Day: julho 23, 2020

José Nêumanne: Bolsonaro conduz a Pátria para as trevas de onde veio

Presidente serve a espertinhos que o mantêm no poder a despeito de nossa agonia

Jair Bolsonaro nada fez de relevante em dois anos como vereador no Rio de Janeiro, nem em 28 como deputado federal do mais baixo clero por várias legendas que nunca nada revelaram sobre seu projeto político. Foi eleito presidente da República em 2018 precisamente pelo que ele não fez: dos 13 candidatos era o único cujo nome não fora citado em nenhuma delação premiada da Operação Lava Jato, que devassou o maior escândalo de corrupção da História do Brasil, dito petrolão. E nada foi revelado contra sua honra no famigerado caso anterior, chamado de mensalão. Seus maiores cabos eleitorais foram os corruptos do Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados, incluídos os tucanos, que fingiram ser oposição tão completamente que até eles mesmos acreditaram.

Não é possível calcular quanto de sua votação de 57 milhões, 797 mil e 847 votos no segundo turno se deveu à decisão de afastar dos cofres da República Lula, seus asseclas e seus aliados de conveniência. Nem é viável calcular qual teria sido a participação do fervor anticorrupção dos que o sufragaram desde o primeiro turno para impedir que os suspeitos, investigados, acusados e condenados por Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal (MPF) e Justiça Federal paralisassem a devassa. Inédita na História, esta levou o maior empreiteiro de obras públicas e o mais popular contratador delas à barra dos tribunais e à cadeia. O próprio vencedor passou o recibo dessas evidências ululantes ao nomear Sergio Moro, o ex-juiz que condenou Lula e Marcelo Odebrecht, para o Ministério da Justiça, e Paulo Guedes, liberal da escola de Chicago e avesso aos economistas socialistas, populistas, cepalinos e keynesianos que mandaram na Fazenda após a queda da ditadura militar.

Não se pode inculpar a maioria do eleitorado brasileiro por ter escolhido o maior estelionatário eleitoral de todos os tempos. De fato, o capitão nunca escondeu de ninguém suas enormes dificuldades de compreender a vã filosofia. Ou a condenação do politicamente correto que inspira sua devoção a garimpo ilegal, desmate e grilagem de terras na Amazônia, seu amor obsessivo por armas de fogo e seu ódio a radares que inibem o excesso de velocidade em estradas. Tais características explicam sua tendência ao charlatanismo, que o faz odiar a ciência, e ao exercício ilegal da medicina, ao patrocinar picaretagens indefensáveis, tais como a “pílula do câncer” e a hidroxicloroquina, às quais atribui a condição de panaceia universal.

Há, contudo, em nosso Estado de Direito um arremedo de freios e contrapesos que dão ao cidadão algum conforto de pensar que os limites institucionais clássicos impediriam um aventureiro como ele de alcançar objetivos muito além do interesse público. Há todo um sistema legal, produzido pelo Legislativo e fiscalizado pelo Judiciário, que, pelo menos em teoria, deveria tê-lo detido na prática de traições tão óbvias como entregar ao PT de Lula postos-chave, como o Ministério da Justiça para André Mendonça e a Procuradoria-Geral da República, de mão beijada, para Augusto Aras. Isso foi possível com a degola de Sergio Moro, que era o garante de que o combate à corrupção seria inevitável.

O cidadão comum, aqui na planície, não tem culpa de ter sido logrado. E o foi porque a obra de demolição que o presidente preguiçoso empreendeu encontrou armas e armeiros para tanto. Bolsonaro na Presidência está sendo muito mais nocivo à Pátria do que o “mau militar” que o ex-presidente Ernesto Geisel definiu com precisão cirúrgica, sobretudo porque encontrou a cama feita e o negócio encaminhado. Essa evidência está encarnada no apoio que tem recebido do dono do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson, delator da quadrilha do mensalão. E completa-se na denúncia, feita pelo ex-aliado Major Olímpio, da compra explícita de senadores e deputados com verbas públicas para emendas parlamentares, que parece cair na indiferença generalizada com que tudo vira pizza no Brasil.

O Centrão, que derrubou Dilma Rousseff, do PT, e manteve Michel Temer, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), no poder, ao arrepio de tudo o que de ilícito fora praticado pelos governos daquela aliança inquebrantável, é apenas a denominação conveniente que impede Bolsonaro de deixar o poder para pagar mais pelo que deixa de fazer do que pelo que fez de ominoso, que não foi pouco. A criminosa indiferença ao avanço da pandemia, a transferência da incompetência da intendência militar para a gestão do mais precioso patrimônio coletivo, a saúde de nosso povo, a destruição da instrução pública por um analfabeto funcional conduzido por um vigarista a disparar munição pesada contra a inteligência e a sabedoria nacionais chegaram ao nosso convívio para ficar.

Bolsonaro é negacionista, terraplanista e obscurantista militante e está a serviço de espertalhões como Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, que o mantêm no poder. Não há na elite dirigente desta Pátria condenada ao desterro uma voz da razão que o mande de volta às trevas de onde veio e para onde marchamos.

*Jornalista, poeta e escritor


William Waack: O ‘lavajatismo’ está órfão

Com os heróis da Lava Jato encurralados, um fenômeno político perde força

A frase que ressoa com força no topo da Procuradoria-Geral da República e entre vários ministros do STF é a seguinte: “A Lava Jato não vai acabar, mas vai acabar o lavajatismo”. Como toda encarniçada luta política, também nesta briga-se, em primeiro lugar, por impor uma narrativa.

A que vigora entre quem tem força política ou posição institucional para enfrentar a “Lava Jato” é a de que a força-tarefa de Curitiba se desenvolveu como grupo político com agenda própria e capacidade de dominar decisões das esferas políticas, nisto incluindo Executivo e Legislativo. Mas, para sorte do País, o grupo de procuradores, juízes e policiais da Lava Jato se perdeu no meio do caminho, e cabe agora dar um jeito nisso.

Os principais expoentes da força-tarefa enxergam exatamente o contrário. Em especial a decisão de terça-feira do presidente do STF de impedir buscas no gabinete do senador José Serra em Brasília – atendendo à queixa do próprio presidente do Senado – foi por eles qualificada como tentativa de “dificultar a investigação de poderosos contra quem pesam evidências de crimes” (Deltan Dallagnol, procurador da força-tarefa).

Era algo já previsto na literatura que consumiram: deixados entregues a si mesmos, sem controles externos (como o do Ministério Público), os políticos só produziriam medidas para se proteger e garantir seus interesses (lícitos ou ilícitos). Desnecessário dizer que, para o grupo da Lava Jato, o STF sempre foi visto como parcialmente entrelaçado aos diversos interesses políticos, incluindo ilícitos.

O grupo de Curitiba faz questão hoje de se distanciar do “lavajatismo”, uma denominação que, no seu mínimo denominador comum, expressa um anseio punitivista que ignora consagrados princípios legais contanto que se peguem corruptos. É difícil entender a eleição de Jair Bolsonaro sem a repercussão social e política do “lavajatismo”, mas seu potencial eleitoral para 2022 é um ponto de interrogação cujo tamanho aumenta à medida que transcorre o tempo desde que o ex-juiz Sérgio Moro – de longe a maior expressão da Lava Jato – deixou o Ministério da Justiça.

Moro embarcou na política aparentemente sem um plano claro. Deixou-se levar pelas circunstâncias de um jogo que ele não dominava e elas o obrigaram ao famoso “salto no escuro” – que foi a saída do governo, uma atitude que hoje parece muito mais de preservação do que de ataque. As armas de Moro para atingir Bolsonaro até o momento revelaram-se pouco contundentes, enquanto as do STF contra ele (onde se arguirá a suspeição do então juiz) ainda surgirão.

Ocorre que as circunstâncias estão fazendo com que ele desenvolva um discurso de candidato, postura que não quer (ainda ?) assumir. Onde é convidado a se pronunciar, Moro começa hoje falando de economia, de melhoria do ambiente de negócios, de segurança jurídica e de reformas estruturantes. Evita qualquer postura que o possa associar a radicalismos do espectro político. Defende “união”, “harmonia” e um por enquanto vagamente definido “centro democrático” como linha de atuação.

Não parece disposto de forma alguma a assumir a herança do “lavajatismo”, na medida em que seus heróis de ontem são hoje figuras encurraladas do ponto de vista político e institucional, e na linha do tempo estão longe ainda de um novo teste das urnas. Parece intuir que só o combate à corrupção e o apego à lei e à ordem não trarão vitória eleitoral, diante de um momento político no qual as profundas consequências da dupla crise econômica e de saúde pública estão apenas começando.

A Lava Jato ainda produz ações de repercussão, como a deflagrada contra o senador José Serra, mas que surgem como eco de um passado tornado rapidamente longínquo diante da percepção de quais são os piores problemas da atualidade. O “lavajatismo”, que era também um ânimo de mudança, está perdendo sua principal referência.


Ricardo Noblat: Nada mal que os militares se rendam em definitivo à democracia

O partido verde oliva deverá crescer nas eleições

Mal na foto, ameaçado de não se reeleger por ter feito uma administração considerada desastrosa até aqui, o prefeito do Rio Marcelo Crivella está à procura de um general que aceite ser vice na sua chapa. Só assim poderá então se apresentar aos eleitores em novembro como o candidato mais próximo do presidente Jair Bolsonaro, quando nada por amor à farda.

Há generais disponíveis, nos quartéis ou em suas casas, capazes de aceitar um convite do prefeito. De repente, no país onde um ex-capitão afastado do Exército por conduta antiética se elege presidente da República, os militares afinal descobriram que a política pode lhes fazer muito bem. E que a democracia não é um regime tão ruim assim quanto lhes pareceu no passado.

Deveriam agradecer a Bolsonaro pela lição. Deputado federal durante quase 30 anos, ele se elegeu baixando o cacete na política e negando que fosse político. Prometeu jogar no lixo a Velha Política, para em menos de dois anos começar a distribuir cargos com políticos que possam apoiá-lo. Mas não só com eles. Dobrou o número de militares em cargos antes destinados a civis.

Natural que vez por outra, um militar que melhorou de vida graças ao ex-capitão enfrente aborrecimentos. Como aconteceu com o general Braga Neto, ministro e chefe da Casa Civil. Quis empregar uma filha na Agência Nacional de Saúde Suplementar com um salário de 13 mil reais, uma ninharia, por suposto. Desistiu. Configuraria um caso de nepotismo, previsto em lei.

O general Hamilton Mourão, vice-presidente, teve mais sorte. Seu filho era funcionário de carreira do Banco do Brasil quando foi promovido logo no início do governo, passando a ganhar três vezes mais. O general Eduardo Villas Boas saiu do comando do Exército direto para um cargo de assessor do Gabinete de Segurança Institucional. E sua filha foi assessorar a ministra Damares Alves.

O vento sopra fortemente a favor de quem veste ou vestiu farda. Quando novembro chegar, o partido verde oliva deverá eleger um número expressivo de prefeitos e vereadores. E daí? Nada mal se isso pudesse significar a rendição definitiva dos militares à democracia. A prova final da rendição está marcada para 2022 quando o benfeitor da caserna tentará se reeleger.

Reforma tributária: por uma consulta ampla, geral e irrestrita

Empresários dizem não a Paulo Guedes
O ministro Paulo Guedes, da Economia, pediu, ontem à noite, a empresários do setor de serviços que pressionem o Congresso Nacional para que aprove o novo tributo sobre transações, que deverá financiar a desoneração da folha.

Das muitas perguntas que se poderia fazer a propósito, escolha uma, ou mais de uma:

  • Se o novo tributo fará bem a todo mundo, e não somente aos empresários, por que Guedes não se dirige indistintamente aos brasileiros e pede que pressionem o Congresso?
  • Por que de fato só beneficiará aos empresários?
  • Por que Economia é assunto que só deve ser discutido com quem é do ramo?
  • Por que Guedes não sabe falar uma língua que todos entendam?
  • Por que o Congresso é insensível à pressão popular, mas não é a dos donos do dinheiro?

Descarte-se parte da última pergunta. A prorrogação do Fundeb, o fundo que financia a educação básica, foi mais uma prova de que o Congresso é também sensível à pressão popular. O governo é que não foi, e tentou sabotar a prorrogação até quando não deu mais.

Aprovada a prorrogação, Bolsonaro ainda teve a cara de pau de celebrar como se tivesse alguma coisa a ver com ela. Da mesma maneira procedeu quando só queria conceder o auxílio emergencial de 200 reais e o Congresso acenou com um de 500.

De volta as Guedes: os empresários do setor de serviços, alvos do apelo feito pelo ministro, se disseram radicalmente contrários ao novo tributo proposto por ele. Querem apenas a desoneração das folhas de pagamento. E segue o baile!


Ascânio Seleme: O Brasil é melhor assim

Sem as asneiras do capitão, o governo continua sendo ruim, mas deixou de ser ele próprio um elemento desestabilizador da harmonia entre os demais poderes

Há 37 dias os brasileiros não ouvem uma ameaça ou uma bravata do presidente da República. A última foi em 17 de junho, na véspera da prisão do queridinho Fabrício Queiroz, quando Bolsonaro falou a apoiadores na porta do Alvorada sobre a quebra de sigilos de parlamentares da sua base. Ele reclamou do Supremo Tribunal Federal pela medida e acrescentou: “Eles estão abusando. Está chegando a hora de tudo ser posto no devido lugar”. Foi o seu último rompante antidemocrático. Seu isolamento em razão da contaminação pela Covid-19 também contribui para o silêncio.

Desde então não ocorrem mais aquelas rotineiras e ridículas manifestações a favor do fechamento do Congresso e do Supremo e pela intervenção militar com Bolsonaro no poder. Se havia alguma dúvida, ela não existe mais. Era mesmo o presidente, seus três zeros e o resto da sua turma do ódio que incentivavam e indiretamente organizavam aquelas aglomerações em frente à rampa do Planalto. Com o capitão mudo, os “manifestantes” recolheram suas bandeiras e faixas e sumiram. Também não se ouve mais falar dos “300 do Brasil”, que não eram nem 30 e tinham como líder a patética Sara Giromini.

Sem as asneiras do capitão, o governo continua sendo ruim, mas deixou de ser ele próprio um elemento desestabilizador da harmonia entre os demais poderes constituídos. Vida que segue. Não se pode pedir a Bolsonaro mais do que isto, embora a demissão de Ernesto Araújo e Ricardo Salles ajudasse. O fato é que sua pauta conservadora foi eleita com ele, sua política econômica foi explicitada aos eleitores ainda na campanha, quando ele apresentou o seu Posto Ipiranga ao país. Cabe ao presidente tentar aprová-las no Congresso Nacional. Uma questão normal de um governo normal que joga de acordo com normalidade democrática.

A aprovação da sua pauta é outra questão. Na verdade, um problema político para ele. A base original do governo no Congresso é pequena, desarticulada e fisiológica. Os parlamentares que seguem apoiando Bolsonaro, depois das muitas caneladas que ele deu em aliados desde que tomou posse, sofrem derrotas seguidas e agem muitas vezes como cegos em meio a um tiroteio. Seus discursos são desalinhados e muitos querem apenas mostrar a cara, fazer presença, pouco se importando com aprovação ou rejeição de matérias do governo. Os quadros com um pouco mais de tutano saíram ou foram expelidos da base.

O governo perdeu quase todas as questões que levou ao Congresso. Numa lista rápida é obrigatório citar a ampliação do acesso ao Benefício de Prestação Continuada; a flexibilização do orçamento impositivo obrigando o governo a executar as emendas das bancadas estaduais; a ajuda aos Estados e municípios sem a obrigatoriedade de não aumentar salários de todos os servidores; a rejeição do “Plano Mansueto”; e a devolução do Coaf para a Economia. Na reforma da Previdência, caiu o sistema de capitalização sonhado por Guedes, e os arranjos no Congresso reduziram a economia em dez anos de R$ 1,1 trilhão para R$ 800 bilhões.

As muitas derrotas obrigaram Bolsonaro a buscar apoio do Centrão, o que o levou a engolir uma das suas mais emblemáticas promessas de campanha, a de jamais negociar cargos em troca de apoio no Congresso. Mas essa turma também parece servir pouco para aprovar projetos. Nesta semana, mais uma vez o governo perdeu, agora na tentativa esdrúxula de desviar recursos do Fundo de Manutenção e Assistência da Educação Básica (Fundeb) para fazer assistencialismo político. Perderam Guedes e o deputado Arthur Lira, um dos líderes do bloco, que quis adiar a votação quando percebeu que não levaria. A votação não foi adiada, e o Fundeb foi aprovado com 499 votos a favor e sete contra.

O Brasil é melhor assim, sem um presidente falastrão. O problema é saber se vai durar. Tem gente que aposta que não, sobretudo porque algumas contas que ele e seus zeros devem à Justiça já foram emitidas e mais cedo ou mais tarde vão chegar.


Merval Pereira: Sinal de alerta

A derrota do governo foi acachapante, a PEC foi aprovada nos dois turnos praticamente por unanimidade na Câmara

A derrota do governo na votação da emenda constitucional do fundo de desenvolvimento da educação básica (Fundeb) não pode ser reduzida apenas a uma vitória política da Câmara, tem um significado maior. Um governo que passou seu primeiro ano e meio demonizando a política, e de repente dá meia volta volver sem uma explicação lógica - embora ela esteja ligada aos inquéritos que investigam o presidente e sua família em diversas áreas do Judiciário -, não pode ter a garantia de apoio tão forte quanto aquele que luta por um programa. Na verdade, o Congresso abraçou esse programa fundamental para a educação incentivado pela ação de organismos da sociedade civil.

A perpetuação do novo Fundeb, e o aumento da participação do governo nos repasses financeiros impostos pela Câmara, são típicos de um programa social que visa o futuro do país, não de um governo que passa mais de ano sem interceder no debate político que já vinha se desenrolando no Congresso, e tenta melar decisões tomadas após amplas discussões parlamentares.

A derrota do governo foi acachapante, a PEC foi aprovada nos dois turnos praticamente por unanimidade na Câmara, com apenas 7 votos contra no primeiro turno e 6 contra no segundo. O governo havia proposto aumentar o repasse da União de 10% para 23% do total dos recursos do Fundeb, com aumento escalonado a partir de 2022. O próximo ano ficaria sem verba destinada ao Fundeb, o que seria uma irresponsabilidade diante da necessidade de recuperar o ensino quase paralisado no ano da pandemia.

Mas queria repassar 5% para famílias em situação de vulnerabilidade com crianças de até 5 anos inscritas no Renda Brasil, como se fosse um auxílio-creche. Os deputados não aceitaram essa manobra da equipe econômica, que na verdade queria aproveitar uma verba já aprovada para compor o Renda Brasil. Agora, terá que encontrar outro lugar para arranjar o dinheiro do novo programa social, e o repasse governamental acabou sendo maior, para o bem da educação.

Não foi à toa que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se emocionou com o agradecimento da relatora da PEC, deputada professora Dorinha, pelo seu empenho na aprovação. O líder da base do governo, Arthur Lira, disputava nessa votação a influência que pretende ter na sucessão de Maia em janeiro, mas não conseguiu mobilizar a suposta base governista para retardar a votação, como queria o Palácio do Planalto. Nem mesmo o centrão dignou-se a apoiar a pretensão do governo de repassar 5% do novo fundo para o programa Renda Brasil.

Na teoria, essa transfusão de verbas seria benéfica para o governo e sua base, que poderiam alardear a criação desse Bolsa-Família 2, tentando tirar do PT a predominância das ações sociais, especialmente no nordeste. O auxílio emergencial de R$ 600 durante a pandemia está ajudando milhões de brasileiros a sobreviverem, e também a sobrevivência da popularidade do presidente Bolsonaro, cujo apoio, assim como aconteceu com o PT, passou a ser maior entre os mais necessitados, perdida a classe média, desapontada mais um vez.

Assim como o PT pegou os programas sociais do PSDB, unindo-os no Bolsa-Família, o maior instrumento eleitoral dos últimos tempos. Nada mal para o país, que vem desenvolvendo programas sociais aperfeiçoados. O Renda Brasil vai ter uma porta de saída para seus beneficiários, que era uma falha do Bolsa-Família.

Mas compor um programa social retirando verba de outro, que ajudou a educação do país a dar um salto de qualidade, seria uma fraude. O Fundeb teve origem no Fundef, de apoio ao ensino fundamental, nascido no governo do PSDB. Ampliou seu escopo no governo do PT, e agora tornou-se um programa permanente, sem necessidade de renovação anual. Esses exemplos são exceções positivas na mania brasileira de um governo derrubar tudo o que o antecessor fez, embora nenhum atribua ao que o antecedeu a origem do programa, o que pode ser considerado “do jogo". Aos trancos e barrancos, e mesmo sem querer, vamos evoluindo em certas áreas, a despeito do governo.


Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso

“Com 82,7 mil mortes no Brasil, as cidades reabrem o comércio, as pessoas circulam em transportes lotados e calçadas apinhadas — o risco de contaminação aumentou”

A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus estável.”

A situação que os brasileiros estão passando em meio à pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19 registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que 67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19 registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de óbitos pela doença no país.

A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.

Sem controle

O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.

A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada, ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia. Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios disponíveis para contê-la.

O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-viver-e-muito-perigoso/