Day: julho 30, 2020

El País: Sucessão de ministros no STF atiça disputa política

Presidente do STJ, João Otávio de Noronha, e ministro da Justiça, André Mendonça, estão entre os favoritos às vagas que serão abertas neste ano e em 2021. O primeiro concedeu prisão domiciliar a Queiroz e o segundo está sendo atrelado a mapeamento de servidores 'antifascistas'

Ninguém olha currículo para escolher ministro de Supremo Tribunal Federal, mas, sim, suas conexões políticas. Esta máxima que circula entre experientes senadores em Brasília tem sido levada em conta mais pelo meio jurídico do que pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Ele é o responsável por indicar o substituto de Celso de Mello, em novembro deste ano, e o de Marco Aurélio Mello, em julho de 2021. Ambos deixarão a Corte por atingirem os 75 anos de idade, data-limite para atuar no Judiciário.

A escolha do substituto de Celso de Mello, o decano da Corte, terá um peso especial. Ele é o relator do processo que investiga se Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal, conforme denunciou o ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Caso essa apuração não seja concluída nos próximos quatro meses, caberá ao sucessor de Celso relatar esse caso.

Assim, enquanto o presidente lança balões de ensaio para agradar a sua base – como o de que indicará um conservador e “terrivelmente evangélico” –, nos bastidores, advogados, ministros do Superior Tribunal de Justiça, procuradores e membros do primeiro escalão do governo Bolsonaro iniciam uma disputa para agradar ao mandatário e, em médio prazo, conseguir o aval dele para o principal cargo judicial do país. Nesta conta, está a possibilidade de aprovação pelos senadores. Algo que o presidente ainda não colocou em seus cálculos, conforme aliados afirmaram ao EL PAÍS. Em toda a história brasileira, os parlamentares rejeitaram apenas cinco nomes, todos em 1894, no governo de Floriano Peixoto.

Entre os prováveis indicados para o STF estão o presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, que concedeu benefício de prisão domiciliar a Fabrício Queiroz, um potencial homem-bomba da família Bolsonaro. Também está cotado o ministro da Justiça, André Mendonça, que é suspeito de usar a estrutura pública para monitorar potenciais opositores do Governo. Entre outros nomes dessa lista estão o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, que é aliado de longa data do presidente e o procurador-geral da República, Augusto Aras, que tem recebido críticas por agir politicamente na condução do Ministério Público Federal.

Noronha tem caído cada vez mais nas graças de Bolsonaro, que já disse que sua relação com ele foi “de amor à primeira vista”. No início de julho, o presidente do STJ atendeu a um pedido da defesa e concedeu prisão domiciliar a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro e amigo do presidente. O argumento foi o risco de ele se contaminar com o novo coronavírus na prisão onde estava detido, no Rio de Janeiro. Queiroz é suspeito de coordenar um esquema de apropriação ilegal de salários de funcionários do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio. No mesmo período em que concedeu o benefício a ele, Noronha analisou 725 pedidos com o mesmo argumento e negou 700 deles, concedeu 18 e outros 7 não foram apreciados porque a defesa desistiu do processo. Os dados foram divulgados pelo portal G1.

No caso de Mendonça, Bolsonaro já lhe deu alguns votos de confiança. O primeiro foi o de “promovê-lo” da Advocacia Geral da União para o Ministério da Justiça, quando precisou substituir o ex-juiz Sergio Moro, seu antigo favorito para o Supremo. O segundo foi o de aceitar a sua indicação para o Ministério da Educação. O novo ministro, Milton Ribeiro, é amigo e afilhado político de Mendonça. Agora, conta com ele para mapear um grupo de 579 pessoas (entre autoridades da segurança pública e professores universitários) que seriam integrantes de “movimentos antifascistas”. O Ministério Público Federal deu dez dias para o MJ se explicar sobre essa apuração.

A favor do ministro André Mendonça há o fato de ele se encaixar no perfil “terrivelmente evangélico”. É da igreja presbiteriana, e pode significar um aceno para a ala religiosa que apoia Bolsonaro. Sobre Jorge Oliveira pesa a lealdade que tem junto a Bolsonaro. O ministro é formado em Direito e oficial da reserva da Polícia Militar do DF. Foi chefe de gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, por três anos. Chegou ao cargo porque seu pai, Jorge Francisco, assessorou o presidente por 20 anos. Pesa contra ele sua inexperiente carreira judicial. Apesar de ter se formado em 2006, só passou a advogar em 2013 e tem poucos casos defendidos nos tribunais.

Já Aras foi escolhido por Bolsonaro para chefiar a Procuradoria Geral da República fora da lista tríplice da categoria. E em uma transmissão ao vivo em suas redes sociais, disse que ele poderia ser indicado ao Supremo, caso surgisse uma terceira vaga. O procurador, que se mobilizou politicamente para chegar ao cargo, contudo, já disse que a sugestão do presidente causa desconforto e que entende que atingiu o ápice de sua carreira ao aceitar chefiar a PGR.

A politização da mais alta Corte do Brasil não é nova, mas ganhou destaque nos últimos 15 anos devido a um papel que o próprio Supremo se deu, de marcar terreno no debate político. Essa nova posição o transforma em vidraça e alvo de críticas de vários espectros políticos. As mais atuais são de bolsonaristas e da própria família presidencial. Contra ambos há investigações sobre fake news, apoio a manifestações antidemocráticas e, no caso do presidente, a suspeita de que tenha interferido politicamente na Polícia Federal.

“A diferença do governo de agora para os anteriores é que, antes, a disputa política pela vaga de ministro do STF era subterrânea, agora é às claras. Além de ser levado em conta também investigações envolvendo familiares e apoiadores do presidente”, avalia o doutor em ciência política Leonardo Barreto. “Bolsonaro é o primeiro presidente que instrumentaliza as indicações. Diz que vai indicar alguém porque tem determinadas características”, completa a professora da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política, Flávia Biroli.

O poder de Bolsonaro hoje de indicar não significa, a priori, colher frutos depois, uma vez que essas indicações por determinadas características nem sempre dão certo. “A lógica entre os políticos não é a de analisar a carreira do ministro. O que ele faz depois, em suas decisões, não preocupa tanto. O que interessa é ter um ministro para chamar de seu”, diz a professora de Direito Público da UnB, Maria Pia Guerra. Para Maria Pia Guerra, a previsibilidade sobre a atuação do ministro surge quando se tem alguém com trajetória jurídica consolidada, com produção acadêmica, publicação de livros ou atuação em Cortes – como advogado, juiz ou membro do Ministério Público.

Na sua visão, indicar alguém com forte apoio político é um erro de qualquer presidente. “Depois de empossado, você não controla o ministro”. Ficou famoso o episódio do hoje ministro e próximo presidente da Corte, Luiz Fux, que teria sinalizado atuar em favor de processos envolvendo integrantes do Partido dos Trabalhadores, incluindo o ex-ministro José Dirceu. Segundo Dirceu disse em entrevistas, Fux afirmou: “Esse assunto eu mato no peito”. Fux, que já admitiu sua insistência pela vaga com interlocutores petistas (era então presidente do STJ e foi indicado ao Supremo em 2011 por Dilma Rousseff), foi duro contra todos os processos do PT no mensalão, e nas posições favoráveis à Lava Jato que penalizaram a legenda.

Segundo escalão e o STJ

Em um segundo escalão entre os cotados para o STF aparecem os nomes do corregedor-geral de Justiça e ministro do STJ, Humberto Martins, do ministro Ives Gandra Filho, do Tribunal Superior do Trabalho e dos juízes federais no Rio de Janeiro Marcelo Bretas e William Douglas. Há ainda um terceiro bloco, com chances reduzidas, por terem apoio de parte dos opositores do Governo e pouca entrada no Planalto. Esse grupo é formado pelos ministros do STJ: Herman Benjamin, Luís Felipe Salomão e Mauro Campbell.

Além das vagas no STF, o presidente ainda terá a possibilidade de nomear dois ministros do STJ, Corte que deve julgar os recursos de Queiroz e de Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas. Em dezembro deste ano, aposenta-se Napoleão Nunes. Em agosto de 2022, Félix Fischer.

A disputa no STJ também é política, mas ela passa por um filtro técnico que impede o presidente de escolher diretamente o seu favorito. Bolsonaro tem de se decidir baseado em listras tríplices que são apresentadas pela própria Corte. As 33 vagas neste tribunal são divididas assim: 11 são para membros de tribunais regionais federais, 11 para desembargadores de Tribunais de Justiça dos Estados, e as outras 11 divididas alternadamente entre advogados e membros do Ministério Público – agora seria a vez dos advogados indicarem alguém. Por isso, para o lugar de Nunes deve ser indicado um juiz federal, enquanto que para o de Fischer, um advogado.


Ribamar Oliveira: O menor investimento da série histórica

Mira das alas política e militar está agora direcionada ao teto de gastos

O governo vive um drama. A pandemia da covid-19 provocará uma brutal recessão neste ano, com queda da economia brasileira de 4,7% no cenário mais otimista. No próximo ano, não haverá espaço fiscal para a execução de um grande programa de investimento que estimule a retomada da atividade econômica, como querem alguns no governo. Por causa do teto de gastos da União, instituído pela emenda constitucional 95/2016, a proposta orçamentária que será encaminhada ao Congresso até o fim do próximo mês, prevê o menor nível de investimento da União da série histórica.

Dependendo do cenário que os técnicos adotem, as chamadas despesas discricionárias (que incluem os investimentos e os gastos para a manutenção da máquina administrativa federal) deverão ficar entre R$ 90 bilhões e R$ 100 bilhões em 2021, ante um valor de R$ 120 bilhões previsto para este ano.

As estimativas oficiais para as despesas não foram fechadas, pois alguns itens do gasto ainda estão indefinidos. Não é possível saber, por exemplo, se o Congresso derrubará o veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de salários de alguns setores da economia. Só este item poderá aumentar ou diminuir o espaço no teto em cerca de R$ 6 bilhões.

Em 2014, a União registrou investimentos (incluindo inversões financeiras) de 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), o nível mais alto da atual série histórica do Tesouro Nacional, que tem registro de dados abertos desde 2007. A partir daquele ano, os investimentos começam a cair, atingindo 0,7% do PIB em 2017. No ano passado houve um aumento para 0,8% em virtude, principalmente, dos aportes de capital feitos pelo Tesouro na Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), o que foi feito fora do teto de gastos.

É conhecido de todos o embate que está sendo travado nos bastidores do governo em torno da estratégia para a retomada da economia, no pós-pandemia. A ala militar, tendo o ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, como seu principal representante, e a ala política, em que desponta o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, diante das limitações do teto de gastos, adotaram uma estratégia que previa a edição de medida provisória abrindo um crédito extraordinário de R$ 35 bilhões, neste ano, para investimentos em infraestrutura.

A avaliação dessas alas do governo é que os R$ 35 bilhões seriam o mínimo necessário para dar um “empurrão” na economia, que, no próximo ano, ainda não estará inteiramente reaberta por causa do receio das pessoas ao coronavírus. O uso do expediente do crédito extraordinário seria uma forma de driblar o teto de gastos, pois ele não é computado no limite das despesas da União.

A proposta do crédito extraordinário de R$ 35 bilhões chegou a ser discutida na Junta de Execução Orçamentária (JEO), na semana passada. O ministro Braga Netto defendeu uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o uso de crédito extraordinário para fazer investimentos e sobre a legalidade de deixar os restos a pagar dessas despesas para 2021, segundo fontes governamentais.

Os titulares da JEO são o ministro-chefe da Casa Civil e o ministro da Economia, Paulo Guedes, que se opôs à proposta do crédito extraordinário, cuja autoria é atribuída ao ministro Rogério Marinho. São vários os argumentos da área econômica contrários à medida. Em primeiro lugar, os integrantes da equipe lembram que a Constituição estabelece que os créditos extraordinários só podem ser utilizados em casos de urgência, relevância e imprevisibilidade. Se os investimentos que seriam executados já estivessem no Orçamento, não se poderia alegar imprevisibilidade, pois suas dotações seriam apenas aumentadas.

Além disso, é considerado normal deixar restos a pagar de um ano para o outro, mas o que a área econômica acha que o Tribunal de Contas da União não aceitaria é deixar “restos a executar”, ou seja, deixar para 2021 investimentos que não foram sequer iniciados neste ano. “Isso não seria razoável”, afirmou uma fonte.

Há também o fato de que os R$ 35 bilhões do crédito extraordinário seriam obtidos por meio de emissão de títulos públicos, aumentando o endividamento e o déficit primário, em um país em que o setor público está com suas contas no vermelho desde 2014. A avaliação dos técnicos é que o sinal para o mercado seria muito ruim, mesmo porque não existe garantia de que os investimentos a serem feitos trariam efetivamente benefícios ao crescimento econômico.

Diante da posição intransigente do ministro Paulo Guedes contra o crédito extraordinário, as alas militar e política voltam-se, agora, contra o teto de gastos. Neste caso, o movimento foi alimentado pela própria área econômica, que, na discussão do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), chegou a propor que uma parte dos recursos do fundo, que está fora do teto de gastos, fosse direcionada ao Renda Brasil, o novo programa social que está sendo alinhavado pelo governo.

As pressões contra o teto, no entanto, encontram resistência também de Guedes, que vê o mecanismo como a âncora fiscal do país e acredita que alterá-lo agora, antes de fazer as reformas necessárias na economia, seria um desastre. Ninguém duvida, na área econômica, que o fim do teto de gastos teria reflexo imediato nas expectativas do mercado, com elevação das taxas de juros.

Há um entendimento também entre as autoridades de que não será possível manter o teto, da forma como está redigido, além de 2022. A estratégia é aprovar as reformas (tributária e administrativa, além dos marcos regulatórios de vários setores) antes disso.

De olho na inflação
O governo só conseguirá cumprir o teto de gastos em 2021, sem um aperto ainda maior, se o índice de inflação que corrigiu o limite das despesas for maior do que o índice que reajustará o salário mínimo e algumas despesas obrigatórias. O teto foi corrigido em 2,13%, enquanto o mercado e o Ministério da Economia projetam alta para o IPCA e o INPC abaixo desse índice.


Vinicius Torres Freire: Ganha força a ideia de gastar dinheiro da calamidade do vírus em obras públicas

Mais gente quer furar o teto de gastos

Há gente no Congresso querendo mesmo abrir uma claraboia no teto de gastos. Isto é, quer permitir que o governo federal gaste além do limite constitucional, pelo menos neste ano ou em 2021.

A despesa extra seria destinada a investimentos e autorizada por um remendo no Orçamento de Guerra, o gasto excepcional autorizado no período de calamidade, declarado por causa da epidemia e que deveria durar até o final deste 2020.

O objetivo da providência talvez imprevidente seria o de fazer esta economia arriada pegar no tranco, por meio de obras novas ou da reativação de canteiros parados, o que aumentaria as encomendas às empresas e criaria empregos.

Seria razoável rediscutir o teto de despesas federais, que desde 2016 não podem aumentar em termos reais (ou seja, apenas podem ser corrigidas pela inflação, anualmente).

Os termos dessa rendição, no entanto, são muito, muitíssimo, complicados. Não é algo que se possa fazer à matroca ou por meio de gambiarras. Do jeito que a coisa vai, há um grande risco de esculhambação, com efeitos impremeditados e contraproducentes graves.

Por ora, parece difícil que tal projeto prospere, mas a ideia está no ar como um aerossol de coronavírus, faz uma duas ou três semanas. Havia sido lançada de modo atabalhoado, confuso e mal explicado em abril deste ano, o tal “Plano Pró-Brasil”, abatido por Paulo Guedes no ato do seu lançamento.

Agora, é motivo de conversa de gente de vários partidos, em particular no centrão, e de ministros de Jair Bolsonaro.

Qual o problema de dar uma furadinha no teto de gastos, usando recursos do Orçamento de Guerra?

Um deputado argumenta que, dado o déficit previsto de mais de R$ 800 bilhões neste ano, gastar uns R$ 30 bilhões ou R$ 50 bilhões não faria diferença no rombo, seria um cisco em um olho vazado.

Pode ser. A depender do tamanho da gambiarra, os credores do governo podem achar que se trata do começo de uma grande amizade, da primeira porteira derrubada de um “liberou geral”.

E daí? Daí as taxas de juros de prazo mais longo sobem, o real se desvaloriza e o tiro sai pela culatra.

Segundo problema, mas não menos importante, não há projetos, planos e meios de controle para gastar direito tais dinheiros. Muitas obras não andam porque são tecnicamente mal projetadas. Desperdícios, roubanças e falta de critério e prioridade são frequentes. É possível que enfiem jabutis nos gastos de investimento (gastos correntes, como despesas com salários e outros contrabandos).

Seria conveniente que houvesse alguma agência de controle de investimentos.

É razoável dizer que a retomada econômica será lenta sem um tranco de investimento público (o PIB se arrasta desde o fim da recessão), entre outros problemas de uma estagnação longa, como a destruição ou a obsolescência de capital, físico e humano.

No entanto, dados o tamanho da dívida, do déficit, da composição do gasto público e sua má qualidade, é bem razoável também dizer que a mera abertura da porteira para gasto extra, ainda que investimento, não é capaz de reativar a economia.

Nosso buraco é fundo e a discussão de como sair deste desastre é enrolada. É razoável pensar em mais investimento público.

Uma discussão séria do problema, porém, envolve grandes remanejamentos de despesa, aumento de carga tributária, um plano realista de contenção da dívida pública (um teto esperto). Tudo isso depende de um novo acordo nacional, um debate difícil e profundo, orientado por um governo construtivo. Nada disso existe.


Eugênio Bucci: A liberdade e a Justiça

A indústria ilegal da desinformação é um fenômeno sobre o qual não há jurisprudência

A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de bloquear páginas de bolsonaristas em redes sociais provocou um bom debate. Desta vez não se trata de uma daquelas batalhas estéreis entre claques que se ofendem e não se escutam. Estamos em meio a uma discussão que mobiliza conceitos sérios, com fundamento ético e legal, sobre os limites da Justiça e os alcances da liberdade de cada um. Há argumentos legítimos e inteligentes de um lado e de outro. A hora pede reflexão. Mais do que embarcar no Fla-Flu jurídico, devemo-nos dedicar a entender com calma o que está em jogo.

Comecemos pela pergunta incômoda: a autoridade judicial pode, no âmbito de um inquérito (no caso, o Inquérito 4.781, mais conhecido como o “inquérito das fake news”), impedir preventivamente a manifestação das pessoas investigadas? Pode o juiz impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não foram julgados?

Os que respondem “sim” a essa pergunta argumentam que os trâmites da Justiça e das investigações policiais normalmente restringem direitos fundamentais. Nada de novo sob o sol, portanto. Na terça-feira, em webinar no site Poder 360, ninguém menos que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio. Lembrando que até mesmo o direito de ir e vir pode ser suspenso pela autoridade judicial no curso de uma investigação (é o que acontece quando o suspeito vai para a cadeia, em regime de prisão preventiva, mesmo antes de seu suposto crime ter sido julgado pela Justiça), Toffoli sustentou a tese de que a supressão preventiva de páginas de pessoas investigadas nas redes sociais constitui um expediente análogo, igualmente aceitável e legítimo, além de legal.

O argumento, bem construído, soa ainda mais convincente quando observamos que aqueles que tiveram suas contas derrubadas nas redes não foram cassados em sua liberdade de expressão, pois seguem se manifestando com alta estridência em outros canais – apenas aquelas contas específicas, nas quais foram identificadas condutas e postagens suspeitas, foram bloqueadas. Além disso, o bloqueio das contas desses bolsonaristas seria indispensável para o bom curso das investigações. Por tudo isso, o argumento procede.

Há, porém, outro ponto de vista. Quando perguntados se um juiz teria poderes para impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não tivessem sido julgados, não são poucos os que respondem “não”. Nesse grupo não figuram apenas os sabujos do presidente da República, empenhados em rebaixar a União ao papel de despachante de blogueiros fascistas. Nesse grupo estão também aqueles que não apoiam em nada o governo e se preocupam com precedentes que, no bojo do inquérito das fake news, venham a enfraquecer no futuro o respeito à liberdade de expressão. Estes (os que prezam a democracia) consideram que um inquérito policial não deveria ter a prerrogativa de atropelar o livre curso do debate público. Admitem, por certo, que todos devem ser responsabilizados (julgados e punidos) pelos abusos que cometerem no uso da liberdade, mas não aceitam a supressão preventiva de um milímetro que seja dessa liberdade.

É fato que hoje estamos falando de um inquérito que apura o comportamento de milícias virtuais abjetas, que disseminam o ódio, o preconceito, o fanatismo e a desinformação mais delirante, atentando diariamente contra os mais preciosos alicerces da República e da democracia. As contas bloqueadas, todo mundo sabe, reúnem um festival de ultrajes e baixezas inomináveis, com pregações contra os direitos fundamentais e as liberdades democráticas. Portanto, para um democrata, é confortável dar de ombros a uma ação da Justiça que limite, ao menos um pouco, as violências virtuais perpetradas por esses terroristas do simbólico. Mas o que acontecerá se, amanhã, outro inquérito, com outras motivações, vier a interditar páginas que não primem pela mesma vileza? A cargo de quem ficaria o critério de arbitrar sobre o que deve e o que não deve ser proibido?

A muitos democratas preocupa a hipótese de que o inquérito das fake news hoje abrigue um componente de censura que venha a produzir estragos amanhã. Para estes, não dá para apoiar o bloqueio das páginas desta vez só porque nos enoja o conteúdo bloqueado. E se gostássemos desse conteúdo, qual seria a nossa reação? Será mesmo essencial, para o êxito das investigações, que essas páginas sejam suprimidas das plataformas sociais?

Os dilemas implicados aí nada têm de corriqueiros. São dilemas ameaçadores e desconhecidos – a indústria ilegal da desinformação, cujos estragos estão apenas começando a se mostrar, é um fenômeno recente, sobre o qual não há jurisprudência em nenhum lugar do mundo. No Brasil é ainda pior, porque aqui o Poder Executivo age como um gabinete do ódio contra as liberdades. Diante disso, a responsabilidade que pesa sobre o STF é quase sobre-humana. Que nossos ministros saibam honrar a melhor tradição da Suprema Corte, de consolidação das liberdades e fortalecimento da democracia, e trilhem o melhor caminho.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Bernardo Mello Franco: Alguns benefícios da nota de R$ 200

Se a nota de R$ 200 tivesse chegado antes, o ex-deputado Rocha Loures não precisaria ter corrido com uma mala de rodinhas. Bastaria uma discreta mochila para transportar a propina

O governo anunciou mais uma medida inadiável. Vai lançar uma nota de R$ 200 em plena pandemia do coronavírus. Até o fim de agosto, a nova cédula deve começar a chegar às mãos dos brasileiros. Ou de alguns deles, é claro.

A diretora de administração do Banco Central, Carolina de Assis Barros, atribuiu a novidade ao entesouramento. O fenômeno ocorre quando a população passa a guardar mais dinheiro em casa.

Com a quebradeira e a redução de salários, milhões de famílias limitaram o consumo a itens essenciais. Quem não perdeu o emprego tenta cortar despesas e seguir adiante. Ainda que a luz no fim do túnel pareça vir de um trem na contramão.

O auxílio emergencial também aumentou a demanda por papel moeda. Isso elevou o gasto federal com impressão e transporte de valores. Até aqui, o governo precisava de ao menos seis notas para pagar os R$ 600. Agora só precisará de três — e os beneficiários que se virem para arrumar troco na quitanda.

Os economistas explicaram que o lançamento da cédula de R$ 200 não significa a volta da inflação. Mesmo assim, quem viveu no Brasil antes do Plano Real pode ter sentido um frio na espinha. Em 1993, o país chegou a rodar uma nota de meio milhão de cruzeiros. Ela estampava o rosto do poeta Mário de Andrade, que nada tinha a ver com aquela desordem monetária.

Ontem o BC anunciou que a nova cédula vai trazer a imagem do lobo-guará. A escolha decepcionou quem preferia homenagear o vira-lata caramelo ou a ema que bicou o presidente Jair Bolsonaro.

Para alguns setores da classe política, a novidade chega com atraso. Se a nota de R$ 200 já existisse em 2017, o ex-deputado Rocha Loures não precisaria ter corrido com uma ostensiva mala de rodinhas. Bastaria uma discreta mochila para transportar a propina até o táxi.

O assessor que abastecia a conta do senador Flávio Bolsonaro também teria poupado tempo diante do caixa eletrônico. A cada depósito de R$ 2.000 em espécie, ele era obrigado a contar e separar 20 cédulas. Agora só precisaria de dez.


Ascânio Seleme: E se Trump ganhar?

Desdobramentos políticos impactarão todo o mundo

Nenhum analista político pode cravar, é cedo, mas evidentemente as chances de Donald Trump perder a eleição em novembro parecem bastante razoáveis. Neste momento, as pesquisas apontam que ele está pelo menos dez pontos percentuais atrás de Joe Biden, o candidato democrata a presidente dos Estados Unidos. Desde o início da pandemia de coronavírus, que teve um efeito devastador sobre a sua liderança, Trump vem perdendo apoios e ganhando antipatias. Os erros em sequência cometidos no enfrentamento do vírus e a deterioração da economia foram os principais elementos para turvar a impressão que os americanos têm de seu presidente.

Sua única possibilidade de reverter o quadro é ver as coisas mudarem daqui até novembro, mês da eleição americana. Para sua sorte e azar do mundo, já há sinais de que estão mudando. Na economia, a recessão aparentemente acabou ainda em abril. Em junho, mais de quatro milhões de empregos foram criados nos EUA. As vendas no varejo cresceram 25% nos últimos dois meses. Uma recuperação importante, que não foi vista em nenhum outro país, mesmo os que já vivem a pós-pandemia. Outros indicadores puxados por estes dois também melhoraram no final do primeiro semestre.

Além de apontar para a pujança da maior economia do mundo, os dados mostram que Trump não está morto. Crescimento econômico com criação de emprego é cabo eleitoral de primeira grandeza em qualquer lugar. Muitos eleitores votam com o bolso, com a geladeira cheia, com o carro na garagem, com a hipoteca da casa paga. Mas há um outro elemento no qual o republicano aposta. Trata-se do voto dos que Trump chama de seus “eleitores invisíveis”. São, na verdade, os envergonhados, que votam num determinado candidato porque intimamente se identificam com ele, mas publicamente não conseguem assumi-lo.

Para seus eleitores conservadores Trump mantém a política de permanente confronto com os manifestantes do “Black Lives Matter”. Estes chamam manifestação de baderna e não se importam com a truculência policial contra negros. Embora não admitam publicamente, muitos concordam com a tese dos supremacistas, são racistas e querem manter a dominância branca na política e na economia. Os envergonhados por vezes dizem o oposto, mas no escuro do seu âmago odeiam manifestações e manifestantes. O envio de tropas federais para conter distúrbios em Portland, no Oregon, na segunda-feira, teve esse cálculo político. Trump quis mostrar ao seu eleitor que continua sendo Trump.

Aos demais, tenta pintar um novo autorretrato. O mais inusitado foi apresentado na semana passada aos jornalistas que cobrem a Casa Branca, durante entrevista sobre o coronavírus. Trump entrou sozinho na sala de briefing, fez uma breve declaração sobre a situação do dia e abriu para perguntas. E então, surpreendentemente, respondeu a cada uma delas sem arrogância, sem ataque a jornalistas, sem ódio. Falou de maneira tranquila e respondeu a todas de modo correto, como deve ser feito, civilizadamente, mesmo as mais venenosas. Estava introduzindo um novo elemento na campanha, que por ora pode ser chamado de Trumpinho Paz e Amor.

Além disso, duas vacinas contra a Covid em testes finais em laboratórios americanos podem estar disponíveis ainda em setembro ou outubro. Será seu último trunfo contra Biden. O tempo dirá, mas a chance de Trump receber das urnas um segundo mandato não pode ser descartada tão cedo, apesar da enorme vantagem de seu oponente. E se ele ganhar, os desdobramentos políticos impactarão todo o mundo.

No Brasil, claro, fortaleceria Bolsonaro. O problema para o capitão reside na derrota de Trump. Ele teria de explicar aos democratas o apoio tão descarado quanto indevido que deu ao presidente republicano. Na verdade, mais do que isso, foi “vergonhoso e inaceitável”, como reclamou anteontem o deputado democrata Eliot Engel, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. Referia-se a um dos três zeros de Bolsonaro, que publicou em redes sociais vídeo da campanha de Trump atacando Biden.


Fernando Schüler: O Supremo é o editor da sociedade?

Foi exatamente contra a ideia do 'Estado editor' que surgiu o conceito moderno de liberdade de expressão

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências […] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Ricardo Noblat: Autorizado por Bolsonaro, Augusto Aras tenta emparedar a Lava Jato

A tudo assistem os militares, impassíveis

Às escâncaras, não, porque seria arriscado e pegaria mal. Mas em conversas cifradas ao telefone, ou na privacidade dos gabinetes no Congresso ainda frequentados por alguns em plena pandemia, políticos de várias tendências comemoram com discrição a ofensiva da Procuradoria-Geral da República contra a Lava Jato.

Quem diria, hein? Quem diria que o candidato a presidente da República que mais se beneficiou do combate à corrupção, logo ele seria o responsável indireto pela saia mais justa aplicada à Lava Jato desde o seu nascimento em 2014, a poucos meses das eleições gerais daquele ano, as últimas a serem vencidas pelo PT?

Augusto Aras, na prática, tem se comportado menos como Procurador-Geral da República, e mais, muito mais como procurador de Bolsonaro. É a ele que deve o cargo que seus colegas jamais lhe dariam. Aras não procuraria motivos para pôr em xeque a Lava Jato sem a prévia autorização do presidente.

Procuraria se Sérgio Moro ainda fosse o ministro da Justiça indemissível como pareceu um dia? Da Operação Mãos Limpas, na Itália, emergiu o governo de extrema-direita de Berlusconi, um empresário riquíssimo e corrupto. Da Lava Jato, o governo de extrema-direita de Bolsonaro, parceiro de milicianos.

Berlusconi tentou cooptar para servi-lo como ministros os dois juízes que encabeçaram a Operação Mãos Limpas, mas eles se recusaram. Sem constrangimento, Moro deixou-se cooptar, inebriado pelo sucesso. Acreditou na promessa de Bolsonaro de que seria promovido a ministro do Supremo Tribunal Federal.

Acabou usado por Bolsonaro, como disse outro dia, e deixou-se usar, como nunca dirá, para fortalecer a impressão de que este seria um governo com gosto de sangue na boca e decidido a pôr um freio na corrupção. Aí os filhos Zero caíram nas malhas da Justiça. Aí Bolsonaro quis intervir na Polícia Federal. Ai Queiroz…

Quando Queiroz foi preso em uma das casas do advogado da família Bolsonaro, Moro havia tascado fora. Hoje, aposentado, resta-lhe sonhar em ser candidato a presidente em 2022. Ou a governador do seu Estado. Ou a Senador, deputado federal, sabe-se lá. Fez pior negócio de sua vida e corre atrás do prejuízo.

A operação de desmanche da Lava-Jato deixa satisfeitos os políticos ficha suja, os que já pecaram e os que se animam a pecar. Reforça, por tabela, a ainda capenga base de apoio ao governo no Congresso que se sente protegida. Mas, em contrapartida, deixa mal os militares dentro ou fora do governo.

Recorde-se que eles gozam da fama de serem ferozes inimigos da corrupção. Exaltaram a Lava Jato por todos os meios ao seu alcance e homenagearam Moro com todas as medalhas em estoque no almoxarifado das Forças Armadas. E, no entanto, assistem impassíveis à tentativa de destruição de sua obra.

A vida tem lá dessas coisas. Selva!

Representante do Ministério da Saúde em Pernambuco é do balacobaco

Amigos para sempre
Ela chama o hotel Copacabana Palace de sua casa no Rio de Janeiro, e ali já posou para fotos muito à vontade. Refere-se à Itália como o país dos seus sonhos que visita com frequência.

Ama de paixão maquiar-se, ir a festas da alta sociedade do Recife e vestir-se com roupas de grifes, de preferência as mais caras. Seus críticos dizem que em certas ocasiões ela ostenta em demasia.

Uma amiga da praia de Boa Viagem, que a admira e inveja, cita em sua defesa um colunista social que já morreu: “Os cães ladram e a caravana passa”. E pergunta: “Como era mesmo o nome dele?”

Ibrahim Sued, o pai do moderno colunismo social brasileiro, que em sua coluna, publicada durante 41 anos no GLOBO, criou e absorveu termos que entraram para o vocabulário popular.

Paula Amorim, de idade incerta, não é uma pantera, nem mesmo uma locomotiva, mas costuma estar onde possa ser vista e reconhecida como uma mulher atraente e simpática.

Não é uma mulher evento. Recife já teve os “Irmãos Eventos”, eram dois, que não perdiam uma festa, um coquetel, uma exposição, enfim uma boca livre, fossem convidados ou não.

Curadora da própria imagem, Paula vai de leve. O que não a impede de, em certas ocasiões, roubar a cena. Tornou-se inesquecível sua aparição no velório do governador Eduardo Campos.

Em sociedade, tudo se sabe. Tanto mais em cidade de muro baixo. O velório foi no Palácio do Campo das Princesas. Então candidato a presidente da República, Campos morreu na queda de um avião.

De repente, entrou no palácio aquela mulher elegantemente trajada toda de preto. Pelo menos duas coisas a destacavam, além da expressão compungida: a altura dos saltos e o chapéu.

Não era qualquer chapéu – embora nenhuma das mulheres que por ali circulou tivesse sido vista usando um. Era “o chapéu”, enorme, desses que aparecem em filmes sobre enterros de gente rica.

Seria exagero dizer que, por um momento apenas, ela tenha eclipsado o morto. Mas eclipsou as demais mulheres presentes, sim. O alvoroço entre os políticos foi notado.

Cunhada do ex-deputado federal João Fernando Coutinho, presidente estadual do PROS, irmã de um militar que já foi segurança da primeira-dama Marcela Temer, Paula é solteira.

Aos que privam da sua intimidade, ela conta que sua renda decorre basicamente da compra de joias penhoradas pela Caixa Econômica que ela revende a uma clientela especial.

Há meses que se ouvia em Brasília que uma pernambucana era muito influente no Ministério da Saúde. Bingo! Paula foi nomeada representante do ministério em Pernambuco.

Sem experiência em Saúde ou gestão pública, ela é amiga há mais de 30 anos do general Eduardo Pazuello, o ministro interino. Substituirá uma enfermeira. Ganhará 10 mil reais por mês.

Segundo a assessoria de Pazuello, ele e Paula foram apresentados “por conhecidos em comum”, e a nomeação se baseou na “relação de confiança e amizade” entre ambos.

Está bem. É suficiente. Gigi chegou lá. Ademã. Vamos em frente.


Míriam Leitão: Aras realiza o sonho de Jucá

Decisão de Aras não têm clareza e não são correção de rota, mas sim o desmonte do edifício que investiga a corrupção no país

Quando se divulgou a gravação na qual o então senador Romero Jucá falava em “estancar a sangria”, foi um escândalo. Mas hoje o que o procurador-geral da República faz é o que Jucá tinha em mente. De um lado, Augusto Aras realiza a sua explícita ofensiva contra Curitiba e a Lava-Jato, de outro, enfraquece a Polícia Federal. Aras estimula o temor da existência de um Estado policial montado no MP, quando o perigo real está sendo instalado no Ministério da Justiça com sua lista de monitorados.

Aras aproveita uma preocupação da sociedade brasileira de que a Lava-Jato teria ultrapassado os seus limites. É um sentimento legítimo. Na democracia não se pode admitir a quebra de regras nem para o mais justo dos propósitos. Mas essa supervisão tem que ser feita pelo sistema judiciário, sem se subverter a natureza do Ministério Público. O MP não convive com a centralização que Aras tenta impor, porque ele não é órgão da burocracia que tenha hierarquia explícita. O procurador-geral é chefe do MP, mas não pode tirar a autonomia dos procuradores. Não é o comandante de uma tropa. Mas é o que está tentando ser.

A Lava-Jato ameaçou toda estrutura política, e parte importante do mundo empresarial, com as investigações que mostraram a troca de financiamentos ilegais por favores dos detentores de cargo ou de mandatos públicos. Por isso, com esse movimento ele alivia muita gente. Principalmente o presidente que o escolheu e que pode nomeá-lo ministro do Supremo. O que Aras está fazendo não é correção de rota, mas sim o desmonte do edifício que investigou a corrupção. Ele alega que está agindo em nome da transparência, quando seus atos não têm qualquer clareza.

Enquanto isso, no Ministério da Justiça, como vem revelando em seu blog no Uol o jornalista Rubens Valente, está sendo montada uma estrutura para investigar servidores públicos, policiais e intelectuais que se declaram antifascistas. A Rede pediu ao STF que impeça o governo de continuar com essa estranha investigação. O deputado Eduardo Bolsonaro reagiu postando em seu Twitter uma frase que mostra, em poucos toques, várias distorções deste governo. “Ué querem que o governo tenha em seus quadros pessoas ligadas ao movimento Antifa?” O filho do presidente acha que é errado ser contra o fascismo. O bom seria ser fascista? Está convencido de que a máquina do Estado pertence ao governo Bolsonaro. Portanto, nela não podem trabalhar os servidores que não estejam alinhados com o pensamento dos atuais governantes. De acordo com a primeira das colunas de Valente sobre o assunto, há um dossiê de 579 pessoas, com nomes, fotos e endereços feitos pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça. O relatório registra que há “policiais formadores de opinião que apresentam número elevado de seguidores em suas redes sociais, os quais disseminam símbolos e ideologias antifascistas”.

O Ministério da Justiça considera suspeito o fato de alguém ser antifascista. O filho do presidente acha que eles não podem estar no governo. Então esses policiais espionados devem ser demitidos por disseminarem tal ideologia? Há momentos em que o país parece ter sido tragado por uma inversão total dos valores. Na ditadura havia em todos os ministérios, órgãos, autarquias e universidades departamentos que vigiavam servidores, alunos, professores. Eram os inúmeros braços do Serviço Nacional de Informações (SNI). Esse é o perigo real.

Aras está preocupado é com a Lava-Jato. De um lado, quer enfraquecer a Polícia Federal e por isso reaviva uma velha disputa de poder que já havia sido arbitrada pelo Supremo. De outro, afirma que a Lava-Jato é uma “caixa de segredos”, que tem dados de milhares de pessoas medidos em terabytes. Conseguiu levar todas as informações para Brasília e diariamente diz algo para quebrar a confiança no trabalho dos procuradores.

O presidente Jair Bolsonaro jamais teve como bandeira a luta contra a corrupção. Usou-a para se eleger, mas sempre quis limitar as investigações, principalmente as que se aproximam de sua família. O gravador do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado captou uma conversa com Romero Jucá em que ele propunha um pacto para estancar a sangria desatada pela Lava-Jato. Isso é o que Aras está conseguindo.


Merval Pereira: Farsa tupiniquim

O procurador-geral da República, Augusto Aras, escancarou nos últimos dias sua intenção de controlar a Lava-Jato

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, quer que “o natural, bom e antigo” combate à corrupção substitua o que chama de “lavajatismo”, um neologismo muito usado pelos bolsonaristas quando querem menosprezar alguma atividade de que não gostam, como “mundialismo”, em vez de globalização.

Isso não quer dizer que o que Aras está fazendo com a Lava-Jato corresponda a uma ação direta de conluio político com o presidente que o escolheu por fora da disputa interna no Ministério Público. Mas que, tentando desmoralizar a Lava-Jato, está ajudando Bolsonaro a manter o Centrão protegido, isso está.

Defendendo a tese de que a Polícia Federal não pode fazer busca e apreensão em gabinetes de parlamentares, Augusto Aras também faz com que o “antigo” jeito de combater a corrupção no Brasil volte a prevalecer, o que sempre levou a que autoridades, empresários e políticos não caiam nas malhas da Justiça.

Isso não é novidade nos países em que a corrupção avassaladora foi combatida por uma nova geração de juízes e promotores que não se deixaram amarrar por uma burocracia que sempre beneficia os infratores. Na Itália foi assim com a Operação Mãos-Limpas. Com apoio popular grande durante os primeiros anos, a Operação acabou atingida por diversas denúncias que, mesmo não tendo sido comprovadas, corroeram a confiança popular.

Os juízes Di Pietro – que mais tarde entraria na política - e Davigo foram convidados para serem ministros no Governo Berlusconi, resultante do movimento contra a Mãos Limpas, mas recusaram diante da evidência de que o que Berlusconi queria mesmo era desmobilizar a Operação.

Entre nós, algo parecido aconteceu. O então juiz Sérgio Moro, e boa parte do eleitorado, foram seduzidos pela falsa promessa de Bolsonaro de que combateria a corrupção com base na Lava-Jato, e entrou no governo. Bastou que investigações chegassem perto da família presidencial, todos ligados a Fabricio Queiroz, para que Bolsonaro quisesse controlar a Polícia Federal, especialmente a seção do Rio, local de atuação de Queiroz e dos Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, a tentativa petista de desmoralizar as condenações do ex-presidente Lula levou a um vazamento de conversas dos procuradores da Lava Jato em Curitiba, entre si e com o então juiz Sérgio Moro. Durante meses o site The Intercept-Brasil publicou essas conversas, geradas pela ação de um grupo de hackers que está na cadeia, e não revelou nenhuma ação que distorcesse a investigação, que forjasse provas inexistentes, que indicasse conluio contra qualquer investigado da Operação Lava Jato, muito menos o ex-presidente Lula, o objetivo evidente da operação de invasão de celulares.

Na Itália, tomou corpo, depois de anos de apoio da opinião pública, uma campanha de difamação contra as principais figuras da Operação Mãos Limpas, em especial o Juiz Di Pietro, e acusações de abuso de poder nas investigações. O mesmo vem acontecendo com o ex-juiz Sérgio Moro, os Procuradores do Ministério Público Federal e membros da Polícia Federal que fazem parte da Força-Tarefa da Operação Lava-Jato.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, escancarou nos últimos dias sua intenção, latente desde que foi escolhido por Bolsonaro, de controlar a operação. Uma das alegações mais risíveis é a comparação de quantos terabytes (unidade de medida utilizada para armazenamento de dados na informática) de informações a força-tarefa de Curitiba tem em relação ao Ministério Público.

Como são dez vezes mais, isso significa para Aras não indicação de produtividade, mas sinal de que alguma coisa secreta está acontecendo por lá. Em vez de aprovarem reformas que evitariam a corrupção, na Itália houve uma reação do sistema político, dos próprios investigados, pessoas poderosas e influentes, e foram aprovadas leis para garantir a impunidade.

Aqui está acontecendo a mesma coisa, com a mutilação de medidas propostas por Moro para combate à corrupção e decisões judiciais, até mesmo do Supremo Tribunal Federal, que dificultam o combate à corrupção. O fim da prisão em segunda instância e dificuldades para as delações premiadas são apenas exemplos mais recentes. A historia se repete como farsa tupiniquim.


Mariliz Pereira Jorge: É muito difícil ser bolsonarista

Pense no susto se bolsonaristas descobrirem que o establishment são eles

Inegáveis a devoção, a energia e a habilidade que os apoiadores do governo demonstram. A capacidade infinita de enxergar seus ídolos com filtros coloridos não é estranha a nenhum militante, mas a vida do bolsonarista é um malabarismo permanente.

A começar pela exaltação da cloroquina. Todos virados em direção ao Palácio da Alvorada, a meca dos "patriotas", para louvar um remédio que inúmeras pesquisas apontam como ineficaz contra o coronavírus.

Rejeitar a ciência, porém, é nada perto do contorcionismo para apoiar Madonna, que, de feminista de carteirinha e defensora do aborto legal, e portanto inimiga, passou a correligionária após defender o uso do medicamento.

E o que dizer dessa massa que passou a eleição falando em combate à corrupção e à velha política, fim de privilégios e bandido morto e hoje aplaude Bolsonaro de mãos dadas com o centrão, exalta o ex-presidiário Roberto Jefferson, defende o foro privilegiado de Flávio Bolsonaro e a prisão domiciliar de Queiroz?

Um dia o bolsonarista pede a volta da ditadura, desconjura militar frouxo, diz que a mídia mente. No outro, reclama que vive sob uma ditadura, clama pelo direito de ir e vir e de desrespeitar medidas sanitárias de combate à pandemia, defende fake news e liberdade de expressão (a deles).

Eles ainda encontram tempo para, entre uma novela e outra da Globo, seguir os perfis da "extrema imprensa" só para poder cravar seus slogans, #globolixo, #folhalixo, #acabouamamata. Menos, claro, a mamata oficial. O interino da Saúde nomeou uma amiga, sem experiência, para chefiar o ministério em Pernambuco. E daí? O que pega mesmo os bolsonaristas é a propaganda de Dia dos Pais com o transexual Thammy Gretchen.

Sem falar nas reclamações rotineiras contra o establishment, que partem inclusive de integrantes do governo e de filhos do presidente. O contorcionismo é admirável. Pense no susto se descobrirem que o establishment são eles.


Maria Hermínia Tavares: Improviso e dispersão

Brasil e EUA poderiam coordenar de maneira mais eficaz a administração pública para prover saúde

Polarização política, descentralização federativa e desigualdades são condições prévias que permitem entender a dramática situação do país na pandemia. A constatação, que se aplica sem tirar nem pôr ao Brasil, é do cientista político Bruce Cain, da Universidade Stanford, ao falar dos Estados Unidos.

Mas as semelhanças vão além. Ali como aqui, eleições alçaram à Presidência políticos populistas que cultivam a mentira, desprezam a ciência, alimentam-se de conflitos e pouco se importam com a vida humana. Isso posto, o argumento do professor tem a virtude de chamar a atenção para um dado menos perceptível: mesmo se os dois países contassem com dirigentes responsáveis, circunstâncias anteriores restringiriam a capacidade de seus governos de combater a pandemia.

Os antagonismos políticos poderiam ser algo mais civilizados, não fossem Trump e Bolsonaro, a um tempo, suas criaturas, principais agentes e beneficiários. Ainda assim, os outros dois fatores apontados por Cain estariam presentes e de formas distintas continuariam dificultando a luta contra a Covid-19.

A federação, consequência quase inevitável da opção pela democracia em nações de porte continental, requer do governo central, além da aptidão para definir rumos, disposição e engenho político para negociar e coordenar a ação de estados com competências e atribuições próprias.

As desigualdades cumulativas de renda, condições de vida e acesso a serviços públicos básicos tornam virtualmente impossível a aplicação eficiente da principal medida em face da crise sanitária, na ausência de vacinas: o isolamento social. Por essa razão, nos países —entre eles Brasil e Estados Unidos— onde a pobreza é disseminada e as desigualdades, profundas, duas pandemias coexistem, com características e probabilidades distintas de levar à morte: a dos que podem se proteger em casa e a dos muitos para os quais isso é impossível.

Fossem outros os governos em Brasília e Washington, outro seria o debate, e bem maior o aprendizado sobre a forma mais eficaz de coordenar os diferentes níveis da administração pública para prover saúde; como melhor proteger os que não podem se isolar; como usar organizações públicas ou comunitárias para fazer chegar água, comida e regras de cuidado às moradias mais pobres ou para aqueles que vivem nas ruas. Tudo, em suma, o que está sendo feito de maneira improvisada e dispersa.

Para tanto, outro precisaria ser o governo, com ministros à altura do desafio e um presidente antes preocupado em criar consensos do que em dar cloroquina para as emas do Palácio.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.