Day: agosto 13, 2020

RPD | Benito Salomão: Repensando a Política Monetária

Soluções para estimular a economia, como redução da taxa de juros e corte dos impostos e/ou expansão das despesas públicas, aliadas a uma política de estímulo fiscal estão fora de cogitação. O gasto privado, possibilidade ainda mais complexa, sofre com a falta de confiança na economia do país

O Covid agravou problema há anos presente na economia brasileira: o baixo crescimento. A dinâmica do produto preocupa desde o início da década. Segundo minha estimativa, a taxa média de crescimento desta década será de -0,27%, a depender do resultado deste ano. Isto se torna ainda mais grave quando se considera que o PIB brasileiro foi negativo em 2014, 2015, 2016 e 2020, ano para o qual se espera cifra entre -6% e -9,5%. Mais grave, porém, é que essa década, considerada como a pior da história, gerida por uma equipe econômica amadora e objeto de um debate público empobrecido, poderá, inclusive, comprometer o desempenho da próxima década.

O Brasil precisa voltar a crescer, criar empregos e gerar renda, mas como fazer isto? As soluções para estimular a economia, ao menos no curto prazo, em cenários como este, de baixa inflação, esboçam-se tradicionalmente no modelo keynesiano. Vale dizer, redução da taxa de juros e corte dos impostos e/ou expansão das despesas públicas, para conduzir a economia a seu equilíbrio de médio prazo. Isto, no entanto, não será tão simples porque muitos destes instrumentos estão esterilizados. A taxa nominal de juros, por exemplo, se encontra em seu nível mais baixo. A Selic over para o mês de julho foi de 2,15% ao ano. Se a taxa de câmbio permanecer estável em torno dos R$ 5,20, pode ocorrer que a taxa de juros caia ainda mais. Entretanto, nova queda de 0,5 ponto percentual, trazendo a Selic nominal para 1,75%, terá pouco efeito sobre o produto.

A outra política de estímulo seria a fiscal, mas ela está obstruída por uma dívida pública de 85,5% do PIB, que deve fechar 2020 em 96%. Em um contexto destes, cuja retomada não se poderá se dar pela expansão da despesa pública, a recuperação da economia só pode ocorrer pelo gasto privado, possibilidade ainda mais complexa, pois o gasto privado depende de um elemento subjetivo e fora do controle da política macro: a confiança.

"A redução do custo do crédito não estimulou o crédito, cujas concessões acumuladas se retraíram de R$ 405 bilhões, em dezembro de 2019, para R$ 321 bilhões, em junho de 2020"


Em Animal Spirits, livro recente dos Prêmios Nobel de Economia George Akerlof e Robert Shiller (foto acima), abordam-se os fatores que poderiam conduzir a economia, de um equilíbrio de baixa confiança para um de alta confiança. Para os autores, a confiança se espalha na economia através de um efeito multiplicador, isto é, quanto mais pessoas confiarem na recuperação econômica e nas instituições, mais agentes tenderão a realizar gastos e investimentos. Fatores como injustiça, corrupção e ilusão monetária estão entre os elementos que desestimulam a confiança.

No capitulo 7 do livro, os autores discutem proposta que pode ser aplicável ao caso brasileiro. Em momentos de abalo coletivo da confiança, ainda que as taxas de juros caiam, como vem ocorrendo no Brasil desde 2016, somado a medidas adicionais como liberação de depósitos compulsórios por parte do Banco Central, os efeitos sobre a confiança e, consequentemente, sobre o produto e o emprego são modestos. Diante da falta de confiança, os autores propõem que o Banco Central persiga meta de concessão de crédito, para estimular a atividade e o emprego. Em países, como o Brasil, que conta com três bancos públicos com capilaridade nacional, isto é perfeitamente factível.

"Mais grave, porém, é que essa década, considerada como a pior da história, gerida por uma equipe econômica amadora e objeto de um debate público empobrecido, poderá, inclusive, comprometer o desempenho da próxima década"

As quedas recentes da taxa Selic promoveram retração considerável do spread bancário – de 18,36%, em janeiro deste ano, para 5,62%, em junho. A redução do custo do crédito não estimulou o crédito, cujas concessões acumuladas se retraíram de R$ 405 bilhões, em dezembro de 2019, para R$ 321 bilhões, em junho de 2020. Muitos desafios se impõem para estimular a economia via crédito. O primeiro é a população desbancarizada, que, em 2019, se situava em torno de 50 milhões de pessoas, fora a população de inadimplentes, de cerca de 63 milhões. Mesmo considerando-se certa interseção entre as pessoas desbancarizadas e as com pendências cadastrais, já se pode dimensionar a magnitude do desafio.

Nesse contexto, instituir meramente uma meta de crédito pode não funcionar por falta de demanda por empréstimos. Além disso, entre as pessoas físicas bancarizadas há um comprometimento médio de 26% da renda com pagamentos de dívidas não imobiliárias. Ou seja, em média, do total da renda familiar disponível, 26% estão comprometidos com o pagamento de alguma modalidade de empréstimo bancário não imobiliário.

Daí a proposta de que o Banco Central atue comprando estas dívidas não imobiliárias de pessoas físicas e jurídicas, para limpar tais passivos do setor bancário privado. Trata-se de uma medida excepcional e sem custos fiscais, que poderá contribuir para recolocar estas pessoas e famílias no circuito econômico.

*Benito Salomão é mestre em Economia e doutorando em Economia pela UFU.


RPD | Andrei Meireles: A Lava Jato é dura na queda

Sérgio Moro e a Lava Jato viraram obstáculos ao projeto de reeleição de Bolsonaro. O Palácio do Planalto avalia que o jogo vai ficar mais duro depois da posse, em setembro, de Luiz Fux na Presidência do STF. Augusto Aras, de olho em uma vaga no STF, também tem pressa de mostrar serviço contra o ex-juiz e a força-tarefa

Faz tempo que a Lava Jato, depois de sua bem-sucedida trajetória de caçadora de corruptos, virou troféu de caça de políticos dos mais variados naipes, como o PT de Lula, o MDB de Renan Calheiros e Romero Jucá, o Centrão e os tucanos, sob a batuta de Aécio Neves. Esse movimento ganhou corpo ano passado com a adesão do presidente Jair Bolsonaro que, mesmo tendo Sérgio Moro como ministro da Justiça e Segurança Pública, criou a expectativa de conseguir apoio em outros poderes para livrar seu clã das investigações na Justiça. Moro nunca lhe deu essa garantia.

Foi então costurado um acordão tácito, com o apoio dos ministros do STF Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que, desde o ano passado, vem obtendo vitórias parciais. Nesse caldeirão, foi gerado o recuo pelo Supremo Tribunal Federal da autorização do cumprimento de penas, inclusive da pena de prisão a partir da condenação em segunda instância. Foi também ali que se tentou acabar com o Coaf, um órgão de inteligência financeira que produz relatórios técnicos sobre o caminho do dinheiro movimentado pelas mais diversas organizações criminosas e é o responsável, por exemplo, em seguir a lavagem de dinheiro, do PCC aos grandes esquemas de corrupção.

Na tríplice parceria entre Toffoli, a cúpula do Congresso e Bolsonaro, o Coaf passou de mão em mão e simplesmente foi paralisado. Foi ressuscitado pelo plenário do Supremo. Mas a guerra seguiu em frente. Bolsonaro trocou Moro pelo Centrão. Se sentiu à vontade para dar as cartas, atropelou a lista tríplice do Ministério Público e escalou Augusto Aras como procurador-geral da República. Interferiu também na Polícia Federal, o outro grande braço das investigações sobre a corrupção do colarinho branco no país.

Enquanto estava no governo, Sérgio Moro até tentou segurar as pontas. Caiu fora quando foi atropelado por Bolsonaro que, em uma reunião ministerial, em abril, anunciou seu propósito de montar um sistema de inteligência para atender a seus interesses. É o que vem acontecendo desde lá. Até um sistema no Ministério da Justiça, criado para acompanhar o crime organizado, passou a bisbilhotar supostos adversários do governo, de policiais antifascistas a alguns reconhecidos intelectuais. Um deles, Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário nacional dos Direitos Humanos, hoje um curinga da ONU para relatar grandes encrencas mundo afora.

Essa obscura ofensiva contra opositores coincide com a urgência em ganhar terreno nesse final de mandato do aliado Dias Toffoli –- uma invenção do PT – na Presidência do Supremo Tribunal Federal. A avaliação é de que Sérgio Moro e a Lava Jato viraram obstáculos ao projeto de reeleição de Bolsonaro. E, no Palácio do Planalto, de que o jogo vai ficar mais duro depois da posse, em setembro, do ministro Luiz Fux na Presidência do Tribunal. Daí a pressa também do procurador Augusto Aras, de olho em uma vaga no STF, de mostrar logo serviço contra Sérgio Moro e a Lava Jato.

"Na tríplice parceria entre Toffoli, a cúpula do Congresso e Bolsonaro, o Coaf passou de mão em mão e simplesmente foi paralisado. Foi ressuscitado pelo plenário do Supremo. Mas a guerra seguiu em frente. Bolsonaro trocou Moro pelo Centrão"

Em dobradinha com Toffoli, Augusto Aras conseguiu aval para transferir todos os bancos de dados de anos e anos de grandes investigações da Operação Lava Jato em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo para a Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Como era previsível, tão logo acabaram as férias de julho da Justiça (outra anomalia), o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, revogou essa decisão absurda. Mas algum estrago já estava feito. Há verdadeira rebelião contra Aras em todas as instâncias do Ministério Público. Essa postura dele, digamos, de quinta coluna, reduziu seu apoio inclusive entre seus poucos aliados.

O procurador Augusto Aras sentiu o tranco. Demitiu seu secretário-geral, o procurador aposentado Eitel Santiago – um bolsonarista assumido e o mais agressivo crítico da Lava Jato –, baixou o tom depois do bate-boca com colegas no Conselho Superior do Ministério Público Federal e não compareceu ao ato organizado por Toffoli e o governo, para reduzir o papel do Ministério Público nos acordos de leniência de empresas envolvidas em corrupção. Aras havia participado dessa negociação, mas nessa nova fase, antes de botar seu jamegão, resolveu consultar quem entende do ramo no próprio Ministério Público.

Esse aparente recuo de Aras não significa que desistiu do combate à Lava Jato. Só pisou no freio por avaliar que pode ser atropelado no caminho. Ele sabe que a caneta de Toffoli ficará sem tinta daqui a pouco. A turma da Lava Jato também sabe disso. Confia em Luiz Fux para uma volta à normalidade e uma revisão da ofensiva contra as investigações sobre corrupção.

Se há erros cometidos pela Operação Lava Jato – com certeza, os há – eles devem ser corrigidos com a perspectiva de melhorar a Justiça, para que não se repitam. E não para criar brechas para a corrupção que, com esses sinais trocados, continua a pleno vapor país afora. Basta ver o que estão roubando em nome do combate à pandemia do novo coronavírus. Esvaziar o poder de investigação dos órgãos estatais encarregados de combater o desvio do dinheiro público é uma espécie de cumplicidade com o crime.

*Andrei Meireles é jornalista


El País: Crise escancara mudança de rumo de Bolsonaro, disposto a rifar o que sobrou da agenda liberal

Presidente reafirma respeito a teto de gastos, mas pressões para aumento de despesas para garantir retomada seguem latentes. Guedes é criticado por falta de plano para o pós-pandemia

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quarta-feira que o Governo manterá o compromisso com o teto de gastos públicos ―que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação ― e que buscará soluções para destravar a economia brasileira. O pronunciamento acontece um dia depois de dois secretários da equipe econômica pedirem demissão e em meio a uma disputa no Congresso e dentro do próprio Executivo para driblar a regra. Uma ala do Governo defende um aumento de gastos com obras públicas e outros investimentos como forma de reaquecer a atividade econômica impactada pela pandemia do coronavírus e fortalecer Bolsonaro na disputa eleitoral de 2022. “Nós respeitamos o teto dos gastos, queremos a responsabilidade fiscal e o Brasil tem como ser um daqueles países que melhor reagirá à questão da crise”, afirmou o presidente, ao lado dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, e ministros.

O pronunciamento foi relâmpago e pouco detalhado, num termômetro da encruzilhada em que Bolsonaro está. O presidente se mostra disposto a respaldar publicamente o ministro da Economia, Paulo Guedes, que cobrou um compromisso político com a agenda liberal. Mas, na prática, não quer contrariar nem os militares nem os congressistas que gostariam de flexibilizar as amarras e gastar mais.

A ofensiva sobre a regra do teto e a queda de dois secretários especiais do Ministério da Economia Salim Mattar (Desestatização) e Paulo Uebel (Desburocratização) apenas escancaram as divergências internas dentro doGoverno que ficaram ainda mais escancaradas depois da pandemia. No entorno de Bolsonaro, os pedidos por aumento de despesas e furos na regra do teto dos gastos tem sido cada vez mais constantes. O próprio senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, afirmou que Guedes “vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho” para obras de infraestrutura.

As baixas desta terça-feira se somam às saídas nas últimas semanas de Mansueto Almeida (do Tesouro Nacional), de Caio Megale (da diretoria de programas da Secretaria Especial da Fazenda) e de Rubem Novaes, que anunciou a saída da presidência do Banco do Brasil. O ministro da Economia parece por momento ainda firme no cargo, mas já não esconde sua irritação com a ala em que se empenha em flexibilizar o teto de gastos indo contra sua cartilha liberal e de redução de despesas. Nesta terça-feira, Guedes subiu o tom e afirmou que os “ministros fura-teto” levam Bolsonaro para uma zona cinzenta. “Os conselheiros do presidente que estão aconselhando a pular a cerca e furar teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal. O presidente sabe disso, o presidente tem nos apoiado”, afirmou.

No pronunciamento, Bolsonaro tentou apaziguar o clima de tensão, que já preocupa o mercado financeiro e investidores. Prometeu, sem dar qualquer detalhe, avanços tanto na política de privatizações de empresas públicas como na apresentação da reforma administrativa, que mexe na remuneração do funcionalismo público e que ele mesmo resolveu engavetar. Essas justamente foram as agendas que levaram às demissões da véspera, já que os dois secretários estavam insatisfeitos com a paralisia em suas áreas. Sob o comando de Salim, nenhuma estatal federal de controle direto foi privatizada. Nem a venda da Eletrobras, a principal aposta para este ano, andou. O Governo Bolsonaro, inclusive, criou uma nova estatal, a NAV, responsável pela navegação aérea.

Já a reforma administrativa, que estava sendo tocada por Uebel, chegou a ser discutida no fim do ano passado, mas o presidente recuou em meio a turbulências e protestos sociais na América Latina, principalmente no Chile. O temor era de que a proposta acabasse sendo rechaçada pela sociedade e pelos parlamentares. Neste ano, houve uma promessa de que um texto seria apresentado, mas o plano foi adiado, com Bolsonaro temendo uma reação contrária dos servidores.

Nesta quarta, o dólar fechou em alta ante o real, afetado por incertezas sobre a capacidade de a equipe econômica tocar pautas reformistas. Apesar de não ter um histórico político ligado à economia liberal, no começo do “casamento” com o Guedes, as promessas de uma agenda liberal e reformista eram grandes e animaram o mercado. Ainda na campanha eleitoral, o futuro ministro da economia afirmava que arrecadaria 1 trilhão de reais com privatizações de empresas públicas e que a realização de vendas de imóveis chegaria a outro trilhão. Prometeu ainda que tinha a receita certa para reequilibrar as contas públicas e zerar o déficit já no primeiro ano do mandato de Bolsonaro. Passado mais de um ano e meio de Governo, os planos nunca decolaram —dentro do ministério não faltam vozes que critiquem a falta de coordenação de Guedes— e uma crise sanitária sem precedentes cruzou o caminho. Nada da agenda vingou, exceto a reforma da Previdência em 2019, que já havia sido amplamente discutida no Governo do ex-presidente Michel Temer e encampada pelo Congresso. Mas, desde então, reformas almejadas, como a administrativa, e as privatizações não emplacaram. Segundo analistas, faltou desde o início qualquer empenho do presidente em construir espaço político para fazer justiça a essa retórica econômica bastante ambiciosa.

Na avaliação de Rafael Cortez, sócio e cientista político da Tendências Consultoria, as saídas das equipes e o descolamento da agenda retratam o problema originário do Governo Bolsonaro de falta de disposição política e articulação para a implementação dessa retórica liberal. “Agora com essa maior fragilidade política do presidente, com queda de popularidade, foi reforçado esse cenário de pouca disposição para fazer o encaminhamento da agenda econômica liberal. Ele agora quer minimizar a rejeição por meio de apostas na transferência de renda”, explica.

Ainda segundo Cortez, a pandemia fez a PEC dos gastos, hoje no centro da disputa política, perder legitimidade. “Ela encurtou a vida política do teto, já que aumentou a pressão para retirar algumas despesas do seu guarda-chuva”, explica. Para o cientista político, a equipe econômica carece de um novo rumo para se organizar nesse quadro pós-pandemia, quando até organismos como o FMI (Fundo Monetário Internacional) têm dado o braço a torcer sobre a necessidade de aumentar o gasto público. “O Governo ainda não comprou a ideia que o cenário mudou e que a emenda do teto precisa ser flexibilizada para dar conta desse momento”, opina.


Valor: “Se houver fracasso, povo vai atribuir às Forças Armadas”, diz FHC

Ex-presidente vê perigo na presença numerosa de militares no governo Bolsonaro

Por Carolina Freitas, Valor Econômico

SÃO PAULO - O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB) disse considerar perigosa a ocupação de numerosos cargos do governo federal por militares, como acontece na gestão Jair Bolsonaro. Para o tucano, além de haver o risco de os integrantes das Forças Armadas gostarem do poder, a imagem da instituição fica indissociável do governo.

“O povo vai atribuir, se houver fracasso, às Forças Armadas, e não à política. É complicado, é perigoso”, afirmou ontem Fernando Henrique em palestra sobre geopolítica no Congresso WebHall, promovido pela Escola Paulista de Medicina, da Unifesp, e transmitido pela internet.

Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em julho, aponta que há 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo.

Fernando Henrique foi cauteloso ao responder sobre a possibilidade de uma ruptura da democracia no Brasil. “Sempre há risco”, disse. “Não acredito que haja um propósito neste momento de fazer uma ditadura, mas às vezes, sem propósito, as coisas acontecem.”

FHC disse perceber entre os militares um discurso de que precisam “salvar a pátria”. O ex-presidente explicou porque considera esse raciocínio um erro.

“Durante muitos anos que eu tive convívio com os militares, eles tinham mudado a percepção da sua própria capacidade de exercer o poder sem tomar em consideração os outros, pelo bem da pátria. Eles são patriotas em geral. Mas o problema não é eles serem patriotas ou não. É que a pátria é diversa, você tem que compor essa diversidade. Os militares tinham aprendido isso”, afirmou Fernando Henrique.

“Eu sinto que agora há uma tendência de novo a que alguns pensem que podem salvar a pátria. A pátria se salva sozinha. Nós temos que ter regras que permitam o funcionamento das divergências dentro de um contexto, respeitando regra, respeitando a Constituição, dando espaço pra todo mundo.”

O ex-presidente comentou brevemente a notícia, que veio à tona semana passada, de que o presidente Jair Bolsonaro teria decidido, mas acabou dissuadido, de intervir no Supremo Tribunal Federal (STF), em maio. “Os ministros do Supremo tomam uma decisão que interfere no outro Poder [Executivo], que fica irritado e tem reações que não são razoáveis: ‘Quero nomear novos nomes do Supremo!’ Isso aí já é o começo de uma conversa ruim.”

Fernando Henrique Cardoso classificou o presidente Jair Bolsonaro como alguém que não sabe o que acontece no mundo.

Ao comentar a rivalidade entre Estados Unidos e China, FHC afirmou que os países brigam por espaço para ter influência e relações comerciais, por exemplo, com países como o Brasil. “São decisões muito complicadas, que estão longe de ser a vida política brasileira. Você elege pessoas que parece que estão fora do mundo, que têm ideias anacrônicas. O presidente às vezes não tem que saber nada, tem que saber conduzir, mas é bom que saiba de algo que está acontecendo no mundo, que não tenha a visão tão fechada sobre certas questões.”

Bolsonaro busca alinhamento com os EUA, por meio de aproximação com o presidente americano Donald Trump. Declarações do presidente brasileiro e de ministros ofensivas à China causaram tensão com o país oriental.

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta participou do mesmo evento que FHC, em outro painel, e fez também críticas à militarização. Mandetta classificou o momento atual na Saúde como uma “grande noite” e um “apagar de luzes”. A pasta está sob comando de um interino, o general Eduardo Pazuello, sem experiência ou conhecimentos em saúde. “Com a militarização, vem a grande noite do Ministério da Saúde. Apagam-se as luzes. A primeira ação é esconder os números.”

De acordo com o ex-ministro, os “generais de plantão no Ministério da Saúde” obedecem à determinação política de Bolsonaro ao tentar tirar a responsabilidade do governo federal no combate à covid e deixar o ônus para Estados e municípios. “Calam-se frente ao enfrentamento da pandemia.”


Ribamar Oliveira: Ala liberal perde substância no governo

Privatizar estatais e fazer reformas sempre foi difícil no Brasil

O que há de mais significativo na saída de duas importantes autoridades do Ministério da Economia, nesta semana, é que elas fazem parte da mesma ala liberal que procura, desde o início, montar uma agenda modernizadora e liberalizante para o atual governo. A saída deles cria interrogações sobre o futuro, pois indica um esvaziamento e perda de substância desse pensamento ideológico dentro do governo.

O momento da saída foi muito ruim, pois o ministro Paulo Guedes enfrenta uma disputa interna com as alas militar e política do governo, que querem um programa de investimento em obras de infraestrutura como estratégia para sair da crise econômica provocada pela pandemia.

Guedes está praticamente sozinho dentro do governo na defesa do teto de gastos da União, quando até o filho mais velho do presidente da República diz que ele precisa arrumar “um dinheirinho” para aumentar os investimentos públicos. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) se esquece que “um dinheirinho” o ministro da Economia até pode arrumar, o que ele não conseguirá é abrir um espaço no teto de gastos para fazer os investimentos que o primogênito de Jair Bolsonaro deseja.

Duas coisas espantam nesse episódio. A primeira foram as razões alegadas pelos assessores de Guedes para os pedidos de demissão. O secretário especial de Desestatização, Salim Mattar, disse ao ministro que “é muito difícil privatizar, que o ‘establishment’ não deixa fazer privatização, que tudo é muito emperrado, que tem que ter um apoio mais definido e decisivo”. O secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, queixou-se, segundo relato de Guedes, que “a reforma administrativa está parada”.

As razões apresentadas parecem ingênuas. Uma rápida olhada na história recente do Brasil vai mostrar que privatizar estatais nunca foi tarefa fácil, desde que o ex-presidente João Figueiredo criou o primeiro programa brasileiro de desestatização, no início da década de 1980. De lá para cá, houve muitos avanços importantes nessa área, como a privatização do grupo Telebrás. Mas outras iniciativas foram paralisadas por interesses conhecidos, como é o caso do grupo Eletrobras, que está para ser privatizado desde o governo do ex-presidente Michel Temer e não se consegue.

Ao contrário do que pensam alguns, não são apenas os partidos de esquerda e os sindicatos que se mobilizam contra as privatizações. Os integrantes dos partidos que fazem parte do chamado Centrão também gostam de ocupar cargos bem remunerados nas estatais. As estatais foram, até passado recente, usadas para fazer negócios escusos, que beneficiaram grupos políticos. Muitos ainda as veem como fonte para obtenção de vantagens ilícitas.

O caso das reformas estruturais, como a administrativa, não é diferente. Se Uebel fosse político saberia das dificuldades para aprovar no Congresso Nacional mudanças que tiram privilégios ou afetam pretensos direitos ou interesses constituídos. Vale lembrar, por exemplo, que a reforma tributária é discutida no Congresso há pelo menos 30 anos, sem avançar.

No livro “Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil?”, lançado neste ano, o economista Marcos Mendes enumera uma série de questões que dificultam as mudanças. Uma delas é o sistema político-eleitoral, que complica a formação de maiorias parlamentares. No caso do governo Bolsonaro, em que o presidente nem sequer tem partido, o problema é ainda maior. Outros obstáculos citados por Mendes são os conflitos entre os Poderes, uma Constituição muito detalhista, uma baixa coesão social e um país muito grande, com expressivas desigualdades regionais.

Mattar e Uebel achavam que desta vez seria fácil fazer as privatizações e as reformas, apenas porque consideram que elas são o melhor caminho para o avanço do país? Seria ingenuidade acreditar que sem base política ampla no Congresso é possível aprovar medidas que exigem três quintos dos votos de deputados e senadores.

Para fazer as reformas e as privatizações, é necessário também vontade política do presidente da República. A saída de Mattar e Uebel indica que eles concluíram que Bolsonaro já não tem vontade de fazer um forte programa de privatização, a toque de caixa, nem de encarar os desafios de uma reforma administrativa.

Outra coisa que causou espanto foram as palavras de Guedes sobre o teto de gastos. “Os conselheiros do presidente que o estão aconselhando a pular a cerca e a furar o teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal”, disse o ministro. Com a frase, Guedes não apenas tornou pública a disputa dentro do governo em torno desta questão, como lembrou ao presidente que crise fiscal pode levar à sua destituição, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff.


O ministro Paulo Guedes rejeitou a proposta de “seguro-receita” para os Estados durante a pandemia, feita no PLP 149, de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ, que chegou a ser aprovada pela Câmara. Por pressão de Guedes, o Senado fez outro projeto, que resultou na lei complementar 173, fixando um teto de R$ 60,15 bilhões a serem repassados aos governos estaduais e prefeituras para cobrir perdas de arrecadação.

O resultado foi que o tiro saiu pela culatra. Os dois primeiros repasses aos Estados feitos pelo Tesouro superaram as perdas que eles tiveram com o ICMS. “Eu avisei que isso ia acontecer”, disse Pedro Paulo, em conversa com o Valor. “O PLP era muito mais lógico tecnicamente e seria mais barato, eficiente e justo do que a LC 173”, afirmou. “Com os dados reais de queda de arrecadação do ICMS e ISS, vemos que o Tesouro gastará R$ 20 bilhões a mais do que seria necessário e de forma absolutamente desigual”, disse.

Pedro Paulo informou que encaminhou ontem uma Proposta de Fiscalização Financeira e Controle (PFC) ao Tribunal de Contas da União (TCU) solicitando a fiscalização desses recursos para evitar que sejam aplicados em ações não relacionadas à pandemia, cobrando responsabilidade e devolução à União.


Maria Cristina Fernandes: Um técnico prestigiado

Guedes age para elevar o preço de sua demissão

Às 8h45 desta quarta-feira o presidente Jair Bolsonaro fez um textão no Facebook. Reiterou compromisso com privatizações, justificou as dificuldades em viabilizá-las, reafirmou o “norte” da responsabilidade fiscal e do teto de gastos e disse ver com naturalidade a saída de colaboradores.

Agiu como o presidente do clube que sai a público, 15 minutos antes do início do jogo, para dizer que o técnico está prestigiado. A torcida captou. Dólar e juro abriram em queda, mas sem debandada. Estava claro, porém, que se protelara uma situação insustentável. O desfecho tarda porque, além de o técnico resistir a sair, não há substituto à mão.

Na véspera, Paulo Guedes, depois de se reunir com Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, Casa que abriga 52 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, espicaçou. Disse que os “conselheiros” do presidente, ao lhe sugerirem “pular a cerca e furar o teto”, facilitariam a abreviação de seu mandato.

O ministro da Economia, que acabara de receber os pedidos de demissão dos secretários Salim Mattar (Desestatização e Privatização) e Paulo Uebel (Desburocratização, Gestão e Governo Digital), parecia estar fazendo uma ameaça velada ao presidente. Se o objetivo da gastança é a reeleição, o mandato pode acabar antes da chance de ser renovado. Foi o que disse.

Agiu como se acreditasse que o presidente só tivesse o mercado, do qual fala como fiador, a sustentá-lo. Parte do pressuposto de que Bolsonaro já perdeu a classe média e está a caminho de também ficar desprovido do apoio dos mais pobres com o fim do auxílio emergencial de R$ 600. O ministro valeu-se da saída de Mattar e Uebel para tentar enquadrar o presidente. Mostrou-se um “trader” que além de ganhar a parada tem que se exibir como vitorioso.

E, de fato, a oposição do presidente da Câmara à prorrogação da calamidade pública e o alerta do TCU em relação às pedaladas dos créditos extraordinários levaram o governo a recuar da intenção de alocar R$ 35 bilhões nas mãos dos ministros “obreiros”, Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).

Sem a calamidade, voltarão a valer a responsabilidade fiscal e a regra de ouro, normas que seriam descumpridas pela alocação que acabou reduzida para R$ 4 bilhões. O desfecho foi vitória de Guedes que, insatisfeito, quis também espicaçar com a ameaça de impeachment.

O comportamento do ministro da Economia o isolou no governo. No início da semana o presidente foi testemunha de uma pesada troca de acusações entre Guedes e Marinho. Sem a calamidade pública, o governo terá que encontrar espaço para criar o Renda Brasil e permitir que as estatais voltem a investir dentro do orçamento. Missão que embaralha até o mais agressivo dos “traders”.

Ao negar apoio à extensão da calamidade, Maia parece atuar pelo reequilíbrio de forças no governo pró-Guedes. Só que não. Sem o "orçamento de guerra", Bolsonaro terá dificuldade de manter seus novos aliados do Centrão. A cena do final do dia, quando voltou a reiterar compromisso fiscal ao lado de ministros e parlamentares, vai ficar como um retrato na parede.

A pretexto de cumprir sua cartilha liberal, Maia embaralhou a articulação política de Bolsonaro e dificultou seu jogo na eleição para a mesa da Câmara. Fez de Guedes o ministro vitorioso de um governo em chamas.

Num uniforme de bombeiro que não lhe cai bem, Guedes foi incapaz de evitar que o fogo cruzado ultrapassasse as fronteiras do Palácio. Nas entrevistas que deu ao longo do dia, Mattar não apenas disse que as estatais eram foco de corrupção, como expôs a ferida da Casa da Moeda.

Poucos fracassos no programa de privatizações são tão representativos. A venda da Casa da Moeda foi incluída numa medida que o Congresso deixou caducar para a grande satisfação do presidente do PTB, Roberto Jefferson, hoje um dos mais ferrenhos aliados de Bolsonaro e rei da Casa da Moeda desde o Mensalão, que o condenou na justiça, até hoje.

Além de perder sucessivos colaboradores - desde o início do governo, além de Mattar e Uebel, saíram Marcos Cintra (Receita Federal) Mansueto de Almeida (Secretaria do Tesouro), Caio Megale (Diretoria de Programas da Secretaria Especial da Fazenda), Marcos Troyjo (Secretaria de Assuntos Internacionais) e Rubem Novaes (Banco do Brasil) - Guedes não ampliou as alianças na Esplanada.

O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, por exemplo, mais preocupado em fomentar a guerra entre Bolsonaro e a imprensa, não tem tido participação nas conversas para fazer caber o Renda Brasil no Orçamento de 2021.

Guedes tampouco conta com os ministros militares do Palácio, hoje aliançados com Marinho e Freitas, em torno de propostas onde se enxergam não apenas uma via para a reeleição como também a manutenção das estatais e dos projetos do Ministério da Defesa.

Neste bloco não se encontra o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno Ribeiro, cujas diferenças com seus colegas ficaram claras na reportagem de Mônica Gugliano na “Piauí”. Entusiasta de primeira hora da campanha bolsonarista, o general se fiava na dupla Sergio Moro/Paulo Guedes para fazer crer que se tratava de um governo liberal de combate à corrupção.

Hoje o ministro vê seus colegas generais aliançados com os personagens que inspiraram sua composição “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão” e não se anima a cerrar fileiras na guerra contra Guedes. Trata-se, porém, menos de entusiasmo com o Pró-Brasil do que de uma adesão de peso à causa do ministro da Economia.

Numa tentativa de romper esse isolamento, Guedes buscou ontem, junto ao Tribunal de Contas da União, soluções para conseguir abrigar tanto o Renda Brasil quanto os investimentos das estatais sob o teto de gastos.

Tenta recompor a unidade do governo. A esta altura, porém, ecoa Filipão ao final do primeiro tempo do jogo contra a Alemanha na Copa de 2014. Para o segundo tempo, o Congresso se mobiliza pelas reformas tributária e administrativa. Ambas, a pretexto de convergir com o ministro Paulo Guedes, aumentam a cizânia no setor privado e entre servidores e militares. Trazem, no entanto, a oportunidade de o Congresso posar como reformista frente a um governo que não se entende. Foi-se o tempo, porém, que o 7x1 era a lembrança mais amarga. A derrota, com muito mais dígitos, hoje se conta em vidas.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro assopra Guedes, mas luta política pelo gasto continua

Governo e Congresso fazem cerimônia de culto ao teto de gastos, mas problema continua

Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre juntaram-se para um breve culto do teto de gastos e para dar uns tapinhas nas costas do ministro da Economia, Paulo Guedes, estressado por debandadas várias. Sabe-se lá o que vai sair de prático das reuniões e do pronunciamento da noite de quarta-feira. No que vale prestar atenção:

1) Se a conversa fosse para valer, não haveria dinheiro para um Renda Brasil, o Bolsa Família gordo que Bolsonaro quer chamar de seu na eleição de 2022;

2) Maia disse que na reunião do Alvorada houve um compromisso de regulamentar os gatilhos do teto. Parece um tédio infinito, mas é coisa grande –mais sobre isso adiante;

3) Alcolumbre disse que a retomada (pós-pandemia) tem de ter “responsabilidade fiscal e social”.

Além de Bolsonaro, Maia (presidente da Câmara), Alcolumbre (presidente do Senado) e Guedes, na reunião estavam também os ministros “fura teto” (no dizer de Guedes), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), além de líderes do governo no Congresso e do centrão.

“Regulamentar os gatilhos do teto” significa colocar na Constituição e em leis que a despesa federal vai ser cortada dessa e daquela maneira, obrigatoriamente, quando o gasto chegar ao limite constitucional. No final do ano passado, o governo enviou ao Congresso uma PEC para regulamentar esse talho, que vigoraria imediatamente, dada a situação das contas públicas.

O que aconteceria? Salários e jornada de servidores federais seriam cortados em até 25%; seriam proibidos reajustes, promoções, concursos etc. Seria proibido criar despesa obrigatória, o que inclui reajuste de salário mínimo e aposentadorias acima da inflação. Um programa de Renda Básica teria de ser inventado antes disso, portanto.

Quanto ao programa de Renda Básica, ora não há dinheiro, dados os limites do teto. Suponha-se que o Bolsa Família passe a atender 19 milhões de famílias (hoje são 14,3 milhões) com um benefício médio de R$ 232 (atualmente de R$ 190), como previa o governo também no final de 2019. A fim de bancar apenas essa despesa, seria necessário dar fim ao abono salarial de um salário mínimo por ano para quem ganha até dois mínimos e do seguro-defeso (seguro desemprego sazonal para pescadores). Já seria um problema enorme. Alguns dinheiros poderiam vir do fim de alguns subsídios tributários, poucos, ou do talho final da despesa em obras, inviável.

Mas lá no Alvorada estava Alcolumbre a falar de “responsabilidade social”. Estava o centrão, do qual depende o pescoço de Bolsonaro. O que vai sair disso, politicamente?

Depende da eleição do comando de Câmara e Senado; da popularidade de Bolsonaro; do que vai ser a economia depois de setembro, por aí.

Por ora, o culto do teto deve dar uma acalmada “no mercado”. Mas há empresários “fura teto” na construção civil e entre seus fornecedores, que querem obras, em especial de casas populares, para o que não há dinheiro, dado o teto de gastos. Além do mais, no Congresso alguém vai pelo menos pensar em uma gambiarra para acomodar todos esses interesses: de Bolsonaro, da finança, dos “fura teto”, da renda básica etc.

Em resumo, o jogo continua. Houve uma parada para o massagista passar uma aguinha em Paulo Guedes, que deu um grito de Neymar caído no gramado, e para o juiz olhar no VAR se houve impedimento no ataque ao teto. A primeira grande jogada acontece até o fim do mês, quando o governo manda ao Congresso o projeto de Orçamento de 2021.


Fernando Schüler: Sedução populista ganha fácil do argumento difícil das reformas

A verdade é que o governo não tem convicção sobre temas de modernização do Estado, e não está sozinho nisso

A saída de Salim Mattar e Paulo Uebel não representa o fim da agenda liberal do governo, como li em alguns comentários, mas um atestado de que, na prática, ela andou muito pouco.

Sempre disse aqui que o governo Bolsonaro era produto de três pautas um tanto vagas. Na verdade, um conjunto de intenções no terreno do conservadorismo cultural, combate à corrupção e reformas liberais.

As duas primeiras se perderam há muito tempo. Barradas pelo Congresso e por sua própria inconsistência. A agenda liberal deu em quase nada. A lei da liberdade econômica talvez tenha sido seu único suspiro. A reforma da Previdência foi uma solução de compromisso e veio no embalo do governo anterior.

Agora caímos na real. Estamos a menos de dois meses da campanha eleitoral e a janela de oportunidades para aprovação de reformas vai se fechando. Vamos comemorar o ano novo com PIB negativo em 5,6% (última pesquisa Focus) e relação dívida/PIB acima de 96%, segundo a Instituição Fiscal Independente.

Diante desse cenário, o governo corre atrás de “espaço no orçamento” para esticar mais um pouquinho o auxílio emergencial e diz que irá aguardar até o ano que vem para enviar ao Congresso a reforma administrativa. Ainda nesta quarta-feira (12), naquele pronunciamento esquisito ao cair da tarde, imaginava-se que haveria algum anúncio objetivo sobre reformas, mas nada.

Nenhuma grande surpresa aí. Pra quem gosta de ler a política um pouco abaixo da histeria reinante, Bolsonaro sempre foi um político mais tradicional do que fez parecer. E está cada dia mais com a cara do centrão e da velha burocracia militar do que com a de Paulo Guedes. Nosso outsider é cada vez mais um insider.

O governo gostou dos efeitos políticos do auxílio emergencial. O apoio a Bolsonaro cresce nos setores de menor renda e a última pesquisa DataPoder mostra que a aprovação e a desaprovação ao governo andam empatadas em 45%.

Quanto à reforma administrativa, o entorno da Presidência parece ter descoberto o óbvio: há muita conversa, mas pouca gente de fato preocupada com o tema em meio à pandemia. A MP 922, das contratações temporárias, caducou, e a PEC emergencial, que entre outras coisas previa a possibilidade de redução de jornada e salários dos servidores, nunca andou no Congresso.

A verdade é que o governo Bolsonaro não tem convicção sobre temas de modernização do Estado. E não está sozinho nisso. Os sinais que vêm do Congresso são bastante claros.

Exemplo foi a votação do novo Fundeb. Ao invés da reforma que iria desbloquear o orçamento e dar autonomia a estados e municípios, sob a lógica do “mais Brasil, menos Brasília”, a Câmara aprovou, sob a batuta da pressão corporativa e com o apoio do governo, a vinculação constitucional de no mínimo 70% dos recursos do fundo para gasto com pessoal.

No Senado fomos ainda mais criativos. Ao invés de reformas para abrir o mercado e incentivar a competição, resolvemos tabelar juros. Limite de 30% de juros no cartão de crédito e cheque especial. Lendo o projeto me senti quase um argentino. Menos mal que se trata de uma ideia que não irá prosperar na outra Casa do Congresso.

Juntando tudo, novo Fundeb, volta da CPMF, malabarismos para esticar o auxílio emergencial, tentativas de driblar a regra do teto, reformas e privatizações em ponto morto, o governo Bolsonaro vai mostrando o que sempre foi: um governo errático, sem projeto, seduzido pela hipótese de um populismo morno capaz de conduzi-lo vivo até 2022.

No fim das contas, ao menos não teremos que escutar mais que o governo Bolsonaro é “ultraneoliberal”, como li tempos atrás, e outras bobagens. Bolsonaro fará cada vez mais um governo tradicional. Com alguma sorte preservará a regra do teto e conseguirá emplacar algumas reformas de médio alcance, como foi o novo marco do saneamento básico.

Um projeto mais ousado de modernização do Estado ainda está para ser construído. Por enquanto, como observou Salim Mattar na sua carta de despedida, os liberais são um bicho estranho na máquina pública. E cabem (diria que com alguma folga) num micro-ônibus.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Bruno Boghossian: Bolsonaro contrata profissionais do ramo para evitar impeachment

Em pacto de sobrevivência, presidente entrega operação política do governo ao centrão

Às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff, dirigentes do PP pediram as chaves do Ministério da Saúde. O governo hesitou, mas topou a jogada em troca de votos para evitar a queda da presidente. Pouco depois de deixar o Planalto, o deputado Ricardo Barros foi à casa de Michel Temer. O vice cobriu a oferta: o PP ajudou a derrubar a petista, e Barros virou ministro.

Na próxima semana, o parlamentar assume oficialmente o posto de líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara. Depois de açoitar os velhos partidos, o presidente decidiu contratar profissionais com experiência no ramo para se proteger no cargo.

A palavra impeachment dita os lances de Bolsonaro há alguns meses. Faz sentido, já que a hipótese é citada com desinibição –tanto por aqueles que gostariam de derrubar o presidente quanto por sua tropa de choque e pelos omissos que não veem “nenhum tipo de crime”.

O último a falar no assunto tem assento na Esplanada dos Ministérios. Paulo Guedes disse na terça (11) que as pressões para furar o teto de gastos públicos levariam o presidente à “zona do impeachment”. Ele mencionou conselheiros de Bolsonaro, mas o alvo era um chefe acometido pela comichão da gastança.

O presidente abriu dois movimentos para se esquivar desse tormento. Nesta quarta (12), ele fez uma declaração insossa em defesa do limite de despesas e confirmou a escolha de Barros para a liderança do governo.

O deputado é um especialista. Ainda no ano passado, ele peitou um ministro do governo ao cobrar a liberação de cargos e disse: “Se precisar demitir o presidente, nós demitimos. Ele não pode demitir o Congresso. A palavra final é nossa”.

Além de instalar uma operação política no governo, a nova aliança de Bolsonaro com o centrão representa um pacto de sobrevivência. O novo líder carrega esse espírito. No início do governo, Barros afirmava que não cabia ao Congresso investigar o caso Fabrício Queiroz. “Agora vamos ficar votando CPI em vez de votar reforma?”, perguntou.

Em pacto de sobrevivência, presidente entrega operação política do governo ao centrão

Às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff, dirigentes do PP pediram as chaves do Ministério da Saúde. O governo hesitou, mas topou a jogada em troca de votos para evitar a queda da presidente. Pouco depois de deixar o Planalto, o deputado Ricardo Barros foi à casa de Michel Temer. O vice cobriu a oferta: o PP ajudou a derrubar a petista, e Barros virou ministro.

Na próxima semana, o parlamentar assume oficialmente o posto de líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara. Depois de açoitar os velhos partidos, o presidente decidiu contratar profissionais com experiência no ramo para se proteger no cargo.

A palavra impeachment dita os lances de Bolsonaro há alguns meses. Faz sentido, já que a hipótese é citada com desinibição –tanto por aqueles que gostariam de derrubar o presidente quanto por sua tropa de choque e pelos omissos que não veem “nenhum tipo de crime”.

O último a falar no assunto tem assento na Esplanada dos Ministérios. Paulo Guedes disse na terça (11) que as pressões para furar o teto de gastos públicos levariam o presidente à “zona do impeachment”. Ele mencionou conselheiros de Bolsonaro, mas o alvo era um chefe acometido pela comichão da gastança.

O presidente abriu dois movimentos para se esquivar desse tormento. Nesta quarta (12), ele fez uma declaração insossa em defesa do limite de despesas e confirmou a escolha de Barros para a liderança do governo.

O deputado é um especialista. Ainda no ano passado, ele peitou um ministro do governo ao cobrar a liberação de cargos e disse: “Se precisar demitir o presidente, nós demitimos. Ele não pode demitir o Congresso. A palavra final é nossa”.

Além de instalar uma operação política no governo, a nova aliança de Bolsonaro com o centrão representa um pacto de sobrevivência. O novo líder carrega esse espírito. No início do governo, Barros afirmava que não cabia ao Congresso investigar o caso Fabrício Queiroz. “Agora vamos ficar votando CPI em vez de votar reforma?”, perguntou.


William Waack: Bolsonaro é o Brasil de sempre

A debandada da equipe econômica sinaliza a perda de ênfase em reformas

A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.

Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.

Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.

Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.

Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.

A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.

Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.

Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.

Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é.


Eugênio Bucci: Cinco trilhões de dólares

O que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?

Em janeiro foi noticiado que as empresas Apple, Amazon, Alphabet (dona do Google), Microsoft e Facebook valiam, juntas, cinco trilhões de dólares. Em junho, quando a Apple sozinha atingiu o valor de US$ 1,5 trilhão, apenas quatro delas dariam conta de bater a marca dos US$ 5 trilhões (o Facebook ficava um pouquinho para trás).

Cinco trilhões de dólares!

Essa cifra é três vezes maior que o PIB brasileiro. Três vezes. Quer dizer: se nós, os 210 milhões de habitantes destas terras convertidas em jazigos, quiséssemos comprar a Apple, a Amazon, a Alphabet e a Microsoft, pelos preços de junho, teríamos de trabalhar por três anos sem descanso e não nos sobraria troco para o pão, para o aluguel e para os impostos. E mesmo assim poderíamos chegar no fim da jornada sem caixa para saldar a fatura, pois, enquanto as ações dessas companhias sobem sem parar, o PIB brasileiro afunda, junto com o PIB mundial. Lá de cima, incólumes e luminescentes, as big techs contemplam a peste, a fome, a violência, a miséria e a ruína.

Só o PIB da China e dos Estados Unidos superam a casa dos US$ 5 trilhões. Pense bem: o que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?

Se formos contentar-nos com as respostas oficiais, acreditaremos que o segredo de tamanha fortuna está na inovação tecnológica dessas marcas, na genialidade dos seus criadores e na pertinácia de seus CEOs. Acreditaremos que, graças a chips, bits e bytes, as big techs dominaram o e-mail, o e-commerce, o e-government e o e-scambau, deixando seus donos biliardários. Acreditaremos, enfim, que dinheiro não nasce em árvore, mas bem que brota em máquina.

Agora, se quisermos ir além das quimeras da carochinha, buscaremos explicações em teorias menos rasas, como aquela da “economia da atenção”. A tal “economia da atenção” consiste em mercadejar com os olhos dos consumidores. Primeiro, o negociante atrai a “atenção” alheia e, ato contínuo, vai vendê-la por aí – mas vai vendê-la (detalhe crucial) com zilhões de dados individualizados sobre cada um e cada uma que, no meio da massa, deposita seu olhar ansioso sobre as telas eletrônicas. Em resumo, os conglomerados da era digital elevaram o velho negócio do database marketing à enésima potência, com informações ultraprecisas sobre as pessoas, e desenvolveram técnicas neuronais que magnetizam os sentidos da plateia. O negócio deles é o extrativismo dos dados pessoais.

Isso aí: extrativismo virtual.

Na primeira semana de maio de 2017, a capa da revista The Economist anunciou que os dados pessoais eram o novo petróleo. Em plena era do Big Data, algoritmos e fórmulas insondáveis cruzam os dados e antecipam as partículas infinitesimais do humor e do destino dos bilhões de fregueses. Os dados não mentem jamais. Sabem se o cidadão vai desenvolver Alzheimer, e quando, sabem que ele relaxa com a voz de Morgan Freeman, sabem que massageia o lóbulo da orelha direita quando pensa em queijo do tipo Pont l’Évêque.

O “novo petróleo” teria sido o responsável pelos cinco trilhões e pela enorme reviravolta do mercado global, que fez o dinheiro mudar de mãos em duas décadas. Em 1998 as cinco empresas mais caras do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. No grupo, quatro companhias eram fabricantes de coisas palpáveis (motores, eletrodomésticos, gasolina, fármacos, bebidas gasosas); só uma era uma empresa “de tecnologia”. Hoje, no pelotão dos conglomerados mais caros do mundo, todos se valem da tecnologia (um notebook ou um site de busca) para extrair e comercializar nossos dados pessoais.

Isto posto, e com todo o respeito à Economist, é preciso dizer que também essa explicação é insuficiente. Para entender de fato por que o valor de mercado das big techs subiu tanto é preciso levar em conta algo que as teorias correntes não costumam registrar. De meados do século 20 para cá, o capitalismo passa por uma estonteante mutação: as mercadorias corpóreas (coisas úteis) ficaram em segundo plano, enquanto a fabricação industrial de signos assumiu o centro da geração de valor. O capital virou um narrador, um contador de histórias, tanto que uma famosa marca de produtos esportivos pode muito bem terceirizar a fabricação de tênis de maratona, mas não pode abrir mão de controlar obsessivamente a gestão da marca e a publicidade.

Em sua mutação, o capitalismo aprendeu a confeccionar e a entregar, com imagens e palavras sintetizadas industrialmente, os dispositivos imaginários de que o sujeito precisa para aplacar o desejo. Isso é uma novidade. Por trás do negócio da extração dos dados existe outro negócio, mais determinante, que é a industrialização da linguagem. Hoje o capital trabalha para o desejo, não mais para a necessidade. Os conglomerados digitais dominaram a industrialização da linguagem (voltada para o desejo), monopolizaram o olhar do planeta e puseram o olhar do planeta para trabalhar a seu favor.

Nesse meio tempo, o mundo distanciou-se da razão e do espírito. Mas essa é outra conversa.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Míriam Leitão: A encenação no espelho d’água

A discussão em torno do teto de gastos não nasceu esta semana e não é um dilema criado pela pandemia. A ideia de que estava tudo indo bem e que a crise na saúde fez desandar a economia é falsa. Em setembro do ano passado, o presidente disse que o teto de gastos precisaria ser flexibilizado, do contrário, em dois ou três anos ele teria que apagar a luz de todos os quartéis. “É uma questão matemática”, concluiu. Ontem, ele apareceu com ministros, os presidentes das duas Casas do Congresso e garantiu que vai respeitar o teto. Até o espelho d’água do Alvorada entendeu que a cena foi montada para acalmar o ministro da Economia, Paulo Guedes, mas o presidente continua prisioneiro de sua indecisão.

Na época, em setembro de 2019, o ministro Paulo Guedes reclamou da declaração do presidente contra o teto, e ele recuou, mudando sua matemática. Disse que respeitaria o teto. Sua convicção, no entanto, não mudou. Tanto que nos meses seguintes engavetou a reforma administrativa, defendeu interesses corporativos, ignorou as propostas de emendas que mandou para o Congresso, não se mobilizou por projeto fiscal algum. Teve olhos apenas para as medidas que aumentavam o acesso às armas. Esta semana, mesmo em meio à pandemia, ele voltou às armas e justificou dizendo que é uma promessa de campanha.

A agenda da economia também foi promessa. Mas era artificial. Foi implantada em seu programa ocupando o vazio de ideias. Nesta crise, todos criam versões distantes da realidade. O ex-secretário Salim Mattar disse que está saindo porque não se acostumou com a burocracia de Brasília, e que os sindicatos, os corporativistas, a esquerda impedem a privatização. Tinha tudo isso no governo Fernando Henrique e ele privatizou. A verdade é que Mattar, apesar dos autoelogios sobre a sua capacidade administrativa, não foi um bom gestor. E, além disso, o presidente Jair Bolsonaro vetou a venda de algumas estatais e não se interessou por outras. No meio tempo, criou uma estatal.

No mercado, ontem, os ativos mostravam instabilidade. O Banco Central vendeu logo cedo US$ 500 milhões no mercado futuro para conter a elevação do dólar. O real já abriu sendo a moeda emergente que mais se desvalorizava. Os juros futuros — contratos negociados por investidores que tentam estimar a taxa básica de juros — bateram em 5,75% com vencimento em janeiro de 2025. Nos últimos três dias, houve aumento de 0,6 ponto percentual nessa taxa, o que significa que eles estão apostando em aumento na Selic no médio prazo. O Bradesco enviou relatório para alertar que mesmo com o cumprimento do teto de gastos a dívida pública permanecerá em 98% do PIB até 2025. Se ele for furado, e isso afetar o crescimento do país, a dívida poderia chegar a 110% no mesmo período. Houve um momento em que Nathan Blanche, da Tendências, disse à coluna que teria que haver uma reunião entre Bolsonaro com os dois presidentes do Congresso para fazer um pacto pela reforma. A reunião acabou acontecendo no fim da tarde. Quanto durará essa declaração conjunta? Menos que o tempo de um pregão.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, querem que alguma agenda ande no Congresso, mas no mesmo dia de ontem a mobilização no parlamento era em torno dos vetos do presidente. Maia falou no Alvorada na aprovação dos “gatilhos” que dariam possibilidade de gerir o orçamento. Ele se referia aos projetos de corte de certos gastos, como a suspensão de aumento de salário de funcionalismo, previstos na PEC emergencial. Havia uma proposta de iniciativa do Legislativo. O ministro da Economia preferiu ignorá-la e mandar sua própria proposta. Que está parada.

Os ministros gastadores dizem para o presidente que essa é a única forma de salvar o governo dele e melhorar sua popularidade. Paulo Guedes avisa que isso levará ao caos, às pedaladas, e que ele terá o mesmo destino da presidente Dilma. Bolsonaro tem medo de perder Paulo Guedes, mas não acredita na agenda dele. Gosta do que ouve dos ministros fura-teto, mas não quer ficar sem sua placa do Posto Ipiranga. Os erros de Guedes o enfraqueceram, a pandemia fortaleceu o argumento do aumento de gastos. Indeciso, Bolsonaro tem apenas um alvo: a reeleição em 2022.