Day: julho 27, 2020

Falta de liderança é um dos ‘fatores muito graves’ para combate à Covid-19, diz Luiz Antonio Santini

Em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de julho, ex-diretor do Inca acredita que até o fim do ano a doença possa ser controlada

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ex-diretor do Inca (Instituto Nacional do Câncer), o pesquisador Luiz Antonio Santini alerta para os erros que o governo federal tem cometido na luta contra a pandemia do novo coronavírus e ressalta o importante papel do SUS (Sistema Único de Saúde), que, segundo ele, está sendo subutilizado. “A falta de conhecimento estruturado sobre a doença, a ausência de organização, a falta de liderança, uma disposição permanente de questionar a própria ciência, são fatores muito graves para a implementação de uma política pública eficaz”, afirmou, em entrevista exclusiva à revista Política Democrática Online de julho.

A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todas edições podem ser acessadas, gratuitamente, no site da entidade, que também faz ampla divulgação em seus perfis no Instagram e no Twitter e em sua página no Facebook. Na avaliação do médico, que atuou como diretor do Inca por 10 anos, a estratégia de guerra implica a normalização do dano colateral. “Torna-se aceitável a morte de várias pessoas, a começar pelos profissionais de saúde. Isso precisa ser revisto. A conclusão de ‘vamos todos morrer um dia’ não edifica"”, criticou ele.

Santini acredita no controle da doença no Brasil antes mesma de uma vacina contra a Covid-19. "Acho possível imaginar que, até o final do ano, mesmo antes do surgimento de uma vacina, essa doença possa estar controlada no Brasil”, disse. “Ainda mais porque temos tem grande vantagem sobre vários outros países, que é um sistema de saúde robusto, o SUS, mesmo não tendo sido até o momento adequadamente aproveitado", acrescentou.

O médico faz duras críticas à falta de liderança por parte do governo federal diante da pandemia do coronavírus no país. "Quanto à questão política, mantida essa atitude governamental de ausência de uma liderança, e, portanto, falta de confiança no que está sendo implementado, acredito que a tendência é não se conseguir equacionar esse problema até o fim do ano, vale dizer o aparecimento de uma vacina", lamentou.

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Jamil Chade: Bolsonaro é denunciado em Haia por genocídio e crime contra humanidade

O presidente Jair Bolsonaro é denunciado por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. A iniciativa, protocolada na noite deste domingo, está sendo liderada por uma coalizão que representa mais de um milhão de trabalhadores da saúde no Brasil e apoiado por entidades internacionais.

A Rede Sindical Brasileira UNISaúde acusa o presidente de "falhas graves e mortais" na condução da resposta à pandemia de covid-19.

"No entendimento da coalizão, há indícios de que Bolsonaro tenha cometido crime contra a humanidade durante sua gestão frente à pandemia, ao adotar ações negligentes e irresponsáveis, que contribuíram para as mais de 80 mil mortes pela doença no país", destacam.

Bolsonaro já foi alvo de uma outra denúncia no mesmo tribunal, envolvendo a situação dos indígenas. Naquele momento, a acusação era de risco de genocídio. Desta vez, porém, trata-se da primeira ação de iniciativa dos trabalhadores da saúde na Corte Internacional e já levando em consideração vetos a leis, a medidas de ajuda e sua responsabilidade de proteger tanto a população quanto aos profissionais de saúde.

O tribunal recebe cerca de 800 denúncias por ano e leva meses até tomar uma decisão se aceita ou não a queixa, o que levaria a corte a abrir uma investigação formal.

Enquanto uma decisão é aguardada, porém, a ofensiva internacional se transforma em mais um capítulo de um abalo contra o governo. Nos últimos meses, as denúncias em diferentes fóruns internacionais se transformaram no "novo normal" para a diplomacia brasileira. Apenas em 2019, foram mais de 35 queixas apresentadas formalmente à ONU.

No caso do Tribunal, porém, a denúncia vem dos sindicatos de profissionais de saúde, que consideram que existe "dolo" e "intenção na postura do presidente, quando adota medidas que ferem os direitos humanos e desprotegem a população, colocando-a em situação de risco em larga escala, especialmente os grupos étnicos vulneráveis".

No documento de 64 páginas submetido à procuradora-geral do Tribunal, Fatou Bensouda, as entidades denunciam uma atitude de "menosprezo, descaso, negacionismo" e que "trouxe consequências desastrosas, com consequente crescimento da disseminação, total estrangulamento dos serviços de saúde, que se viu sem as mínimas condições de prestar assistência às populações, advindo disso, mortes sem mais controles".

"A omissão do governo brasileiro caracteriza crime contra a humanidade - genocídio", diz o texto. "É urgente a abertura de procedimento investigatório junto a esse Tribunal Penal Internacional, para evitar que, dos 210 milhões de brasileiros, uma parcela sofra as consequências desastrosas dos atos irresponsáveis do senhor Presidente da República", apontam.A Flourish data visualisation

"O governo Bolsonaro deveria ser considerado culpado por sua insensível atuação frente à pandemia e por recusar-se a proteger os trabalhadores da saúde do Brasil assim como a população brasileira, à qual ele prometeu defender quando se tornou presidente", disse Marcio Monzane, secretário regional da UNI Americas.

"Entendemos que buscar a Corte Penal Internacional é uma medida drástica, mas os brasileiros estão enfrentando uma situação extremamente difícil e perigosa criada pelas decisões deliberadas de Bolsonaro", disse.

A UNI Americas é o braço regional da federação internacional sindical UNI Global Union, com sede na Suíça e representando 20 milhões de trabalhadores dos setores de serviços em 150 países

Segundo Morzane, a opção dos sindicatos não foi a de fazer "mais uma pressão política". "Decidimos apresentar uma denúncia técnica", explicou. No documento, o grupo cita a situação entre indígenas, comunidades vulneráveis e os profissionais de saúde.

Crime contra a humanidade

Criado no final dos anos 90, o tribunal tem o mandato para avaliar quatro crimes internacionais fundamentais: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.

"O caso descreve como Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade quando se recusou a tomar as medidas necessárias para proteger o povo brasileiro durante a pandemia, garantindo a redução dos riscos de doenças, conforme prevê o artigo 196 da Constituição Federal", explicam as entidades.

"O presidente, argumentam os advogados na ação, colocou e ainda coloca os profissionais de saúde bem como toda a população em risco, ao promover aglomeração de seus apoiadores, aproximando-se deles sem máscara, e fazendo propaganda de medicação, como a hidroxicloroquina, para a qual não há comprovação científica de sua eficácia contra a doença", alertam.

"Bolsonaro afirmou ele mesmo ter testado positivo para a Covid-19 e tem constantemente promovido o uso da medicação em lives em suas redes sociais, ao forjar estar tomando o medicamento", denunciam.

Genocídio e Gilmar Mendes

Em outro trecho, a denúncia também explica os motivos pelos quais a queixa por genocídio é apresentada:

a) intenção deliberada do Presidente da República em não adotar medidas que viesse impedir a expansão da "epidemia", contando com o "contagio de rebanho";

b) temos o povo brasileiro como um "grupo", na definição da ONU, que foi afetado pelas omissões governamentais;

c) de forma setorizada, a omissão atingiu comunidades de negros, indígenas, quilombolas, dizimando grupos;

d) ainda, de forma setorizada, temos como grupo, os trabalhadores da saúde, obrigados pela profissão a se exporem ao risco de contaminação que, se avolumou pela falta de políticas públicas que viessem evitar a proliferação do vírus.

O documento submetido ao Tribunal ainda cita o caso do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que indicou que "caso um agente público conscientemente adote posição contrária às recomendações técnicas da OMS, entendo que isso poderia configurar verdadeira hipótese de imperícia do gestor, apta a configurar o erro grosseiro".

"Já manifestei — e manifesto novamente — que a Constituição Federal não autoriza ao Presidente da República ou a qualquer outro gestor público a implementação de uma política genocida na gestão da saúde", escreveu o ministro.

No dia 11 de julho, o mesmo ministro voltou a tocar no assunto, abrindo uma crise entre o Planalto e o STF. De acordo com os documentos submetidos ao tribunal, "considerando o fato de, mais de duas dezenas de cargos técnicos no Ministério da Saúde estarem sendo ocupados por militares sem qualquer formação na área de saúde, assim (Gilmar Mendes) se manifestou:

"Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso".

"Assim, por mais de uma vez, membro do Supremo Tribunal Federal, associa as políticas públicas de saúde à "genocídio", declarou o documento enviado para Haia. A referência de Gilmar Mendes era uma das preocupações do Palácio, justamente pelo peso que o termo genocídio poderia ter vindo de um ministro da corte suprema.

A documentação submetida ao tribunal ainda aponta como o país está há mais de dois meses sem um titular na pasta da saúde, "no meio da maior crise sanitária do último século, que já ceifou mais 80 mil vidas e deixou mais de 2 milhões de pessoas doentes até o dia 23 de julho no país".

O texto relata as disputas entre os diferentes ministros e o presidente e como o General Eduardo Pazuello "abandonou a defesa do distanciamento social mais rígido e passou a recomendar tratamentos para a covid-19 sem aval de entidades médicas e científicas, como o uso da "cloroquina e hidroxicloroquina".

"Em agravamento, a pasta ainda perdeu técnicos com décadas de experiência no SUS e nomeou militares para cargos estratégicos", diz o documento.

"Com a interinidade no Ministério da Saúde, o controle ao combate ao avanço da pandemia, se mostra totalmente abandonado, exigindo de governadores e prefeitos a tomada de medidas que necessariamente deveriam estar capitaneada pelo Poder Executivo. Em 53 anos, é a primeira vez que o Brasil se mostra sem ministro da Saúde efetivo", dizem.A Flourish data visualisation

Enfermagem com vítimas

A queixa ainda destaca como o comportamento do governo tem custado vidas entre os profissionais de saúde.

"Há quatro meses, a Rede Sindical Brasileira UNISaúde começou a exigir uma resposta mais contundente à crise, como o fornecimento de EPIs (Equipamento de Proteção Individual) de qualidade aos profissionais de saúde, os mais atingidos durante a pandemia, e testagem aos assintomáticos, e essa reivindicação se tornou mais urgente agora. A coalizão quer que o governo brasileiro seja coibido de continuar agindo de forma tão negligente", destacam.

Ana Paula Gonçalves Maia, técnica de enfermagem e delegada sindical do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Belo Horizonte e Região (Sindeess), espera que a denúncia no tribunal internacional dê mais atenção aos trabalhadores da saúde, especialmente aos profissionais de enfermagem. "Estamos num campo de guerra onde não sabemos se vamos viver ou morrer", disse.

Usando os números do próprio Ministério da Saúde, entre os dias 12 a 18 de julho, 96 mil enfermeiros e técnicos/auxiliares de enfermagem estavam contaminados, sendo os mais atingidos entre os profissionais de saúde.

"O número de óbitos desses trabalhadores, no dia 24, chegava próximo de 300, conforme o Observatório da Enfermagem do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem)", destacam.

A enfermeira Líbia Bellusci, que é vice-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro (Sindenf-RJ) e que contraiu a Covid-19 no exercício de suas funções, alerta que o governo brasileiro tem adotado uma postura de banalizar a pandemia.

"No começo, o próprio presidente disse que (a covid-19) era uma gripezinha e, depois, quando o Brasil já somava milhares de mortes, disse: 'E daí?", afirmou.

"A postura dele acabou inviabilizando a celeridade no processo de cuidar e de proteger os trabalhadores da saúde e a população. Só com a denúncia internacional vamos conseguir mostrar que as entidades da saúde estão unidas em favor da classe trabalhadora, pois hoje, nós, da enfermagem, lideramos o ranking de mortes de profissionais da saúde", disse Líbia, que trabalha no Hospital Estadual Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

Sofia Rodrigues do Nascimento, diretora-presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde de Campinas e Região (Sinsaúde Campinas e Região), é outra que culpa o governo pela dimensão da crise. Segundo ela, o presidente "não deu a assistência necessária à nação".

"Se tivesse tido a assistência antes, um acolhimento, uma providência do governo federal, a doença não teria se alastrado tanto. Hoje, os trabalhadores da saúde têm trabalhado doentes e muito preocupados com o amanhã", afirmou.

Jhuliana Rodrigues, técnica de enfermagem e vice-presidente da mesma entidade, espera que a denúncia dê "visibilidade para o que acontece atrás das paredes dos hospitais".

A profissional trabalha no Hospital São Vicente em Jundiaí, interior de São Paulo. Há quatro meses sem ver a filha de 11 anos, ela disse que a própria rotina no trabalho está mais desumanizada, não por culpa dos profissionais, mas do medo que eles sentem.

"É muito difícil assumir um plantão. A gente encontra os colegas e sente uma energia pesada, de muita pressão", desabafou.

"Não há mais conversas, interação, trabalhamos com medo do outro. É muito triste trabalhar 12 horas sem ter segurança, suporte emocional. Por isso, creio que a denúncia seja uma forma de expressarmos nossas aflições e nosso lado humano, pois estamos sofrendo muito com tudo isso", completou.

De acordo com Morzane, essa não é a primeira vez que os sindicatos se queixam. Listas de demandas já foram apresentadas ao governo e, hoje, a constatação é de que a resposta foi a "omissão"."Bolsonaro colocou seu exército numa guerra sem equipamento e nem os armamentos necessários", disse.

No total, a iniciativa tem o apoio de mais de 50 entidades brasileiras e estrangeiras. Além dos sindicatos do setor, a queixa é ainda assinada pela Internacional dos Serviços Públicos (ISP), a União Geral dos Trabalhadores (UGT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), e movimentos sociais.


Demétrio Magnoli: Um novo ‘cordão sanitário’

Globalização ingressa em nova etapa, crivada pelo antagonismo sino-americano

A cada vez mais provável vitória de Joe Biden sobre Donald Trump mudará tudo nos EUA — menos a atitude diante da China. Consolida-se, nos EUA, um consenso bipartidário sobre o imperativo de estabelecer limites à expansão da influência chinesa. Não é uma “segunda Guerra Fria”, pois a nova potência, ao contrário da URSS, é ator de magnitude maior na economia mundial. Mas, como na Guerra Fria, desenha-se uma estratégia de contenção de longo prazo.

Com Xi Jinping, a “diplomacia do sorriso” ficou no passado. “A China já não teme ninguém. Acabaram-se, para não voltar mais, os tempos em que o povo chinês subordinava-se a outros e vivia dependente de caprichos externos.” As palavras de um alto responsável do governo chinês para Hong Kong, que se referiam à nova Lei de Segurança Nacional, podem ser estendidas à projeção militar no Mar da China Meridional, ao ambicioso programa de modernização bélica e à agressiva diplomacia econômica sintetizada no projeto da chamada Nova Rota da Seda.

A China que já não sorri coloca em evidência o tema da emergência de uma grande potência numa ordem internacional construída pela principal potência anterior. O exemplo da ascensão de uma “potência satisfeita”, que vê a ordem existente como moldura adequada para alcançar seus objetivos nacionais, como o Japão do Pós-Guerra, já não se aplica ao caso chinês. A China tornou-se uma “potência insatisfeita”, como a Alemanha do entre-guerras, que enxerga a Pax Americana como obstáculo a seus interesses nacionais.

Multiplicam-se as superfícies de atrito. Os EUA deslocam grupos navais para os mares do entorno chinês e promovem o boicote internacional das empresas chinesas de equipamentos de rede. O Quarteto, uma associação informal de segurança constituída por EUA, Japão, Austrália e Índia, inicia programas de estreita cooperação de inteligência. Aproximam-se do grupo o Reino Unido e a França, que decidiram banir a Huawei de suas redes 5G. Já a Índia, cuja rivalidade com a China renovou-se após o sangrento choque fronteiriço no Himalaia, anunciou uma megacompra de material bélico russo de mais de US$ 5,3 bilhões.

A Alemanha ressente-se da erosão da Aliança Atlântica provocada pelo isolacionismo de Trump, temendo converter-se em presa fácil dos tentáculos econômicos chineses. A saída encontrada por Angela Merkel é a repetição da aposta no projeto da unidade europeia, como nas encruzilhadas de 1950 (Comunidade do Carvão e do Aço) e de 1990 (Tratado de Maastricht). No Conselho Europeu, abandonando sua proverbial ortodoxia fiscal, aprovou algo como um “Plano Marshall da Europa”: o fundo de recuperação econômica de 750 bilhões de euros, dos quais 390 bilhões distribuídos na forma de doações. Os alemães sabem que o relógio da história não gira ao contrário, mas aguardam esperançosamente um triunfo de Biden para reativar a parceria entre Europa e EUA.

Biden não será Trump, mas tampouco reeditará a política de deliberada ambiguidade formulada por Barack Obama diante da China. O provável futuro presidente tende a reduzir a ênfase na guerra comercial para concentrar esforços na contenção militar e no cerceamento das empresas chinesas de 5G. O “divórcio” tecnológico entre EUA e China seguirá, em ritmo acelerado, tanto no campo dos equipamentos quanto no dos softwares. Contudo, ao contrário de Trump, Biden rejeitará o nacionalismo do “America First” e buscará a cooperação diplomática da União Europeia.

Durante a Guerra Fria, os EUA ergueram ao redor da URSS um “cordão sanitário” de alianças político-militares que se estendiam da Europa ao Extremo Oriente. O “cordão sanitário” que se esboça em torno da China é diferente, pois seus componentes são militares e tecnológicos e, ainda, porque o parque industrial chinês não será desligado da economia mundial.

A globalização não sai de cena, mas ingressa em nova etapa, crivada pelo antagonismo sino-americano. Quando, livre de Ernestos e Olavos, o Brasil recuperar a capacidade de pensar racionalmente sua política externa, terá de encarar os complexos dilemas de uma ordem em complexa mutação.


Cacá Diegues: Pensar com liberdade

Radicalização serve às ações que populistas autoritários desejam consagrar

Desde junho de 2016, encontra-se paralisado, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, um projeto de lei, do já então deputado Eduardo Bolsonaro, que pretende tornar crime o elogio, a pregação, a apologia das ideias do comunismo e do regime delas decorrente. A pena prevista pode chegar a 30 anos de prisão, conforme a gravidade do delito.

No documento que justifica o projeto, o deputado tenta justificar também os crimes de tortura praticados durante a ditadura no Brasil, de 1964 a 1985, considerando que o terrorismo político havia antecedido à tortura, como se esta fosse uma justa e bastante resposta àquele. “O Estado brasileiro teve de usar seus recursos para fazer frente a grupos que não admitiam a ordem vigente”, diz o documento.

Além das ideias comunistas, o projeto também considera crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que usem a foice e o martelo ou quaisquer outros meios para fins de divulgação favorável ao comunismo”. Num esforço de isenção, o documento considera igualmente criminosas as ideias e a propaganda nazistas.

Não sei dizer se o projeto de Eduardo é anterior ou posterior àquele da “pílula do câncer”, o projeto de seu pai, então também deputado, pedindo o reconhecimento dos milagrosos efeitos do tal comprimido contra a doença fatal. Este foi um dos três únicos projetos de lei apresentados por Jair Messias, durante seus 28 anos de estrela do chamado baixo clero, titulares muito especiais de nossa Câmara Federal. Mas sendo ou não simultâneos, os dois formam uma indiscutível dupla do barulho legislativa.

São projetos que bem podiam ter sido pensados e promovidos pelo líder deles todos, o presidente americano Donald Trump, incentivador e avalista dos passos mais significativos do populismo autoritário que o mundo vem desenvolvendo nesses últimos tempos, na diluição das democracias convertidas em espetáculos grotescos de piadas e notícias falsas, em redes sociais. É preciso criminalizar as iniciativas ideológicas que se opõem ao sistema, não deixar que elas se manifestem à vontade, com normalidade.

Esse momento de radicalização das ideologias serve às ações que esses populistas autoritários desejam consagrar. Não se trata apenas de uma estratégia simplista de cobrar a radicalização das ideias; mas, disfarçado por trás dessa máscara, do esforço de evitar todo o debate de referência política, ética e cultural, um modo de evitar o confronto de ideias proibindo-as simplesmente.

Acusar todo progressista de comunista ou todo conservador de fascista, atirar todo discurso de esquerda nos braços do projeto comunista ou todo discurso de direita nos do fascista é eliminar as possibilidades que se encontram ao longo da distância entre um e outro. A humanidade levou séculos pensando alternativas a modos de viver, rompendo com as hierarquias produzidas, ao longo desse tempo, em ações e ideias que a faziam progredir apesar de tudo. Não é possível, nem seria justo, eliminarmos tudo o que se encontra entre os dois extremos, eliminarmos as nuances, as combinações, os erros que teremos que cometer para o nosso bem. E, talvez, para o bem de todos.

Se o fascismo é um exercício de poder discricionário sobre o outro, não vi recentemente nada mais fascista, em nosso ambiente social, do que aquilo que o desembargador Eduardo de Siqueira fez com Cícero Hilário, o corretíssimo guarda municipal de Santos. As consequências são menos graves do que as do Holocausto ou as das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Mas a democracia abriu um espaço para tornar mais grave, para nós, aquilo que nos acontece num momento especial. Tornou-se talvez impossível evitar um sentimento de prioridade ao que nos sucede.

Há cerca de um mês, Ascânio Seleme nos contou uma história sobre Muhammad Ali que eu, seu velho fã, não conhecia. Em junho de 1967, quando Ali, convocado para lutar no Vietnã, recusou-se a integrar as Forças Armadas americanas, 11 dos mais renomados desportistas negros dos EUA se reuniram com ele para demovê-lo dessa decisão. O chamado “Ali Summit” durou quatro horas e, ao seu final, os 11 atletas saíram apoiando o boxeador. Quem estava com a verdade? Ou: como estabelecer a verdade?

Durante a nossa ditadura, como escreveu José Casado, o governo militar “ajustava o câmbio, arrochava salários, reprimia protestos e as empresas lucravam”. Se havia ganhos concretos, acionistas e dirigentes multinacionais estavam pouco se importando com o que acontecia no Brasil, não era da conta deles. Nos EUA, uma lei, no fim dos anos 1980, ressarciu moradores japoneses, vítimas de discriminação civil durante a Segunda Guerra Mundial. Mas os ex-escravizados, em muito maior número, sofrendo durante muito mais tempo, nunca foram recompensados com nada. Os diversos julgamentos serão sempre relativos e nunca decisivos. Se os aprisionarmos em correntes de qualquer espécie, nos enganaremos sempre.


Sergio Lamucci: O espaço para a queda dos juros

Capacidade ociosa na economia é enorme e inflação é baixíssima, evidenciando a fraqueza da atividade

O tombo da economia brasileira neste ano tende a ser menor que os 8% a 10% que chegaram a ser estimados pelos mais pessimistas, mas o grau de ociosidade e a inflação baixíssima evidenciam a fraqueza da atividade. Ainda que os piores cenários para o PIB em 2020 não se concretizem, a perspectiva do fim do auxílio emergencial e o momento delicado no mercado de trabalho apontam para o risco de uma situação mais difícil para a economia nos últimos meses do ano. Nesse quadro, economistas como Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro, defendem cortes adicionais dos juros, mesmo com a Selic em 2,25% ao ano.

No segundo trimestre, a ociosidade na economia atingiu níveis recordes, segundo Elisa Andrade, Claudio Considera e Juliana Trece, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). No período, o hiato do produto, uma medida da capacidade ociosa, ficou negativo em 14,1%, de longe o pior número da série iniciada no fim de 1982.

Na sexta-feira, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - 15 (IPCA-15) de julho voltou a surpreender para baixo, como destaca relatório do departamento econômico do ASA Investments, comandado por Kawall. Para a equipe do ASA, isso reforça “a leitura bastante benigna da dinâmica de preços”, em especial dos núcleos, medidas que buscam reduzir ou eliminar a influência dos itens mais voláteis.

Ao analisar a trajetória da inflação, os economistas do ASA observam que “o choque causado pela pandemia ainda reverbera sobre a dinâmica de curto prazo”. Primeiro, teve grande impacto sobre os preços administrados, principalmente os combustíveis, e sobre os serviços que oscilam mais, como passagens aéreas. Na direção contrária, as cotações de alimentos ficaram mais pressionadas, refletindo “a rápida mudança de hábitos de consumo, na esteira das medidas de restrição à mobilidade como forma de combate ao espalhamento da doença”. Essa tendência se observou especialmente entre março e maio. Num segundo momento, houve recomposição de parte dos preços administrados e resistência dos alimentos.

“Acreditávamos que o maior impacto deflacionário sobre os núcleos de inflação ficaria restrito aos meses de abril e maio. Contudo, a queda dos serviços exposta no IPCA-15 indica que a distensão do mercado de trabalho terá efeito prolongado sobre os preços”, diz o relatório do ASA, que reduziu a projeção para o IPCA de 2020 de 1,7% para 1,6%, muito abaixo da meta de 4%. Para 2021, a estimativa é de 2,7%, número bem inferior ao alvo do ano que vem, de 3,75%.

Para a equipe de Kawall, pode haver surpresas adicionais nas medidas de núcleo, “com a deterioração do mercado de trabalho afetando outros setores, levando a assimetria negativa para a nossa projeção de queda esperada para o PIB em 2020, atualmente em 5,8%, e para a expansão projetada em 2021, de 2,8%”. Ou seja, a economia pode ter um resultado pior do que o esperado.

O comportamento do mercado de trabalho é um sinal negativo para as perspectivas para a atividade. Com base nos números do período de 28 de junho a 4 de julho, nota-se uma “aceleração da queda da população ocupada nas últimas duas semanas, após tendência que parecia sinalizar estabilização”, dizem os economistas do ASA, referindo-se às informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid, do IBGE. “De fato, na última semana de junho e primeira semana de julho, teria havido uma redução de 2,1 milhões de pessoas ocupadas, queda bastante relevante frente à dinâmica mais recente”, aponta o relatório, observando que a relação entre a população ocupada e a população em idade para trabalhar recuou ainda mais, caindo para 48,1%.

Para completar, há o fim do auxílio emergencial de R$ 600. Na visão do ASA, existe o risco de um “degrau de renda” ao fim do programa, na passagem de agosto para setembro. É uma ameaça “bastante relevante para a dinâmica da atividade à frente, e não há sinal, até o momento, de recomposição da população ocupada que possa sugerir diminuição desse risco”, segundo os economistas. Para o ASA, a combinação de um cenário benigno para a inflação e os riscos para a atividade econômica mais à frente indicam a necessidade de continuar com o atual ciclo de queda dos juros - a instituição estima que a taxa Selic atinja 1% ao ano no começo de 2021.

Kawall espera um corte de 0,25 ponto percentual na reunião de agosto do Comitê de Política Monetária (Copom), seguido por outras quatro reduções na mesma magnitude. Seguir uma estratégia diferente implicaria perseguir uma meta de inflação menor, com o risco de desancorar a inflação para baixo da meta, avalia o ASA.

Um ponto importante é se o financiamento do setor público impõe limites aos cortes da Selic. Em texto sobre o assunto, Kawall diz não ver uma ameaça à queda dos juros devido a esse fator. “Com a redução do juro, os bancos aumentaram sua absorção de títulos [públicos], compensando a migração da pessoa física em direção ao risco e a menor participação do estrangeiro”, aponta ele. Kawall observa que a “estratégia do Tesouro tem sido cautelosa, com uso mais frequente de seu caixa, na expectativa de redução de risco no mercado (influenciado pelo alto déficit programado para este ano, devido ao combate à pandemia), com as operações compromissadas [venda de títulos com compromisso de recompra] financiando, na prática, o gasto mais elevado de 2020”. Segundo ele, no curto prazo há sinais de aumento da demanda por títulos de renda fixa, um “potencial porto seguro à poupança precaucional gerada pela crise”.

Kawall reconhece que a situação está “muito longe de ser confortável” e exige a continuidade do esforço de reformas e o compromisso com o teto de gastos, mas não vê evidências da existência de um nível mínimo para a Selic derivado da necessidade de rolagem da dívida interna.

A economia está machucada pelo choque causado pela pandemia, e os efeitos serão sentidos por um bom tempo. Juros bem mais baixos ajudam a estimular a atividade, contribuem para uma dinâmica mais favorável da dívida pública e aliviam a situação financeira de famílias e empresas. Para que as taxas sigam em níveis modestos, será preciso indicar a continuidade do ajuste fiscal, de preferência evitando ao mesmo tempo um cavalo de pau muito forte nas contas públicas em 2021. Não é obviamente uma tarefa fácil, mas é uma combinação que, se alcançada, tornará a saída da crise menos dolorosa.


Bruno Carazza: A aula da Professora Dorinha

Agenda progressista depende de conservadores

Aos 31 anos de idade, recém-chegado à Câmara, o primeiro ato do jovem deputado mato-grossense Dante de Oliveira (PMDB) foi apresentar uma proposta de emenda à Constituição visando restaurar as eleições diretas para presidente da República. Sem exercer o poder do voto para escolher o mandatário máximo do país desde 1960, a população logo abraçou a ideia. Comícios se espalharam pelo Brasil, congregando políticos de diferentes partidos, artistas e celebridades - e um número cada vez maior de pessoas.

No fim de janeiro de 1984, o instituto Gallup apurou que 81% dos brasileiros eram favoráveis às eleições diretas para presidente da República. E dez dias antes da data marcada para a votação da emenda na Câmara dos Deputados, quase 2 milhões de pessoas lotaram o Vale do Anhangabaú, em São Paulo, pressionando pelas Diretas-Já.

No dia 25 de abril de 1984, 298 deputados votaram a favor da emenda Dante de Oliveira. O sonho do retorno imediato das eleições diretas para presidente, contudo, ruiu por apenas 22 votos. Apesar do amplo apoio popular, a proposta foi derrubada graças à resistência do PDS, partido governista herdeiro da velha Arena que apoiava o regime militar: 65 de seus membros votaram “não” e outros 113 se abstiveram ou simplesmente faltaram à sessão de votação.

Com a derrota da emenda Dante de Oliveira, o ciclo autoritário teve que ser encerrado por vias indiretas. No dia 15 de janeiro de 1985, reunidos no Colégio Eleitoral, senadores, deputados federais e delegados estaduais deram a presidência ao mineiro Tancredo Neves (PMDB), que superou Paulo Maluf (PDS) por 480 a 180 votos.

A eleição de Tancredo diz muito sobre o modo de se fazer política no Brasil. Enquanto setores progressistas da sociedade pediam Diretas-Já, o então governador de Minas costurava nos bastidores uma transição mais gradual com as elites partidárias, econômicas e militares de então. Autointitulado um reformista, colocou-se como uma garantia contra os “revolucionários” liderados por Ulysses Guimarães. Fazendo acenos a quem lutava há décadas contra a ditadura, mas principalmente para aqueles que estavam cansados de apoiá-la, Tancredo comandou a transição para a democracia.

Lula demorou um pouco mais para entender essa mensagem. Depois de ver seu discurso radical ser derrotado por três vezes seguidas, só chegou à Presidência quando garantiu em papel passado sua versão mais moderada. Uma vez no Palácio do Planalto, não apenas seguiu à risca as promessas da Carta ao Povo Brasileiro, como tratou de alargar - por meios lícitos e ilícitos - seu apoio no Congresso. No fim do primeiro ano de mandato, apenas quatro partidos estavam oficialmente fora da sua base de governo: PSDB, PFL (hoje DEM), PDT e Prona.

A associação do PT e do PCdoB com partidos conservadores permitiu a Lula - e depois a Dilma, pelo menos em sua fase I - aprovar uma pauta progressista em diversos campos. Tome-se o caso da criação do Fundeb. A sua primeira versão, aprovada no final de 2006, foi elaborada (quem diria?) por Valdemar Costa Neto, e além da relatoria exercida pela petista Iara Bernardi, contou com a colaboração decisiva de ninguém mais, ninguém menos que Eduardo Cunha.

Quase 14 anos depois, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar a transformação do Fundeb em instrumento permanente de financiamento da educação pública. A demanda por garantir mais recursos para o ensino básico mobilizou sindicatos de professores, secretários estaduais e municipais de educação, entidades estudantis, organizações da sociedade civil e partidos de esquerda durante toda a tramitação legislativa, mas é preciso reconhecer que a aprovação da PEC nº 15/2015 só foi possível com a entrada em campo de políticos de centro e de direita - sob a liderança do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e da relatora, Professora Dorinha (ambos do DEM).

A sociedade brasileira é conservadora e o Congresso ainda mais - há um emaranhado de regras partidárias e eleitorais que acabam favorecendo a eleição de candidatos avessos a mudanças, principalmente sociais. O sucesso da votação quase unânime do Fundeb - apenas uma meia dúzia de gatos pingados bolsonaristas votaram contra - ensina que, no Brasil, construir alianças com a representação dos setores mais conservadores no Congresso Nacional é condição fundamental para a aprovação de qualquer item da agenda progressista.

Infelizmente ainda são maioria, principalmente na esquerda, os puristas e radicais que rejeitam qualquer estratégia de composição com políticos “do outro lado”. Demonizando alianças eventuais com “inimigos”, preferem o conforto de pregar para convertidos, pescando votos nos seus próprios aquários enquanto sonham com uma vitória nas próximas eleições.

Mesmo com o ativismo das bancadas BBB - bala, boi e bíblia -, há um grande espaço para a aprovação de reformas sociais e econômicas no Congresso atual. Entre ambientalistas e ruralistas existe um amplo espectro de parlamentares que podem ser convencidos de medidas a favor da sustentabilidade. Mas para convencê-los, é preciso deixar o radicalismo de lado e negociar de forma desarmada, abrindo espaço para contrapropostas.

Passado o choque inicial da pandemia, que exigiu medidas emergenciais e um esforço fiscal gigantesco, uma ampla agenda de reformas econômicas e sociais se faz necessária para lidar com o efeito devastador do mundo pós-covid. O Congresso se prepara para discutir as reformas tributária e administrativa, ao mesmo tempo que setores relevantes da sociedade se articulam para discutir propostas de uma renda básica universal e uma nova economia de “carbono zero”.

Apesar de todo o conservadorismo do governo Bolsonaro, é possível construir pontes e estabelecer diálogos em direção a um sistema tributário menos regressivo, um meio ambiente sustentável e gastos públicos focados nos mais pobres mesmo antes das eleições de 2022.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Carlos Pereira: O que importa é o gesto, não a intenção

É irrelevante a distinção entre coalizões programáticas e utilitárias

É claramente perceptível uma forte inflexão na estratégia governativa do presidente Jair Bolsonaro. Nos primeiros 18 meses, Bolsonaro se recusou a governar seguindo os incentivos e restrições institucionais do presidencialismo multipartidário e preferiu conduzir o seu governo sem se preocupar em construir uma maioria legislativa estável.

Acreditava que seria capaz de governar e de proteger seu mandato na condição de minoria, especialmente por meio de conexões diretas com os seus eleitores, pressionando assim Congresso e outras instituições a se comportarem de acordo com as preferências do governo. Daí porque empreendeu um perfil polarizado, belicoso e de confronto quase que diário com tudo e com todos.

A estratégia escolhida fracassou. Criou animosidades e conflitos crescentes com os outros Poderes, com a opinião pública e com a própria sociedade. É o governo com maior índice de derrotas no Legislativo e no Judiciário (onde enfrenta dois inquéritos), e com perdas expressivas de popularidade. Ou seja, colocou em risco a própria sobrevivência do governo trazendo uma possibilidade real de perda antecipada do mandato presidencial.

Mesmo que tardiamente e por vias tortas, parece ter havido algum aprendizado decorrente das dificuldades governativas de se “nadar contra a corrente” das regras do jogo. Governar sem uma coalizão majoritária revelou-se um capricho ingênuo do presidente, que finalmente agora corre atrás do prejuízo.

Diferentemente do parlamentarismo, o presidencialismo gera diferenças intrínsecas de preferências entre presidente e legisladores. Enquanto o presidente tem uma base eleitoral nacional, a maioria dos legisladores é eleita por circunscrições eleitorais locais muito reduzidas. O chefe do Executivo é o principal responsável pelo desempenho de políticas nacionais (i.e., desemprego, inflação, combate à pobreza e pandemias etc.). Os legisladores, por outro lado, precisam, fundamentalmente, nutrir suas redes de interesse específicas com políticas locais e/ou que gerem benefícios a certas categorias.

Como o presidencialismo multipartidário brasileiro resolveu esse problema intrínseco de preferências e interesses necessariamente não coincidentes entre presidente e legisladores?

Por meio da institucionalização de mecanismos de “ganhos de troca” no mercado político. Interessa ao presidente o apoio legislativo para aprovar seus programas de governo e para bloquear iniciativas da oposição que visem enfraquecê-lo ou inviabilizá-lo. Por outro lado, interessa aos legisladores acesso a recursos políticos (ministérios, secretarias etc.) e financeiros (execução de emendas ao Orçamento) que gere sobrevivência política e eleitoral de segmentos específicos de eleitores.

A montagem e a gerência de coalizões são os mecanismos que facilitam a coordenação desse jogo de interdependência mútua entre o Executivo e o Legislativo. Sendo as moedas de troca legais e institucionalizadas, o jogo é legítimo. Daí, pouco importa se as coalizões são programáticas ou meramente utilitárias. Afinal de contas, um governo que não sobrevive, não governa.

Pode-se até discordar das intenções ou ter reservas morais dessa forma de se fazer política, mas nada de ilegítimo ou iliberal há aí. O que importa é o gesto. O que importa é a coalizão. A crítica institucional que se pode fazer das barganhas entre o governo Bolsonaro e o Centrão se refere à efetividade da coalizão que daí resultará e se o presidente será capaz de gerenciá-la de forma estável e duradoura. O resto é crítica moral ou preferência eleitoral.


Mônica Bergamo: Discurso de Bolsonaro não é ético e governo se baseia em 'economia que mata', diz carta assinada por 152 bispos brasileiros

Documento seria divulgado no dia 22, mas foi suspenso para ser analisado por conselho da CNBB

Uma carta com duras críticas ao governo de Jair Bolsonaro foi assinada por 152 bispos, arcebispos e bispos eméritos do Brasil. Ela deveria ter sido publicado na quarta (22), mas foi suspensa para ser analisada pelo conselho permanente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Há um temor entre signatários do documento de que o setor conservador do órgão impeça a divulgação. Hoje há no Brasil 310 bispos na ativa e 169 eméritos.

O texto, chamado de "Carta ao Povo de Deus", afirma que o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis de sua história, vivendo uma "tempestade perfeita". Ela combinaria uma crise sem precedentes na saúde e um "avassalador colapso na economia" com a tensão sofre "fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República [Jair Bolsonaro] e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança".

" Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises", diz o documento.

"Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino", segue a carta. Ela se refere também ao "caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço".

"Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento àquele que veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância”.

Os religiosos fazem críticas também às reformas trabalhista e previdenciária. Segundo eles, ambas, "tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo".

Eles reconhecem que o país precisa de reformas, "mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população".

O documento afirma ainda que o "sistema do atual governo" não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, "mas a defesa intransigente dos interesses de uma economia que mata, centrada no mercado e no lucro a qualquer preço".

Para eles, o ministro da Economia, Paulo Guedes, "desdenha dos pequenos empresarios" e o governo promove "uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda". A carta diz ainda que "o desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia" estarrece, sendo visível nas demonstrações de "raiva" pela educação pública e no "apelo a ideias obscurantistas".

Cita também o que julga ser o uso da religião para "manipular sentimentos e crenças", provocando tensões entre igrejas."Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário", segue o documento.

O texto é assinado, entre outros, pelo arcebispo emérito de São Paulo, dom Claudio Hummes, pelo bispo emérito de Blumenau, dom Angélico Sandalo Bernardino, pelo bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), dom Edson Taschetto Damian, pelo arcebispo de Belém (PA), dom Alberto Taveira Corrêa, pelo bispo prelado emérito do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, pelo bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG), dom Joaquim Giovani Mol, e pelo arcebispo de Manaus (AM) e ex-secretário-geral da CNBB dom Leonardi Ulrich.

Os religiosos pedem a abertura de "um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito".

Eles afirmam ainda que "todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador".

Leia, abaixo, a íntegra da "Carta ao Povo de Deus":

"Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.

Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.

É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.

O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.

Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.

É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).

Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.

O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.

O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.

No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.

Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?

O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.

Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).

Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).


Ruy Castro: A história no meio do nada

O vírus isolou o centro do Rio, onde o Brasil foi Colônia, Vice-Reino, Reino, Império e República

Todos os estabelecimentos comerciais ameaçados de morte pela pandemia têm sua história. Alguns, claro, têm mais história do que outros, pelo tempo de casa e pelo que aconteceu entre suas paredes. Um deles é o Villarino, misto de uisqueria e balcão de importados no centro do Rio, fundado em 1953. Ali se deu, num fim de tarde de 1956, um aperto de mãos decisivo na cultura brasileira, entre Vinicius de Moraes, em busca de um parceiro para musicar sua peça "Orfeu Negro", e Tom Jobim. O que resultou você sabe.

E só podia ter acontecido no Villarino, então um templo do pós-expediente para jornalistas, escritores, radialistas, compositores, arquitetos, diplomatas e pintores, quando todos ainda trabalhavam na cidade. De Pancetti e Dolores Duran a Paulo Mendes Campos e Villa-Lobos, era em suas mesas que eles comungavam em torno de um uísque, esperando o fim do rush, antes de rumar para a Zona Sul.

Até que, nos anos 80, a noite no centro do Rio, como a de muitas cidades brasileiras, foi deixando de existir. O Villarino reinventou-se como restaurante diurno, caseiro, de escalopes e escabeches, e seguiu firme. Além dos novos clientes que conquistou, havia os turistas a fim de conhecer o lugar onde se dera a inseminação da bossa nova.

Mas, agora, ele corre perigo. A pandemia isolou a região —os escritórios e repartições em torno reduziram o seu funcionamento presencial ao mínimo, e o Villarino viu-se, de repente, no meio do nada. Todo o comércio dali está assim.

O centro do Rio sempre conteve mais história do que os livros puderam registrar. Nele o Brasil foi Colônia, Vice-Reino, Reino, Império e República, e os nomes de seus personagens estão nas placas das ruas. É preciso que o carioca —pelo menos quem já começou a sair— volte àquelas ruas e àquelas mesas onde, um dia, sonhou-se um país. Que, pior para nós, só existiu enquanto estava sendo sonhado.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues

O vírus isolou o centro do Rio, onde o Brasil foi Colônia, Vice-Reino, Reino, Império e República

Todos os estabelecimentos comerciais ameaçados de morte pela pandemia têm sua história. Alguns, claro, têm mais história do que outros, pelo tempo de casa e pelo que aconteceu entre suas paredes. Um deles é o Villarino, misto de uisqueria e balcão de importados no centro do Rio, fundado em 1953. Ali se deu, num fim de tarde de 1956, um aperto de mãos decisivo na cultura brasileira, entre Vinicius de Moraes, em busca de um parceiro para musicar sua peça "Orfeu Negro", e Tom Jobim. O que resultou você sabe.

E só podia ter acontecido no Villarino, então um templo do pós-expediente para jornalistas, escritores, radialistas, compositores, arquitetos, diplomatas e pintores, quando todos ainda trabalhavam na cidade. De Pancetti e Dolores Duran a Paulo Mendes Campos e Villa-Lobos, era em suas mesas que eles comungavam em torno de um uísque, esperando o fim do rush, antes de rumar para a Zona Sul.

Até que, nos anos 80, a noite no centro do Rio, como a de muitas cidades brasileiras, foi deixando de existir. O Villarino reinventou-se como restaurante diurno, caseiro, de escalopes e escabeches, e seguiu firme. Além dos novos clientes que conquistou, havia os turistas a fim de conhecer o lugar onde se dera a inseminação da bossa nova.

Mas, agora, ele corre perigo. A pandemia isolou a região —os escritórios e repartições em torno reduziram o seu funcionamento presencial ao mínimo, e o Villarino viu-se, de repente, no meio do nada. Todo o comércio dali está assim.

O centro do Rio sempre conteve mais história do que os livros puderam registrar. Nele o Brasil foi Colônia, Vice-Reino, Reino, Império e República, e os nomes de seus personagens estão nas placas das ruas. É preciso que o carioca —pelo menos quem já começou a sair— volte àquelas ruas e àquelas mesas onde, um dia, sonhou-se um país. Que, pior para nós, só existiu enquanto estava sendo sonhado.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Leandro Colon: Baile no Fundeb expõe relação com centrão e fragilidade de Bolsonaro

Não há base governista que solidifique com o método de articulação do Planalto

Jair Bolsonaro finge que não, mas a verdade é que tomou um baile na votação que aprovou o Fundeb na Câmara.

O episódio expôs uma fragilidade justamente na hora em que o presidente tenta distensionar a relação.

Depois de tantos flertes com o centrão, regado a cargos públicos, ele foi atropelado pelo plenário presidido por Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Fracassou a armadilha de querer contrabandear dinheiro do fundo para o Renda Brasil. Tem muito político que gosta de enganar, mas não de ser enganado.

O centrão não ajudou e deixou o Planalto solitário no vexame protagonizado pelos sete minguados bolsonaristas que votaram contra o fundo.

Ato contínuo, Bolsonaro destituiu a super aliada Bia Kicis (PSL-DF) da vice-liderança do governo, como punição - ela foi um dos "rebeldes".

Tudo teatro para bolsonarista ver. No sábado (25), o presidente visitou a parlamentar em sua casa em Brasília em um gesto de prestígio.

O modelo "paz e amor", com acenos ao Congresso, pode ser bonito para fora, mas no plenário o jogo é completamente diferente.

Deputados e senadores, fisiológicos ou não, gostam de bajulação e de saber quais são claramente os movimentos do governo.

No caso do Fundeb, houve uma tentativa sorrateira do Planalto de mexer no dinheiro sem nunca ter sentado para negociá-lo. Não há base governista que solidifique com o método.

Bolsonaro percebeu que nem centrão engole esse tipo de coisa e ainda quis faturar a aprovação de algo que tentou fazer diferente até os 45 do segundo tempo.

A reforma tributária é agora sua nova agenda prioritária. Fatiá-la, como fez Paulo Guedes ao entregar a primeira parte, é uma estratégia para aprovar logo um pedaço do bolo.

Há uma boa vontade dos congressistas em avançar até de forma mais ampla. E há espaço para o governo ser bem sucedido. Só não pode aplicar uma rasteira de última hora.


Ricardo Noblat: Não passará!

Ação de Bolsonaro foi só para afagar seus seguidores

Dá-se como certo entre ministros do Supremo Tribunal Federal ainda de férias que eles recusarão o pedido do presidente Jair Bolsonaro e da Advocacia-Geral da União (AGU) para suspender o bloqueio nas redes sociais de contas usadas por bolsonaristas de relevo para a publicação de fake news.

E por uma simples razão: a AGU, segundo dois ministros ouvidos por este blog no fim da última semana, advoga em favor dos interesses do governo, não dos interesses do presidente da República. E o governo nada tem a ver com o bloqueio das contas. Não eram contas do governo, tampouco do presidente.

Certamente a AGU deve ter sido pressionada por Bolsonaro a agir assim. Ele precisava dar uma satisfação aos seus parceiros, mostrar que um comandante não abandona soldados feridos em meio a uma batalha.
Outros parceiros dele, que não foram atingidos pelo bloqueio de contas, saíram em defesa do seu gesto.

Recentemente, ocorreu algo parecido com o ministro André Mendonça, da Justiça, que ao tomar posse se disse “um servidor fiel” de Bolsonaro. Mendonça entrou no Supremo com um pedido de habeas corpus para tirar do inquérito das fake news o então ministro Abraham Weintraub, da Educação.

O pedido foi considerado “uma bizarrice” jurídica por ministros do Supremo. E, por isso, rejeitado. Mendonça é forte candidato à vaga que se abrirá no Supremo até novembro com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, o decano da Corte. Está empenhado em agradar Bolsonaro desde agora.

Depois da pílula do câncer e da cloroquina, o próximo passo de Bolsonaro

Fé e bons negócios
Não será surpresa para este blog se o presidente Jair Bolsonaro, a pretexto de qualquer coisa ou de nada, comece a duvidar dos efeitos das vacinas que vierem a ser lançadas para deter o avanço do coronavírus. Não o fará contra uma eventual vacina “made in the USA”, avalizada por seu ídolo Donald Trump. Mas até contra ela estará à vontade para se lançar caso Trump não se reeleja.

Nada de estranho haverá nisso. Os que duvidam da eficácia de vacinas chegam a milhões no mundo, muitos deles por motivos religiosos. Bolsonaro deve sua eleição, em parte, ao voto religioso, principalmente o evangélico. Natural, pois, para quem, como ele, batizou-se no rio Jordão interessado em ganhar apoios, que se rebele contra a aplicação de vacinas em quem prefira não tomá-las.

De resto, Bolsonaro não pensa em renunciar à sua devoção à cloroquina, da qual virou um presidente garoto propaganda. Deve ter lá suas razões confessáveis e outras não. A mais inocente delas seria o fato de que obrigou o Exército a produzir milhões de caixas da droga e agora tem de desová-las a qualquer custo. Mas essa não foi a primeira vez que ele apostou errado em um remédio.

Um dos únicos três projetos que Bolsonaro conseguiu aprovar em quase 30 anos como deputado federal foi o que regulamentou a produção de fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”. Embora jamais tenha provado sua eficácia em testes, a pílula ganhou fama após ser distribuída durante 20 anos pelo químico Gilberto Orivaldo Chierice, da Universidade de São Paulo.

Em 2016, na tentativa de melhorar sua relação com o Congresso, a então presidente Dilma Rousseff sancionou o projeto de autoria de Bolsonaro. Logo depois, porém, por 6 votos contra 4, a pílula do câncer foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal. Sim, parte do Supremo é capaz de acreditar em milagres. Mais da metade dos seus atuais integrantes foi cliente do falso médium João de Deus.

Uma vez eleito presidente, Bolsonaro voltou a cobrar que o Supremo reveja sua decisão. “Não dá para esperar”, disse ele à época. Ignorância apenas? Ou mais um sinal de desprezo pela Ciência em linha com uma fatia expressiva dos seus devotos? Ou Bolsonaro apenas antevê mais uma oportunidade de fazer bons negócios? Não se sabe. Possivelmente jamais se saberá.


Fernando Gabeira: Bibliotecas em chamas

Índios mais velhos são depositários do conhecimento, numa cultura oral

Escrever sobre índio é nadar contra a corrente porque os editores do passado achavam o tema um tédio, os políticos pensam que dá azar e, no cotidiano, costumamos chamar de programa de índio a algo desinteressante, sem graça.

O velho líder caiapó Raoni esteve internado em estado grave e teve alta. Não é Covid, mas a dor universal de perder a mulher com quem viveu muitos anos está derrubando o guerreiro.

Conheci Raoni em Altamira. Documentei sua amizade com o cantor Sting e com Anita Roddick, dona da Body Shop. Era uma segunda descoberta europeia dos índios brasileiros, reunidos ali para protestar contra a usina de Belo Monte. Agora os viam também como defensores da floresta.

Os viajantes do século XIX, meu tema de estudo, eram fascinados pela curiosidade de conhecê-los. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e o grande pintor Rugendas, por exemplo, estiveram no Brasil, mas os procuravam em qualquer ponto do mundo novo. Max, desculpe tratá-lo com essa intimidade, navegou longamente pelos rios norte-americanos, contraiu escorbuto, mas não perdia a chance de conviver com os índios.

Rugendas sofreu um acidente na Argentina, um raio o atingiu. Desfigurado e com dores crônicas, sentiu a proximidade de índios, cobriu o rosto disforme com um manto negro, tomou uma dose de morfina e cavalgou alguns quilômetros para pintá-los. E que lindas cores reproduzia em seus desenhos.

O governo brasileiro acha que os índios devem ser integrados. Um pouco como o Weintraub, mas não tão agressivo como ele, que dizia odiar a expressão “povos indígenas”.

Na verdade, esse é um sonho de liquidação cultural. No momento em que a Covid-19 avança pelas aldeias, é também uma destruição física. Já morreram 500 e, de um modo geral, os mais velhos. São os depositários do conhecimento, numa cultura oral. O jornal “El País” descreveu precisamente essas mortes: é como se fossem inúmeras bibliotecas pegando fogo.

O governo não quer dar nem água potável para eles. Os ianomâmis e os ye’kwanas, lá na fronteira com a Venezuela, estão acossados por garimpeiros. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já advertiu o governo brasileiro duas vezes. Na primeira, foi respondida apenas de uma forma muito geral, insatisfatória.

O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma campanha para que os índios fossem protegidos na pandemia e pela expulsão dos invasores de suas terras.

Não repercutiu aqui como merecia. Apesar do que pensa o governo, a Constituição, em dois artigos, reconhece seus direitos não só culturais, como também territoriais.

O STF, através do ministro Luís Roberto Barroso, tenta fazer valer o texto da lei, e não os delírios destrutivos do governo. Creio que é necessário advertir para o que se passa lá fora e seus desdobramentos. A imagem do Brasil está desgastada pela política ambiental. E também pela política sanitária, considerada um desastre até pelo presidente das Filipinas, um exemplo asiático do modelo Bolsonaro.

Esses dois desgastes convergem na questão indígena, onde os temas sanitários e de defesa da Amazônia se associam.

Bolsonaro foi questionado no Tribunal Internacional pelo PDT pela sua omissão na pandemia. Como é de se esperar em nossa cultura, o partido esqueceu os índios em sua denúncia.

A única juíza brasileira que atuou no Tribunal Internacional, Sylvia Steiner, ao mostrar que o esforço do PDT não teria êxito, lembrou que a situação dos índios brasileiros era algo que poderia levar Bolsonaro ao banco dos réus em Haia.

De fato, o artigo que define genocídio prevê a destruição parcial ou total de uma etnia. Foi por causa disso que o Tribunal aceitou a acusação contra o presidente sudanês Omar al -Bashir.

É preciso um esforço nacional para evitar que a pandemia devaste as populações indígenas. Nossa transmissão de vírus e micróbios, algo que os aniquila desde os tempos coloniais, precisa ser controlada. Se isso acabar em Haia, sinto que nossa cultura também será julgada, por não termos conseguido deter o processo.

E quanto aos nossos animados militantes de direita, lembro que não adiantará insultar o Tribunal pela internet nem fazer grandes bonecos representando seus juízes. E os nervosos generais que ameaçam com golpe certamente não devem fazer planos para invadir a Holanda. Um oceano líquido e mental nos separa.