Day: agosto 2, 2020

O Globo: Ala do governo quer ampliar gastos para projetar popularidade de Bolsonaro rumo a 2022

Equipe econômica, comandada por Paulo Guedes, recebe cobranças de ministros sobre liberação de recursos

Manoel Ventura e Naira Trindade, O Globo

BRASÍLIA - Os caminhos da retomada econômica pós-pandemia de coronavírus e a tentativa de projetar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro, já mirando a campanha de 2022, vêm aumentando a pressão no governo pelo aumento dos gastos públicos. Um grupo liderado pelos ministros Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) defende que a União gaste mais já a partir deste ano, receita combatida pelo titular da Economia, Paulo Guedes.

As viagens de Bolsonaro ao Piauí, Rio Grande do Sul e à Bahia nos últimos dias são parte da estratégia de aumentar a presença em eventos para celebrar intervenções realizadas pelo governo. Para manter uma agenda extensa e montar uma carteira de obras públicas robusta, no entanto, vai ser necessário gastar mais do que o espaço atualmente reservado no Orçamento para esse objetivo, sob risco de deteriorar a já complicada situação fiscal.

A disputa também passa pelo tamanho do Renda Brasil, programa que vai substituir o Bolsa Família e virou o trunfo de Bolsonaro para conseguir melhorar sua aprovação e se reeleger. As discussões têm se acentuado nas últimas semanas, porque o governo envia este mês ao Congresso a proposta orçamentária de 2021. O pagamento do auxílio emergencial para desempregados e trabalhadores informais prevê cinco parcelas de R$ 600 — quem começou a receber em abril, na primeira leva, receberá a última em agosto.

De acordo com as previsões iniciais da equipe econômica, os valores reservados para os investimentos continuarão em baixa, o que tem irritado integrantes da Esplanada dos Ministérios. O teto de gastos limita o crescimento das despesas federais à inflação do ano anterior. Uma vez que as despesas obrigatórias, como pagamento de salários e aposentadorias, crescem mais que a inflação, o espaço para investimentos tem ficado menor a cada ano.

O racha ficou explícito durante uma reunião em meados de julho, com discussões sobre a possibilidade de gastar cerca de R$ 35 bilhões com obras fora do teto de gastos e além do que já estaria previsto no Orçamento. Para efeito de comparação, a previsão orçamentária do Ministério da Infraestrutura para investimentos e manutenção da máquina em 2021 é de R$ 6,3 bilhões, segundo dados obtidos pelo GLOBO. Já a despesa do Ministério do Desenvolvimento Regional seria de R$ 5,2 bilhões, reservada para obras como de infraestrutura hídrica.

Na sexta-feira, em Bagé (RS), numa sinalização de que concorda com o ministro do Desenvolvimento Regional, Bolsonaro afirmou que, “pelo menos uma vez por semana”, sairá de Brasília para percorrer o país:

— O que eu sempre falei com meu ministro, o Marinho, é não deixar obra parada. Temos problemas de Orçamento? Temos. Estamos tentando arranjar recursos para que as obras sejam concluídas.

Guedes resiste

A possibilidade levada por Marinho ao Palácio do Planalto consistia em empenhar todos os recursos necessários em 2020, porque as regras orçamentárias estão mais frouxas por conta da necessidade de gastar para conter os efeitos da pandemia. Os valores, no entanto, seriam pagos ao longo dos próximos anos. O empenho é a primeira etapa do processo orçamentário, pelo qual o governo garante que vai pagar pelo serviço.

Guedes é contra a ideia. Ele entende que o sinal passado com uma eventual burla ao teto de gastos seria péssimo, com repercussão sobre a situação econômica do país. O ministro argumenta que é mais importante construir regulamentos que permitam a ampliação do capital privado e que os R$ 35 bilhões não seriam suficientes para recuperar a atividade econômica. Na semana passada, a agência de classificação de risco Moody’s alertou que uma eventual elevação do teto prejudicaria a nota do Brasil e levantaria dúvidas sobre a trajetória da dívida.

Sem conseguir costurar um consenso no governo e no Congresso sobre o tema, o ministro do Desenvolvimento tentou convencer o titular da Casa Civil, Walter Braga Netto, a consultar o Tribunal de Contas da União (TCU) para que a Corte avalizasse o aumento de gastos. Braga Netto tem feito a ponte entre Guedes e a ala favorável a mais gastos.

O desejo pela liberação de mais recursos esbarra também no presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Diante desse cenário, ministros do TCU decidiram não se envolver na polêmica. Consultados informalmente, integrantes do tribunal avisaram o governo que qualquer decisão a respeito dependeria de um acordo prévio entre Executivo e Congresso, já que deputados e senadores teriam de aprovar um projeto de remanejamento de recursos.

Atritos constantes

O assunto colocou Guedes e Marinho novamente em lados opostos. Os dois já haviam discordado na criação do Pró-Brasil, programa também com propósito de reduzir os impactos econômicos ao fim da pandemia. À época, Guedes queixou-se com Bolsonaro de que Marinho havia costurado a criação do Pró-Brasil sem a participação da Economia e comparou a iniciativa ao Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC) dos governos petistas.

Segundo integrantes do Palácio do Planalto, Braga Netto tem trabalhado para diminuir atritos entre os ministros e conciliar assuntos que provoquem polêmicas. Por isso, a Casa Civil decidiu não fazer a consulta sobre o aumento de gastos ao TCU e agora busca uma nova saída para que o governo possa seguir o plano de Marinho para impulsionar as obras.

A aliados, Guedes também reclama que, por trás do desejo de aumento de gastos, pode estar a pretensão de Marinho de concorrer ao governo do Rio Grande do Norte em 2022. Próximo de Tarcísio de Freitas e também de Ramos, Marinho tem defendido que a reeleição de Bolsonaro depende dessa nova agenda de inaugurações de obras pelo país.


O Globo: Trump deixará instituições em estado muito pior do que quando assumiu, afirma Steven Levitsky

Em entrevista exclusiva, Steven Levitsky comenta possibilidade de fraude em novembro e de Trump não reconhecer resultado das eleições; segundo ele, 'a democracia americana está doente'

Paola De Orte, O Globo

WASHINGTON - Nesta semana, logo após a divulgação de dados que mostravam queda de 33% em termos anuais no segundo trimestre da economia americana, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou um tuíte sugerindo que as eleições fossem adiadas. A possibilidade foi descartada no mesmo dia por aliados do presidente no partido Republicano. Analistas trouxeram diferentes explicações para a declaração: Trump poderia estar tentando distrair o público dos números ruins na economia ou preparando seus apoiadores para uma narrativa a ser emplacada caso perca as eleições.

O professor da Universidade de Harvard Steve Levitsky acredita que a publicação reflete a personalidade do presidente, mas pode também ter por trás uma estratégia de desacreditar o sistema eleitoral como um todo. O coautor do best-seller “Como as Democracias Morrem” acredita que esse tipo de ação faz parte de um padrão mais amplo de comportamento autoritário e que, apesar de o país ter instituições democráticas sólidas, elas estão hoje mais frágeis do que quando o presidente assumiu.

Qual o objetivo do presidente ao sugerir adiar as eleições?

Trump, ao contrário de outros presidentes, faz coisas sozinho, sem consultar assessores. Pode ter sido uma estratégia ou apenas algo estúpido que ele tuitou. Se foi uma estratégia, não acho que ele esteja tentando adiar as eleições. Está claro na Constituição que só o Congresso pode fazer isso, e ele não tem apoio do Congresso. Ainda que possa utilizar uma manobra autoritária para violar a Constituição, é improvável. O mais provável é que tenha sido apenas algo estúpido que disse. Ou pode ser parte de um esforço maior para desacreditar as eleições. Ele sabe que há chance alta de perder. Não está claro se está disposto a aceitar a derrota. Uma das coisas que tem feito é falar em fraude, que o voto por correio é fraudulento, ainda que ele mesmo tenha votado assim muitas vezes. Tenta minar a legitimidade das eleições, criando uma narrativa que o permita dizer que terão fraude. Assim, quando perder, pode alegar isso. Não tenho certeza de que exista um plano autoritário por trás, não acho que ele tenha o poder de usar isso para continuar no cargo. Pode ser apenas uma coisa pessoal para seu ego, para que possa sair por aí gritando que não perdeu.

É mais uma questão de personalidade do que uma estratégia?

São ambas as coisas, não são mutualmente excludentes. Ele tem tentado desacreditar as eleições, disse que houve fraude em 2016, que pode não aceitar o resultado. Isso é parte de um esforço para poder dizer que as eleições não são justas. Ao mesmo tempo, pode ter sido só uma reação pessoal. Ele não tem familiaridade com a Constituição, não se importa em seguir as práticas democráticas ou as normas constitucionais.

Por que o presidente tuitou sobre o adiamento logo após serem divulgados dados ruins sobre a economia?

Não tenho evidências de que a equipe de Trump tenha um plano bem pensado. É ele se lamuriando. Sim, ouvimos notícias devastadoras que não vão ajudá-lo. Ele está tentando vender a ideia de que a economia está se recuperando. Mas as coisas não estão bem, estão piorando. E isso foi uma evidência clara de que as coisas estão terríveis e de que isso vai prejudicar sua reeleição. Quanto mais Donald Trump pensar que ele vai perder a eleição, mais vai jogar bombas no processo eleitoral.

Por que um presidente teria interesse em desacreditar eleições?

Trump é diferente dos autoritários sobre os quais escrevemos no nosso livro, porque a maior parte deles têm um projeto para se manter no poder. Não há evidência de que ele tenha. Ele tem personalidade autoritária, instinto autoritário, mas não está claro que tenha um plano autoritário. A razão para o tuíte pode ter sido apenas se sentir melhor. Por que alguém tentaria desacreditar eleições? Porque você quer criar dúvidas na cabeça das pessoas. Se boa parte da população acreditar que as eleições foram injustas ou roubadas, ele poderá dizer que nunca perdeu uma eleição e se sentir melhor. Em um cenário mais sinistro, poderia usar isso. É o que autoritários fazem, usam dúvidas sobre eleições para justificar seu comportamento. Não acho que Trump pode ou fará isso. Mas um autoritário que lança dúvidas sobre eleições pode usar isso para justificar sua insistência em novas eleições e se recusar a entregar o poder.

Quais as chances de o presidente se recusar a aceitar o resultado da eleição?

Altas. Não sei o quão sério será, nem por quanto tempo ele conseguirá se safar. Mas acho que, se Trump perder, há chances altas de que questione se as eleições foram livres e justas.

Quais as consequências disso?

Há dois cenários. Hoje, com Biden liderando por uma margem grande, a alegação de fraude não será crível. Isso convenceria apoiadores de Trump de que as eleições não são livres e justas, o que é catastrófico em termos de confiança nas instituições democráticas. Mas ele provavelmente não será capaz de se manter no poder para destruir a democracia. A única maneira de fazer isso é se a mídia de direita, a Fox News, o partido Republicano inteiro e talvez quatro ou cinco membros da Suprema Corte estiverem alinhados. Aí teríamos uma grande crise democrática. Isso não vai acontecer do jeito que a coisas estão hoje, porque Biden está na frente por muitos pontos. Mas, se for uma eleição apertada como a de 2014 no Brasil, e se for plausível que tenha havido fraude, então poderíamos entrar em crise.

O presidente Bolsonaro disse em março que houve fraude nas eleições que ganhou. Por que um presidente alegaria fraude nessa situação?

Eu não conheço Bolsonaro, não entendo como seu cérebro funciona. Às vezes, parece que ele imita Trump como um papagaio, como fez em seu comportamento com relação ao coronavírus e à hidroxicloroquina. Se eu fosse seu assessor, o aconselharia a encontrar outro líder político para copiar. É estranho um presidente acusar de fraude uma eleição que ganhou. Trump fez isso em 2016 porque perdeu o voto popular e odeia isso. Odeia o fato de que mais pessoas votaram em Hillary Clinton do que nele. Então quer que acreditem que imigrantes ilegais votaram e que ele ganhou o voto popular. Essa não pode ser a razão para Bolsonaro, porque ele ganhou o voto popular, e por muito. Talvez possa ser porque Bolsonaro provavelmente enfrentará uma eleição mais difícil em 2022 do que em 2018. O Brasil, como os EUA, tem um processo eleitoral sofisticado. Não há muita evidência de fraude significativa nas eleições brasileiras modernas. Mas, talvez Bolsonaro vá perder uma eleição apertada em 2022. Minar a legitimidade do processo eleitoral pode deixar dúvidas na mente das pessoas sobre se o processo é livre e injusto.

Há hoje um debate nos EUA sobre restrição ao voto de minorias. Como isso acontece?

Nos últimos dez anos, houve esforço dos Republicanos em partes do país para dificultar o registro e o voto, reduzindo os locais de votação. Eleitores não brancos e imigrantes têm mais dificuldade, e eles são eleitores dos democratas. Os republicanos estão tentando diminuir seu comparecimento às urnas. Isso já acontecia antes de Trump. A ameaça agora é que ainda não controlamos o coronavírus, e a situação pode piorar em novembro. Haverá cidades em que será perigoso sair. Quem trabalha nas eleições presenciais nos EUA são voluntários, pessoas aposentadas. Muitos ficarão em casa. Pode haver caos no dia, locais de votação podem não ter ninguém para trabalhar e acabarem fechando. As pessoas ficarão com medo de votar presencialmente porque as filas podem ficar muito longas, cinco ou seis horas. Elas podem não se sentir seguras de esperar esse tempo. Por causa da pandemia, o voto por correio é essencial. Em muitos estados, isso já acontece, apenas em alguns poucos, oito ou nove, isso ainda é uma questão.

Há maior chance de fraude nas eleições por correio?

Existe a possibilidade de usar o voto por correio para fraudes. Mas nossas eleições são descentralizadas. Cada localidade possui diferentes sistemas. É impossível orquestrar uma fraude nacional. Poderia haver conspirações para cometer fraudes localmente, como ocorreu com os republicanos na Carolina do Norte em 2018. Mas a probabilidade de fraude em larga escala é baixa. Cinco estados usam apenas votação por correio. A evidência é de que há pouca fraude.

Quando o presidente sugere o adiamento das eleições, a possibilidade de elas serem adiadas é a única preocupação?

Não, isso faz parte de um padrão mais amplo. Quando você elege uma figura autoritária que não está comprometida com as regras democráticas, você coloca sua democracia em risco. Ficamos vulneráveis a um presidente que está disposto a violar as regras, ainda que possa não ser capaz de fazê-lo. Neste caso, acho que ele não será capaz, mas ele faz pressão contra as regras diariamente. Ele viola a prática democrática, corrói a legitimidade das normas. Às vezes, viola regras. Claramente violou, ao tentar usar o poder da Presidência para convencer governos estrangeiros a encontrar sujeira contra seu rival nas eleições.

Por isso, sofreu impeachment. Se você elege um presidente autoritário, ele agirá como autoritário quando estiver no cargo. É isso que Trump está fazendo. Por sorte, temos uma oposição bastante forte e, assim como o Brasil, instituições democráticas fortes que são difíceis de desmontar, mas Trump as está enfraquecendo. E, todos os dias, é uma nova tentativa, um novo ataque. Isso deixará a legitimidade e a força de nossas instituições em forma muito pior do que em 2016. A democracia pode não morrer, mas está adoecendo cada dia mais.

Qual o estado da democracia nos EUA hoje?

Fraca e vulnerável. O problema é a polarização extrema entre os dois partidos. Isso torna o sistema presidencial quase totalmente disfuncional, uma das razões pelas quais respondemos tão mal à pandemia. Nossa democracia está doente por termos eleito um líder incompetente e autoritário, mas também por não termos nossas instituições funcionando. Temos provas de que o presidente abusou do poder para conseguir que um governo estrangeiro interviesse em nossas eleições. Esse tipo de abuso é para o que a instituição do impeachment foi criada. Mesmo assim, não conseguimos removê-lo.

Nossas instituições não estão funcionando e isso está cobrando um preço. Os americanos estão cada vez mais céticos sobre a capacidade do nosso sistema democrático de resolver problemas que a nossa sociedade enfrenta, como emprego, saúde, imigração, mudanças climáticas. Meu medo é que, mesmo que sobrevivamos a Trump, o que provavelmente acontecerá, nossa sociedade pode ficar vulnerável a um novo Trump, talvez um Trump mais esperto que prometa resolver nossos problemas por meios autoritários. Nós tivemos sorte, pois Trump é um presidente inepto. Ele não é um líder muito esperto, capaz, disciplinado. Mas nossa sociedade está vulnerável a eleger um demagogo que seja mais esperto do que Trump. Aí sim teremos um problema.


Dorrit Harazim: Brincadeirinha séria

Trump não está propenso a aceitar um sucessor na Casa Branca já em 2020

O Nobel de Economia de 2008 e dublê de colunista Paul Krugman define o presidente dos EUA, Donald Trump, como a encarnação de um pesadelo que ronda tanta gente: ter um chefe incompetente que faz de tudo para se agarrar ao cargo e, de lambada, destrói a própria empresa sob seu comando. No caso, a firma se chama Estados Unidos da América. Crítico escancarado do 45º ocupante da Casa Branca, Krugman elenca as decisões e as inações de Trump nestes 6 meses de peste e conclui que, ao desastre epidemiológico e econômico no país, vem, agora, se juntar a falência política do negacionista em chefe. E que talvez já seja tarde para evitar, também, a sua eventual debacle eleitoral em novembro.

É desse contexto que brota a mensagem recebida na manhã da quinta-feira, dia 30, pelos 84,4 milhões de seguidores de Trump no Twitter . Poucos minutos antes, o mundo fora informado de que o PIB americano sofrera a maior queda desde a Grande Depressão. Sem tocar em assunto tão tóxico, o presidente mudou a chave com destreza. No estilo que domina como ninguém — adjetivos que gritam, interrogação final que simula inocência na pergunta — postou: “Com a votação universal por correio, 2020 será a eleição mais IMPRECISA e FRAUDULENTA da história. Será um grande constrangimento para o país. Adiar a eleição até que as pessoas possam votar de maneira adequada, segura e protegida???”.

De pronto instalou-se a habitual reação em cadeia aos disparates do presidente. Tal como ele planejara.

Para muitos, era preciso denunciar a intenção de Trump de tentar adiar eleições que nos EUA se realizam na mesma data desde 1845 — “na terça-feira depois da primeira segunda-feira do mês de novembro”, diz a lei. Tomando a pandemia como justificativa, Trump estaria tentando ganhar tempo e fôlego para se recuperar nas pesquisas eleitorais que no momento lhe são cruéis.

A preocupação soa desnecessária, visto que nem Trump nem qualquer presidente dos EUA tem autoridade para adiar a data eleitoral. Precisa da aprovação do Congresso, que jamais a concederia.

Para outros, o melhor é não perder tempo com mais esta patacoada do reality show trumpiano. Um pouco na linha defendida em 2016 pela criadora do “HuffPost”, Arianna Huffington, que à época prometeu confinar toda notícia envolvendo Donald Trump às páginas de entretenimento do site que comandava. Fracassou, claro, pois deu-se o oposto: desde o primeiro ano de mandato, foi Trump quem se esparramou por todos os setores de mídia do planeta — da política à economia, da cultura às páginas policiais.

Normalizar as aberrações do presidente, por mais estapafúrdias que pareçam, tampouco é prudente. Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro têm em comum desdizer rápido e sem cerimônia declarações que repercutem mal demais. Passam a tratá-las como “brincadeirinhas”, ou iscas de atormentar a mídia. Na verdade, são balões de ensaio, descartados quando não dão certo. Assim foi desta vez. “Se eu quero mudar a data?”, corrigiu Trump horas após lançar seu torpedo. “Não, quero que a eleição se realize. Mas não quero esperar três meses para só então descobrirmos que faltam votos enviados por correio, e que a eleição não valeu”.

A real intenção da postagem presidencial foi deslegitimar por antecipação o resultado das eleições de novembro. Já fez isso quatro anos atrás, quando saiu vitorioso no Colégio Eleitoral e conseguiu chegar à Casa Branca. Ainda assim, até hoje não reconhece a humilhante surra que levou de Hillary Clinton no voto popular. Difícil, portanto, imaginar que em 2020 será diferente, sobretudo se vier a ser derrotado pelo opositor democrata, Joe Biden. Daí o ataque frontal ao voto por correspondência, que em tempos de pandemia deverá se ampliar a todos os 50 estados do país.

O alvo é perfeito para os cenários apocalípticos anunciados pelo presidente: milhões de cédulas falsas impressas por algum país inimigo (China?), fraudes maciças por ação do Partido Democrata, colapso estrondoso do sistema postal americano.

Certamente não foi por acaso que Trump nomeou para chefe dos Correios um dos grandes doadores de sua campanha, Louis DeJoy, severo enxugador de gastos do serviço deficitário e que acumula atrasos nas entregas durante a pandemia. Problemas haverá, tanto na entrega quanto na devolução e contagem das cédulas enviadas por correio. E serão grandes. Fraudes também, como sempre.

Mas o fato cada vez mais identificável por trás das brincadeirinhas sérias de Donald Trump é este: o 45º presidente dos Estados Unidos não está preparado nem propenso a aceitar um sucessor na Casa Branca já em 2020. Com ou sem voto por correio.


Vinicius Torres Freire: Dólar cai pelas tabelas e pode levar o juro brasileiro junto

Economia brasileira está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro

Dólar a R$ 5 já foi motivo de meme. Agora, além do Banco Central e dos povos dos mercados, pouca gente fala no assunto, talvez porque faltem reais até para os remediados, porque os importados sumiram dos supermercados de bairro rico, dada a carestia, e porque não se pode viajar para fora.

De março a junho, a despesa dos brasileiros com viagens internacionais foi de US$ 1,25 bilhão. No mesmo período do ano passado, de US$ 5,8 bilhões. No tempo em que "empregada doméstica ia para Disneylândia, uma festa danada", segundo Paulo Guedes, o gasto era de US$ 8 bilhões (em 2013 e 2014).

Mas o assunto aqui não é a mentalidade doméstica do ministro da Economia e sim o dólar, que cai pelas tabelas.

Depois do pico do pânico financeiro de março, a moeda americana perdeu valor, baixando ao menor nível desde 2018 em relação ao dinheiro de seus parceiros comerciais. Está longe ainda, uns 20%, do fundo do poço de 2011-12, mas se tornou assunto da finança, até porque as taxas de juros americanas de prazo mais longo também foram ao chão.

Seria um indício ou expectativa de que a recuperação da economia dos Estados Unidos pode ir para o vinagre. A epidemia está descontrolada também por lá e talvez não sejam renovados pacotes de socorro, em particular para os desempregados, o que se tornou um problema por causa dos senadores do Partido Republicano de Donald Trump.

De resto, há o temor de que o Nero Laranja queira melar o resultado da eleição presidencial de novembro.

A economia americana afundou menos do que a dos países da zona do euro nesta primeira metade do ano. Caiu 1,3% no primeiro trimestre (em relação ao anterior) e outros 9,5% no segundo. Na eurozona, as baixas foram respectivamente de 3,6% e de 12,1%. No Brasil, mero lembrete, foi de 1,5% no primeiro trimestre e, estima-se, deve ter sido de 11% no segundo. A China já zerou as perdas no ano, melhor que todo mundo.

Há, no entanto, mais elogios e esperanças para a Europa, que conteve a epidemia, vê seu euro se valorizar e está com um desemprego menor que o americano. Na zona do euro, a taxa de desemprego passou de 7,5% em 2019 para 7,8% na medida mais recente; nos EUA, de 3,7% para 11%.

A União Europeia acaba também de dar sinal de coesão e vontade de superar a crise de modo algo mais civilizado, com um pacote inédito de endividamento coletivo (como se fosse um país) equivalente a R$ 4,6 trilhões, para ajudar os mais avariados do bloco.

E daí?

No que interessa de mais imediato, o Banco Central do Brasil dizia que um dos problemas de baixar ainda mais a taxa básica de juros (Selic) era o risco de desvalorização extra do real, o que teria efeitos contraproducentes (seria um desestímulo econômico).

Hum. Parece que esse risco pelo menos diminuiu. Como a inflação prevista para 2021 está abaixo da meta, a economia está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro, conviria não dar chance para o azar (economia deprimida com inflação baixa).

Em segundo lugar, a lerdeza americana deve levar o Fed a manter seus juros básicos a quase zero por tempo a perder de vista e recorrer a medidas mais heterodoxas para reduzir juros de prazos mais longos. É outra ajudazinha para mantermos os nossos juros aqui também miudinhos.

Não é bom, claro, que a economia americana azede. Mas temos de levar em conta o fato da baixa do dólar e das taxas de juros por lá. A propósito, nesta semana tem decisão de juros do Banco Central daqui."


Míriam Leitão: A velha CPMF de roupa nova

O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.

Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:

— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.

Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.

— O primeiro problema desse imposto é que a base de arrecadação não é estável, pelo contrário, é altamente reativa. Quanto maior a alíquota, mais a base encolhe. É como se o Imposto de Renda tivesse como efeito diminuir a massa salarial. Não é isso que se espera de um bom imposto — disse.

Um dos argumentos que a equipe econômica tem dito, agora com a permissão presidencial para defender o imposto, é que a base de tributação é ampla. Assim paga-se pouco porque todos pagam.

Não foi o que aconteceu no Brasil com a CPMF. Ela era cumulativa, virava uma grande taxação sem transparência, e dava aos maiores a chance de escapar. Grandes empresas levaram vantagem porque usavam a sua capacidade de verticalização. Ou seja, uma grande companhia podia aumentar o número de processos produtivos internamente, para evitar a compra e venda de produtos de terceiros.

Com isso, os pequenos negócios acabavam sendo sobretaxados. Além disso, criou-se um estímulo à informalidade. Albuquerque lembra que no Brasil começou a haver muitas trocas de cheques, que passaram a exercer função de moeda:

— As grandes empresas estavam criando quase que bancos internos com sistemas de compensação. Tentaram proibir isso, mas as pessoas são criativas, e quanto maior a alíquota maior o incentivo. É um imposto regressivo.

As propostas de taxação sobre movimentação financeira vêm da esquerda europeia, explica o economista, mas como forma de impostos regulatórios, como por exemplo sobre o mercado especulativo de ações. Ou inspiradas na Taxa Tobin, do economista James Tobin, que propunha tributar grandes movimentações financeiras internacionais:

— Há várias propostas de impostos eletrônicos na Europa, mas não são impostos que vão fazer o professor pagar mais. Não é para incidir sobre aluguel, sobre compras em geral, o objetivo não é esse.

Ele explica que o que se tenta é um tributo que incida sobre uma empresa grande como a Amazon, mas não sobre uma pequena. Não é para tributar cada transação eletrônica, é para tentar de alguma forma pegar a receita de grandes empresas de tecnologia.

— Com o Google a coisa complica ainda mais. Seria ir atrás da renda de propaganda, da publicidade, que é a fonte da receita da empresa. Não é para taxar a compra do cafezinho na esquina. Seria muito difícil politicamente na União Europeia se alguém tentasse colocar um imposto na conta-corrente do europeu. Seria um escândalo — afirmou.

A expectativa é que o ministro Paulo Guedes explique nos próximos dias e semanas o que pretende, afinal.


Bernardo Mello Franco: Siqueirinha faz escola em Brasília

O desembargador que ofendeu os guardas não está sozinho. Em Brasília, multiplicam-se episódios de autoritarismo e incivilidade entre homens da lei. Um deles se deu na sexta-feira, em sessão do Conselho Superior do Ministério Público.

Em cruzada contra a Lava-Jato, o procurador-geral Augusto Aras enfrentou uma rebelião de colegas. Quando o subprocurador Nicolao Dino tentou contestá-lo, foi calado aos gritos. “Não aceitarei ato político em sessão de orçamento”, exaltou-se Aras.

Mais tarde, ele permitiu a manifestação dos insatisfeitos. “Um Ministério Público desacreditado, instável e enfraquecido somente atende aos interesses daqueles que se posicionam à margem da lei”, afirmou Dino. Foi a senha para um novo bate-boca.

Irritado, Aras passou a se dizer vítima de fake news. “Sob a voz lânguida de algum colega, existe a peçonha da covardia de não mostrar a cara”, engrossou. Em seguida, ele fez um comentário machista sobre a subprocuradora Luiza Frischeisen. Depois impediu uma fala do subprocurador Nívio de Freitas. “Vossa excelência não tá com palavra, não. Não vai ter palavra”, decretou.

Num monólogo enfezado, o procurador-geral acusou os colegas de promoverem “anarcossindicalismo”. Também atacou a imprensa, que viveria “a babar por sangue e reputações”. Finalmente, declarou que a sessão estava encerrada e se levantou da cadeira, sem ouvir a resposta dos ofendidos.

O Aras esbravejante de sexta lembrava pouco a figura dócil que confraternizou com advogados na terça-feira. Em live do grupo Prerrogativas, ele prometeu acabar com o “lavajatismo” e acusou procuradores de guardarem uma “caixa de segredos”em Curitiba. A força-tarefa cometeu erros e abusos, mas aquele não era o tom nem o lugar para o chefe do Ministério Público Federal espinafrá-la.

O procurador-geral ainda sugeriu, sem provas, a existência de fraudes em votações do MPF. Ele foi indicado por Jair Bolsonaro sem concorrer na eleição da lista tríplice, e tem atuado em sintonia fina com o presidente.

Após a fala, um dos anfitriões disse que a advocacia estava “em festa”. “Saio com a alma lavada. Era isso o que eu queria ouvir há muito tempo”, desmanchou-se o advogado Lenio Streck, um dos mais notórios críticos da Lava-Jato.

Noronha
O presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, chamou de “analfabetos” os jornalistas que o criticaram por libertar Fabrício Queiroz. Que o doutor não gosta de ser contestado, já se sabia. Mas ele deveria tomar mais cuidado com o que diz.

Ao atacar a imprensa, o ministro afirmou que “não existe isso de dar um habeas corpus coletivo”. Tentava justificar a decisão em que negou o benefício dado a Queiroz aos demais presos que estão no grupo de risco da Covid-19.

Candidato a uma vaga no Supremo, Noronha deveria saber que a Corte já concedeu um habeas corpus coletivo. Foi em 2018, em favor de gestantes e mães de crianças com até 12 anos.

A soltura de Queiroz é mais uma entre várias decisões do ministro que facilitaram a vida de Bolsonaro. Faltam 25 dias para ele desocupar a cadeira de presidente do STJ.


Hélio Schwartsman: A catástrofe

Obras como a de Richard Horton é com o que de melhor podemos contar na pandemia

Richard Horton é o editor-chefe do periódico médico britânico “The Lancet”, no qual foram publicados alguns dos mais importantes estudos sobre a Covid-19. Se há alguém que acompanhou de perto e em detalhe o surgimento e a evolução da pandemia, é ele. É dessa posição privilegiada que ele escreveu “The Covid-19 Catastrophe”, um dos primeiros “instant books” sobre a epidemia.

A principal vantagem desse tipo de obra é que ajuda a organizar o caos. Se o jornalismo é o primeiro rascunho da história, os “instant books” são sua versão ampliada e passada a limpo. Oferecem um relato mais ordenado e holístico de eventos ainda em andamento.

Para Horton, o mundo falhou, daí o termo “catástrofe” que consta do título do livro. Os riscos de uma pandemia viral são conhecidos pelo menos desde os anos 80, com a eclosão da Aids. Ainda assim, fizemos pouco para aprimorar a vigilância epidemiológica, que, para funcionar, precisa ser uma iniciativa global e não de nações isoladas.

E, se o mundo inteiro errou, o fracasso é ainda mais vexaminoso para alguns países ricos, normalmente funcionais e cientificamente avançados, como os EUA e o Reino Unido. Eles tiveram o privilégio de observar antes o que aconteceu na China e em algumas regiões da Europa e, ainda assim, preferiram não acreditar no que estava por vir e não se prepararam adequadamente para enfrentar a doença.

Horton tenta encontrar as razões para tantas falhas e apontar caminhos para melhorarmos. Nada de revolucionário, apenas mudanças de bom senso.

O ponto fraco de livros instantâneos reside justamente no fato de que os acontecimentos ainda estão em curso. Horton entregou os originais no fim de maio e há coisas no livro que já ficaram velhas. Seja como for, até que a Covid-19 se torne oficialmente um evento pretérito e objeto de estudo de historiadores, obras como a de Horton é com o que de melhor podemos contar.


Ricardo Noblat: O truque de Aras para livrar Bolsonaro de ser processado por Dilma

Se depender de Augusto Aras, Procurador-Geral da República, a maneira mais segura de o presidente Jair Bolsonaro atacar seus desafetos políticos sem receio de ser processado é limitar-se a reproduzir o que disse no passado sobre eles, por mais ofensivo que seja o que tenha dito.

Há quase um ano, a ex-presidente Dilma Rousseff entrou no Supremo Tribunal Federal com uma queixa-crime contra Bolsonaro. Em vídeo postado na sua rede social em agosto último, Bolsonaro reproduziu um discurso que fizera na Câmara dos Deputados em 2014 no qual comparou Dilma a uma “cafetina”.

Cafetina é mulher dona de prostíbulo. Ou que agencia prostitutas mediante pagamento. Mulher de baixos sentimentos. Também chamada de madame, proxeneta. À época, Bolsonaro estava indignado com Dilma por conta da Comissão Nacional da Verdade, que investigara crimes cometidos pela ditadura militar de 64.

“Comparo a Comissão da Verdade, essa que está aí, com aquela cafetina, que ao querer escrever a sua biografia, escolheu sete prostitutas. E o relatório final das prostitutas era de que a cafetina deveria ser canonizada. Essa é a Comissão da Verdade de Dilma Rousseff”, afirmou Bolsonaro.

Por que se depender de Aras o Supremo arquivará a queixa-crime? Porque para ele, o comentário de Bolsonaro não foi feito durante seu mandato como presidente. E presidente da República não pode ser processado por atos anteriores à sua posse. Aras até admite que a conduta de Bolsonaro foi criminosa, mas…

Mas, nada! Para não se indispor com quem lhe presenteou com o cargo de Procurador-Geral da República, Aras preferiu basear-se na data da fala citada e não na data em que Bolsonaro reprisou a fala ofensiva a Dilma, compartilhando-a nas redes sociais quando já era presidente há oito meses. Truque jurídico vagabundo.

Caberá ao Supremo aceitar ou recusar o truque de Aras.


Eliane Cantanhêde: Lavação de roupa suja

Com Bolsonaro em campanha e jogando o governo no colo dos ministros, foco é no MP e no STF

Com o presidente Jair Bolsonaro em campanha para 2022, sem máscara e promovendo cloroquina e aglomerações, o foco vai para os órgãos de investigação do País. A bola da vez é o Ministério Público, depois do escanteio do Coaf, das tentativas de domar o leão da Receita e de investigações sobre interferência política na Polícia Federal. Pairando sobre isso, a suspeita de que o Ministério da Justiça ressuscita o SNI da ditadura.

O clima está animado, como se viu no bate-boca virtual entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o braço-direito do seu antecessor Rodrigo Janot, o subprocurador Nicolao Dino. A reunião era sobre orçamento, mas Dino subiu o tom contra Aras por seus ataques à Lava Jato. A defesa da Lava Jato virou uma lavação de roupa suja. Ao vivo!

A bem de Aras, diga-se que a guerra interna no Ministério Público vem de longe e teve momentos agudos na gestão polêmica e até hoje mal explicada de Rodrigo Janot, cuja marca é a delação premiada de Joesley e Wesley Batista. O resultado foi tenebroso para o País e espetacular para os irmãos da J&F, que, como nos filmes de mafiosos, acabaram com seus aviões, lanchas e apartamentos maravilhosos em Miami e Nova York.

Até hoje, três anos depois, a delação continua válida, nas mãos do relator no Supremo, Edson Fachin. O próprio Janot pediu a revisão, Raquel Dodge foi na mesma linha e aqui vai uma informação: Aras também articula com o STF o fim da delação e dos prêmios fantásticos para os Batistas. Pelas regras, eles perdem a mamata, mas as provas que entregaram continuam válidas.

Na guerra entre os grupos de Janot e de Aras, a mais grave no MPF desde 1988, incluem-se a pressa para estabelecer quarentena aos juízes candidatos (a “Lei Moro”) e o debate, que vai crescer nesta semana, sobre os acordos de leniência (delações premiadas são com pessoas, acordos de leniência, com empresas). O MP investiga, negocia, julga e fecha os acordos. E isso vai mudar. A intenção é juntar o “sistema U” nos acordos de leniência, ou seja: AGU, CGU, TCU e MPU. Sob o comando da AGU.

A crise no MP, porém, é apenas mais uma nos órgãos de investigação. Bolsonaro interveio no Coaf, quando o órgão de fiscalização financeira detectou as “movimentações atípicas” das contas de um tal de Fabrício Queiroz. Depois, o presidente foi flagrado intercedendo a favor de igrejas evangélicas multadas pela Receita. E, por último, ele é investigado pelo Supremo por acusações de intervenção política na PF.

Nesse enrosco todo, só faltava um ataque sistêmico à Lava Jato justamente quando o presidente deflagra sua campanha à reeleição em 2022, com a velha política e o velho Centrão. Às ovelhas do PSL, carinhos, fotos, lábia. Aos lobos do Centrão, cargos, favores e destaque nos palanques. O anfitrião de Bolsonaro no Piauí, aliás, foi o senador Ciro Nogueira (Centrão).

E o governo não descuida dos adversários. O Ministério da Justiça criou um novo SNI para produzir dossiês com perfis, ações, declarações e até fotos de pessoas da área de segurança e das universidades que ousem falar mal de Bolsonaro. Não é uma operação contra fascistas, mas contra antifascistas. Dá para entender? Até agora, já são 579 alvos. Amanhã, pode ser… você!

Assim, as manchetes mudaram, com Bolsonaro deixando o presidente de lado e assumindo o candidato, mas a vida continua: o presidente empurra as políticas (e as culpas) da economia, saúde, meio ambiente, educação e cultura para seus ministros, enquanto protege aliados e “ficha” adversários. O Supremo entra no foco engalfinhando-se com redes de golpistas e de fake news e o Ministério Público racha pela Lava Jato. Calma na superfície, ebulição nas profundezas.


Janio de Freitas: Cada vez mais longe

Os que têm potencial e brigação de reagir tratam o avanço neofascista como mais um fato cotidiano

Com um largo passo, afastamo-nos mais da democracia, dos nossos direitos civis e da vigência plena da Constituição. E como se isso não acontecesse ou, se percebido, não fosse importante. A falta de reação proporcional é tão grave quanto o passo a que fomos empurrados.

Todos os governos de índole fascista começam a torná-la realidade por três ou quatro medidas que tolhem a liberdade de discordância.

Uma dessas medidas clássicas da derrubada de democracias é a identificação, fichamento e vigilância sigilosa de reais ou potenciais opositores ao autoritarismo. Uma das primeiras providências do gorilismo de 1964, por exemplo, foi a criação do SNI, serviço de espionagem interna mais tarde chamado de monstro pelo próprio criador, o sinistro general Golbery.

Tem essa mesma finalidade a função atribuída à Seopi, Secretaria de Operações Integradas, pelo recém-ministro da Justiça, André Mendonça, não muito menos sinistro na sua fisionomia sem expressão.

As atuais revelações do ex-repórter especialíssimo da Folha e hoje encontrável em blog no UOL, Rubens Valente, partem de um dossiê da Seopi, datado de junho.

São os dados e às vezes fotos obtidos em sua “ação sigilosa sobre 579 servidores federais e estaduais de segurança, e três professores universitários, identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’”.

Título do dossiê: “Ações de Grupos Antifas e Policiais Antifascismo”. Antifas é como se denominam os adversários ativos do fascismo em qualquer das suas formas.

O título explicita, portanto, o propósito da ação e do dossiê contra os defensores do regime democrático em vigor, como são, no caso e por definição, os antifas e os policiais antifascismo. Logo, trata-se de uma ação, sob ordens do próprio ministro da Justiça, mais do que inconstitucional, contra a Constituição em seu teor e vigência.

A Constituição não admite ações ou pregação contra o regime nela formulado. Tem a sabedoria da prevenção. Porque o início contra servidores e alguns professores, se não recebe a reação proporcional e legal, será, logo, estendido a outras linhagens da cidadania. Se ainda não foi.

E os que têm o potencial e a obrigação de reagir, até como defesa de si mesmos, trataram o revelado avanço neofascista como mais um fato cotidiano. Sim, os de sempre, jornais e TV, juristas, advogados, professores, intelectuais, artistas, políticos democratas — os visados.

O confronto entre os dallagnois de Curitiba e o procurador-geral Augusto Aras teve a preferência, brigas têm mais sensação. Acusada de caixa de segredos, a Lava Jato rebateu com a afirmação de que os seus arquivos “são avaliados por diversos entes, incluindo toda a sociedade”. Se isso não fosse mentira, não haveria o choque público por recusa do compartilhamento de dados pretendido pela Procuradoria-Geral.

Os dallagnois explicaram ainda as 38 mil pessoas e empresas constantes no seu arquivo, motivo de suspeitas de Aras. São menções em relatórios do Coaf, órgão de alegado controle da Receita Federal, mandados à Lava Jato para verificar suspeitas de lavagem de dinheiro.

Mas a Lava Jato não tem poderes para se meter em buscas a granel das vidas financeiras de pessoas e empresas. Fazê-lo é mais um dos seus habituais abusos de poder.

Executor dos objetivos da Lava Jato, Sergio Moro defende-o: “A operação sempre foi transparente e teve suas decisões confirmadas pelos tribunais de segunda instância e também pelas cortes superiores”. Mentira também. Até a segunda instância no Tribunal Regional em Porto Alegre, ainda que a contragosto, derrubou decisões da parceria Moro/Dallagnol. Nas cortes superiores, Moro recorreu até a pedido de desculpa, para evitar vexame maior.

Mas não faltará um registro simpático: os generais do bolsonarismo são pais dedicados. E dedicados até a simples amigas. Buscam-lhes bons cargos no serviço público, apesar de não terem habilitação. Como a nova representante do Ministério da Saúde em Pernambuco, Paula Amorim, nomeada pelo mérito de ter “relação de amizade e confiança” com o general Eduardo Pazzuelo. Os generais falavam de imoralidade dos políticos.

Em regime neofacista as mentiras e as imoralidades ficam mais fáceis. Justifica-se, pois.


Vera Magalhães: Uma moda que passou

Tão em voga nos palanques em 2018, combate à corrupção vira estorvo

“Fim ‘do’ Lava Jato! Fim ‘do’ Lava Jato!”. Com uma pandemia que já matou mais de 95 mil brasileiros ainda no auge, empregos minguando e economia à deriva, foi esse o coro com que Jair Bolsonaro, eleito, entre outros fatores, de carona no lavajatismo, foi recebido no interior do Piauí, escoltado justamente por um réu na Lava Jato, o senador e presidente do PP, Ciro Nogueira.

A nova onda de críticas, reações e ofensivas contra a mais notória força-tarefa de combate à corrupção já montada no Brasil une o presidente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.

Bolsonaro iniciou seu divórcio do lavajatismo com a saída de Sérgio Moro do governo. O deputado que nunca deu a mínima para combater a corrupção, enfiou a família toda na política, enriqueceu graças a ela, praticou toda sorte de petecagem miúda e já esteve em todos os partidos fisiológicos do abecedário, de repente virou o “capitão” que ia banir os malfeitores. Um enredo pobre e falso como uma nota de R$ 200 com a estampa da ema do Alvorada, mas muita gente embarcou na fantasia.

Com Moro fora do barco, o lavajatismo virou criptonita capaz de enfraquecer o “Mito” e criar um adversário poderoso. De quebra, a saída de Moro coincidiu com a chegada dos novos amigos de infância do Capitão, aquelas figuras mais carimbadas do antes demonizado Centrão, o seguro anti-impeachment tão sonhado. Réus, condenados, ex-presos, cabe todo mundo no barco.

O coro que recepcionou Bolsonaro não tinha nada de espontâneo. Para ajudar o governo, réus como Nogueira deixam claro que aguardam um acordão “com o Supremo, com tudo” para que as ações que lá tramitam dormitem, se possível para sempre.

Um Bolsonaro sem os arroubos de outrora contra o STF ajuda. Basta ver que o presidente não deu um “pio” de solidariedade aos fanáticos banidos das redes sociais por ordem de Alexandre de Moraes. Os novos amigos do Centrão ocupam aos poucos o lugar vago do olavismo tresloucado à mesa do bolsonarismo. Até Carluxo anda quietinho, quietinho.

Aí temos o plantão de Toffoli no recesso do STF. Num ímpeto produtivo, o presidente respondeu sozinho pelo plantão, contrariando a prática de dividi-lo com o vice (o lavajatista Luiz Fux). E que produtividade! Em quatro semanas, ele mandou a Lava Jato compartilhar informações com Augusto Aras, suspendeu buscas e duas investigações contra o senador tucano José Serra, arquivou três inquéritos contra ministros do STJ e do TCU abertos a partir da delação de Sérgio Cabral, suspendeu depoimento de Aécio Neves e dissolveu a comissão do impeachment de Wilson Witzel no Rio. Ufa!

Outro bastante ativo no recesso, e pra lá de destemperado, foi Aras, que se lançou na cruzada contra a Lava Jato e ainda assumiu ares de ditador no Ministério Público Federal, investindo com grosserias contra colegas na reunião do Conselho Superior do MPF.

É certo que o combate à corrupção tem de se dar dentro de balizas e marcos de legalidade e institucionalidade, e que operações como a Lava Jato muitas vezes se arvoraram poderes acima desses limites, e têm de ser controladas e fiscalizadas.

Outra coisa bem diferente, porém, é um ataque orquestrado para fazer letra morta de tudo que se avançou na revelação de crimes e para mitigar o poder de órgãos independentes como o Ministério Público.

Esse tipo de iniciativa combinada mostra que o figurino do arauto do combate à roubalheira foi só uma das muitas lorotas que Bolsonaro enfiou goela abaixo dos eleitores. Assim como mostra dia a dia não ser um liberal, não ter compromisso com a democracia nem a menor condição de governar o Brasil, também essa fantasia do capitão decente foi rasgada, saiu de moda.


Merval Pereira: Organizando a bagunça

A quarentena, período em que ocupante de um cargo público fica impedido de empregar-se no setor privado para não utilizar informações privilegiadas a que tenha tido acesso durante seu período no governo, é uma figura nova na legislação brasileira, e, assim como se origina na concepção médica de isolamento para evitar o contágio de uma doença - como no nosso caso agora, com a pandemia da Covid-19 -, tem acepção mais ampla que começa a ser debatida à medida que os fatos políticos vão se desenrolando.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, defendeu recentemente uma quarentena de 8 anos para que um membro do Ministério Público ou juízes possam entrar na carreira política. O prazo hoje é de seis meses, o que parece muito pouco mesmo, mas 8 anos é a mesma pena da Lei de Ficha Limpa, que torna inelegível por esse período o político punido.

A proposta surge justamente no momento em que a Operação Lava-Jato vem sendo criticada com mais veemência, e diversos setores da vida nacional se mobilizam para inviabiliza-la. Embora a retroatividade de uma eventual medida não seja razoável nem juridicamente aceitável, os meios políticos identificam no ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro o objeto dessa quarentena, que também impediria que procuradores mais notórios da Lava-Jato possam eventualmente se candidatar em 2022.

A retroatividade poderia, temem alguns, ser aplicável caso a mesma interpretação da Lei de Ficha Limpa dada pelo STF, que atingiu todos os políticos já condenados em segunda instância no momento de sua decretação, seja adotada agora, como regra para o registro de uma candidatura.

Há também propostas de quarentena para indicações para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ministros da Advocacia-Geral da União (AGU) ou o Procurador-Geral da República não poderiam ser indicados para uma vaga no Supremo saindo diretamente de um desses cargos. O caso do Procurador-Geral Augusto Aras é exemplar dessa inadequação, pois ele vem , aos olhos de seus próprios pares no Ministério Público, exercendo o cargo não como representante da classe, mas como candidato à vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta compulsoriamente em novembro. O bate-boca que teve com colegas na recente reunião do Conselho Superior do MPF, inclusive destratando a subprocuradora-geral Luiza Fricheisein com comentários considerados machistas, é o sinal de que aumenta a cada dia o distanciamento entre Aras e os membros do Ministério Público Federal.

Assim, como aponta Toffoli, juízes devem cumprir uma quarenta longa para não usarem seus cargos para fazerem favores ou tornarem-se famosos diante de possíveis eleitores, também os titulares da AGU, como foi Toffoli no governo do PT, e da PGR não deveriam usar os cargos para agradar o presidente do momento para conseguir um assento no Supremo.

O debate sobre a presença dos militares, da ativa e da reserva, no governo do presidente Bolsonaro abrange um outro tipo de “quarentena”. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, já se posicionou a favor de uma legislação que exija que os militares que queiram participar de um governo vão para a reserva antes de assumir cargos, especialmente os de cunho político como ministro de Estado.

Essa é uma abordagem específica de uma questão mais global, que é o uso excessivo de militares em postos da administração federal, tendo mais que dobrado esse número em relação a governos anteriores.

Outra questão relacionada à separação de Poderes no presidencialismo é o hábito brasileiro de parlamentares nos diversos níveis de governo fazerem parte do Executivo, com a possibilidade de pedirem licença dos cargos para os quais foram eleitos para exercerem funções como secretários municipais e estaduais ou ministros.

No presidencialismo puro como nos Estados Unidos, um parlamentar tem que renunciar a seu mandato para aceitar ser ministro no Governo Federal ou nos executivos estaduais ou municipais. Isso porque o Legislativo é um Poder igual ao Executivo e ao Judiciário, não havendo razão para esse intercâmbio de funções, inclusive com o nomeado podendo escolher a remuneração de parlamentar ou da função para a qual foi nomeado.

Essa medida evitaria também que o presidencialismo de coalizão seja deturpado pelo famoso toma-lá-dá-cá. A coalizão se daria em torno de conceitos de programas e projetos. Evidentemente que outro tipo regime, como o parlamentarismo, implica outra concepção. Nele, para ser ministro de Estado é preciso ser parlamentar, são os partidos majoritários e suas coligações que formam o governo.