Day: agosto 18, 2020

Ana Carla Abrão: Como furar o piso

Deveríamos estar discutindo como redefinir nossa trajetória de gasto

Se fôssemos um país normal, estaríamos hoje discutindo – como o Reino Unido fez em 2008, pós-crise financeira que ameaçou jogar a Inglaterra na insolvência – como redefinir nossa trajetória de gastos públicos. Como lá, o governo brasileiro estaria apresentando um amplo projeto de cortes de gastos e realocação de despesas de forma a garantir a normalidade da economia, o apoio aos mais pobres e a reversão da trajetória de colapso fiscal que a manutenção da tendência atual certamente nos destina.

Paralelamente, também como lá, estaríamos discutindo uma ampla reforma administrativa para modernizar a máquina pública, torná-la mais eficiente, menos cara e muito, muito mais voltada para o cidadão – e não para a sua autoperpetuação. Para quem acha que isso tudo é contraditório, basta lembrar que o programa de reequilíbrio fiscal inglês partia do princípio de que havia como cortar e realocar gastos de forma a preservar os mais pobres e melhorar os serviços públicos. E assim foi feito. A premissa (que se verificou verdadeira) era que havia desperdício, falta de foco, privilégios e gastos públicos (muitos!) com baixo ou nenhum impacto econômico e social. Não só soa familiar como é.

Na Inglaterra de Cameron, o programa de reequilíbrio fiscal foi definido, apresentado e implementado com objetividade e clareza. A conta foi feita de trás para frente, definindo-se o tamanho do ajuste de acordo com patamares de endividamento que eliminassem as desconfianças quanto à solvência da dívida inglesa.

Parte do sucesso na execução do ajuste inglês se deve ao estabelecimento de uma “star chamber”, um comitê em que os membros do governo eram obrigados a justificar seus orçamentos para um grupo ministerial e de servidores escolhidos a dedo. Ali, os gastos eram desafiados para que cada área do governo explicasse suas linhas de despesa e justificasse os valores. Além disso, cada um deveria avaliar como poderia fazer mais com menos – e melhor. Daí para uma ampla reforma administrativa que diminuiu em 25% o número de servidores foi um pulo. Era o único caminho para chegar a melhores serviços públicos gastando menos e valorizando o bom servidor.

Algumas lições emergem do programa inglês. A primeira delas se refere à irrefutabilidade dos dados. A Inglaterra chegou ao final da crise com um déficit de quase 10% do PIB e com trajetória de gastos crescente. Não havia outro caminho senão agir. As ações poderiam se traduzir em aumento de impostos ou corte de gastos. Optou-se pelo segundo, com transparência e comunicação claras. Não se desperdiçou a oportunidade da crise e entendeu-se que momentos de mudança estão aí para que mudanças profundas de curso sejam feitas.

Mas no Brasil, em vez de fazermos essa ampla discussão, explicitando a alocação dos gastos públicos, desafiando o Orçamento que tende a ser sempre a repetição do número do ano passado acrescido de algum porcentual, e definindo prioridades com o objetivo de buscar o desenvolvimento econômico e a redução da desigualdade social, o que fazemos é pressionar pelo fim do teto de gastos. Como se aumento de gastos fosse diminuir – e não ampliar – a atual ineficiência.

E a pressão vem também de dentro do governo, num diapasão que conhecemos muito bem: fura-se o teto para gastar com investimento público em infraestrutura e para criar um programa de transferência de renda universal e, porque ninguém é de ferro, para manter a trajetória crescente de despesas de pessoal e os benefícios fiscais intactos por mais alguns anos. E, claro, para garantir também a reeleição do presidente daqui a dois anos e meio, certo? Errado, porque o Brasil vai quebrar e todos terão uma conta para pagar. Os pobres mais que os ricos.

Mais gasto, no meio de tanto desperdício, significa que tudo continuará como está. Ou seja, os canais de distribuição estão aí para garantir que os recursos adicionais chegarão ao mesmo destino de sempre: aos mesmos grupos que se apropriam do Orçamento há décadas e que resistem bravamente à discussão distributiva e à correção de injustiças que levariam, invariavelmente, à redução dos seus privilégios.

Voltando à Inglaterra dos anos 2008 e aproveitando a discussão orçamentária deste ano, o governo brasileiro deveria seguir o exemplo britânico. Poderia estabelecer uma meta de ajuste fiscal de longo prazo, criar uma “star chamber” que rediscuta a divisão do Orçamento e exigir que cada área do governo defenda a sua parcela de gastos e explique como esses vão gerar mais emprego, mais renda e menos desigualdade social no Brasil.

Numa discussão como essa seria difícil defender que a Defesa deve receber mais recursos que a Educação, ou que salários de servidores devam representar 13% do PIB. Mas é numa discussão como essa, feita de forma clara, que se criam as condições para que as medidas fura-piso ganhem o espaço que hoje está sendo ocupado pelos fura-teto.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN


Pedro Fernando Nery: O Brasil do auxílio

A população precisa de políticas de emprego e benefícios robustos. Não de preconceito

Os últimos dias foram de discussões acaloradas sobre o auxílio emergencial, à medida que em plena pandemia ele alavancou a popularidade do presidente em locais em que ele não foi bem votado em 2018. De fato, o impacto dos R$ 600 no Nordeste e no Norte é mesmo gigantesco. A concentração do auxílio em algumas partes do Brasil é corolário da concentração do emprego com carteira assinada e gastos previdenciários em outras.

Menos de 20% dos catarinenses receberam a nova renda básica, mas mais de 40% dos roraimenses a receberam. Os valores pagos também tenderam a ser maiores nas regiões mais excluídas, que concentram crianças e, por isso, mais mães-solo (que receberam R$ 1.200).

Comparemos os municípios de Agrolândia e Agricolândia. Parecem parecidos? Na verdade, estão em regiões muito distintas: o primeiro pertence a um dos nossos Estados mais ricos, Santa Catarina, o outro a um dos nossos Estados mais pobres, o Piauí. Para comparar os municípios que têm números de habitantes diferentes, vamos dividir os valores pagos da renda básica emergencial pela população. Em Agrolândia, a mais próspera, o valor recebido por habitante foi três vezes menor do que na prima Agricolândia. Uma desproporção ainda maior se observa entre Água Doce, também em Santa Catarina, e em Água Doce do Maranhão. A transferência por água-docense foi quatro vezes maior no município maranhense.

Nessas cidades em que os trabalhadores não conseguem se inserir no mercado de trabalho nos moldes exigidos pela CLT e Previdência tradicionais, as transferências do INSS são menos relevantes – já que ele gasta mais onde há mais emprego e salários maiores. Por isso, garantir uma Previdência menos desequilibrada e focar recursos na assistência social é tão importante. Chegamos então à minha comparação preferida – e prometo que é a última.

O Bom Jesus gaúcho pertence ao terço de municípios mais ricos do Brasil. Já o Bom Jesus potiguar está entre os 15% mais pobres do País. Na cidade do Sul, a Previdência despende quase R$ 50 milhões por ano. Na cidade do Nordeste, despende cerca de R$ 10 milhões, ou cinco vezes menos. Lembre-se: eles têm a mesma população. E no auxílio emergencial? A situação se inverte. Bom Jesus do Rio Grande Norte recebeu 50% mais do que Bom Jesus do Rio Grande do Sul.

Essa concentração regional da Previdência – e em decorrência da nossa rede de proteção social tradicional – existe porque no Centro-Sul há mais idosos e também mercados de trabalho mais fortes, com mais emprego formal. Já o auxílio emergencial tem como pré-requisito ter renda baixa (o que exclui boa parte das famílias com aposentados e pensionistas) e não ter emprego formal (condição para acessar a Previdência urbana).

Esse grupo é excluído do orçamento da Seguridade Social no Brasil: na comparação com Estados de bem-estar social de democracias desenvolvidas, gastamos muitíssimo menos com benefícios para as famílias com crianças ou políticas de emprego.

Entre outros, um influencer comentou os dados do DataFolha: “Conclusão: o brasileiro é corrupto”. A pobreza extrema no menor nível já registrado. A desigualdade de renda idem. Dezenas de milhões poupados de cair na pobreza, e alguns outros milhões levantados temporariamente dela. O comércio com dados melhores que o da China. O efeito dos R$ 600 na vida dos brasileiros mais vulneráveis é real.

Os desdobramentos do auxílio na popularidade do presidente são um choque de Brasil para tantos que bradavam que os mais pobres eram os prejudicados pela reforma da Previdência urbana ou pela reforma trabalhista. Ao contrário, quem não tem emprego formal pode se beneficiar de mudanças inclusivas nos gastos do governo e na legislação do trabalho.

Mesmo nos últimos meses, a única proposta relevante para aumentar os números insignificantes de emprego formal nos lugares mais pobres do País é a tal carteira de trabalho verde e amarela de Paulo Guedes. A população que agora ficou menos invisível por conta do DataFolha precisa de políticas de emprego e de benefícios robustos voltados às famílias com crianças – não de mais preconceito.

*DOUTOR EM ECONOMIA


O Estado de S. Paulo: Mesmo com pandemia, governo planeja cortar orçamento da Saúde para 2021

Valor pode ficar em R$ 127,75 bi, R$ 47 bi a menos do que o limite de despesas autorizado para este ano; representantes do setor defendem adoção de ‘piso emergencial’ para escapar do teto de gastos

Mateus Vargas e Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Em plena pandemia da covid-19, o governo Jair Bolsonaro prevê cortar o orçamento do Ministério da Saúde para R$ 127,75 bilhões em 2021. O valor é menor do que o aprovado para o começo deste ano (R$ 134,7 bilhões) e do que o limite atual de gastos da pasta (R$ 174,84 bilhões, alcançado após liberação de créditos para enfrentar a crise sanitária).

Se a proposta for confirmada, o orçamento da Saúde para 2021 pode ser R$ 7 bilhões menor do que o previsto inicialmente pelo governo para este ano, antes da pandemia, ou R$ 47 bilhões inferior ao limite de gastos alcançado durante a covid-19, o que tende a aumentar a pressão por mais espaço no teto de gastos – a regra fiscal que impede o crescimento das despesas acima da inflação. 

As discussões sobre o orçamento ocorrem no momento de disputa interna no governo sobre aumentar ou não as despesas públicas. Na terça-feira da semana passada, Guedes alertou que Bolsonaro pode parar na “zona sombria” do impeachment se furar o teto. 

Depois da criação do chamado “orçamento de guerra” que permitiu o aumento de gastos na pandemia, há uma “guerra” aberta no governo e no Congresso para aumentar os recursos para bancar obras de infraestrutura, reforçar o caixa do Ministério da Defesa e tirar do papel o Renda Brasil, o programa social do governo Bolsonaro que vai substituir o auxílio emergencial de R$ 600 e o Bolsa Família. Como o Estadão revelou, o governo prevê mais verba para o Ministério da Defesa do que para o da Educação. 

Com o risco de perder recursos, a área de Saúde também vai intensificar agora a pressão no Congresso. A proposta de Orçamento da União para o próximo ano está nas mãos da equipe do ministro da EconomiaPaulo Guedes, e deve ser encaminhada até o fim deste mês ao Congresso. 

Guedes, que vem enfrentando “fogo amigo” e críticas abertas de colegas de Esplanada, não quer mexer no teto. Ele afirma que o mecanismo, criado no governo do ex-presidente Michel Temer, foi responsável por viabilizar a queda recorde dos juros e dos custos de rolagem da dívida pública. O ministro quer discutir o Orçamento de 2021 junto com medidas de corte de gastos por meio de “gatilhos” – que disparariam quando o aumento dos gastos obrigatórios (como folha de salários) colocasse em xeque outras despesas como investimentos.

“É como se o governo achasse que a covid-19 vai simplesmente sumir no dia 31 de dezembro de 2020”, afirma a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Luiza Pinheiro. Para Luiza, o governo desconsidera que parte da estrutura criada para atender a pandemia deve ser preservada, como leitos e respiradores. “Além disso, ignora os serviços que não foram prestados em 2020 por conta da pandemia (como cirurgias eletivas) e o aumento da demanda do SUS devido ao alto desemprego, que faz com que as pessoas percam seus planos de saúde, e da sua família.”

Distribuição

Da verba prevista para 2021 para o Ministério da Saúde, R$ 110,14 bilhões seriam de gastos obrigatórios, como a folha de pagamento de servidores, que não podem ser bloqueados. Outros R$ 16,47 bilhões são valores discricionários, que podem ser remanejados pelo governo, como para contratação de serviços e investimentos. Ou seja, o recurso que a Saúde pode escolher onde aplicar deve ser cerca da metade dos destinados à pasta no começo de 2020 e um quarto do que foi autorizado até agora, depois de reforço por força da pandemia. 

O valor apresentado pela equipe de Guedes não computa emendas parlamentares. Consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Funcia estima que, para se cumprir o piso constitucional para a Saúde, será preciso acrescentar cerca de R$ 10 bilhões de recursos de emendas. “É um duplo retrocesso. Não só reduz o orçamento atual, como ainda condiciona a uma fatia grande de emendas”, afirmou.

Neste ano, para enfrentar a covid-19, o Ministério da Saúde recebeu aporte de R$ 41,7 bilhões por meio de dez medidas provisórias. O recurso foi usado para reforçar o caixa de Estados e municípios no combate à pandemia, comprar respiradores, entre outros insumos, e custear as despesas de internação no SUS.

Além disso, cerca de R$ 2 bilhões serão usados pela Fiocruz para viabilizar a compra, processamento e distribuição de 100 milhões de doses de vacina contra a covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. Do recurso extra autorizado pela pandemia, o ministério autorizou o pagamento de R$ 27,62 bilhões e, de fato, desembolsou R$ 20,65 bilhões.

Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou. O Ministério da Economia afirma que a proposta de Orçamento para 2021 ainda é discutida internamente e pode ser alterada até 31 de agosto, limite para envio ao Congresso Nacional.


Armando Castelar Pinheiro: Outra vez o teto de gastos

O que se defende é uma reedição do PAC e da Nova Matriz Econômica, que jogaram o Brasil na recessão de 2014-16

Quando eu estudei fora e vinha visitar a família, o país parecia estar sempre à beira do precipício. Era o final dos anos 1980, período de hiperinflação, choques heterodoxos e um confuso processo de redemocratização. Voltava para Berkeley me perguntando como o país sobreviveria. Quando chegava aqui de volta, porém, nada tinha mudado: nem as coisas tinham explodido, nem nada fora resolvido. Era, como se dizia, uma hiperatividade paralisante.

Em várias dimensões, as coisas pouco mudaram desde então. Vemos isso na área fiscal, na questão tributária, na privatização, na abertura comercial etc. O custo disso é imenso: os investidores se retraem, a produtividade não aumenta e o crescimento é medíocre, gerando mais informalidade e pobreza do que seria preciso.

A aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que instituiu o teto de gastos, foi um passo importante na luta contra essa hiperatividade que não leva a lugar nenhum. Como observei à época (glo.bo/3hgjLA1), a regra do teto permite um ajuste fiscal gradual, sem ter de necessariamente cortar gastos, em especial aqueles com educação e saúde, cujo mínimo foi garantido pela própria emenda. Além disso, ele reduz o custo de financiamento do setor público.

O teto de gastos deu direção à política fiscal e ancorou as expectativas com extraordinário sucesso. Nos três anos decorridos desde a promulgação da EC 95, em dezembro de 2016, a despesa primária do governo central (União, INSS e Banco Central) cresceu 1,2% ao ano (a.a.) em termos reais, em linha com o observado em 2015-16 (0,3% a.a) e cerca de um quinto do visto entre 1997 e 2014 (6,3% a.a.). Isso permitiu uma forte queda da taxa Selic, de uma média de 14% em 2016 para 5,9% em 2019. Ainda assim, a inflação caiu, de 6,3% em 2016 para 4,3% em 2019. E, mais importante, o país saiu da recessão, com o desemprego em queda até a chegada da covid-19.

Esse quadro vinha permitindo um gradual ajuste das contas públicas. O déficit primário do setor público consolidado caiu de 2,48% para 0,85% do PIB de 2016 para 2019. A despesa com juros sobre a dívida pública também diminuiu, de 6,49% para 5,06% do PIB, em que pese a alta da dívida. Isso se deu por o custo de financiamento ter caído: entre 2016 e 2019, a taxa de juros implícita na dívida bruta caiu de 13,1% para 7,8%, enquanto para a dívida líquida a queda foi de 17,9% para 10%.

Isso reduziu não só o custo de capital para quem quer investir, como se vê no mercado de capitais, mas também o rendimento que as famílias mais ricas obtêm em suas aplicações financeiras, com impactos distributivos não triviais.

A pandemia da covid-19 levou ao acionamento de um mecanismo previsto na EC 95, que é a realização de despesas extra-teto, via créditos extraordinários, nas condições previstas no parágrafo 3º, artigo 167 da Constituição Federal; no caso, o estado de calamidade pública. Para mim, mais uma demonstração da flexibilidade bem direcionada da regra do teto.

Controlada a pandemia, e passado o estado de calamidade pública, previsto para terminar no fim do ano, se encerra também o espaço para esses gastos extraordinários. E esse movimento, que deveria ser natural, já que previsto na Constituição, vem enfrentando muita oposição política. Oposição que tende a crescer nos próximos meses. Aqui cabe diferenciar dois problemas distintos.

O primeiro reflete o desejo de setores do Executivo e do Congresso de gastar mais para alavancar suas chances eleitorais. Como mostram pesquisas recentes, o Auxílio Emergencial ajudou a aumentar a popularidade do presidente, atraindo um segmento da população antes alinhado ao PT. O fim, ou a redução, dessa transferência de renda vai ter o impacto oposto, e proporcionalmente até mais forte. Há também quem queira aumentar as despesas com projetos que rendam bons palanques eleitorais. Muitos deles, se forem em frente, perigam entrar para a longa lista de obras paradas.

O segundo diz respeito à necessidade de o orçamento passar a refletir as prioridades que a sociedade atribui aos vários tipos de gastos públicos, em vez de simplesmente acomodar aumentos em todos eles. Esse foi um desafio colocado desde que o teto de gastos foi proposto. Nada mudou quanto a isso. Ou melhor, mudou para pior. Com os gastos extras com a pandemia, a dívida pública vai dar um salto de 20% do PIB, complicando ainda mais a gestão das contas públicas. Respeitar o teto é ainda mais importante hoje do que antes da pandemia. O que não significa que se vai resolver com facilidade o conflito político entre os “donos” dos vários gastos. Mas esse é o papel da Política e o trabalho para o qual os políticos são pagos.

O que mais impressiona nos argumentos dos que defendem furar, flexibilizar o teto é dizer que ele terá um impacto positivo sobre a atividade econômica. Ora, o que se defende é uma reedição do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, e da Nova Matriz Econômica, ignorando que foram essas políticas que jogaram o Brasil na profunda recessão de 2014-16.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Carlos Ayres Britto: Projeto de lei sobre ‘fake news’

Artigo 10.º do PL 2.630 é o que me parece mais vistosamente destoante da Constituição

É de percepção geral o fenômeno das fake news. Fake news como notícias falsas, literalmente. Ainda que tal desencontro com a verdade não seja total. Ou aconteça por modo tão completamente voluntário quanto apenas em parte, ou até mesmo sem nenhum ingrediente subjetivo de parceria com a inverdade. De toda maneira, notícias falsas que se espalham instantaneamente e em escala planetária, porquanto formatadas sob essa revolucionária forma de mensageria em rede que toma o nome técnico de “comunicação de dados”.

Compreensível, pois, que se pressione o Estado para editar leis de enfrentamento eficaz desse recorrente fenômeno. É o pano de fundo do Projeto de Lei número 2.630, em tramitação pela Câmara dos Deputados e sob a ementa de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. A exigir a lembrança de que boa parte dos temas ali tratados tem o seu regime jurídico diretamente estabelecido pela Constituição da República. Logo, um regime que não pode deixar de se pôr como obrigatório parâmetro para toda e qualquer lei de escalão infraconstitucional. 

Essa advertência começa pela necessidade de se entender o que não sejam fake news. Por ilustração, elas não correspondem às categorias constitucionais da liberdade de “manifestação do pensamento” e da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Tampouco mantêm identidade com o direito de “acesso à informação”. Antes frustram o direito de todos ao mais livre acesso a um tipo veraz de informação, pois somente ele é que se põe como direito fundamental (por isso que bem de personalidade). E quanto à tarefa de dizer em que as fake news consistem, é preciso ver se elas já se encaixam nesse ou naquele molde legal de infração penal. Ou se é possível tomá-las como hipótese de incidência de um novo ilícito. Mais ainda, importa saber se a perpetração de fake news expõe o(s) seu(s) agente(s) à vedação de protagonizar futuras e distintas relações de internet. O que, data venia de entendimento contrário, me parece juridicamente descabido.

São aspectos que, junto a muitos outros de idêntica relevância – a partir do caráter jurídico totalmente privado das relações de internet -, não têm como ser dissecados num breve artigo de jornal. Por isso me limito a pinçar do projeto em causa todo o artigo 10.º, que me parece mais vistosamente destoante da Constituição. É que ele instaura um regime de rastreamento sobre as pessoas naturais que termina por lhes recusar os direitos fundamentais à “intimidade” e à “vida privada” (inciso X do artigo 5.º). Vida privada num plano intersubjetivo ou social, vida privada num plano espacial ou geográfico. Além de submetê-las a um tipo de investigação que, por independer do caso concreto e da apuração das coisas em autos oficiais, ignora os pressupostos também diretamente constitucionais da investigação criminal e da instrução processual penal. 

Deveras, penso que esse artigo 10.º inverte as coisas. Investigação criminal e instrução processual penal não se instauram senão documentalmente. Assim como não são abertas a partir do nada. Ambas pressupõem a ocorrência de algo sinalizador, em sua materialidade, de infração penal. Algo já abstratamente definido como ilícito penal e a ser apurado quanto à respectiva materialidade. Isso na perspectiva da identificação do respectivo autor. Um só autor, ou mais de um, contanto que essa coautoria seja passível de quantificação ou determinação numérica. Não em aberto, porque, senão, a essa indeterminação subjetiva passa a corresponder uma permanente situação de suspeita criminal sobre todo mundo e um Estado-polícia por definição. Como se a máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (Thomas Jefferson) não fosse cunhada a favor dos particulares e contra ele mesmo, Estado. Não o contrário.

Claro que não se está a desconhecer o vínculo funcional entre o combate às fake news e a concreção do bem jurídico fundamental da “segurança pública”. Ainda assim, que esse imbricamento se faça a partir do recorte que o artigo 144 da Constituição já fez quanto a dois literais sujeitos jurídicos: de uma banda, o Estado; de outra, as pessoas privadas. O Estado como sujeito que tem o “dever” de assegurar à população tal segurança; as pessoas privadas como titulares do direito ao desfrute desse bem da vida e também como responsáveis pela respectiva prestação. Sem que a lei possa baralhar as duas categorias jurídicas, pois o substantivo “dever” é conatural à figura do Estado mesmo. Estado que tem como uma das suas justificativas existenciais a permanente desincumbência desse específico dever, justamente.

Já a responsabilidade, o seu significado técnico é de colaboração ou ajuda ou auxílio. Sem constituir-se numa das próprias razões de ser das pessoas privadas. Pelo que a lei não pode forçar os particulares a fazer as vezes do poder público. A se colocar no lugar dele. Mais uma advertência que fica. 

EX-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAl (STF)


Andrea Jubé: “A gente sabe que o povo precisa comer”

Pesquisas mostram que Bolsonaro “levou a massa”

Era 1980, e o Brasil completava 16 anos de ditadura militar em um cenário de crise econômica progressiva, apatia política e um vazio de lideranças. Com esse pano de fundo, um jornalista de cabelos compridos, cigarro aceso entre os dedos e ar transgressor cobrou do ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola que liderasse a oposição ao governo e resgatasse a credibilidade da população na política e nos políticos.

Brizola respondeu que era preciso “buscar uma alternativa” que polarizasse a opinião brasileira e ganhasse a confiança interna e no exterior. Um desafio que a oposição brasileira experimenta hoje em dia.

“O senhor está falando numa linguagem de político em que o povo não acredita mais”, retrucou o jornalista Plínio Marcos, autor do censurado “Navalha na Carne”, ressaltando que a “alternativa” citada por Brizola deveria vir dele próprio.

Prosseguiu o dramaturgo: “Porque a gente sabe que o povo precisa comer, precisa morar, precisa trabalhar, precisa de um mínimo para viver com dignidade. Mas se vem um carismático de direita e joga essas pequenas coisas, que são o mínimo que o ser humano quer, não leva essa massa? Não corremos esse perigo? Não é urgente aparecer uma opção?”

Plínio Marcos dividiu a bancada com outros expoentes do jornalismo, como Roberto D’Ávila, Samuel Wainer e Tarso de Castro, em uma edição histórica do programa Canal Livre, de uma atualidade espantosa.

Passados 40 anos daquele confronto, duas pesquisas relevantes, num intervalo de quatro dias, atestam que matar a fome da população ainda é um gesto que credencia o político junto ao eleitor.

Os dois levantamentos confirmaram o crescimento da popularidade do presidente Jair Bolsonaro, significativamente entre os mais pobres, segmento que não contribuiu expressivamente para sua vitória em 2018.

Na sexta-feira, o Datafolha mostrou que a aprovação do governo subiu de 32% para 37%, a maior registrada desde o início do mandato, enquanto sua rejeição recuou dez pontos percentuais.

O principal deste levantamento é a constatação de que 53% dos contemplados com o auxílio emergencial de R$ 600 utilizaram os recursos para comprar alimentos. Entre os que têm menor renda, 61% utilizaram o dinheiro para essa finalidade. Na região Nordeste, esse índice sobe para 65%.

Ontem a pesquisa XP/Ipespe apontou que aqueles que consideram o governo ótimo ou bom foram de 30% em julho para 37% em agosto. Em linha com o Datafolha, o levantamento verificou que a melhora na avaliação se deu entre o segmento com renda familiar mensal de até cinco salários mínimos, que concentra os favorecidos com o auxílio.

Os dados refletem a atualidade do alerta de Plínio Marcos: qualquer liderança que entregasse à população suas necessidades mínimas - comer, morar, trabalhar - “levaria a massa”. As pesquisas mostram que Bolsonaro levou a massa.

A dúvida é se quando o valor do auxílio encolher para patamares menores, dentro do espaço fiscal buscado pela equipe de Paulo Guedes, e num cenário de provável aumento do desemprego, essa popularidade não irá igualmente refluir.

Plínio Marcos também mostrou apreensão no passado com o surgimento do “líder carismático” no mesmo cenário de vazio de lideranças, que se repete no presente. A ideia do “carisma” é ampla e abstrata demais para em poucas linhas carimbar o atributo em Bolsonaro. Mas é possível afirmar que o presidente tem uma habilidade incomum de se comunicar com a população.

Pesquisas internas, que circularam recentemente entre entusiastas da eventual candidatura de Luciano Huck, mostram que, no cenário atual, apenas três nomes nacionais têm projeção entre os mais pobres: Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o apresentador.

Desse trio, Bolsonaro já se declarou candidato à reeleição e está em pré-campanha. Lula rechaça, mas segundo declaração recente do ex-ministro Gilberto Carvalho, teria a pretensão de voltar a concorrer, mas para isso precisaria recuperar os direitos políticos. Huck é uma incógnita até para ele mesmo.

O favoritismo de políticos com o dom da comunicação remete ao ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, cujo centenário será celebrado em 2022. “Embora fosse de uma família aristocrática e fosse vertical no contato pessoal, a fala dele chegava no povão”, relembra o cientista político Nelson Rojas de Carvalho. Embora de origem humilde, Brizola casou-se com a filha de João Goulart, e Getúlio Vargas foi seu padrinho de casamento.

Carvalho, que é pesquisador e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), diz que Bolsonaro é fruto de uma mudança na base social que agora tem como representantes os motoristas e entregadores de aplicativos, que se identificam com o presidente.

“Quem pilota o Uber é um sujeito descrente, isolado, ressentido de seu posicionamento social, que não acredita em um Estado que poderia propiciar uma educação melhor para o filho”, diz o pesquisador.

“A fala do Bolsonaro chega nele, na dimensão de valores como família, Deus, combate à corrupção”, completa. Carvalho pondera que Lula propiciou mobilidade social, com programas de melhoria da renda, como a valorização do salário mínimo, mas perde força numa realidade onde o Estado perdeu a importância”.

Voltando a 1980, Plínio Marcos questionou Brizola quanto aos riscos do surgimento de um líder carismático. “Os perigos sempre existem, agora nós temos que trabalhar por soluções realistas”, respondeu o caudilho.

“É um sonho admitirmos que possa surgir um aiatolá no Brasil. Aqueles que pensaram que nós, do exílio, pudéssemos voltar como aiatolás estão enganados. O Brasil é uma nação imensa, que precisa de uma grande consciência daqueles que tem o mínimo de representação. As verdadeiras lideranças vão surgir em 82, teremos uma grande surpresa”, disse Brizola, sobre o pleito para eleição democrática de governadores. Samuel Wainer foi cético: “se chegarmos em 82”. No presente, reina a curiosidade quanto às lideranças que chegarão em 2022.


Ricardo Noblat: A barbárie do extremismo religioso contra a criança estuprada

O Estado brasileiro é laico. O que significa: ele não permite a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegia uma ou algumas religiões sobre as demais. Garante e protege a liberdade religiosa de cada cidadão, mas evita que grupos religiosos exerçam interferência em questões políticas.

“Os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais”, disse o ministro Marco Aurélio Mello em 2012 quando o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que grávidas de fetos sem cérebro podem interromper a gravidez com assistência médica prestada pelo Estado.

Em mais duas situações, o aborto é plenamente legal no Brasil: quando a continuação da gravidez importa em risco à vida da mãe e em caso de estupro. Foi o que aconteceu com a menina de 10 anos de idade, estuprada desde os seis anos por um tio no Espírito Santo, levada às pressas para abortar no Recife.

Em Vitória, um hospital negou-se a respeitar a ordem judicial de fazer a cirurgia na menina, conforme sua vontade reiteradamente manifestada em diversas ocasiões. A gravidez decorreu de um crime, tipificado em lei. Para a menina, suportá-la e dar a luz equivalia a um processo de tortura. Tortura é outro crime.

O que pretenderam os militantes cristãos, comandados por políticos da direita e da extrema direita, que na noite do último domingo cercaram o hospital no Recife onde a menina estava sendo esperada para submeter-se à cirurgia? Na prática, tornar a Constituição letra morta, ignorando o que ela prescreve.

Lava Jato ganha sobrevida com decisões de Fux e de Celso de Mello

Por ora, a sangria continua

Ainda não foi desta vez. Dava-se como certo nos meios jurídicos de Brasília que o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força tarefa da Lava Jato em Curitiba, seria condenado pelo Conselho Nacional do Ministério Público em dois procedimentos disciplinares a que responde por abuso de poder.

Prestes a assumir por dois anos a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux, à tarde, suspendeu os efeitos de uma advertência imposta em novembro a Dallagnol, o que tornava mais distante seu afastamento da chefia da Lava Jato. À noite, Celso suspendeu o julgamento marcado para hoje.

Fux fez por merecer a fama que tem de amigo número um da Lava Jato. Em 2016, logo após a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma, depois de uma conversa que teve com Fux, Dallagnol contou a um grupo de procuradores o que ouvira dele: “Disse para contarmos com ele para o que precisarmos”.

Ao que o então juiz Sergio Moro, informado sobre a conversa, comentou por escrito: “Excelente. In Fux we trust” (Em Fux nós confiamos”). Moro poderia acrescentar que também em Celso ele e a Lava Jato podem confiar pelo menos até novembro, quando o ministro, ao atingir os 75 anos de idade, deixará o tribunal.

No seu despacho, Celso afirmou que é “inaceitável a proibição ao regular exercício do direito à liberdade de expressão” de membros do Ministério Público e afirma que limitar esse direito “revela-se em colidência com a atuação independente e autônoma garantida ao Ministério Público pela Constituição”.


Hélio Schwartsman: Supervisão teológica

Pior do que igreja fazer campanha para político é o Estado decidir o que cada igreja pode defender

O abuso do poder religioso deve ser coibido em eleições? O TSE julga uma ação no curso da qual poderá ampliar o conceito de abuso de autoridade para abarcar igrejas. Se a tese proposta pelo ministro Edson Fachin sair vitoriosa, políticos eleitos com uma mãozinha de clérigos poderão ter seus mandatos cassados.

Não sou o melhor amigo das religiões, mas a inovação sugerida por Fachin me parece inoportuna e perigosa. Ela limitaria em demasia não só a liberdade de expressão mas também a de crença religiosa.

Já fui proprietário de uma igreja, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio (IHSE). Era um bom negócio. Criá-la não custou mais do que algumas centenas de reais e sua existência permitia-me fazer aplicações financeiras livres de impostos, entre outras vantagens. Como o propósito de minha aventura sacerdotal não era enriquecer nem usar drogas legalmente (outra das vantagens), mas demonstrar, numa reportagem, quão fácil é usar a religião para livrar-se de impostos, acabei fechando a IHSE.

A legislação brasileira proíbe o poder público de negar registro a qualquer instituição religiosa cujos estatutos não afrontem nenhuma lei e sigam uma estrutura semelhante à das associações civis.

Não era o caso da IHSE, mas eu poderia ter estabelecido como princípio único do credo heliocêntrico o “não votarás para presidente em ninguém cujo sobrenome não comece com a letra b e termine com o”.

Seria um mandamento esdrúxulo, mas totalmente dentro da lei. Nesse caso, a aplicação da regra proposta por Fachin impediria a igreja de cumprir seu único desígnio, situação a meu ver incompatível com a da liberdade de crença assegurada pela Constituição (a Carta não afirma que a crença precisa fazer sentido).

Ainda pior do que igrejas fazendo campanha para políticos é o Estado se arrogando o direito de exercer supervisão teológica e decidir o que cada igreja pode ou não defender.


Cristina Serra: A oposição e a 'esfinge'

Fragmentação é caminho suicida para oposição progressista

Aos 20 meses de governo, Bolsonaro já está em campanha pela reeleição e avança sobre o terreno adversário, o Nordeste, embalado pelo auxílio emergencial e a melhora expressiva de sua aprovação.

De olho em 2022, ele testa até onde pode furar o teto de gastos sem entrar na “zona sombria” do impeachment, como ameaçou Paulo Guedes. Bolsonaro tem se mostrado um especialista em esticar a corda e parar antes que ela arrebente. Poderá usar essa habilidade para administrar as pressões de seu ministro e do “mercado” enquanto sonha com obras, gastos e o segundo mandato.

É cedo para saber se isso dará certo. Seguro mesmo é que pesquisas anteriores ao último Datafolha já mostravam que Bolsonaro retém taxa de aprovação sólida como granito em torno de 30%. É um desafio entender tal patamar de aprovação, considerando o comando desastroso desde o começo da pandemia. Nem a demissão do popular ministro da Saúde abalou esse percentual, muito menos a do ministro da Justiça, decisivo na ascensão de Bolsonaro.

Artigo recente do professor da Uerj João Cezar de Castro Rocha, na Ilustríssima, joga luzes sobre a “esfinge” Bolsonaro. Identifica doutrinas militares da ditadura e da Guerra Fria —adaptadas para tempos democráticos— e a linguagem do “olavismo” como elementos que dão coesão à visão de mundo bolsonarista.

Eu acrescentaria o fundamentalismo religioso e o afrouxamento das regras sobre posse, porte e compra de armas, sob medida para as milícias, e temos um projeto de sabotagem da República e da democracia.

Diante de tudo isso, o que a oposição progressista deveria fazer? Na Hungria, do ultradireitista Viktor Orbán, há uma década no poder, finalmente os seis principais partidos de oposição anunciaram que vão concorrer com candidato e programa únicos em 2022. Essa estratégia mostrou-se vitoriosa nas eleições municipais do ano passado em Budapeste e em outras cidades. Que nos sirva de exemplo para evitar o caminho suicida da fragmentação.

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Mario Vargas Llosa: Rumo à Estação Finlândia

Em livro, Edmund Wilson resolve o difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa

Edmund Wilson publicou dezenas de livros – artigos, ensaios críticos, polêmicas, um longo estudo sobre a literatura da guerra civil americana, Patriotic Gore, e seus diários pessoais, bastante libidinosos. Em toda essa extraordinária obra se destaca Rumo à Estação Finlândia (Companhia das Letras), que tem como subtítulo Um Estudo Sobre Escrever e Atuar na História, publicado em 1940. É um livro absolutamente atual, que pode ser lido e relido como os grandes romances e que, no passar dos anos desde sua publicação, ganhou encanto e vigor, a exemplo das obras-primas literárias.

Seu propósito é narrar, como o faria um romance, a ideia socialista, desde que o historiador francês Michelet descobriu Vico e sua tese de que a história das sociedades nada tinha de divino, era obra dos próprios seres humanos, até dois séculos depois, quando, numa noite chuvosa, Lenin desembarca na Estação Finlândia, em São Petersburgo, para liderar a Revolução Russa. É um livro de ideias, que parece ficção pela habilidade e imaginação com que foi escrito e pela originalidade e força compulsiva dos personagens que nele aparecem – Renan, Taine, Babeuf, Saint-Simon, Fourier, Owen, Marx, Engels, Bakunin, Lassalle, Lenin e Trotski – os quais, graças ao poder de síntese e à prosa de Wilson, ficam gravados na memória do leitor como os personagens de Os Miseráveis, Os Irmãos Karamazov ou Guerra e Paz. É uma obra-prima que, por motivos políticos, foi marginalizada, apesar de seu alto valor do ponto de vista literário.

A ideia socialista é a ideia de um paraíso na terra, de uma sociedade sem ricos e sem pobres, onde um estado justo e generoso distribuiria riqueza, cultura, saúde, lazer e trabalho para todos, de acordo com suas necessidades e capacidades, e onde, pelo mesmo motivo, não haveria injustiças nem desigualdades e o ser humano viveria desfrutando do bem da vida, a começar pela liberdade. Essa utopia nunca se materializou, mas mobilizou milhões de pessoas ao longo da história e produziu greves, motins e revoluções, violências e repressões indizíveis, além de um punhado de personagens fascinantes que trabalharam até a loucura para incorporá-la à realidade. O resultado dessa odisseia irrealizável – em grande medida, graças às lutas que motivou – foi corrigir boa parte das ferozes injustiças da velha sociedade, para que a classe trabalhadora e seus sindicatos renovassem profundamente a vida social, adquirissem direitos que antes lhes eram negados e fossem transformadas de forma radical a economia e as relações humanas.

O homem que Lenin mais odiava provavelmente era Eduard Bernstein, o líder dos social-democratas alemães, a quem acusou de “oportunismo” e “reformismo”, palavras terríveis no jargão marxista. Por que esse ódio? Porque Bernstein, de fato, passou de revolucionário a reformista, graças às concessões que o poderoso movimento operário alemão vinha arrancando da burguesia: melhores salários para trabalhadores, escolas e hospitais, padrões de vida que se confundiam com os da baixa classe média, reconhecimento e proteção jurídica aos sindicatos. Nesse ambiente, era um delírio continuar postulando a revolução total. Mas a Rússia não era a Alemanha social-democrata. Havia ali um czar e uma polícia que assassinavam e torturavam irrestritamente e campos de concentração no Polo Ártico, onde os revolucionários passavam muitos anos, se sobrevivessem à fome e ao frio. Lenin e a incrível Krupskaya ficaram detidos lá. Nesse contexto, as teses social-democratas de Bernstein não tinham razão de ser e prevaleciam as de Lenin: um partido de militantes revolucionários que exigia “todo o poder” para realizar as reformas que transformariam as raízes da sociedade russa e, acrescento, criariam a mais perfeita sociedade totalitária da história. Esta é apenas uma das inúmeras rupturas e inimizades que a luta pela ideia socialista gerou. E talvez não seja tão luminosa e romântica como aquela que separou Marx e Bakunin, ou Marx e Lassalle. O anarquista Bakunin era imensamente popular; nos cárceres perdeu os dentes e músculos, mas não as convicções e, viajando por meia Europa, ele espalhou – e nele acreditaram – sua doutrina básica: que a “destruição” era uma ideia fundamentalmente criativa.

Outras páginas inesquecíveis do livro se dedicam à extraordinária amizade que uniu Marx e Engels: a descrição que Edmund Wilson oferece da generosidade e dedicação de Engels a Marx e sua família, convencido de que ele mudaria a história humana, é imperecível. Engels não apenas sustentou os Marxs por longos anos; chegou a escrever crônicas para o jornal americano que contratara Marx como colaborador. Lendo esse capítulo, é impossível não sentir a mesma simpatia por Engels e reconhecer seu heroísmo discreto, como faz Edmund Wilson em páginas comoventes. Engels odiava ser empresário em Manchester e se sacrificou vários anos nesse ramo para que Marx pudesse escrever o primeiro volume de O Capital. O segundo, com Marx já falecido, foi mais difícil de editar, ainda que o autor houvesse deixado muitas notas e fragmentos. O próprio Engels deu início à tarefa, mas não conseguiu terminá-la, constrangido pela enormidade do empreendimento, e acabou substituído por Karl Kautsky. No livro de Edmund Wilson, todos esses episódios têm cor, graça e a convicção de que por trás daqueles acontecimentos minúsculos e obscuros foram dados passos decisivos para a transformação da história humana. Não foi exatamente assim, mas, no livro, foi. E um de seus grandes méritos é nos convencer disso.

Ao mesmo tempo que criavam tipos extraordinários e forças da natureza, como o anarquista Bakunin e o socialista Lassalle, as lutas sociais iam renovando a Europa. Os sindicatos e partidos políticos dos trabalhadores transformavam a sociedade, deixando-a menos injusta. Exceto na Rússia, onde o czar Alexandre III nunca fez a menor concessão e continuou com a ferocidade de outrora e a perseguição aos adversários, fossem moderados ou intransigentes. Assim ele cavou sua própria sepultura e embarcou seu país e o mundo na mais ruinosa das aventuras. Tudo isso acontece em Rumo à Estação Finlândia, antes que Stalin ascenda ao poder e a revolução mostre sua face mais horrível: a liquidação dos dissidentes, reais ou inventados. Em suas últimas páginas, Lenin e Trotski ainda são amigos e se respeitam – e este último acaba de publicar um ensaio vibrante: A Revolução de 1905.

Trotski não tinha a convicção fanática de Lenin, nem estava disposto a fazer os mais trágicos sacrifícios para impulsionar a revolução; era mais culto e melhor escritor. Mas as revoluções não são feitas por homens de cultura, mas sim por revolucionários, e Lenin o fez de corpo e alma, com a ajuda de Krupskaya, exigindo que os militantes não se esquecessem nem por um segundo da ideia da revolução e estivessem dispostos a fazer todos os sacrifícios.

O livro relata as teorias, as rivalidades e inimizades, as vaidades em jogo, as intrigas e futilidades que regulavam a vida desses grandes homens. E, ao mesmo tempo, narra como, trabalhando pela justiça, eles estavam coagulando futuras injustiças. Esse difícil equilíbrio entre tipos humanos e líderes de massa Edmund Wilson o resolve de maneira soberba, destacando, por exemplo, no caso de Marx, a vida miserável que ele e sua família levavam morando em dois quartinhos do Soho e a fantástica transformação social daquele que tinha a convicção absoluta de ser um porta-estandarte.

Havia uma edição antiga de Hacia la Estación de Finlandia em espanhol, que quase passou despercebida. Agora, numa tradução aprimorada, a editora Debate a relança. Preparemo-nos para receber com dignidade esse trabalho excepcional. / Tradução de Renato Prelorentzou.


Eliane Cantanhêde: Sem dó nem piedade

Faltaram tochas e máscaras brancas nos gritos de ‘assassina’ para a pobre menina pobre

É de chorar copiosamente de raiva, vergonha e desânimo quando um bando de enlouquecidos usa o nome de Deus para transformar uma pequena e sofrida vítima em vilã, aos gritos de “assassina”. É de uma crueldade sem limites, que faz recrudescer uma angústia que só aumenta: a audácia dessa gente que saiu das trevas não tem fim?

A pobre menina pobre tinha seis anos quando passou a ser abusada por um tio, na casa onde morava com os avós. O pai? Não se sabe. A mãe? Também não. Sem os pais e sem o olhar, o cuidado e a piedade dos adultos, responsáveis, amigos e vizinhos, que não viram nada ou não quiseram “se meter na vida dos outros”, o que e quem sobrou? Nada, ninguém. Só o medo, a solidão, a dor do corpo e da alma.

Histórias assim ocorrem o tempo todo, por toda parte, contra milhares de meninas e meninos pobres e desamparados neste nosso Brasil tão lindo, de gente tão alegre e sol o ano inteiro, invejado por natureza pujante. Um Brasil tão solar que abriga um Brasil tão obscuro, soturno, onde a Justiça não é igual para todos, juízas injustas se referem à “raça” do suspeito para condená-lo e crianças não têm o direito de serem crianças. Abandonadas pela família e pelo Estado.

A nossa brasileirinha, tão sofrida, menstruou cedo e engravidou aos 10 anos do criminoso que usava da intimidade da casa para destruir o corpinho, a autoestima e a vida dela. A lei autoriza o aborto em caso de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. Ela se encaixa em dois dos três critérios e a Justiça autorizou, mas médicos no Espírito Santo lavaram as mãos e ela teve de ser acolhida em Pernambuco, num hospital que interrompeu uma gravidez que poderia tê-la matado, depois de longa tortura que ninguém viu, ou não quis ver. The end? Não, foi só mais um capítulo dessa novela macabra. O drama dela continua, assim como o dos quase 70 mil estupros por ano.

Almas do mal rondam a desgraça alheia, como a blogueira que desfilava de peito de fora quando feminista e agora, depois de se metamorfosear em bolsonarista, é alvo da Justiça por jogar fogos de artifício contra o Supremo e capaz de divulgar o nome da criança grávida e o endereço do hospital. Que pessoa é essa? Que mente deturpada é essa? É preciso responsabilizá-la pelo crime, previsto em lei, de expor menores de idade em situações adversas. Além de investigar quem vazou para uma pessoa com essa índole os dados da menina e do seu destino para a execração pública.

É demoníaco, mas mulheres e homens que se dizem religiosos, até pastores, atenderam à convocação e se aglomeraram diante do hospital para aprofundar a dor, a vergonha e a humilhação daquela criança. Só faltaram máscaras brancas e tochas para reproduzir a Ku Klux Klan, reencarnação do nazismo nos Estados Unidos condenada em todas as democracias saudáveis.

Parabéns ao médico Olímpio de Moraes, que cumpriu a autorização judicial e enfrentou a hipocrisia e os ensandecidos para defender, com coragem e generosidade, o direito à saúde e à vida. “Obrigar uma criança a ter uma gravidez forçada é um absurdo”, disse ele. Sim, absurdo, maldade, escândalo, uma desumanidade. Como Nação, não podemos compactuar com perversidades assim. Não se trata de ser contra ou a favor do aborto, mas de humanidade.

Que a violência contra essa brasileirinha acorde a sociedade para esses abusos que acontecem com uma frequência assustadora sob as nossas barbas. É preciso proteger nossas crianças, incentivar as denúncias de quem finge que não vê e punir os culpados. Para as seitas que chamam a pequena vítima de “assassina”, convém lembrar que o real criminoso está solto, ao lado de milhares de outros prontos a destruir a vida e o futuro de crianças como ela.


Míriam Leitão: Os vários nós da crise Guedes

Há dinheiro sobrando no Orçamento. Essa é a ironia desta crise. Houve o chamado empoçamento. Até junho, o dinheiro não executado chegou a R$ 31 bilhões. Outro risco: em 2021, não há meta fiscal porque foi impossível estabelecer uma previsão quando foi feita a LDO. O ambiente parece perfeito para os gastadores. Só que existem dificuldades técnicas e uma trava para os gastos: o teto. Não é a primeira vez que o ministro Paulo Guedes entra em zona de turbulência, mas esta é a pior crise. No governo, dizem que ele não sai, mas a tensão está aumentando. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em conversa com interlocutores internos, já avisou que concorda em 99% com o ministro Paulo Guedes. Não poderia ser o substituto na eventualidade da queda.

A solução, segundo eu soube no governo, será conseguir algum dinheiro este ano para atender aos ministros Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas. E essa foi toda a discussão das últimas horas. Marinho, que queria R$ 30 bi, se contentaria com R$ 5 bilhões, mas nem isso Paulo Guedes achou técnica e fiscalmente viável. A turma do deixa disso está querendo convencer Guedes a ceder um pouco, e Marinho a concordar com menos. No final do dia, estava estabelecido que haveria uma MP de R$ 5 bi, e que R$ 1,8 bi seria para o Ministério do Desenvolvimento Regional. E Paulo Guedes bateu pé: só o que fosse possível ser executado até 31 de dezembro, porque no ano que vem não haverá a PEC da guerra, portanto, voltam a valer todos os limites de despesas.

Para entender o ambiente de ontem, de boatos sobre a queda do ministro Paulo Guedes, é preciso saber três coisas. Há uma rede de intrigas, há complexas questões fiscais envolvidas e existe o desgaste. Um observador da cena interna do governo lembra que já houve outras crises e a atual começou em abril, com o anúncio do Plano Pró-Brasil, quando se falou abertamente em abandonar o teto de gastos. A equipe econômica, na época, fez uma reunião e disse que estava com Guedes. Se o teto caísse, sairiam todos. De lá para cá, vários já saíram. Nas outras duas grandes crises, ele teve defensores dentro do governo. Agora, eles estão rareando.

A primeira crise foi entre o final da tramitação e a aprovação da reforma da Previdência. Guedes fez duras críticas às mudanças no Congresso. Ali, Guedes e Marinho ficaram mais distantes, e houve o embate com o deputado Rodrigo Maia. Na segunda crise, Guedes foi criticado por seu desempenho em Davos, pelo resultado baixo do PIB, pelas “não entregas”, e tropeçou mais uma vez nas palavras. Chamou os servidores de parasitas e criticou empregadas que teriam ido à Disney no câmbio baixo. Precisou ser defendido pelo presidente, que disse que ele teria cometido apenas “gafes” e ficaria até o final do mandato.

Com as chamadas “não entregas” do ideário liberal, o mercado financeiro perdeu a visão quase religiosa que tinha de Paulo Guedes. Agora, quando se fala com os economistas dos bancos, eles dizem que sabem que ele está isolado e que o programa se frustrou, porém, se sair, vai haver uma deterioração de preços de ativos, pelo entendimento de que a agenda liberal foi definitivamente abandonada.

No governo, o clima é o seguinte: Paulo Guedes se sente traído, porque acha que levou Marinho para o governo, quando o ex-deputado perdeu o mandato, e ele, depois de virar ministro, voltou-se contra Guedes. Outros ministros contam que Bolsonaro e Marinho se aproximaram muito e têm se encontrado toda semana. O presidente gosta do que ouve e quando vai falar com Guedes recebe a informação de que aquilo é impossível.

Na área técnica, o que se conta é que há duas armadilhas fiscais. Primeiro, o fato de que há dinheiro sobrando no orçamento. Recursos ordinários não foram gastos porque o governo parou. O segundo é que quando foi preparada a LDO era impossível fazer uma estimativa de receita para 2021. Então, pela primeira vez depois de décadas, o resultado primário será flexível. Não é simples realocar o dinheiro que está sobrando, muito menos usá-lo no ano que vem porque o teto de gastos voltará a valer. O que ouvi no governo e entre economistas do mercado: Paulo Guedes não sai agora, e é difícil substituí-lo. Roberto Campos Neto tem dito a quem o procura que concorda em quase tudo com Guedes. Um aviso de que não aceitaria ser o substituto.