Day: agosto 2, 2020

Fernando Henrique Cardoso: Dois centenários

O Brasil precisa de intelectuais da têmpera de Celso Furtado e Florestan Fernandes

O ser humano é dotado de memória. Mas também se esquece. Há, contudo, pessoas que se transformam em ícones: essas não há como esquecer. Este ano, 2020, se vivos estivessem, e não só em nossa memória, fariam 100 anos Celso Furtado e Florestan Fernandes. Um deixou marcas na economia, o outro na sociologia. Ambos, em nossa história intelectual.

Conheci bem os dois. Fui formado na Faculdade de Filosofia da USP por muitos “mestres”. No meu caso, nenhum foi mais importante do que Florestan, desde que me deu um curso introdutório, em 1949. Celso conheci quando eu fazia, em 1962, uma pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico e fui ao Recife, com Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns deles. Celso, então, já era diretor-superintendente da Sudene. Posso tê-lo visto antes em alguma conferência em São Paulo – também minha memória, aos poucos, está repleta de esquecimentos…

Não me esqueço, porém, de dois episódios. Fomos procurá-lo em seu apartamento, modesto, na Praia de Boa Viagem. Emprestou-nos um jipe da Sudene, com um motorista. Aproveitamos a visita que um casal de jornalistas iugoslavos faria ao Engenho da Galileia, famoso pelas ocupações de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para conhecermos a Zona da Mata. Anos mais tarde, eu detido na Oban, fui minuciosamente inquirido sobre os dois “comunistas” que haviam ido comigo àquelas plagas. Não os conhecia, foram apenas companheiros de viagem. O motorista era também informante da polícia…

Quando Celso e eu já éramos amigos, estava em Barcelona, no inverno de 1986, visitando minha filha Beatriz, que estudava lá. Uma bela manhã tocou o telefone. Era Celso, queria saber se eu também seria nomeado ministro, pois ele fora convidado por José Sarney para ocupar a pasta da Cultura. Teria de deixar a Embaixada do Brasil junto à Comunidade Europeia, em Bruxelas, para onde fora nomeado. Celso, servidor público por excelência, além de grande intelectual, era falado para outros ministérios, como o da Fazenda ou do Planejamento. Coube-lhe o da Cultura, que organizou e ao qual emprestou o prestígio de seu nome.

Disse-lhe que eu não poderia sequer ser cogitado para uma função ministerial porque era senador exercendo a suplência e quem ocuparia minha função no Senado seria o segundo suplente, que era prefeito de Campinas. Teria de renunciar à prefeitura para assumir o Senado. Aconselhei-o a aceitar o ministério, sem que me houvesse perguntado.

Quiseram os fatos que fôssemos amigos. Em Paris, mais de uma vez fiquei no seu apartamento. Da mesma maneira, inúmeras vezes Celso ficou em meu apartamento em Brasília quando eu era senador.
Também frequentes foram nossos encontros quando morávamos na França. Ao longo de 1961, Celso, Luciano Martins, de quem ele era muito chegado, eu, e, eventualmente, Waldir Pires almoçávamos juntos.

A amizade, que se manteve, nunca me fez esquecer que foi com seus livros, especialmente A Formação Econômica do Brasil, que comecei a entender as mudanças que ocorreram no País.

Quando, em 1964, estivemos (Celso por alguns meses antes de ir para Yale) a viver em Santiago, moramos juntos. E conosco Francisco Weffort e Wilson Cantoni. Celso havia trabalhado antes na Cepal e, além de ser amigo dos economistas chilenos, era admirado por Prebisch, nosso inspirador e chefe do Ilpes e do BID.

Não sei de outro economista (mais do que isso: cientista social) que tenha influenciado tanto a minha geração como Celso. E muitas outras mais. Não só pelo que renovou na visão sobre a economia (somando Keynes a Prebisch e Kaldor), mas como homem público exemplar.

Inteligente, culto e modesto. Dele as gerações futuras não apenas se recordarão, como lhe serão agradecidas. Celso mostrou-nos o quanto a economia brasileira se integrava à economia mundial e como sem uma ação do Estado teria sido impossível (ou muito mais difícil) avançar tanto quanto avançou. Além do mais, sabia escrever: iniciara a vida na literatura.

O mesmo digo sobre Florestan Fernandes: homem de cultura enciclopédica, conhecia tanto sociologia como antropologia e os escritos dos economistas clássicos não eram misteriosos para ele. De Marx a François Simiand, conhecia-os bem. Mais do que isso: desvendou não só os males da escravidão e dos preconceitos de cor, como também mostrou as bases burguesas em que se assentava o poder no Brasil. Amava as pesquisas, tanto as sociológicas como as antropológicas, mas sabia que sem hipóteses os dados não falam. Sabia interpretar o que conhecia pelas pesquisas. A ele devo o ter-me dedicado à sociologia, que era sua paixão.

Do mesmo modo que no caso de Celso, os escritos de Florestan vieram para ficar. Tanto os sobre A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social Da Guerra Na Sociedade Tupinambá, como os estudos sobre os negros no Brasil e sobre o caráter pouco democrático da nossa forma de viver e, sobretudo, de mandar. É de intelectuais dessa têmpera que o Brasil precisa. Que pesquisem e saibam antever o que pode acontecer. Sem medos nem arrogâncias. Com sabedoria.

*Sociólogo, foi presidente da República


Juan Arias: Em carta ainda inédita, bispos do Brasil se declaram estarrecidos com a política suicida de Bolsonaro

Bispos afirmam que até a religião é usada neste momento “para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes”

No Brasil, o país com o maior número de católicos no mundo, 152 bispos assinaram uma carta dura, ainda não divulgada, contra o Governo e seu presidente, Jair Bolsonaro, na qual afirmam que o país “passa por um dos momentos mais difíceis de sua história”, que eles definem como” tempestade perfeita”, já que une, de acordo com os bispos, “a crise sem precedentes na saúde ao avassalador colapso da economia”.

A carta dos bispos aos católicos brasileiros é uma condenação dura e contundente da atual política bolsonarista. É especialmente importante pela dureza das acusações, pelo uso de uma linguagem sem a clássica diplomacia da Igreja e por ser assinada também pelo cardeal Claudio Hummes, um dos maiores amigos do papa Francisco e que, portanto, nunca teria firmado tal documento sem a sua aprovação prévia.

Foi o pontífice argentino quem revelou que havia escolhido como papa o nome de Francisco, para lembrar São Francisco de Assis, porque o cardeal brasileiro, no momento em que conquistou a maioria dos votos no Conclave, o abraçou e lhe pediu: “Nunca se esqueça dos pobres”. O cardeal Hummes é prefeito emérito do Dicastério da Cúria Romana para o Clero, onde esteve à frente até 2010 como responsável pelo cuidado de todos os sacerdotes do mundo.

Existem hoje na Igreja Católica poucos documentos tão duros contra um Governo, e menos ainda como o de Bolsonaro, cujo presidente se declara católico praticante e conservador. Estamos acostumados, no máximo, a condenações por parte da Igreja Católica de Governos de cunho comunista ou simplesmente da esquerda, dificilmente de conservadores e de direita, os quais, pelo contrário, a Igreja sempre encheu de elogios e privilégios, como fez na Espanha com o ditador general Franco ou no Chile com Augusto Pinochet. Ainda me lembro da visita do Papa João Paulo II ao Chile, sua familiaridade e simpatia no trato com o ditador dentro do palácio presidencial. No Brasil, nem nos tempos da ditadura militar foram publicados documentos tão fortes da Igreja como o atual dos 152 bispos contra Bolsonaro.

Sempre se dizia que na Igreja Católica duas instituições eram as melhores do mundo: seus serviços secretos e sua diplomacia. E essa diplomacia sempre foi proverbial em documentos endereçados a Governos e governantes. Desta vez, porém, os bispos brasileiros usaram uma linguagem contundente, dura, de aberta condenação contra o Governo e o presidente. Basta este parágrafo da carta para julgar a força de condenação que os bispos quiseram dar a seu documento:

“O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa (...).” E continua: “na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde.”

Segundo os bispos, até a religião é usada neste momento no Brasil “para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes”. E eles acabam recordando as enigmáticas palavras do apóstolo Paulo quando alerta em sua Epístola aos Romanos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

No documento, os bispos condenam abertamente o atual Governo e a política totalitária do presidente Bolsonaro. Dizem, sem rodeios: “Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises”. E os bispos lançam uma condenação taxativa quando afirmam que o atual Governo “não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos”, mas, ao contrário, “a defesa intransigente dos interesses de uma economia que mata, centrada no mercado e no lucro a qualquer preço”. Vocábulos como “desprezo”, “raiva”, “grosseiro” e “repugnância” nunca tinham sido vistos em um documento importante como este firmado por 152 bispos católicos. Lembro-me de que, quando era correspondente deste jornal no Vaticano, um bispo da Cúria Romana me mostrou um pequeno dicionário de palavras “fortes” que nunca deveriam ser usadas em documentos assinados pela hierarquia da Igreja, nem sequer pelo Papa.

Citando o papa Francisco em relação à crise do meio ambiente, com a guerra contra a Amazônia e o massacre dos indígenas, os bispos recordaram suas palavras quando escreveu por ocasião do Dia do Meio Ambiente: “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós”.

Agora, Bolsonaro e seu Governo sabem que, além do clamor majoritário do Brasil contra os crimes cometidos por ele e por seu Governo contra todas as minorias, somado ao desastre na questão da pandemia e da educação, terá que enfrentar esta condenação da Igreja Católica, a maior confissão religiosa do mundo e deste país. Bolsonaro sabe que não se trata de um inimigo fácil, pois conta com 1,31 bilhão de seguidores no mundo, dos quais 110 milhões apenas no Brasil. Não é um exército pequeno. E é forte por estar desarmado, ou melhor, armado apenas com a força da fé.


El País: Bolsonaro e a receita húngara para acabar com a imprensa crítica

'A Máquina do Ódio', de Patrícia Campos Mello, mostra como o presidente segue o manual de Viktor Orbán para silenciar a mídia. Leia um trecho do livro da Companhia das Letras

Patrícia Campos Mello

“Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção.”

A frase de Jair Bolsonaro ainda pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem filtros.PUBLICIDADE

Outro dia, num raro acesso de bom humor com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.

Bolsonaro segue à risca o manual húngaro “Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e filantropo George Soros.

Por mídia independente, entenda-se jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.

A primeira lição do manual de combate à imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, “os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.

Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3 bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos, Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita publicitária on-line.

No Brasil, números sobre a divisão do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7% e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e rádio se manteve estável, com 4,6%.

A queda da circulação dos grandes jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo, Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).

Acrescente-se a essa fragilidade estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.

Na Hungria, Orbán baixou uma série de leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não alinhada ao partido no poder.

No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são líderes de audiência.

Embora detentora do maior ibope do país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e, em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para 16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora, 42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.

Também foram adotadas na Hungria várias medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.

Bolsonaro baixou medidas tendo em vista se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.

A publicação de balanços é fonte importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até 31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de 2019.

O presidente brasileiro não deixou dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.

Ameaçou o Valor Econômico em especial, dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E, logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era uma boa ideia.

Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, em outubro.

O Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do governo.

Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”, afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”

Patricia Campos Mello é jornalista da ‘Folha de S.Paulo’ e lançou às vésperas da eleição presidencial de 2018 uma série de reportagens sobre financiamento de disparos em massa de notícias falsas em redes sociais. Desde então tornou-se alvo de milícias digitais estimuladas pelo chamado Gabinete do Ódio, instalado no Palácio do Planalto. ‘A Máquina do Ódio', da editora Companhia das Letras, é o seu segundo livro.


Jason Stanley: Fascismo nos Estados Unidos?

As ações de Trump não são o maior motivo de alarme, mas o fato de que essas ações são realizadas com um partido que há muito tempo é implacável para controlar um país no qual tem apoio minoritário

RAQUEL MARÍN

Durante toda a presidência de Donald Trump houve preocupação com suas tendências antidemocráticas. Mas neste verão, em plena crise dos Estados Unidos, se fala cada vez mais abertamente de uma variante especialmente perigosa de autoritarismo já conhecida pela história da Europa no século XX. Depois desses anos de violento sentimento anti-imigração, nos quais houve mudanças nas leis para proibir a entrada nos EUA de residentes de vários países muçulmanos, diatribes contra a imprensa livre e, nas últimas semanas, o envio de forças federais a várias cidades para combater manifestações majoritariamente pacíficas em favor da justiça racial, cada vez mais políticos e jornalistas usam o termo “fascismo” para qualificar a ameaça que o Governo Trump representa.

A palavra “fascismo” implica muitas coisas, e seu uso em relação a Trump é polêmico. Por isso vale a pena que aqueles de nós que pensamos que o uso de um termo tão dramático é apropriado façamos uma pausa para apresentar nossos argumentos. Os EUA não são, por enquanto, um regime fascista. Embora os manifestantes encontrem violentas represálias das forças federais, podemos criticar o partido governante e seu líder sem medo de sofrer consequências. Os tribunais estão ocupados por juízes muito partidários, nomeados por Trump, mas agem com relativa independência. No Congresso, a maioria corresponde ao partido da oposição. Se falarmos de regimes, o Governo de Trump não preside um regime fascista.

Seria ingênuo pensar apenas em regimes que já são fascistas. Estaríamos indefesos diante dos movimentos sociais e políticos determinados a transformar as democracias liberais e empurrá-las ainda mais para o fascismo. Se somos verdadeiramente antifascistas, todos os movimentos fascistas devem nos inquietar. E esses movimentos podem nascer e nascem nas democracias. Os Estados Unidos continuam sendo uma democracia liberal, mas é legítimo se preocupar.

Embora acreditemos que é pouco provável que os EUA se tornem um regime fascista, também é legítimo se preocupar com as táticas políticas fascistas. A base de uma democracia saudável é formada pelas normas democráticas liberais: o mesmo respeito a todos os cidadãos e a tolerância de costumes e crenças diferentes. Para a política fascista, a diferença é uma ameaça mortal. A liberdade, a alma da democracia, é inimiga do fascismo. O que preocupa é a possível transformação do regime dos EUA no futuro. Quais são as razões para ter esses temores sobre a democracia mais antiga do mundo?

Uma característica dos movimentos e partidos fascistas é o racismo descarado. E a política do presidente sempre teve algo a ver com o racismo. Desde 2015 não deixa de demonizar os imigrantes, e está tendo reações muito duras aos protestos políticos dos negros. E agora decidiu deliberadamente basear sua campanha eleitoral na oposição ao movimento de justiça racial Black Lives Matter e, o mais inquietante de tudo, classificou seus promotores de terroristas. No entanto, Trump não é o primeiro presidente a usar o racismo em uma campanha política. Relacionar os norte-americanos negros com a criminalidade é uma tática tão frequente nas eleições presidenciais que não recorrer à demagogia racial é a exceção. O atual candidato democrata, Joe Biden, tem um histórico muito conhecido de demagogia racial mal dissimulada. O fato de um político fazer uma campanha racista não é motivo suficiente para pensar que haverá uma infração escandalosa às normas políticas tradicionais. Para compreender por que há mais preocupação agora, precisamos nos aprofundar mais.

Outra característica dos líderes fascistas é como alteram a realidade para fazer que sua propaganda tenha aspecto de verdade. Quando Trump decidiu enviar as forças federais a Portland, as manifestações lá e em outras cidades já tinham começado a decair; enviar as tropas para aquela cidade e ameaçar enviá-las a outras foi uma provocação para causar exatamente o caos que se supunha que devessem impedir.

O recente tuíte de Trump criticando o voto pelo correio e levantando a possibilidade de adiar as eleições é um exemplo de várias táticas fascistas clássicas misturadas em uma. Os líderes fascistas acusam os processos democráticos de serem corruptos e fraudulentos. Mas, assim como acontece nos fascismos, o que lançaria dúvidas sobre a validade das eleições seria precisamente seguir as recomendações de Trump, como impedir o voto pelo correio e adiar as eleições. Da mesma forma, os líderes fascistas sempre denunciam outros por fazerem o que eles estão fazendo. Nesse caso, Trump e os republicanos são os que colocaram em risco a validade das eleições, por exemplo, com suas táticas para impedir que determinados grupos votem. No entanto, o tuíte acusa os democratas, que estão tentando garantir a limpeza das eleições apesar de todas essas artimanhas. Mas por mais repugnante que seja a maneira de agir de Trump, o mais alarmante não é que ele tome essas medidas, mas o contexto histórico em que as toma. Outra característica dos regimes autoritários é o partido único. Faz muito tempo que o Partido Republicano tacha seus adversários de ilegítimos e sempre qualifica a oposição centrista de comunistas ocultos. Os republicanos conseguiram ganhar muitas eleições presidenciais e no Senado apesar de os eleitores que os apoiam serem minoria. Existem motivos para pensar que o Partido Republicano é um partido minoritário que pretende se alavancar como único partido.

O segundo motivo de inquietude é que os EUA acabam de deixar para trás uma “guerra contra o terrorismo” em que se usava a tortura contra os suspeitos. Dentro dessa guerra foi criada uma Administração nova à qual foram concedidos poderes extraordinários para rastrear e deter residentes sem documentos. Essas são as forças paramilitares, treinadas para tratar com brutalidade pessoas que não são norte-americanas, que hoje foram enviadas a várias cidades norte-americanas para enfrentar os manifestantes. É frequente que os regimes fascistas surjam depois de guerras coloniais e que as forças que lutaram nelas se orientem agora para dentro. É fácil ver os paralelos no momento atual.

Em resumo, as ações concretas do Governo de Trump, por mais inquietantes que possam ser, não são o maior motivo de alarme. É que essas ações estão sendo realizadas no contexto de um partido político governante que há muito tempo se mostra implacável para controlar um país no qual tem apoio minoritário. E em um país que não desmontou o aparato de segurança que construiu em uma aventura imperialista fracassada no Oriente Médio. Durante vários anos disseram a seus agentes que todos os residentes sem documentos são terroristas. E agora o presidente ordenou que os norte-americanos que se manifestam pacificamente sejam tratados como terroristas. São dias aterradores, não apenas por causa dos demônios atuais, mas porque o país está há muito tempo permitindo que seus demônios do passado sobrevivam sem tocá-los.

Jason Stanley é professor de Filosofia da Universidade de Yale e autor de Como Funciona o Fascismo: A Política do “Nós” e “Eles” (L&PM).


Evandro Milet: Um poeta enxergou o futuro digital

Em seu conto “O Aleph” de 1949, Jorge Luis Borges, poeta e escritor, relata o dia em que viu, no porão de uma casa nos arredores de Buenos Aires, o Aleph, uma esfera furta-cor de dois ou três centímetros de diâmetro onde se concentravam todos os pontos do universo, todos os rostos, todos os lugares, todas as coisas. Depois disso, onde andasse, tudo lhe parecia familiar. Depois ele mesmo explicaria: “O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço”.

Parece que a ficção fantástica vira realidade e qualquer um hoje pode ver, não em uma esfera, mas em uma tela plana de poucos centímetros de um smartphone, todas os rostos nas redes sociais, todos os lugares no Google Maps com Street View e todas as coisas com os mecanismos de busca e a proliferação do big data.  E muitas das coisas que vemos podem até ser compradas na hora em um marketplace, ou podemos aprender a fazê-las em um vídeo no YouTube.

E a realidade supera a ficção porque não apenas vemos tudo, mas também nos comunicamos com todos e não precisamos ir a um porão - quer dizer, a não ser para tentar pegar o difícil sinal da operadora -, enquanto a internet das coisas se expande para permitir que os objetos se comuniquem entre si com base nos sensores que estarão em todos os lugares e que nos avisem de problemas. 

E não ficamos limitados apenas em perceber os rostos como familiares. O reconhecimento facial e os registros em bancos de dados vão nos dizer de quem são aqueles rostos, o que fazem e, para os governos, vão informar se já cometeram crimes ou se são perigosos. E o conceito de perigosos varia conforme o regime político.

E as coisas podem falar conosco como fazem os assistentes pessoais, podem responder nossas perguntas e tirar nossas dúvidas. Podem permitir conversas em línguas diferentes em traduções cada vez mais próximas da perfeição. Podem comandar compras e ajudar as crianças no dever de casa.
Mas Borges, que faleceu em 1986, antes da internet e do big data, vislumbrou outras coisas.

Em seu conto A Biblioteca de Babel, publicado em 1944, ele imaginou uma biblioteca infinita que abarcasse todos os livros e “quando se proclamou essa capacidade, a primeira impressão foi de extravagante felicidade.” Tudo bem que não temos uma biblioteca infinita, mas uma livraria infinita como a Amazon já é de extravagante felicidade.
 A biblioteca do conto serviu de inspiração para Umberto Eco na trama medieval do excelente O Nome da Rosa, e Borges teve até direito a dar o nome ao bibliotecário cego(como ele no fim da vida) do mosteiro, Jorge de Burgos, em uma parceria de gênios.

Além de escrever coisas fantásticas, Borges foi um visionário digital. Afinal, como ele dizia: “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”.


Alon Feuerwerker: Agitação e espuma dentro da bolha

Esta primeira quase metade de gestão Jair Bolsonaro vem sendo marcada pelo sonho oposicionista de que o governo é uma construção frágil, pronta a desabar pela ação do próximo “fato novo”. Foi assim quando das manifestações em defesa da educação, logo no comecinho do mandato. Mais recentemente, as esperanças da oposição passaram a ser depositadas nos efeitos econômicos e sanitários da pandemia da Covid-19.

E de tempos em tempos os olhos brilham quando surge alguma novidade no “Caso Queiroz”.

A realidade, porém, é que Bolsonaro por enquanto defende com sucesso a fatia de mercado conquistada por ele em 2018. O Brasil tinha então 147 milhões de eleitores e o candidato do PSL recolheu no primeiro turno 33% desse eleitorado, 49 milhões de votos, tudo em números arredondados. A esta altura você já percebeu. Os fatos vêm e vão, mas o percentual de “ótimo” e “bom” do presidente oscila sempre em torno desse mesmo um terço.

A taxa de aprovação de Bolsonaro só pode ser medida se se pergunta “você aprova ou desaprova?”, e não deve ser confundida com o ótimo+bom. Ela também oscila pouco, em torno de 40%. Interessante notar que essa ordem de grandeza corresponde ao market share do capitão no segundo turno. Aliás é também o patamar da fatia que aposta que o governo será bom ou ótimo ao final do mandato em 2022.

Eis por que é furada a tese do “somos 70%”. Serve como propaganda, mas estrategistas políticos que acreditam cegamente na própria propaganda estão a caminho de ter problemas.

Há, é claro, as variações. Uma foi em meados do ano passado, quando o tema das queimadas na Amazônia ganhou visibilidade. Outra, agora mesmo, na decolagem da pandemia. Mas essas oscilações costumam deslocar mais do “regular” para o “ruim/péssimo” que qualquer outra coisa. E Bolsonaro tem mostrado resiliência. Quando a pressão afrouxa, as curvas de avaliação dele tendem a voltar para o padrão de “um terço, um terço, um terço”.

Sempre supondo que a conjuntura correrá pelos trilhos desse “normal”, fica claro portanto que a base social de sustentação de Jair Bolsonaro é consistente e ampla o suficiente para ele se segurar na cadeira e ser competitivo em 2022. Poderá ser derrotado? Sim, desde que se encontre um candidato capaz de aglutinar todo o restante do eleitorado e que além disso consiga ganhar alguma margem levando para votar uma parte dos que têm insistido no absenteísmo.

Não é simples. Implicaria costurar uma alternativa em que todas as facções do antibolsonarismo estejam contempladas. Como diz o ditado, seria o casamento do jacaré com a cobra d'água. Por enquanto, o que cada facção antibolsonarista vem pedindo às demais é a capitulação incondicional em nome do combate ao adversário comum. Na real, hoje ainda inexiste na oposição um sentimento autêntico de "qualquer um menos Bolsonaro". Aliás, é o contrário.

Outro problema: a cada gesto de distensão do presidente, os ensaios de coalizão são lipoaspirados. E Bolsonaro tem sido hábil (ou tido sorte) na política, como mostrou a votação do Fundeb.

Enquanto o novelo não desenrola, vem restando ao antibolsonarismo repetir o antipetismo praticado na maior parte do extenso período do PT no poder. Promover agitação e criar espuma dentro da própria bolha. Não deixa de ser uma maneira de passar o tempo fazendo algo útil.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


PEC do Teto não sufoca crescimento da economia, diz Benito Salomão

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de julho, economista chama de falaciosas o que chama de acusações contra a proposta

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em meio à proliferação dos casos confirmados de coronavírus ao longo do território nacional, o país tem de lidar com uma segunda pandemia, a de ideias erradas, analisa o economista Benito Salomão.” Dentre as muitas propostas estapafúrdias que vêm à baila, surge a ideia oportunista e ideológica de revogar o Novo Regime Fiscal (NRF)”, observa ele, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de julho.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todas as edições, gratuitamente, em seu site. “Como toda falácia, ideias erradas portam maquiagem e alguns argumentos acerca dos efeitos da Emenda Constitucional 95, que, embora pareçam verdadeiros, não resistem a uma simples consulta aos dados”, analisa o economista.

A primeira acusação falaciosa acerca da PEC do Teto, segundo Salomão, é de sufocar os investimentos públicos e, portanto, a capacidade de crescimento da economia. “Ambos os argumentos são falsos”, assevera. “Os limites para crescimento do gasto público do NRF entraram em vigor apenas em 2017; os investimentos públicos do governo federal vinham em queda desde meados de 2013”, continua.

Além disso, segundo o artigo do economista publicado na revista Política Democrática Online, grande parte dos investimentos públicos anteriores até então eram financiados via pedaladas fiscais, ou seja, o Tesouro utilizava temporariamente os bancos públicos para pagar obras do PAC e do Minha Casa Minha Vida. “É falso que o limite imposto ao crescimento do gasto público tenha prejudicado as despesas com investimentos”, afirma o economista.

De acordo com Salomão, o grande inibidor do investimento no Brasil é o crescimento inercial do componente permanente do gasto público (previdência e salários). “Sobre isto, a PEC tem exercido papel interessante. Primeiro, porque, após a incorporação do NRF, se contava com a aprovação de uma reforma da Previdência que atenuasse a tendência de crescimento do gasto previdenciário”, disse.

O economista pondera que o segundo ponto é que a PEC impõe uma dinâmica ao gasto com pessoal da União, distinta do verificado ao longo das últimas décadas. “Sob os limites do NRF, a elite da burocracia passa a competir com as demais rubricas do orçamento, de forma que reajustes salariais devem necessariamente ser compensados por quedas em outras áreas, o que aumenta o custo político dos reajustes concedidos”, analisa.

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Luiz Carlos Azedo: As pedras no caminho

“Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato”

O presidente Jair Bolsonaro entrou em modo reeleição. Há uma bipolaridade nessa atitude: o lado negativo é perder o foco na gestão para priorizar a disputa política, dois anos e meio antes do pleito de 2022; o positivo, a aposta na eleição, ou seja, na política, o que significa uma mudança de rumo, se considerarmos a escalada de confrontos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso em que vinha, uma ameaça real à democracia. Não há novidade nenhuma nessa antecipação, o mesmo foi feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se sentiu ameaçado pelo mensalão; e pela presidente Dilma Rousseff, depois dos protestos de maio de 2013. É óbvio que a campanha antecipada merece críticas, mas daí negar a aposta nas eleições como uma mudança em relação à postura golpista em que vinha é um grave equívoco.

Desde a aprovação do instituto da reeleição, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todo governante é favorito nas disputas eleitorais. Mesmo em situações dificílimas, como aconteceu com Lula, no pleito de 2006, e Dilma Rousseff, em 2014. A força de inércia do Estado brasileiro é formidável, seja por causa da centralização crescente da arrecadação tributária nas mãos da União, e que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer centralizar ainda mais, seja pelo fato de termos um Estado ampliado, que mexe com a vida dos cidadãos em todo o território nacional. A rigor, somente o estado de São Paulo, que também tem muitos tentáculos, se basta em relação ao governo federal do ponto de vista dos serviços que oferece aos seus cidadãos. Não à toa é o único em condições de sustentar frontal e permanentemente oposição ao governo federal, sem colocar em risco a própria governabilidade.

Para ir direto ao assunto, quem quiser que se iluda, o presidente Jair Bolsonaro é o favorito nas eleições de 2022. Quando nada porque o governo federal é a forma mais concentrada de poder, e isso pesa na balança quando o governante concorre à reeleição. Significa que Bolsonaro seja imbatível? Não. Mas é preciso levar em conta que, historicamente, desde a adoção da reeleição, nenhum presidente deixou de renovar seu mandato. O sujeito precisa fazer muita trapalhada para perder a reeleição, ou ser apeado do cargo, como aconteceu com Fernando Collor de Mello, quando não havia ainda reeleição, e Dilma Rousseff, que estava no segundo mandato. Isso explica, de certa maneira, a deriva dos partidos do Centrão em direção ao governo, numa articulação dos militares do Palácio do Planalto com os caciques Ciro Nogueira (Progressistas), Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Republicano) e Gilberto Kassab (PSD).

A reeleição de Jair Bolsonaro será favas contadas? É claro que não, ninguém ganha eleição de véspera. Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato etc. Aliás, sua estreia nesse quesito foi durante a semana que passou, no Piauí, onde posou ao lado do senador Ciro Nogueira no santuário arqueológico da Serra da Capivara, bem ao lado do emblemático desenho rupestre conhecido como “Cena do beijo”. Mais do que isso, porém, precisará acertar o rumo de seu governo, que se encontra à beira da insolvência em razão da dívida pública astronômica e do deficit fiscal crescente.

Obstáculos
Há variáveis no meio do caminho da reeleição que Bolsonaro não controla, precisa adaptar-se a elas. A primeira é a recessão mundial, que parece mais profunda e duradoura do que se imaginava, se considerarmos os resultados econômicos do primeiro semestre deste ano, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, que tinham uma expectativa de recuperação em V. A outra variável nesse terreno é a China, nosso maior parceiro comercial, com a qual o governo tem uma relação esquizofrênica, com alguns ministros trabalhando para aumentar as vendas do agronegócio e atrair investidores em infraestrutura, e outros só atrapalhando. A terceira é a eleição dos Estados Unidos, na qual o presidente Donald Trump corre o risco de não se reeleger, pois o democrata Joe Biden continua na liderança. De tão desesperado, Trump já pensa em adiar as eleições. Se o democrata vencer, o Brasil terá de ajustar sua política externa.

Entre as variáveis controláveis por Bolsonaro, a mais importante é a política econômica. Todos os economistas fazem um diagnóstico sombrio sobre a capacidade de recuperação da economia brasileira nos próximos dois anos. A narrativa de que teremos uma recuperação econômica espetacular, do ministro da Economia, Paulo Guedes, não se sustenta nos fatos. O xis da questão é a dívida pública, que pode chegar a 100% do PIB, o que a torna um fator inflacionário inequívoco. A alta do dólar está aí para mostrar que o dragão está acordado e ruge, somente não dando as caras porque a atividade econômica é muito baixa. As saídas são uma reforma tributária competente e a reforma administrativa, mas isso não costuma dar votos para os governantes a curto prazo. Pelo contrário, tiram.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-as-pedras-no-caminho/