa responsável pela coordenação do transporte de cinco regiões metropolitanas (EMTU), autarquias que cuidam da preservação ambiental (Instituto Florestal), da política agrária (Itesp), de criminalística (Imesc) e da administração de aeroportos (Daesp). Acaba ainda com a empresa de habitação (CDHU), com uma rendição explícita, na exposição de motivos, ao avanço do Minha Casa Minha Vida.
Depois de tanto se falar em reconversão industrial para aumentar a segurança nacional na produção de medicamentos e equipamentos hospitalares, o projeto extingue, numa canetada, a maior fabricante pública de remédios do país (Furp), a fundação de pesquisa de câncer (Oncocentro) e a autarquia das endemias (Sucen).
No mesmo dia que o projeto de Dória chegou à Assembleia, o prefeito e candidato à reeleição Bruno Covas decretou o enxugamento da Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa), um dos eixos do enfrentamento das epidemias na cidade. A portaria levou a uma carta aberta de seis ex-coordenadores do órgão, três dos quais, do PSDB.
O maior golpe no discurso pró-ciência com o qual os tucanos paulistas enfrentaram o presidente da República, no entanto, veio num dos capítulos do projeto de Doria que remete para o tesouro estadual o superávit das universidades e das fundações do Estado, entre elas, a de amparo à pesquisa (Fapesp), de onde saiu boa parte dos estudos sobre a pandemia.
No capítulo menos polêmico, mas nem por isso mais fácil de ser aprovado, o projeto reduz e unifica as isenções do ICMS em 18%, unifica a cobrança do IPVA em 4% (acabando o benefício para veículos de combustível limpo), aumenta o valor das contribuições para a rede de atendimento médico-hospitalar dos servidores (Iamspe), altera a cobrança da dívida ativa e sua securitização, e estabelece uma arbitragem para o valor de imóveis e doações sobre os quais incide o imposto de transmissão.
A amplitude do projeto desnorteou a Assembleia Legislativa. A reação predominante foi a de que o governo, ao reunir tantas iniciativas num único projeto, teve como objetivo “baratear” sua tramitação. Como o pedido de urgência abrevia os prazos, os deputados não teriam tempo para se aprofundar no debate e, pressionados, acabariam aprovando o projeto com poucas modificações.
A deputada Marina Helou (Rede), resume a queixa generalizada de que o prazo de emendas terminou sem que os parlamentares tivessem conhecimento dos dados e projeções que o lastreiam. Por mais sensíveis que estejam à situação financeira do Estado, resistem a votar no escuro.
Temem que, para enfrentar uma situação temporária, o governo faça mudanças estruturais que afetarão definitivamente a formulação de políticas públicas. Se, por um lado, as autarquias fomentam o corporativismo, por outro, são um anteparo às diatribes dos gestores de plantão.
Como secretário do Meio Ambiente em São Paulo, por exemplo, Ricardo Salles só não conseguiu fazer do cargo a antessala do desmonte que hoje promove na Esplanada por conta das autarquias da pasta. Foi este um dos argumentos que levou o governo paulista a mitigar o enxugamento da área.
Idealizador do projeto, o secretário Mauro Ricardo Costa, não descarta novos ajustes, mas desafia opositores a apresentar alternativas para o déficit de R$ 10,4 bilhões do orçamento do próximo ano. Atribui as pedras hoje jogadas contra o governo ao fato de São Paulo ter saído na frente com medidas de enxugamento que todos os Estados e municípios, diz, terão que tomar - “Estão todos quebrados, mas ainda não se atentaram”.
Titular de secretarias de fazenda e planejamento em quatro unidades da federação (São Paulo, Minas, Bahia e Paraná), a convite de gestores premidos por ajustes inadiáveis, Mauro Ricardo não teme protestos, nem mesmo depois de ter assistido ao centro cívico em Curitiba se transformar numa praça de guerra em 2015.
Resiste, por exemplo, a aceitar o argumento de que o financiamento das pesquisas científicas será afetado pela devolução do superávit das fundações ao tesouro. Diz que as fundações não podem pretender ficar com sobra de caixa acumulada para pesquisas de longo prazo quando a saúde, a educação e a segurança pública do Estado ameaçam colapsar. Prevê um desemprego resiliente a empurrar as famílias para escolas e hospitais públicos, além de pressionar indicadores de violência.
Espanta, por isso, que toda essa penúria só não afete os repasses para o Judiciário. O governo paulista conseguiu aprovar na Assembleia a destinação de um terço das taxas judiciárias (R$ 380 milhões) para o Tribunal de Justiça. A Câmara dos Deputados aprovou ontem crédito de R$ 200 milhões para a construção de novas sedes da Justiça Federal e do Ministério Público Federal nos Estados. É a locomotiva, em meio aos escombros, puxando a Federação a todo vapor.
Vinicius Torres Freire: Doria teve a péssima ideia de fazer um rapa nas universidades e na ciência de SP
Governo estadual teve a má ideia de tapar déficit com dinheiro de ciência e pesquisa
O governo de João Doria quer fazer um rapa nos fundos das três universidades estaduais, USP, Unicamp e Unesp, e na Fapesp, a fundação que financia pesquisa científica. Quer raspar o tacho do dinheiro que a contabilidade chama de “superávit financeiro”. Na conta dos balanços de 2019, trata-se de R$ 1,5 bilhão. O Orçamento do governo estadual é de R$ 239 bilhões. O déficit de 2020 está estimado em uns R$ 10 bilhões.
O plano vai abalar as universidades e arrebentar a ciência paulista, que faz boa parte da pesquisa nacional, que está sendo arrebentada por Jair Bolsonaro. Além do mais, o projeto paulista parece ilegal, pois universidades têm autonomia. Deve ser emendado na Assembleia Legislativa. Ainda assim.
Do ponto de vista da administração pública, é um incentivo ao desperdício e à falta de planejamento. Em tese, essa faca no pescoço induz o gestor a imediatismos corporativos, como torrar o dinheiro enquanto pode, antes que o Estado leve o que eventualmente possa sobrar. Logo, prejudica planos de investimento a longo prazo, plurianuais, e outras prudências e eficiências no uso dos recursos.
Esse “superávit financeiro” consiste basicamente de caixa e equivalentes de caixa. Mais não se sabe sobre esses dinheiros, pois os balanços das universidades e da Fapesp não especificam a natureza das reservas. Essas e outras satisfações poderiam constar das notas explicativas, por falar nisso, que são pouco mais do que citações da lei e de normas contábeis. Não explicam nada.
A Fapesp diz em público que esses dinheiros estão reservados e comprometidos com o pagamento futuro de projetos em andamento. Seja como for, a fundação e as universidades precisam de reservas.
O rapa na ciência faz parte de um pacotaço fiscal. O governo Doria diz que o estado está na pindaíba e que seria injusto não usar essas “sobras” das universidades e da Fapesp em gastos essenciais, em especial com pobres. Pode ser, mas com esse argumento também se pode fechar a universidade.
Quais outros recursos estão “sobrando”? A gente não sabe. Doria pretende diminuir incentivos fiscais (favores com o ICMS), fechar autarquias e assemelhados e demitir parte de seus funcionários. No projeto de lei, não mostrou as contas, o que é uma atitude que não presta. O projeto coloca em questão a utilidade de manter certas instituições, o que parece razoável, dada a multiplicidade de burocracias, e pede autorização para privatizar outras tantas, mas não explica em que condições serão prestados certos serviços, o que não é razoável.
As universidades estão no aperto em parte porque fizeram bobagem nos anos de bonança, de crescimento e arrecadação alta (as universidades paulistas têm direito a uma porcentagem fixa da arrecadação estadual). Elevaram despesas fixas (basicamente salários), tendo receitas que flutuam com o ciclo econômico. É assim que o governo do estado do Rio de Janeiro vai à falência ano sim, outro também.
As universidades são autônomas, mas não para fazer besteira, embora não exista um sistema racional de controle, um método que não submeta as universidades à politicagem e a desmandos de governantes chucros. Seria conveniente ter uma regra “anticíclica”: em anos bons de receita de impostos, seria necessário colocar o dinheiro em um fundo, por exemplo.
Agora, as universidades estão fazendo reservas, um “fundo”. A Fapesp de fato faz planos de médio prazo. O governo do estado quer arrombar uma porta de cofre que estava sendo consertada.
Míriam Leitão: Nova aposta no setor de gás
Três pequenos gasodutos mudariam totalmente a oferta de gás no país, se fossem construídos. Na conta dos grandes consumidores dessa energia, a nova lei permitirá essas obras e o estímulo à importação de gás natural liquefeito (GNL). Com isso, a oferta no país cresceria até 60%, derrubando os preços. As distribuidoras têm uma visão mais cautelosa. Alegam que a lei tem avanços, mas o cenário mudou com a pandemia. O relator da proposta na Câmara, deputado Laércio Oliveira (PP-SE), defende seu texto, que seria, em sua opinião, resultado de meses de debates, e admite que novos aprimoramentos podem ser feitos depois da aprovação do projeto de lei (PL).
Olhar todos os lados em qualquer tema ligado à energia demanda paciência. O ministro Paulo Guedes havia dito há mais de um ano que tudo seria fácil, mas as complicações sempre aparecem. Agora, contudo, há muita gente animada. Neste novo marco do gás, que vai substituir o de 2009, as apostas são mais favoráveis. O PL, por exemplo, recebeu o apoio de mais de 60 associações ligadas ao setor industrial, que é o grande consumidor desse tipo de energia.
— No curto prazo, a nova lei facilita a importação de gás liquefeito (GNL), que está com preços baixos internacionalmente, e três pequenos gasodutos podem aumentar bastante a oferta. Isso deve ajudar a diminuir os preços. Mas a grande diferença acontecerá quando o pré-sal aumentar a produção, daqui a quatro ou cinco anos, e esse PL prepara o país para esse momento — explica Adrianno Lorenzon, gerente de gás natural da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace).
Um dos principais pontos do PL é a mudança do regime de concessão para o de autorização. No modelo atual, a agência reguladora elabora o projeto, faz uma licitação e abre para consulta pública. Os especialistas afirmam que nos últimos 13 anos nenhum gasoduto foi construído, por causa do excesso de burocracia. Agora, partirá da empresa privada provocar a agência reguladora, que irá fazer a análise para autorizar ou não as obras. Outra mudança apontada como importante é a obrigação de as companhias — entenda-se Petrobras — compartilharem toda a sua infraestrutura com outras empresas, em caso de subutilização. A ideia, explica o relator do projeto, Laércio Oliveira, é que haja competição em todos os elos da cadeia.
— A agência reguladora terá mais poderes para atuar na sua área de competência. Hoje, a Petrobras vende o gás por um preço fechado. Esse valor compreende parcelas como o custo do gás natural na cabeça do poço, o custo de fazer o escoamento até a costa e o custo de tratamento. O objetivo é que cada etapa desse processo tenha seu preço aberto e haja competição entre os agentes de cada elo da cadeia — disse.
O Brasil hoje consome 80 milhões de m3 de gás por dia, e pelas contas da Abrace mais 50 milhões podem entrar no sistema por aqueles três pequenos trechos: a construção da Rota 3, que vai interligar o pré-sal e a Bacia de Campos ao Comperj, um gasoduto no Porto do Açu, no Rio, e outro no Terminal de Sergipe. Isso poderia ser feito até o final do ano que vem.
— Em Sergipe, o gás chega de navio e fica armazenado em um terminal de gás liquefeito. Apenas um terço desse gás é consumido pela termelétrica de Porto de Sergipe. A ideia é construir um pequeno gasoduto que conecte esse terminal à malha, e com isso o gás excedente possa chegar rapidamente às regiões Sul e Sudeste do país — explica Adrianno Lorenzon.
Há visões divergentes. Na opinião da Abegás e do consultor Adriano Pires, do CBIE, o projeto de lei avança pouco e foi elaborado antes da pandemia, quando o setor de óleo e gás vivia outro momento. Pires argumenta que os investimentos só vão deslanchar se houver garantia de aumento da demanda. Por isso, defende que o PL estabeleça que as termelétricas a gás entrem na base do sistema elétrico, ou seja, que garantam um consumo fixo do produto. O deputado Laércio discorda. Acha que isso é papel da agência reguladora e não deve ser objeto desse projeto de lei.
Há um ano, o setor comemorava um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) estabelecido entre o Cade e a Petrobras. Na época, se dizia que era o início do fim do monopólio da empresa. De lá para cá, pouca coisa andou, e a petrolífera foi notificada no final de julho por um possível descumprimento de regras. Agora, as esperanças se voltam a este novo PL do gás.
Fernando Schüler: Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado
Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua melhor chance de deixar um legado
O documento lançado por um grupo de economistas, no início da semana, defendendo o teto de gastos e propondo “rebaixar o piso”, ou seja, reformas capazes de preservar e aprimorar o edifício de estabilização fiscal construído pelo país nos últimos anos, deveria ser lido e relido, em Brasília.
O argumento diz que, dada a atual trajetória fiscal, a preservação do teto de gastos é insustentável. O gasto obrigatório sobe a uma taxa superior à inflação, e tornará inviável o custeio da máquina pública logo ali adiante.
O mercado já precifica o problema. O sistema político é mais lento e aprecia um exercício de autoengano. Governo à frente. É pura ilusão pensar em um programa robusto de transferência de renda e uma agenda crível de investimento público sem encarar os temas difíceis do ajuste fiscal.
O problema é o governo se decidir a enviar ao Congresso a reforma administrativa. O tema está maduro. A pandemia escancarou a desigualdade entre o mundo protegido do alto funcionalismo público e o universo precário do emprego privado, que pagou sozinho a conta da debacle econômica.
As razões da reforma são autoevidentes. O Brasil gasta 13,5% do PIB com servidores e entrega serviços públicos de baixa qualidade. Sendo seus usuários fundamentalmente os mais pobres, a ineficiência do Estado funciona como um motor das desigualdades no país.
Resolver isso supõe um longo caminho de reformas e ninguém imagina que elas serão feitas na atual gestão federal. O que se espera é que o governo tenha a coragem de dar o primeiro passo. Em duas direções.
A primeira trata do RH do governo. Revisão das carreiras públicas, redução dos salários iniciais, flexibilização dos modelos de contratação, avaliação de desempenho e possibilidade de redução de jornada e vencimentos em situações de risco fiscal.
O segundo caminho distingue funções de Estado e serviços públicos concorrenciais (que vão da saúde até a gestão de parques). Diz que o governo deve se concentrar nas tarefas de regulação e deixar à sociedade e ao mercado a execução de serviços. Enquanto isto não andar, a ideia de melhorar a qualidade da entrega pública não passará muito de retórica.
Há sinais positivos no horizonte. Sou da época em que ainda se imaginava que o governo devia administrar aeroportos por se tratar de um setor estratégico. Hoje, precisamente por se reconhecer que eles são estratégicos chegou-se à conclusão de que o governo e sua burocracia não devem administrá-los.
A reforma é politicamente viável. Previsível seria vermos o chefe do Executivo pressionando o Parlamento a fazer a reforma, mas o que temos é o contrário. Rodrigo Maia “tentando convencer” o presidente a enviar o projeto.
O governo amplia sua base no Congresso e há uma frente parlamentar robusta tratando do tema. Quem patina é o governo. Em parte por falta de convicção, em parte por saber que o assunto lhe renderá mais uma montanha de detratores e nenhum voto.
Salim Mattar escreveu que o “establishment” feito de sindicatos, políticos e fornecedores forma uma barreira às privatizações. A pergunta é: algum dia foi diferente? As corporações sempre estiveram aí e a inércia do setor público sempre foi a mesma. Apesar disso reformas importantes foram feitas no passado recente.
O atual governo iniciou dizendo que encerraria o ciclo de governos sociais-democratas e faria tudo diferente. Talvez tenha acreditado no mito de que foi fácil fazer as privatizações dos anos 1990, que os leilões da Vale ou Embraer foram um passeio, o mesmo valendo para a reforma do Estado.
É bom que tenham descoberto que as coisas são mais difíceis, no Brasil, e que talvez a reforma administrativa seja a sua melhor chance, talvez a última, de deixar um legado.
Do contrário, nossos liberais-conservadores terão que reconhecer que, mesmo no terreno que propuseram como seu, fizeram pior do que os sociais-democratas dos anos 1990, cujo legado de reformas ainda é o melhor ponto de partida para as mudanças que o país precisa fazer.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Os dilemas da reforma
A reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis
A Covid-19 teria efeito ainda mais devastador se a população brasileira não contasse com o SUS. A crise econômica, trazida pela virose, teria arrastado à miséria um número muito maior de famílias caso o auxílio emergencial não chegasse com rapidez a 65 milhões de pessoas. Nada disso é trivial —antes, são exemplos notáveis de capacidades estatais desenvolvidas nos últimos 30 anos.
Elas não podem ser esquecidas quando a reforma administrativa volta à agenda política. Poucos duvidam de que a reforma seja necessária: há ineficiências a superar e privilégios a combater. Ninguém imagina que a mudança seja fácil, dados os interesses contrariados que mobiliza e os limites fiscais que a enquadram.
Mas a reforma administrativa não pode ser apenas acerto fiscal que subordine, de qualquer maneira, o diâmetro da esfera pública aos recursos disponíveis, de forma a permitir investimentos igualmente importantes. Refletirá, inevitavelmente, uma ideia de poder público.
Segundo o "Atlas do Estado Brasileiro 2019", publicado pelo Ipea, entre 1986 e 2017 cresceu expressivamente o número de servidores nos três níveis de governo. A expansão foi puxada pelo aumento das administrações subnacionais —dos estados e, sobretudo, dos municípios—, acompanhando o aumento de suas responsabilidades na provisão de serviços sociais. Quatro em cada dez servidores municipais são educadores ou profissionais da saúde. Nos estados, educação, saúde e segurança respondem por 60% do emprego público. O setor federal cresceu menos, e a sua participação no conjunto caiu.
O gasto com servidores ativos da União manteve-se relativamente constante como fatia do PIB, mas cresceu para cerca de ¼ da receita corrente líquida. O que aumentou de forma desmedida foram os gastos com aposentadorias e pensões. A longo prazo, a reforma da Previdência trará desafogo. Mas, no presente, a despesa total com servidores pressiona os orçamentos dos governos.
Um projeto de reforma administrativa que valha seu nome tem de decidir como assegurar que não faltem professores para turnos escolares compatíveis com o aprendizado; que haja profissionais da saúde para sustentar um SUS decente país afora; que existam fiscais ambientais; que a renda básica conte com pessoal competente no cadastramento e monitoramento; que haja carreiras para servidores capazes de coordenar programas intergovernamentais e avaliar seus resultados.
Pois o problema é real, e as escolhas, difíceis. Não ajudará muito se o debate virar guerra de chavões sobre a "destruição do Estado" ou os perigos do "corporativismo".
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Bruno Boghossian: Bolsonaro fracassa no primeiro grande teste após acordo com centrão
Apesar de servir banquete aos partidos, presidente leva um baile atrás do outro no Congresso
Antes de oferecer banquetes aos líderes do centrão, Bolsonaro gostava de culpar o Congresso pela incompetência de seu governo. Em março, quando a pandemia do coronavírus já estava nas ruas, ele reclamava da demora dos parlamentares em aprovar a ampliação do prazo das carteiras de habilitação, um objeto de obsessão presidencial.
“Até um simples projeto, mais simples impossível, como passar a validade da carteira de cinco para dez anos, está há seis meses lá dentro e não vai para frente!”, queixou-se.
Desde então, Bolsonaro e seus auxiliares pararam de chamar os políticos de patifes e chantagistas. Abriram a máquina pública a novas indicações partidárias e serviram chá para seus novos amigos no Planalto. A carteira de motorista, no entanto, continua com a mesma validade.
O governo pagou pelo apoio dos partidos, mas continua levando um baile atrás do outro no Congresso. Na terça-feira (18), o Senado decidiu retirar de pauta o projeto de estimação de Bolsonaro para mudar o Código de Trânsito. Votaram contra o governo até parlamentares do PSD, que já ganhou um ministério, e do MDB, que namora o Planalto.
No dia seguinte, a derrota foi ainda mais feia. Por 42 votos a 30, os senadores derrubaram o veto do presidente ao aumento de salários de servidores envolvidos no combate ao coronavírus. Se a Câmara seguir o mesmo caminho, Bolsonaro terá que desembolsar até R$ 98 bilhões.
O presidente fracassou no primeiro teste de articulação política desde que topou dar o braço ao centrão. No mesmo pacote, o governo tentou evitar uma humilhação e aceitou que os parlamentares rejeitassem o veto de Bolsonaro ao uso obrigatório de máscaras durante a pandemia.
O balanço mostra que o presidente continua sem força para aprovar até medidas simbólicas. Na terça, o presidente da Câmara fez uma provocação sobre as propostas econômicas do Planalto. “O governo tem base para fazer isso? Isso é que precisa avaliar primeiro”, disse Rodrigo Maia. O resultado parcial está aí.
William Waack: Rumo ou deriva?
A excepcionalidade se parece à normalidade
Os brilhantes almirantes junto a Jair Bolsonaro podiam explicar ao capitão do Exército que um azimute constante em relação a um obstáculo (outro navio, por exemplo, que também está se movendo) vai dar em colisão. O presidente quer gastar para manter a popularidade, e está encantado com as vozes (do ministro do Desenvolvimento Regional, mas não só) que lhe dizem que estaria unindo o útil (reeleger-se) ao agradável (fazer o bem para pessoas ainda mais necessitadas
O obstáculo é o formidável rochedo fiscal, que está aumentando de tamanho. À medida que 2021 se aproxima, fica próximo do irresistível esse canto da sereia de que a excepcionalidade atual imposta pela calamidade pública podia ser esticada um pouquinho mais, só um pouquinho mais, só para algumas obras já orçadas, já iniciadas, necessárias até por razões humanitárias (como levar água para o Nordeste, por exemplo).
Sim, esse argumento procede, tem sólidos fundamentos num país miserável no qual metade da população nem esgoto tem. Sim, as circunstâncias da dupla crise de saúde e economia obrigam a mudar os cálculos (políticos, sobretudo), alteram prioridades (como reforma do Estado ou privatizações) e impõem gastar sem olhar para o fundo do cofre. Afinal, não é o que uma Angela Merkel está fazendo? Deixem os economistas debatendo entre si se esse “novo normal” jogou por terra tudo o que aprenderam na vida acadêmica, pautada ou não pela ortodoxia.
O problema no caso brasileiro, no qual Bolsonaro é uma expressão perfeita de mentalidades e atitudes generalizadas, é o conceito de excepcionalidade. Não há nada de novo no fato de a sociedade brasileira conviver com gastos públicos muito acima da capacidade do nosso espaço econômico de financiá-los. Ao contrário, é o que estamos fazendo há décadas. Também não é novidade alguma o fato de que nos acostumamos a acomodar interesses setoriais e regionais espalhando pela nação inteira os custos dessas acomodações – traduzindo: benefícios, renúncias, incentivos, proteções, privilégios, regimes especiais, a gritante diferença entre o emprego público e o privado.
Circulam no Congresso, e no Planalto, números dando conta de que mais da metade dos 60 milhões de brasileiros que recebem ajuda emergencial acredita que ela será permanente e que a quase totalidade dessas pessoas não está preparada para o momento em que essa ajuda cessar. Para montar já para o ano que vem um grande programa social para Bolsonaro chamar de seu o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisa sentar com o Congresso e decidir no que mexer nos R$ 350 bilhões de isenções tributárias – ou seja, onde cortar nas “acomodações” tão ao gosto de nossa sociedade.
Com TCU, STF e o presidente da Câmara dos Deputados avisando que puxadinho no teto de gastos não passa, e que a abertura de créditos extraordinários via MP também não, é com o Centrão que Bolsonaro terá de se entender. O começo dessa relação parece auspicioso: as “novas” lideranças políticas abraçadas pelo presidente garantem a ele governabilidade e a agradável sensação de que o pior da crise ficou para trás, agora que vamos gastar. Convenientemente, ignora-se o fato de que o fisiologismo, que azeita o que for necessário em Brasília, é dono de insaciável apetite (o que isso tem de excepcional?).
Some-se a isto um fator subjetivo muito elucidativo quando se considera a rapidez com que nos acostumamos ao número de mortos na pandemia (um horror em escala mundial): é a de que estamos aparentemente confortáveis dentro da excepcionalidade. Esses tempos “excepcionais” se parecem tanto à normalidade, deixando de lado a chateação das máscaras e as escolas fechadas, com as crianças azucrinando em casa.
Na ponte de comando em Brasília, muitas vezes paralisada por tantas mãos do Executivo, Legislativo e Judiciário mexendo no leme, traçar um rumo é notoriamente uma questão de alta complexidade e mantê-lo também, ainda mais com um “skipper” errático. Que está correndo o risco de confundir rumo com deriva.