Day: agosto 13, 2020
Eduardo Rocha: Eles sabem o que e para quem fazem!
No clímax de sua crucificação, Jesus clamou: “Pai, perdoa-os! Porque eles não sabem o que fazem” (Lucas 23:34). Para os cristãos, tal postura é a clara revelação de seu generoso perdão e sua profunda misericórdia mesmo àqueles que contra ele conspiraram, prenderam-no, julgaram-no, condenaram-no, maltrataram-no, humilharam-no, crucificaram-no e deixaram-no na cruz a agonizar até o último suspiro inocente absorver os derradeiros lances de ar.
Portanto, há neste mundo os que não sabem por que fazem e mesmo assim fazem. Há também os que sinistramente unem tão diabolicamente os dois verbos (fazer e saber) que nesta hora já modelam a essência e a aparência da futura reforma tributária, cuja arquitetura final tende a expressar e satisfazer os grandes interesses da minoria endinheirada.
Os que lideram o debate político-tributário-econômico falam em “unificação e simplificação de impostos”, “redução da carga tributária e dos custos”, “melhoria do ambiente de negócios”, “transparência ao consumidor”, “neutralidade”, “fim da cumulatividade e disputas judiciais”, “competitividade”, “crescimento econômico” e por aí vai.
As três propostas em tramitação no Congresso (a PEC 45, da Câmara, a PEC 110, do Senado, e o texto do governo federal) podem ter diferenças técnico-pontuais aqui e ali, mas suas ossaturas representam os interesses invisíveis e silenciosos dos grupos sociais dominantes que, em sua grande parte, são conservadores do status quo; defensores dos privilégios do passado, do presente e do futuro; radicalmente dogmáticos no poder milagroso da “mão invisível”; extremamente contrários e resistentes a qualquer mudança que altere minimamente sua participação relativa na produção e apropriação da riqueza e sua reprodução política no poder.
Enquanto protege a alta riqueza e as grandes propriedades da justa taxação, o espírito tributário que vagueia em Brasília quer tirar dos pobres para dar aos mais pobres. Como? O governo quer tirar parte do abono salarial, cujo valor é de até um salário mínimo (R$ 1.045), pago aos trabalhadores com carteira assinada, e tirar parte do salário-família, cujo valor varia com a quantidade de filhos, e destiná-las ao chamado Renda Brasil; não quer novos beneficiados ao seguro defeso (auxílio pago ao pescador durante o período de reprodução dos peixes); quer elevar o imposto da cesta básica e acabar com as deduções do Imposto de Renda (cuja tabela está desatualizada), que atingirão os que pagam planos de saúde e escola particular.
A conta não deve ser jogada à mesa pobríssima da maioria miserável que chora, mas no bolso da minoria milhardária que ri. Mantida, porém, a essência injusta da tributação, os senhores da reforma tributária não terão perdão, pois eles sabem o que fazem e para quem fazem.
*Eduardo Rocha é economista
Bernardo Mello Franco: Guedes virou um ex-superministro
A debandada na equipe econômica transformou Paulo Guedes num ex-superministro. O fenômeno já havia ocorrido com Sergio Moro, que acreditou ter carta branca e foi esvaziado até deixar o governo. Agora se repete com o fiador do bolsonarismo junto ao mercado.
No mesmo dia, abandonaram o barco os secretários de Desestatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Paulo Uebel. Eles reclamaram que as privatizações e a reforma administrativa não saem do papel. O principal motivo é a falta de interesse do capitão.
Na campanha, Guedes garantiu que Bolsonaro havia se convertido ao ultraliberalismo. Logo ele, que pregou o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso por causa do leilão de estatais. O ministro anunciou um plano radical de redução do Estado. Em um ano e meio, não entregou quase nada do que prometeu.
Algumas de suas propostas, como zerar o deficit público em um ano e arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de imóveis públicos, sempre soaram como anúncios de terreno na Lua. Acreditou quem quis.
Além de vender ilusões, Guedes criou múltiplas frentes de atrito. Ele brigou com o presidente da Câmara, chamou servidores de “parasitas”, ofendeu pobres que deixaram de viajar após a disparada do dólar. É inesquecível a sua fala sobre os tempos do real valorizado. “Empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada… Pera aí!”, ironizou.
A pandemia desmontou de vez a fantasia do governo ultraliberal. Vendo sua reeleição em risco, Bolsonaro deixou de se aconselhar no Posto Ipiranga. Sem combustível, Guedes perdeu espaço para ministros que defendem o aumento do gasto público, como seu ex-assessor Rogério Marinho. Agora vê outros auxiliares fazendo as malas para fugir de Brasília.
Ao confirmar a debandada na equipe, o titular da Economia jogou pesado. Acusou colegas de induzirem o chefe a “pular a cerca” da responsabilidade fiscal. “Vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment”, dramatizou. Ontem o capitão ensaiou uma defesa protocolar da austeridade. Mas quem bancava essa agenda já perdeu a aura de superministro.
Ascânio Seleme: Só terremoto salva
Mesmo com cenário ruim, 38% dos brasileiros querem reeleger Bolsonaro
Fernando Henrique Cardoso pode até não admitir, mas no fundo deve estar arrependido por haver se empenhado tanto pela aprovação do princípio da reeleição em 1997. Com o falso objetivo de consolidar o Plano Real, criou um monstrengo que atrapalha governos e confunde eleitores. Por sua causa, governantes em primeiro mandato trabalham principalmente para ganhar o segundo, e os eleitores acabam sendo enganados ao julgar os mandatários com base em suas “bondades”. Todos os presidentes foram reeleitos desde a aprovação da emenda, mesmo os enrolados.
A primeira prova de que o princípio torna nebulosa a gestão do postulante a um segundo mandato foi dada pelo próprio FH, que em 1998 segurou artificialmente o câmbio para não atrapalhar sua reeleição e, quando teve de soltá-lo em janeiro do ano seguinte, causou um tsunami na economia. O governante usa sem escrúpulos a máquina administrativa para se reeleger, mesmo que disso resultem quebradeira de empresas e escalada do desemprego. E ainda há um outro elemento que torna praticamente imbatível um presidente candidato, a admiração incondicional do brasileiro médio por homens poderosos.
A reeleição de Lula é um caso já estudado e explica essas premissas. O ex-presidente se valeu tanto da imagem de pai generoso quanto da de gestor poderoso, que distribui dinheiro entre os mais necessitados. Dinheiro público, claro. Lula estava envolvido até o pescoço no escândalo do mensalão, embora tenha dito que “não sabia” das movimentações criminosas do deputado cassado José Dirceu. O PT pagava a partidos e parlamentares pelo apoio que eles davam ao governo. Mais uma vez, era dinheiro público que remunerava os aliados. Um escândalo desse tamanho não foi o suficiente para impedir seu segundo mandato.
Dilma foi reeleita mesmo tendo feito um primeiro governo antipolítica. A ex-presidente passou quatro anos torpedeando partidos, especialmente o MDB do seu vice Michel Temer. Foi tão omissa que acabou permitindo a eleição de seu algoz Eduardo Cunha para presidente da Câmara, no início do segundo mandato. Na economia, expandiu gastos desordenadamente e reduziu juros na marra, resultando no aumento da inflação e do desemprego. Em janeiro de 2013, para combater o monstro que havia criado, pediu aos prefeitos de Rio e São Paulo que não dessem aumento de ônibus. O preço represado da passagem foi majorado em junho, e o que se viu em seguida virou história. Mesmo assim, Dilma foi reeleita.
E então chegamos a Bolsonaro. O presidente colecionou erros grosseiros nos seus primeiros 18 meses de governo. Os mais óbvios foram menosprezar o Congresso, ultrajar o Supremo e incentivar manifestações antidemocráticas. O país assistiu abismado àquela famosa reunião ministerial em que Abraham Weintraub disse que, se dependesse dele, “prendia estes vagabundos”, apontando para a Praça dos Três Poderes, “a começar pelo Supremo”. Além disso, os filhos do presidente, sua mulher e suas ex-mulheres estão envolvidos numa rede de gastos com dinheiro vivo de origem mal explicada, muito provavelmente das rachadinhas praticadas por toda a família.
O presidente ainda ignorou agressões ao meio ambiente e alertas globais. Mais adiante, fez pouco caso da epidemia de coronavírus, debochou das mortes por ela causadas e gerenciou mal o combate. O grande momento da sua presidência, e ainda assim dependendo do ângulo que se olhe, foi a aprovação da reforma da Previdência. Mas, como ele não se mobilizou a seu favor, a reforma deve ser atribuída ao Congresso. Seu único e verdadeiro mérito foi ter se mantido calado nas últimas cinco semanas. Não poderia haver um cenário pior para um presidente. E, mesmo assim, pesquisa revela que 38% dos brasileiros querem reelegê-lo.
Para agravar o quadro, não há no horizonte sinal de entendimento entre os diversos matizes da oposição. Lula caminha solitário à esquerda. Moro bate cabeça à direita. O centro não tem vigor nem empatia. Você pode dizer que é cedo, tudo bem. Mas, se não houver mudança radical nesse cenário já, somente um terremoto poderá evitar a reeleição de Bolsonaro.
Ricardo Noblat: O dilema de Paulo Guedes e o que interessa a Bolsonaro
A debandada de Paulo Guedes do governo pode ser só uma questão de tempo. Bolsonaro não teve peito para demitir Sergio Moro do Ministério da Justiça, mas criou todas as condições para que ele saísse. Deverá proceder da mesma forma com o seu ex-todo-poderoso ministro da Economia.
Guedes entende de economia, mas de política é Bolsonaro que entende. Alguma coisa aprendeu em 30 anos como deputado. Após perder sete auxiliares, Guedes alertou Bolsonaro para o risco de impeachment se não bancar as reformas. Bolsonaro respondeu entregando ao Centrão o cargo de líder do governo na Câmara.
Agrava-se a situação do clã Bolsonaro a cada nova descoberta ou revelação feita pelo Ministério Público do Rio que o investiga por corrupção. O sonho de Bolsonaro de se reeleger depende, no primeiro momento, de afastar o risco de impeachment, e no momento seguinte, de conseguir o apoio de partidos.
Bem que ele tentou atrair partidos para seu lado nas eleições passadas, mas fracassou. Ninguém acreditou que ele pudesse vencer. Nem ele mesmo acreditava. Foi a eleição mais atípica da história do país. O líder das pesquisas estava preso e impedido de concorrer. A facada dispensou Bolsonaro de fazer campanha.
Ou Guedes abre o cofre para ajudar a reeleger Bolsonaro, e deixa as reformas para o segundo mandato dele, se segundo mandato houver, ou pede as contas e passa o cargo a quem se dispuser a jogar o jogo que o desagrada. No regime de governo do Brasil, não existe ministro insubstituível. Quem manda é o presidente.
Foi só para ganhar tempo que Bolsonaro, ontem à noite, encenou às portas do Palácio da Alvorada o ato de renovar seu compromisso com as reformas do Estado, a privatização de empresas e a responsabilidade fiscal – temas, por sinal, que jamais contaram com o seu voto para avançar no Congresso.
Bolsonaro, o liberal, é uma invenção de Guedes para justificar sua adesão à candidatura dele em 2018. Durante a campanha, Guedes chocou-se com a indiferença de Bolsonaro ao que ele tentava lhe ensinar sobre economia. Foi em frente mesmo assim. Achou que, uma vez eleito, Bolsonaro se tornaria dependente dele.
Palavras o vento leva. O vento levou a promessa de Bolsonaro de não se candidatar à reeleição. Levou a promessa de combater a corrupção sem vacilo. Levou a promessa de não trocar cargos no governo por votos no Congresso. E levou a promessa de comportar-se como o presidente de todos os brasileiros.
Os militares que o cercam disseram-lhe para não se livrar de Moro porque seu governo poderia acabar. Moro saiu, forçado que foi. Nem o governo acabou, nem Bolsonaro perdeu popularidade. Os militares dizem agora a ele que a receita de Guedes pode torná-lo impopular, e aí adeus à reeleição. Bolsonaro medita.
Dossiê dos antifascistas: ministro recua para evitar crise com STF
Mendonça ainda tem muito o que aprender
Meia volta, volver! Perdeu-se a conta do número de vezes que o ministro André Mendonça, da Justiça, avançou, recuou, tornou a avançar, recuou outra vez, para no fim confirmar a existência de um dossiê sobre quase 600 servidores federais que se declararam antifascistas, e que ele prefere chamar de relatório.
O comportamento do tipo ioiô de Mendonça chegou a prenunciar uma possível nova colisão entre os poderes Executivo e Judiciário quando ele se negou a atender a um pedido da ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, para que lhe remetesse uma cópia do dossiê. Ou do relatório, como preferisse.
O dossiê foi produzido pela Secretaria de Operações Integradas do ministério, subordinada a Mendonça. Depois que parte dele veio a público, o ministro mandou abrir uma sindicância para apurar o caso. Mas mesmo antes de a sindicância ser aberta, ele demitiu o coronel que chefiava o setor de inteligência da secretaria.
Ora, por que a demissão se o conteúdo do tal dossiê, ou relatório, como dizia Mendonça, não configurava nenhum crime contra a livre manifestação de pensamento que a Constituição garante a todo mundo, inclusive a servidores federais fascistas ou antifascistas? O Congresso quis conhecer o dossiê, e já o recebeu.
No último dia 6, Mendonça havia dito que seria “catastrófico” compartilhar o dossiê com o Judiciário. Pediu “parcimônia e sensibilidade” ao Supremo para que deixasse a Comissão de Controle Externo da Atividade de Inteligência do Congresso fazer a análise sobre o tema. Por que só o Congresso?
Ao saber, porém, que o tribunal tomará posição a respeito em sessão marcada para a próxima semana, concluiu que o melhor seria se dispor a atender ao pedido da ministra Carmen Lúcia. Enfim, tanta trapalhada para nada, e logo de um ministro que aspira a uma vaga no Supremo. Ainda tem muito que aprender.
Merval Pereira: Da boca pra fora
Assim como continua dizendo que é a favor do combate à corrupção, depois de forçar a saída do ministro Sérgio Moro, também Bolsonaro jura que é a favor do teto de gastos, e garante que o equilíbrio fiscal é o objetivo de seu governo. Conversa mole. O objetivo de Bolsonaro sempre foi a reeleição, que esconjurou durante a campanha.
Foi contra a corrupção da boca para fora, porque lhe rendia votos, e hoje ajuda a desconstruir a Operação Lava-Jato e o ex-ministro Moro. As trapalhadas do Queiroz e os gastos em dinheiro vivo da família mostram que há anos o mesmo sistema de rachadinhas irriga as contas de seus membros. Era a pequena corrupção, a corrupção do baixo clero, como a do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, que achacava o dono do restaurante da Casa.
Nunca foi liberal, nem a favor de privatizações, mas percebeu na aproximação com Paulo Guedes que essa era uma escolha que lhe garantiria o apoio do empresariado e do setor financeiro, dava credibilidade à sua candidatura.
Passada mais da metade do segundo ano de governo, Bolsonaro vai mudando de casca, largando pelo caminho promessas, aliados, posições, para proteger os seus e alimentar o eleitorado que depende do governo para sobreviver. Projetos de resgate da pobreza? Só a ampliação do Bolsa-Família. Mudanças estruturais? Desde que não prejudiquem seus potenciais eleitores.
À medida que vai se arrastando seu mandato, mais perto da eleição, menor a vontade de mexer em velhas estruturas corporativas, como a dos servidores públicos. Lula foi mais prudente, embora também tenha perdido o ânimo para continuar a reforma da Previdência depois dos primeiros embates com sua base sindicalista.
Mas o PT levou quase um mandato inteiro para colocar as manguinhas de fora. Só no seu segundo mandato o PT achou-se em condições de aplicar sua própria política econômica, a nova matriz do ministro Guido Mantega, que desembocou na falta de controle de gastos e no impeachment da presidente Dilma, de quem Mantega continuou ministro da Fazenda no primeiro mandato.
Bolsonaro é mais afoito, um a um desestabiliza seus superministros antes do fim do segundo ano de governo, e Paulo Guedes é a bola da vez. Está lutando contra o Centrão, os militares desenvolvimentistas e o Bolsonaro raiz, liberal e contra a corrupção da boca para fora.
Se acreditasse que Bolsonaro quer mesmo desestatizar, Salim Mattar não teria deixado o governo. A aproximação com o Centrão é mais um obstáculo. Afinal, é preciso ter estatais para dar aos novos aliados. Se achasse que a reforma administrativa é para valer, Paulo Uebel não teria saído.
O ministro Paulo Guedes nunca esteve tão próximo de deixar o governo, mas acredito que vá brigar até o Orçamento da União ser proposto. Se for incluída, por uma pedalada qualquer, o aumento de gastos em obras de infra-estrutura, e para fazer o Renda Brasil, vai ser difícil que fique.
Dizem que ele está procurando dentro do governo verbas que estariam sobrando e poderiam ser dadas para aplacar a sede do Centrão, mas achar a esta altura que existem verbas sobrando é quase risível. Já está cortando da educação, e vai precisar de mais para o projeto de reeleição de Bolsonaro.
Talvez até aguente, porque, dizem, teme que a economia desande caso saia. Mas se ficar sem capacidade de ação, não adianta, pois logo o mercado saberá identificar sua fragilização. Talvez tente também aprovar a reforma tributária, mas com a CPMF digital não vai conseguir. A CPMF é a saída que ele encontrou para financiar as maluquices de Bolsonaro sem furar o teto de gastos.
O apoio do Rodrigo Maia ajuda, mas não muito, porque ele não aceita a CPMF e é difícil a Câmara aprovar a reforma administrativa que diminua o número e o salário de servidores. E não creio que Bolsonaro tenha ânimo para brigar com uma corporação tão forte.
Importante é a posição de Maia contra a tentativa de abuso do uso de dinheiro público. Nesta, ele vai brigar com o Centrão, que está ávido por mais verbas. Mas em final de mandato, com perspectiva de Bolsonaro apoiar o Centrão na sucessão da presidência da Câmara, pode ser que Maia não tenha força.
A única coisa que pode contê-lo é a advertência de Guedes de que ele está sendo levado para o impeachment.
Luiz Carlos Azedo: A âncora da estabilidade
”Embora desanuviada, a crise permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro, sem reformas”
Foi um dia de muito nervosismo no mercado e no Palácio do Planalto, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro ter de chamar uma reunião de ministros e parlamentares de sua base, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, em razão da péssima repercussão da saída de dois integrantes da equipe econômica, que jogaram a toalha devido à falta de compromisso do governo com a reforma administrativa e as privatizações. Os secretários especiais de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, pediram demissão na terça-feira, o que pegou Guedes de surpresa. O ministro abriu o jogo para opinião pública: há uma “debandada” na equipe, por causa dos rumos do governo.
Guedes não escondeu seu desconforto e revelou a crise interna do governo na terça-feira, após uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), hoje o seu principal aliado na defesa do chamado “teto de gastos”, que vincula as despesas do Orçamento da União à inflação passada, como uma maneira de conter e reduzir, ao longo do tempo, o deficit fiscal. O que era um deficit previsto de R$ 134 bilhões neste ano, com os gastos decorrentes das medidas emergenciais para enfrentar a pandemia, deve chegar à casa dos R$ 800 bilhões, fazendo a dívida pública se aproximar dos 100% do PIB no fim do ano. Esse é o tamanho do problema. O mercado vê com desconfiança a capacidade de Guedes administrar essa dívida.
Colabora para isso o fato de que outros cinco integrantes da equipe econômica já haviam deixado o governo desde o ano passado: Marcos Cintra (ex-secretário da Receita Federal), Caio Megale (ex-diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda), Mansueto Almeida (ex-secretário do Tesouro Nacional), Rubem Novaes (ex-presidente do Banco do Brasil) e Joaquim Levy (ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES). Mas nenhum deles tinha a mesma proximidade de Mattar e Uebel com Guedes, com o agravante de que o primeiro é um líder empresarial carismático, cuja saída teve muito mais repercussão no mercado.
Nos bastidores do Ministério da Economia, a avaliação é de que o grupo de executivos e empresários liberais que cercava Guedes não aguentou o giro da moenda da administração pública federal e o jogo bruto de poder na Esplanada dos Ministérios, principalmente com os militares. A saída dos dois auxiliares e amigos deixou Guedes muito abalado, mas o ministro amanheceu, ontem, disposto a partir para a briga pela manutenção do teto de gastos contra seus colegas de Esplanada, aparentemente com a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro. A reunião de ontem à tarde, no Palácio do Planalto, com Guedes e seus desafetos na Esplanada, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, que foi seu secretário de Previdência, e o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, foi para Bolsonaro pôr ordem na tropa e começar a negociação da manutenção do teto com o Congresso.
Novo líder
Também participaram do encontro os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); os deputados Arthur Lira (PP-AL) e Ricardo Barros (PP-PR), e os senadores Eduardo Gomes (MDB-TO) e Fernando Bezerra (MDB-CE). A novidade foi a presença de Barros, ministro da Saúde no governo Michel Temer, que será o novo líder do governo na Câmara. Bolsonaro trocou o deputado Major Vítor Hugo (PSL-GO), seu fiel escudeiro, por um dos quadros mais importantes do Centrão na Câmara, unificando o grupo, cuja liderança Barros divide com Arthur Lira, o líder da bancada do PP.
Embora a crise tenha sido desanuviada, permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro. Na equipe econômica, a avaliação é de que a antecipação da estratégia de reeleição de Bolsonaro está sendo um fator perturbador da política econômica. De certa forma, Guedes também tem culpa nesse cartório: na polêmica reunião ministerial de 22 de abril, foi um que pôs pilha em Bolsonaro, ao vincular o abono emergencial ao projeto eleitoral de 2022. Todo o problema, agora, é o fato de que Bolsonaro já está em campanha.
Há uma conta que não fecha. Guedes não consegue fazer as privatizações, seja porque os militares que comandam as estatais fazem obstrução, seja por falta de investidores, ou as duas coisas. Não faz a reforma administrativa porque Bolsonaro não quer confusão com os servidores públicos. Não consegue aprovar a nova CPMF porque essa sigla é palavrão para a opinião pública e para a maioria do Congresso. Sem reforma administrativa nem aumento de impostos, não tem teto de gastos que resista.