Day: julho 23, 2020
‘Educação muda vida das pessoas e transforma sociedade’, diz Sérgio C. Buarque
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de julho, economista avalia importância de ativos sociais e econômicos
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Os ativos econômicos e sociais contribuem para a formação da renda e a construção da liberdade do cidadão, particularmente quando se trata do ativo conhecimento, ao contrário da distribuição de renda. A avaliação é do economista Sérgio Cavalcanti Buarque, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de julho, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
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Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP, que também faz ampla divulgação em sua página no Facebook e em seus perfis no Twitter e no Instagram. Mestre em sociologia, Buarque explica, no artigo publicado na revista Política Democrática Online, que os ativos econômicos geram renda (salários, lucros, juros e impostos) no processo produtivo, mas, segundo ele, têm apropriação muito desigual e, na forma de máquinas e equipamentos, também se depreciam com o uso e ficam obsoletos com o tempo.
Consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, o economista destaca que o conhecimento, especialmente a educação, é o ativo social que muda a vida das pessoas e transforma a sociedade e a economia, eleva a renda, reduz as desigualdades sociais e contribui para o aumento da produtividade – é o conhecimento, especialmente a educação.
“O conhecimento se multiplica com a utilização, tem flexibilidade de uso e não se deteriora com o tempo”, afirma o analista econômico. “Ao contrário, o conhecimento cresce e se amplia tanto mais quanto seja usado, se expandindo com a troca e a interação entre as pessoas e os saberes, porque esta é a essência do processo de aprendizagem”, acrescenta.
Segundo o artigo publicado na revista Política Democrática Online, estudos mostram que o aumento da escolaridade dos trabalhadores promove a elevação da sua renda por conta da melhoria de sua produtividade e de sua posição no mercado de trabalho.
Em sua análise, Buarque também explica que a distribuição de uma renda mínima é a forma mais rápida e eficaz para atender às necessidades da população vulnerável. “Constitui um instrumento de assistência social que, no entanto, não promove mudanças capazes de superar a pobreza e diminuir a desigualdade”, afirma.
“Mesmo quando exige uma contrapartida, como a frequência à escola dos filhos dos beneficiários, na medida em que as escolas públicas são, no geral, de péssima qualidade”, avalia, para continuar: “Indiscutivelmente importante no âmbito das necessidades, a transferência de renda não constrói a liberdade”.
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Paulo Wanderley: A força do Time Brasil
Os Jogos Olímpicos, marcados para daqui a um ano, que nos aguardem
Onde você se imagina daqui a um ano? Se me fizessem essa pergunta há 12 meses, não teria dúvida alguma da resposta: em Tóquio, em um estádio lotado. Esperando a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, com orgulho da delegação brasileira, que entraria em cena para colocar em prática todo o enorme esforço dos últimos anos. Estaria lá, na esperança de ótimos resultados e com a certeza de que tudo valeria a pena. Estaria sentindo na pele a emoção dos valores olímpicos, de amizade e respeito, que são capazes de unir todos dentro e fora das competições.
O mundo, entretanto, parou. Os atletas tiveram de entender, assim como todos nós, que era preciso encarar o rival de toda uma geração. Era momento de cautela e responsabilidade diante da pandemia do novo coronavírus. Mas e os treinos? E a expectativa alimentada durante todo esse ciclo olímpico? Iríamos jogar tudo fora?
O adiamento dos Jogos para 23 de julho de 2021 trouxe alívio para o COB. Desde antes de qualquer decisão formal do COI, o Brasil foi um dos primeiros países a se posicionar entendendo que não havia solução mais assertiva, sensata e prudente. Claro que a tristeza e os questionamentos trazidos acima vieram à tona, mas nunca a dúvida de que seria o melhor caminho.
Não, não vamos jogar tudo fora. Pelo contrário. Estamos nos preparando cada vez mais para o que vem pela frente, colocando em primeiro lugar a segurança, a saúde e a integridade física dos nossos atletas e demais envolvidos com a prática esportiva de alto rendimento no país.
E como estamos a um ano do recomeço? Todos os estudos operacionais para a nossa delegação estão sendo refeitos. Em várias frentes, tivemos de replanejar. Tomamos medidas administrativas necessárias. O pilar desta gestão, de austeridade financeira, nos gerou uma fundamental reserva para contingências, que nos permitiu manter o sistema funcionando sem sobressaltos. Nossos patrocinadores, fornecedores e parceiros, mais uma vez, estão sendo fundamentais nesse processo.
Para que nada saísse do eixo, era preciso agir rápido. Desenvolvemos o Programa Emergencial de Apoio ao Sistema Olímpico. Fizemos uma injeção direta de R$ 7 milhões para que as diversas modalidades pudessem enfrentar essa tempestade.
A Missão Europa, iniciada dia 17 de julho, integra o programa, e a consideramos um marco dessa nova realidade. Em parceria com as Confederações Brasileiras, iniciamos a retomada dos treinamentos de nossos atletas de alto rendimento, com toda a segurança possível. Esse retorno era necessário e traz confiança para todos.
O objetivo é levar mais de 200 atletas até o fim do ano para nossa base em Portugal. O investimento será coberto por parte dos R$ 15 milhões previstos no nosso orçamento deste ano, dentro do Programa de Preparação Olímpica, oriundos da Lei das Loterias, possibilitando ações fundamentais para o desenvolvimento do esporte brasileiro.
Estabelecemos um protocolo de volta às atividades pensado com muito cuidado. E, assim, mais uma fase de nossas medidas de apoio avançou.
A abertura do CT Time Brasil, no Rio de Janeiro, ocorreu no dia 20 e segue todo esse rigoroso protocolo, servindo de referência para qualquer instalação que receber nossos atletas. Novas permissões serão concedidas gradualmente, com cautela.
Os Jogos, na essência do Olimpismo —que gosto de tratar como uma filosofia de vida— devem ser uma mensagem de vitória e superação. Superação essa de que sentimos o gostinho recente nos Jogos Pan-Americanos de Lima, com nosso melhor resultado da história, na segunda colocação geral.
Acreditamos que o trabalho feito dentro e fora das competições irá gerar resultados além das tão sonhadas medalhas. É o momento de desenvolvimento ainda maior de valores que sempre guiaram nosso dia a dia olímpico, como resiliência, trabalho em equipe, planejamento e superação de obstáculos. Vamos passar por essa juntos, como sempre fizemos. E, se nosso Time Brasil já estava unido e pronto antes mesmo da pandemia, 2021 que nos aguarde!
*Presidente do Comitê Olímpico do Brasil
Míriam Leitão: Temores dos contribuintes
Reforma fatiada impede a visão do todo e se for aprovada em etapas provocará aumento de carga tributária para alguns setores
Ao dar os próximos passos da reforma tributária, que apresenta em partes, o governo quer encontrar o bolso da classe média. O Imposto de Renda Pessoa Física perderia suas deduções, e provavelmente terá mais uma alíquota. Está também em estudo a taxação de dividendos, no projeto de que a empresa pague menos, mas seu sócio pague mais. E o sonho da equipe é fazer um imposto tipo CPMF e com isso reduzir os tributos sobre folha salarial. O fatiamento impede a visão do todo e, portanto, cria mais resistência. Os cálculos das consultorias mostram aumento de carga.
Uma empresa de software pediu à consultoria Mazars para fazer a conta dos efeitos sobre o seu negócio. Segundo Luiz Carlos dos Santos, diretor responsável pela área tributária, a empresa pagará mais imposto.
— Para essa empresa de software que simulamos, na conta final, ela teria em torno de 3% a 5% de aumento de carga. Isso ela teria que tirar da margem, podendo até inviabilizar investimentos em novos produtos — disse Santos.
Há outro ponto que é difícil saber como vai funcionar, que é a exigência às plataformas digitais para que paguem caso o fornecedor não recolha a CBS, numa espécie de contribuinte substituto.
— Mercado Livre, iFood, Rappi, qualquer plataforma vai ser responsável pela nota, em caso de o vendedor não emitir. Você acessa o iFood e compra no bar da esquina alguma coisa, e ele não emite a nota fiscal. A responsabilidade passa a ser da plataforma. Hoje, a plataforma só paga o tributo pela comissão que ela ganha desse pequeno comércio. Ela poderia ter que pagar pela receita do pequeno comércio. A constitucionalidade disso é até discutível, por obrigar uma plataforma a emitir nota por um produto que outro vendeu. Uber, 99, esses aplicativos de transporte têm regimes especiais e ficam de fora. Se comprar pela Amazon, e o produto vem do exterior, a Amazon lá fora vai ter que ter um cadastro na Receita e recolher a CBS. Algumas plataformas podem deixar de achar interessante ficar no Brasil — disse Luiz Carlos dos Santos.
O que o governo diz é que, apesar de as pessoas físicas não pagarem CBS, em qualquer transação feita pela internet, o vendedor deverá emitir nota, transformando-se em empreendedor individual.
De todas as etapas que o governo ainda ficou de apresentar, só o IPI tem a ver com o que está sendo discutido no Congresso, que são os tributos sobre bens e serviços. O governo quer fazer do IPI um imposto seletivo, com alíquota alta para alguns produtos. Nas outras etapas viriam a reorganização dos impostos sobre renda, sobre patrimônio, a desejada desoneração da folha salarial, mas com o preço amargo do imposto que mais distorce que é uma espécie de CPMF.
Ao mesmo tempo em que o Brasil tenta entender o alcance da unificação do PIS e da Cofins apresentada pelo governo, o Congresso formou a Comissão Mista para discutir propostas muito mais amplas, que unificam pelo menos cinco impostos. O IBS previsto na PEC 45 é um verdadeiro IVA porque une cinco impostos, inclusive o ICMS que é a grande dor de cabeça das empresas, e o maior deles com recolhimento de 7% do PIB. A do Senado, também. Uma das ideias com que se trabalha na PEC 45 — e que agora deve ser levado para a comissão mista já que o deputado Aguinaldo Ribeiro é o relator também — é de um imposto seletivo sobre alguns produtos, entre eles, combustíveis fósseis. Nessa ideia, a Cide seria extinta.
A situação em que o país está é que o governo demorou a entrar na conversa e chegou com uma proposta pequena, confusa e polêmica. Promete outras etapas, mas elas ficam no ar, gerando ainda mais incerteza. O que se sabe até agora é que depois do IPI o governo vai enviar uma proposta para reformar o Imposto de Renda Pessoa Física. Quer acabar, por exemplo, com a faixa de isenção maior para quem tem mais de 65 anos, e quer eliminar as deduções para saúde e educação. Todas provocarão controvérsia como a CBS.
— Se eu saio da alíquota de 3,65% e 9,25% por uma de 12% ,e eu não tenho crédito para contrabalançar, vou ter aumento de carga sim — disse Santos.
Essa reforma a conta-gotas provocará uma onda de reação a cada etapa e vai embaralhar a tramitação das PECs que estão no Congresso. Enquanto isso, todos os contribuintes ficam na expectativa do que ainda está por vir.
Vinicius Torres Freire: Bode na sala ou salame fatiado, reforma tributária de Guedes cria confusão
Reforma tributária fatiada do governo causa o tumulto previsto e pode emperrar mudança
Como era previsível, a primeira fatia do salame tributário oferecida pelo governo federal não caiu bem. Paulo Guedes propôs trocar o PIS/Cofins por uma Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Se fosse alteração isolada, causaria a confusão habitual de rediscussões de impostos, de quem paga mais ou menos, motivo que emperra a mudança desse imposto desde 2014.
O plano Guedes causa mais tumulto porque, se a ideia é fazer reforma “ampla”, não dá para discutir PIS/Cofins sem tratar do peso de outros impostos sobre as empresas.
Há quem diga que a CBS com alíquota alta é um bode na sala, a ser trocado por uma CPMF. O bode de Guedes, no entanto, já mastiga o sofá e faz sujeira sobre o tapete.
Antes de prosseguir, convém lembrar que:
- quem recolhe o imposto não é quem o paga. Quanto mais um bem ou serviço for de difícil substituição, mais fácil repassar o aumento de tributação para o consumidor (pense-se no caso de comida, água, luz). Se existe substituto ou a opção de não consumir, é possível que a empresa tenha de engolir parte do aumento do custo ou, caso o repasse, perca mais faturamento;
- não é possível calcular aumento de carga tributária com base apenas na alíquota do imposto. Mudanças em tributos mudam comportamentos. Podem tornar empresas inviáveis, permitir o surgimento de outros negócios e incentivam as firmas a criar um modo de se livrarem do tributo. Um projeto tributário não faz sentido sem simular essas transformações.
O PIS/Cofins é um imposto grande, cerca de 18% da receita federal bruta de 2019. Apenas Imposto de Renda, com 28,4%, e contribuições previdenciárias em geral, 27%, têm peso maior. O ruinoso ICMS, estadual, porém, arrecada quase o dobro do PIS/Cofins.
Parece razoável acreditar que a CBS vai aumentar os impostos de construção civil, escolas, saúde ou teles. Pode ser tolerável, a depender do que vai ser feito de outros impostos e do ganho geral da (suposta) simplificação e uniformização tributária. Como não temos ideia do quadro mais geral, fica difícil discutir alíquotas e a conveniência de redistribuição da carga. Esse é um resumo do problema que é a reforma Guedes-Bolsonaro, que além do mais suscita outras ideias de jerico.
Gente do centrão e da oposição de esquerda quer que os bancos paguem mais CBS. Pode ser que a alíquota deva ser calibrada, mas partir do princípio de que bancos têm de pagar mais é má ideia. As consequências mais prováveis desse aumento devem ser o encarecimento dos empréstimos e a diminuição do acesso ao crédito. Se a questão é a iniquidade, trata-se de tributar os rendimentos dos acionistas dos bancos e dos detentores de capital em geral, os mais ricos em particular.
Sim, um objetivo de uma reforma inteligente é uniformizar o quanto possível o peso dos impostos sobre empresas e finança, de modo a evitar distorções ineficientes. A decisão de investir aqui ou ali devem ser pautadas por rentabilidade, não por privilégios fiscais. Um imposto especialmente baixo pode manter vivos negócios de outro modo inviáveis, o que é um uso ineficiente de recursos. Tudo isso é muito elementar.
Mas não estamos discutindo nada disso: alíquotas efetivas e seus efeitos econômicos, justiça e eficiência tributárias, o quadro geral dos impostos. É grande risco de a reforma tributária entrar no pântano caótico que é o padrão de governo Jair Bolsonaro. Tudo porque Guedes tem a ideia fixa da CPMF e mexer com estados e cidades.
Ribamar Oliveira: Aumento da carga está no horizonte
Novas despesas estão sendo contratadas, o que fortalece o pessimismo sobre os rumos da reforma tributária
A condição básica para viabilizar uma reforma tributária é a percepção de que ela não resultará em aumento da carga de impostos. Do contrário, ela não avançará. Infelizmente, há sinais concretos no horizonte de que o peso dos tributos sobre os ombros dos contribuintes brasileiros poderá ficar ainda maior.
O que fortalece o pessimismo sobre os rumos da reforma tributária é que novas despesas estão sendo contratadas, no âmbito da União, dos Estados e dos municípios. A Câmara dos Deputados acaba de aprovar o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Nos próximos dias, o Senado também deverá aprovar. Com as novas regras do Fundeb, a participação da União no financiamento da educação infantil e nos ensinos fundamental e médio crescerá de 10% para 23% até 2026. Já em 2021, ela aumentará de 10% para 12%.
Para a União, a despesa deverá passar dos atuais R$ 15 bilhões por ano para R$ 34,5 bilhões por ano, ao final de um período de seis anos, de acordo com estimativa do economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade do Senado. Ou seja, a despesa anual vai mais do que dobrar. É um gasto obrigatório adicional, que está sendo programado sem o corte de nenhum outro.
Haverá aumento de despesa também para os Estados e municípios, como observaram os economistas Marcos Lisboa e Marcos Mendes, em recente artigo para a “Folha de S. Paulo”. A lei 11.738/2008 define que o piso salarial dos professores será reajustado pelo mesmo índice de variação de gasto por aluno do Fundeb.
Como o número de alunos está caindo, resultado da transição demográfica, e a receita de impostos estaduais e municipais vinculados ao Fundeb cresce, os percentuais de reajuste do piso foram expressivos nos últimos anos. Em 2020, o reajuste do piso foi de 12,84%. Ele indexa, segundo os economistas, toda a escala de remunerações, “dando aumentos até para quem está no topo da carreira”. O piso também se aplica a inativos e pensionistas.
Uma das regras do novo Fundeb estabelece que pelo menos 70% dos seus recursos serão destinados ao pagamento dos profissionais da educação básica em efetivo exercício. É fácil perceber o impacto do Fundeb aprovado pela Câmara nas finanças estaduais e municipais, que já estavam fortemente abaladas antes mesmo da pandemia da covid-19.
Outro indício preocupante são as manifestações de setores do governo favoráveis ao imposto sobre pagamentos, idealizado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para substituir a atual tributação sobre a folha de salários. Na semana passada, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, disse que o imposto de Guedes, que para muitos é uma CPMF disfarçada, poderia ser utilizado “para reforçar o programa de renda mínima, que vem sendo montado pelo governo”.
Se além de substituir os tributos sobre a folha, a nova CPMF vai também custear parte do programa de renda mínima, obviamente ela representará um aumento da carga tributária. O “reforço” do programa de renda mínima do governo, chamado de Renda Brasil, representará elevação das despesas, se não for compensado pelo corte de outros gastos.
Se o governo federal procurar elevar a sua receita tributária para custear novas despesas será inevitável que governadores e prefeitos façam o mesmo. Quando essa disputa por mais recursos começar a acontecer, é difícil acreditar que a reforma tributária continuará avançando.
Nesta semana, o governo apresentou, finalmente, a primeira etapa de sua proposta de reforma tributária, com a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), em substituição ao PIS/Pasep e à Cofins. A alíquota da CBS será de 12%, contra os 9,25% atuais do PIS/Cofins pagos pelas empresas que declaram pelo lucro real. Já há especulações de que a alíquota da nova contribuição embutiria um aumento da carga, o que o governo federal nega.
A realidade das contas públicas pós-pandemia mostra a necessidade de um controle rigoroso sobre os gastos. As últimas estimativas do Ministério da Economia indicam um déficit primário superior a R$ 800 bilhões neste ano e uma dívida pública bruta em torno de 95% do Produto Interno Bruto (PIB).
Com a continuidade de déficits primários nas contas públicas nos próximos anos, a tendência será de que a dívida cresça ainda mais. O que poderá amenizar a trajetória é o juro muito baixo que o Tesouro Nacional está pagando em seus papéis. Para os juros permanecerem em nível historicamente muito baixo, no entanto, o governo não poderá fazer sinalizações erradas, que indiquem descontrole dos seus gastos.
Os economistas ensinam que só há uma forma de controlar o crescimento da dívida pública no médio e longo prazo: fazer superávit primário nas contas. Isso pode ser conseguido pela redução das despesas ou pelo aumento da carga tributária. Desde a posse do ex-presidente Michel Temer, o governo tentou seguir uma estratégia de reduzir os gastos em proporção do PIB, evitando, dessa forma, a elevação do peso dos impostos. É preciso saber se essa estratégia continuará sendo seguida no pós-pandemia.
Uma alternativa à elevação da carga seria uma significativa redução dos benefícios tributários, que hoje atingem 4,2% do PIB. Recente nota técnica da Receita Federal informou que a ampliação das desonerações tributárias concedidas após a crise de 2008/2009 alcançou a totalidade do sistema tributário, de modo que todo tributo possui atualmente alguma forma de tratamento diferenciado.
Na sua proposta de criação da CBS, o governo elimina mais de 100 tratamentos diferenciados e favorecidos que existem na legislação do PIS/Pasep e da Cofins. São subsídios que estão sendo suprimidos e, em tese, deverão, se aprovados, elevar a receita disponível. O fim ou redução significativa dos benefícios tributários será outro obstáculo considerável para a reforma tributária.
Zeina Latif: Afundando na armadilha da renda média
A educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média
É mais fácil um país pobre tornar-se um país de renda média do que este se tornar rico. Os economistas Homi Kharas e Indermit Gill, do Banco Mundial, identificaram essa dificuldade e a denominaram como “armadilha da renda média” em 2007.
Muitos países conseguiram sair da pobreza por meio de políticas governamentais para elevar o estoque de capital da economia. Foi o caso do Brasil. No entanto, o mesmo receituário não seria suficiente para tornar o país rico, independentemente das restrições fiscais. No século 21 ainda menos, por conta do avanço tecnológico.
As dificuldades são de duas naturezas. A primeira é mais técnica: o investimento em infraestrutura e capital instalado gera crescimento do PIB, mas em intensidade decrescente ao longo do tempo. Ficar rico exige passos além: ganhos de produtividade, o que depende de muitas variáveis.
A segunda dificuldade é política. É necessário um arranjo institucional mais sofisticado – envolvendo a academia, imprensa, órgãos públicos e privados – para se construir consensos sobre políticas pró-crescimento. Boa vontade dos governantes é essencial, mas não basta.
Há um grande consenso entre economistas mundo afora de que a educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média. No entanto, em países de renda média não se nota mobilização de atores políticos nessa direção e tampouco envolvimento da sociedade. No Brasil não é diferente e, para piorar, o debate técnico ainda não está suficientemente maduro.
Nesses países, o setor produtivo é, grosso modo, pouco sofisticado, sendo menos penalizado com a falta de mão de obra qualificada em comparação ao que ocorre em países ricos, que produzem tecnologia e buscam inovação. O que o mobiliza não é a cobrança por educação de qualidade, mas sim benefícios diretos. É o que se vê agora no Brasil com a reação contrária de muitos ao fim da desoneração da folha e à reforma tributária. A elite, que não depende da escola pública, também pouco exerce pressão política.
Como resultado, o desenho de políticas públicas de educação acaba sendo mais influenciado por sindicatos e políticos de viés populista.
É nesse contexto, agravado pela omissão do governo, que foi a aprovado o novo Fundeb. O foco principal do expressivo aumento de recursos foram os gastos com a folha, deixando pouca flexibilidade para gestores escolherem a melhor forma para elevar a qualidade do ensino. Esse tema, por sua vez, ficou praticamente de fora.
Em países pobres, com baixo acesso à escola, é crucial elevar os gastos com educação. O Brasil percorreu esse primeiro percurso, mas não de forma eficaz. Há maior inclusão, mas temos o dobro de taxa de evasão escolar em relação a países parecidos. E não seria correto apontar os salários dos professores como explicação para esse resultado. Segundo o Banco Mundial, o piso salarial dos professores está em linha ao de países com renda per capita similar, havendo evolução bem mais rápida na carreira devido a promoções automáticas, além de a previdência ser mais generosa.
Direcionar mais recursos para abrir vagas e aumentar salários é tarefa fácil e traz resultados e dividendos políticos rapidamente. Difícil mesmo é pular para um segundo estágio de elevar a qualidade do ensino, como fizeram os países ricos, para manter os jovens motivados na escola e prepará-los para a vida. Especialistas apontam a necessidade de afastar professores pouco eficientes, enfrentar sindicatos, treinar professores, revisar currículos e adequar as escolas para a nova realidade tecnológica.
Perdemos a chance de um debate político amparado tecnicamente sobre como melhorar a educação, aprendendo com os casos de sucesso. Nos agarramos a fórmulas fáceis e que deveriam estar superadas.
Será que teremos de esperar o problema educacional começar a prejudicar investimentos de forma visível, como ocorre na questão ambiental, para o debate ficar mais maduro? Por ora, o que estamos fazendo é nos afundar na armadilha.
*Consultora e doutora em economia pela USP
José Serra: É urgente atualizar o regime do petróleo
Não podemos deixar o futuro das próximas gerações perdido no fundo do mar
A aprovação do novo marco legal do saneamento básico abriu caminho para uma agenda de recuperação econômica pós-pandemia, por meio de novos investimentos e de aumento da produtividade. Dentre as pautas prioritárias, destacam-se, além do novo marco legal das ferrovias, a reforma do setor elétrico e a do mercado de petróleo e gás natural.
Neste último caso, é crucial atualizar o marco regulatório do pré-sal, permitindo que os leilões a serem realizados em 2021 recuperem a competitividade em relação a outros países. Mudanças no marco legal do petróleo começaram em 1997, com a Lei do Petróleo, que criou o regime de concessão. A descoberta do pré-sal levou o governo Lula a criar, em 2010, o novo regime de partilha, que concedeu à Petrobrás o monopólio da operação e a participação de, no mínimo, 30% nos leilões de campos do pré-sal.
Em 2013 foi realizado o primeiro leilão do pré-sal, com a oferta do campo de Libra, com potencial estimado entre 8 bilhões e 12 bilhões de barris. O resultado ficou muito aquém das expectativas, sem a participação maciça de empresas estrangeiras. Sem concorrência, apenas um consórcio apresentou oferta e o governo recebeu o mínimo estipulado nas regras: um bônus de assinatura (BA) de R$ 15 bilhões e 41,65% do petróleo produzido, descontados os custos de produção. Ficou evidente que as regras criadas pelo novo regime anularam a atratividade da área em oferta.
Com a Lei 13.365/2016, que tem como objetivo principal atrair investidores e estimular a concorrência, a Petrobrás deixou de ser o operador único e de participar obrigatoriamente com 30% em todos os consórcios do pré-sal. A partir de então os leilões tiveram sucesso inegável. No final de 2017 e primeiro semestre de 2018, as três rodadas realizadas tiveram 75% dos blocos ofertados arrematados, proporcionando mais de R$ 9,3 bilhões de arrecadação em BA. Ainda em 2018, a quinta rodada tornou-se o primeiro certame sob o regime de partilha a ter, com mais de um bloco em oferta, 100% das áreas arrematas, com um BA total de R$ 6,82 bilhões.
Os resultados decepcionantes do Excedente da Cessão Onerosa e da 6.ª Rodada de Partilha evidenciaram a inevitabilidade de uma nova alteração na lei. O leilão da cessão onerosa realizado em 2019 não atraiu o interesse das grandes petroleiras: os R$ 69,96 bilhões arrecadados em BA restringiram-se à Petrobrás (90%) e às chinesas CNODC Brasil (5%) e CNOOC Petroleum (5%). Na sexta rodada, realizada no dia seguinte, apenas uma das cinco áreas ofertadas foi arrematada e, mais uma vez, pela Petrobrás e associados chineses. A Petrobrás havia exercido o direito de preferência sobre outras áreas, mas desistiu da operação. Esse resultado reforçou a tese de que os campos brasileiros com grandes reservas já tinham sido leiloados.
Com isso a alteração da lei se tornou mais pertinente e urgente. O surgimento da pandemia do novo coronavírus causou incertezas quanto ao futuro do mercado de petróleo. Sendo assim, a criação de um ambiente legal e regulatório que propicie, já em 2021, a volta bem-sucedida dos leilões passou a ser fundamental. A meu ver, alterações que flexibilizem o regime de exploração no pré-sal e em áreas estratégicas, associadas a medidas de aperfeiçoamento das regras vigentes, são fundamentais para o sucesso dos leilões do próximo ano.
Reconheço que a retirada do direito de preferência da Petrobrás é uma medida polêmica. A repulsa a esse tema provém de uma suposta defesa da Petrobrás. A crença imaginária de que “o petróleo é nosso” ainda permeia as decisões de alguns senadores. Mas é preciso entender que essa prerrogativa concedida à Petrobrás distorce o processo competitivo, permitindo-lhe optar por diminuir os porcentuais de excedente em óleo destinados à União. Ora, quanto menor a parcela desse excedente, menores serão os recursos dirigidos a programas sociais, sobretudo à educação. O fracasso dos leilões da cessão onerosa evidenciou essas distorções, pois arrecadaram apenas R$ 69 bilhões dos R$ 106 previstos.
O fortalecimento do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que deve deliberar sobre o melhor regime jurídico a ser adotado nos leilões do pré-sal, é crucial. Com a flexibilização do regime de licitação do pré-sal e das áreas estratégicas, o CNPE deve ficar livre para definir, antes de cada rodada, qual regime é mais vantajoso, do ponto de vista social e econômico, para licitar cada área/bloco ofertado: partilha de produção ou concessão. A maximização da arrecadação nos leilões, devida à maior competição entre as petroleiras, seria uma consequência adicional.
O setor de petróleo terá certamente papel fundamental na retomada da economia pós-covid-19, já a partir de 2021. Para tanto é indispensável que os leilões do pré-sal sejam realizados sob um novo regime legal o mais depressa possível. Caso contrário, corremos o risco de deixar inexplorada grande parcela de nossas reservas de óleo e gás.
O futuro das próximas gerações passa por investimentos maciços em educação. Não podemos deixar esse futuro perdido no fundo do mar.
*Senador (PSDB-SP)
Bernardo Mello Franco: TCU provou omissão de Bolsonaro na pandemia
O governo de Jair Bolsonaro cruzou os braços diante da pandemia que já matou quase 83 mil brasileiros. O presidente fez piada com o vírus, desprezou a dor das famílias, sabotou as medidas de isolamento e forçou a saída de dois ministros da Saúde. Depois entregou a pasta um general que aceitou o papel de fantoche e cumpre suas ordens sem reclamar.
Ontem o Tribunal de Contas da União revelou um novo pedaço dessa história. O governo segurou mais de dois terços da verba emergencial liberada para combater a doença. Dos R$ 38,9 bilhões previstos, o ministério só gastou R$ 11,4 bilhões até 25 de junho. Isso significa que 71% dos recursos ficaram retidos nos cofres da União.
Além de não gastar o que precisa, o governo sonegou dinheiro que deveria ser destinado a estados e municípios. Segundo o ministro Benjamin Zymler, a auditoria concluiu que os repasses federais “não seguem nenhuma lógica identificável”. Difícil saber se isso se deve a uma administração caótica ou a uma retaliação a adversários políticos.
Um dado do relatório sugere a segunda hipótese. Rio de Janeiro e Pará, que estão entre os três estados com maior taxa de mortalidade, figuram entre os três que receberam menos verbas per capita. Coincidentemente, seus governadores são desafetos do capitão.
O TCU também apontou problemas na comunicação oficial. Na gestão militarizada de Pazuello, o ministério suspendeu as entrevistas que orientavam a população e prestavam contas da ação do governo. O general ainda se notabilizou por maquiar estatísticas, numa tentativa de esconder a escalada de mortes no país.
O fracasso brasileiro na pandemia é uma obra coletiva. Envolve políticos inescrupulosos, empresários oportunistas e cidadãos indiferentes ao sofrimento alheio. Bolsonaro teve a chance de liderar um esforço nacional contra o vírus, mas preferiu fazer guerra política e iludir os doentes com remédio milagroso.
No futuro, a auditoria do TCU ajudará a provar sua omissão deliberada diante da tragédia. Seja no Brasil ou no Tribunal Penal Internacional.
Fernando Schüler: O lado sombrio do mundo melhor
Cancelar não tem a ver com justiça, mas com poder; em regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente
Tentaram “cancelar” Steven Pinker. Ele é um intelectual com jeito de roqueiro das antigas. Linguista em Harvard, autor de alguns livros monumentais (“Os Anjos Bons de Nossa Natureza” e “Iluminismo Agora”). Sua ideia-força é a de que estamos melhorando, como civilização, seja na redução global da violência, respeito a direitos, incidência da guerra. Isso irrita muita gente.
Uma carta assinada por um grupo de acadêmicos pedia à Associação Americana de Linguística (LSA) sua destituição das listas de membros prestigiados. O caso virou símbolo (e uma ótima síntese) do que define a cultura do cancelamento.
Em primeiro lugar era um grupo grande. Algumas centenas de assinaturas. Para cancelar você precisa de muita gente. Gente gritando, como nas antigas praças de execução pública. A carta contra Pinker também fazia questão de dizer que não era um cancelamento. Perfeito. Ninguém cancela dizendo que está cancelando. A turba está apenas fazendo “justiça”.
Havia também o anacronismo. Pinker era acusado por alguns tuítes feitos anos atrás (o primeiro deles em 2015), mas tudo curiosamente apresentado como “no exato momento” em que ocorrem as mobilizações antirracistas.
E por fim, a pretensão de verdade. Pinker era acusado de “deturpar” fatos. Na cultura do cancelamento não há a ideia de “divergência”. Ele poderia ter apenas uma outra visão ou simplesmente estar sugerindo a leitura de um artigo no The New York Times. O jogo é: eu sei o que você deveria ter dito e as palavras que você deveria ter usado. E sei porque tem uma multidão do lado de cá que vai fazer você entender isso.
No final não funcionou. A LSA disse que não iria cancelar Pinker e que não era sua missão “controlar a opinião de seus membros”. Pinker se deu bem. Não fosse um cara renomado talvez fosse demitido ou coisa pior, como tantos outros.
Há quem veja nas técnicas de cancelamento uma saudável “supervisão” da sociedade sobre os indivíduos (para que andem na linha, imagino). A tese seria a mesma que sustenta a lógica do derrubamento de estátuas: dado que haja uma multidão (do lado “certo”, obviamente) disposta a jogar alguma coisa no lixo, é justo que ela seja jogada.
O cancelamento não tem a ver com justiça, mas com poder. Em regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente. Pede-se à universidade que o descontrate, à TV que o demita, ao jornal que não o publique e ao evento que o “desconvide”.
Essa lógica virou feijão com arroz no mundo público. Contra ela se formou um grupo de intelectuais que vão de Noam Chomsky a Deirdre McCloskey. Publicaram um documento curto que vai direto ao ponto: “editores são demitidos por publicar artigos controversos; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos temas; professores são investigados por citar obras de literatura em sala de aula”.
No final, sugerem que “precisamos de uma cultura que deixe espaço para experimentação, riscos e até erros”. Não vai rolar, pensei. A lógica do cancelamento é feita exatamente para que você não arrisque. Diga apenas o que pode ser dito. E o erro é uma impossibilidade, dado que há sempre uma “intenção” e algo indesculpavelmente grave em tudo que é dito.
Difícil não perceber como tudo isto é uma reedição da antiga lógica da “patrulha”. Ela apenas ganhou escala. E não é feita pelo Estado ou pela direção do partido, mas pela multidão. A multidão patrulheira. Suas armas são a difamação e a pressão econômica.
Há dois riscos envolvidos nisso tudo. O primeiro é a distração sobre aquilo que realmente importa combater. O segundo é o cultivo da conformidade e do medo na cultura pública. Medo dos temas que não devem ser tratados, dos livros ou dos dados que não se deve citar e das perguntas que não devem ser feitas.
Talvez seja um ponto onde Pinker errou. O teórico que gosta de mostrar, com uma infinidade de dados, que o mundo sempre melhora talvez precise reconhecer que, ao menos em um aspecto —bastante sombrio— estamos piorando.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: O preço do descaso
Os que lutaram pela democracia adotaram políticas fortes de reforma da educação
Minha mãe era professora dos anos iniciais do ensino fundamental —à época chamado primário. Sempre trabalhou em escolas públicas. Sua carreira, que começou nos anos 1930 e terminou três décadas depois, está registrada em fotografias.
Todas se parecem nos arranjos: uma fileira de crianças sentadas, seguida de duas outras de meninas em pé. Minha mãe, no centro ou ao lado do grupo. Nas imagens, as crianças são brancas, sem exceção. Apenas nas duas últimas podem se ver umas poucas cabecinhas negras.
A escola dos tempos de dona Dinah era pública, mas não universal. Deixava de fora um número imenso de pobres e negros. Em 1960, mais de 3/4 da população brasileira tinham até três anos de estudo; só 20% dos jovens dos 12 aos 15 concluíam o quarto ano. Foi nisso que deu o duradouro descaso das elites pela educação do povo.
O ensino fundamental se universalizou somente na última década do século passado. E, embora tivessem diminuído muito, em 2010 ainda persistiam no ensino médio diferenças importantes entre as taxas de escolarização de brancos, de um lado, e de pretos e pardos, de outro.
Fatores estruturais —como a intensa urbanização— influíram naquele resultado positivo. Mas não teriam bastado sem o empenho das forças que lutaram pela democracia e, no governo, adotaram políticas ativas de reforma da educação. Das muitas, três merecem destaque. A primeira, aprovada pelos constituintes, foi a vinculação de receitas dos três níveis de governo com gastos em educação.
A segunda teve dois momentos: um, a criação do Fundef, na gestão do ministro Paulo Renato Souza, no governo Fernando Henrique Cardoso; o outro, a sua transformação no Fundeb, por iniciativa de Fernando Haddad, ministro da Educação de Lula. A terceira política foi a da criação de um sistema de avaliação dos diferentes níveis de ensino por meio de provas aplicadas aos estudantes.
A vinculação constitucional reservou recursos que permitiram a expansão e manutenção dos sistemas públicos de ensino, hoje atendendo a oito em dez estudantes.
O Fundef/Fundeb procurou diminuir as desigualdades regionais, garantindo um gasto mínimo por aluno e reservando uma parte substancial para remunerar professores. Eles não se explicam por algum viés estatista de seus idealizadores, mas pelo realismo de quem conhecia bem nossa experiência de descompromisso com a educação pública. O Brasil paga por ele até hoje, na qualidade —baixíssima— do ensino oferecido a milhões de jovens. A vinculação de receitas e o Fundeb não são, nem de longe, responsáveis por essa tragédia.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Bruno Boghossian: Esvaziado, Bolsonaro ouve lamentos sobre briga de família e política local
Portaria do Alvorada deixa de ser ritual relevante e se transforma em gabinete de vereador
Na entrada do Palácio da Alvorada, pouca gente deu atenção quando Jair Bolsonaro fez propaganda do governo na aprovação de novos recursos para a educação. O presidente tentou assumir o crédito pela proposta do Congresso e criticou o PT, mas seus apoiadores só queriam saber de negócios pessoais e da política municipal.
Os passeios em frente à residência oficial eram um ritual político importante para Bolsonaro, mas a pauta dos últimos encontros sugere que aquela claque enxerga o presidente como um vereador do interior.
Mesmo em isolamento, Bolsonaro manteve o hábito de conversar com o grupo. Nesta quarta (22), uma mulher pediu ajuda para reabrir uma lotérica. O presidente argumentou que já havia editado um decreto que garantia o funcionamento desses estabelecimentos. A apoiadora explicou que o problema era particular, uma disputa com seu ex-marido.
“Me desculpa, mas eu não tenho como resolver isso aí. Eu tenho acesso dentro da Caixa, mas eu não posso encaminhar para eles um caso particular”, reagiu Bolsonaro. “Minha senhora, eu não posso entrar numa pendenga particular.”
A portaria do Alvorada já foi o palanque usado por Bolsonaro para passar recados e atacar desafetos. Agora, os temas se tornaram tão irrelevantes quanto brigas de família, expondo um presidente que encolheu.
Às vezes, os pedidos da claque irritam Bolsonaro. Ele já interrompeu alguns apoiadores, deu respostas ríspidas e se recusou a gravar mensagens de apoio. “Se eu mandar um abraço, todo mundo vai pedir, e eu vou virar o Silvio Santos aqui”, disse, tentando fazer graça, depois de ser abordado por mais um eleitor.
Quando um apoiador pediu ajuda para resolver um impasse no PSL de Miranda (MS), cidade de 28 mil habitantes, o presidente respondeu que não se envolveria na política municipal. “Nós temos problema de desemprego no Brasil, cresceu a violência”, justificou. Faltou perguntar ao vereador do palácio o que ele tem feito para enfrentar esses dois assuntos.
Ricardo Mendonça: O recuo da militância virtual bolsonarista
Alexandre Moraes não se intimidou com os memes e as ameaças
Na manhã de 28 de maio, na porta do Alvorada, um enfurecido Jair Bolsonaro disse a repórteres e a uma pequena plateia de simpatizantes que “ordens absurdas não se cumprem”. O tom da voz foi aumentando. “Não teremos outro dia igual ontem. Chega! Chegamos num limite”, advertiu. Teve até palavrão. “Acabou, p…! […] Acabou! Não dá para admitir mais a atitude de certas pessoas individuais.”
A irritação era em relação a uma operação da Polícia Federal deflagrada na véspera: Buscas e apreensões em endereços de 17 bolsonaristas suspeitos de financiar e disseminar informações falsas pela internet. Não houve prisões naquela ocasião. Entre os alvos estavam os empresários Luciano Hang (Havan) e Edgard Corona (Smart Fit e Bio Ritmo); os blogueiros Allan dos Santos e Bernardo Kuster, donos de perfis muito populares na extrema-direita; e o ex-deputado federal Roberto Jefferson, o chefão do PTB que foi condenado no mensalão e, mais recentemente, ressignificado no bolsonarismo.
O “certas pessoas individuais” da bronca presidencial era o ministro Alexandre de Moraes, do STF, não citado nominalmente. Relator do inquérito que apura produção de “fake news” e ameaças à corte, foi ele que autorizou as buscas do dia 27.
Numa conversa sobre a mesma operação, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi ainda mais explícito que o pai. Falando sobre a hipótese de uma ruptura institucional, disse que não era mais uma questão de saber “se” a cisão iria ocorrer, mas “quando”.
A claque bolsonarista captou os recados e, nos dias seguintes, pareceu bastante à vontade para manter o padrão usual de comportamento nas redes e nas ruas. Muitos debocharam do Supremo. Uma deputada aliada pediu o impeachment de Moraes. Um dos blogueiros alvo chamou o ministro do STF de “moleque” e “criminoso” em novo vídeo. Reunidos semanas depois nos arredores da corte, um grupo atacou a instituição com fogos de artifício.
Algo, porém, mostrou-se muito errado na apoplética advertência de Bolsonaro. Para o bolsonarismo, houve, sim, outro dia como o 27 de maio. E não foi só um. Foram três com as mesmas características.
Em 15 de junho, em nova operação, a PF prendeu a bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, líder de um grupo armado de extrema-direita que fazia um estranho acampamento em Brasília. No dia 16, Moraes atendeu pedido da Procuradoria-Geral da República e determinou a quebra do sigilo bancário de dez deputados bolsonaristas e um senador. São personagens de um segundo inquérito no STF, o que apura organização de atos antidemocráticos. Nesse ato foram mais 21 mandados de busca, alguns contra figuras que já haviam sido visitadas pela PF dias antes. No dia 26 foi a vez da prisão do blogueiro Oswaldo Eustáquio, um dos mais ativos e ousados bolsonaristas da rede.
O fato de ter existido uma segunda rodada de buscas nesse campo, e desta vez com prisões, mostra que: 1) O ministro Alexandre de Moraes não se intimidou com memes, xingamentos, insinuações e ameaças após a primeira operação; e 2) Bolsonaro estava blefando quando afirmou que não haveria outro dia como aquele - ou, mais revelador ainda, não teria obtido respaldo de outras forças para tentar incapacitar o Supremo Tribunal Federal.
Os dias seguintes à segunda leva de buscas foi bem diferente na orbe bolsonarista. À coluna, o pesquisador David Nemer, antropólogo da Universidade da Virginia (EUA) que monitoria 1.874 grupos do WhatsApp de apoio ao presidente, disse ter apurado uma queda de até 30% no fluxo diário de mensagens. “O tom também baixou muito”, notou Pablo Ortellado, professor da USP que estuda o tema. Não surgiram mais notícias de zombaria contra o STF. E o blogueiro que havia chamado Moraes de “moleque” e “criminoso” foi flagrado apagando vídeos antigos de seu canal no YouTube.
“Vários correram para apagar vídeos e tuítes”, afirma a antropóloga Letícia Cesarino, pesquisadora de novas mídias da UFSC. “Foi algo inédito nesse ambiente. Uma queima de arquivos. Estão vendo que não estão mais imunes.”
STF e PF não são as únicas frentes de pressão contra a cibermilitância do presidente. Há duas semanas o Facebook derrubou uma rede de contas e perfis inautênticos que se dedicava a desinformar e a fazer ataques coordenados. As mais de 80 contas e páginas retiradas do Face e do Instagram nem eram as maiores do campo bolsonarista, mas a ação teve impacto político relevante por mostrar que eram ligadas a integrantes do gabinete da Presidência, aos filhos de Bolsonaro e ao PSL.
Outro pedregulho está no Twitter. O recém-criado perfil “Sleeping Giants” Brasil dedica-se a desmonetizar canais, sites e blogs identificados como os mais descarados difusores de notícias falsas.
Em apenas dois meses mobilizou mais de 450 empresas a remover anúncios de alguns dos principais portais de apoio do presidente (calcula-se no meio que os chamados “ads” automatizados chegam a render mais de R$ 20 mil por mês a propagadores de notícias falsas).
Há ainda a CPI das “fake news” no Congresso - pronta para ganhar força conforme diminuem as restrições da pandemia - e um projeto de lei sobre o tema que, embora criticado com argumentos defensáveis, criaria restrições a operários da desinformação.
Não parece exagero dizer que a militância radicalizada das redes seja um dos principais alicerces de sustentação política de Bolsonaro. Os outros são os militares, os evangélicos e, de um tempo para cá, os recém-contratados partidos e congressistas do Centrão.
Na internet, nenhum outro político do Brasil tem ou teve aparato similar a seu dispor. Na comparação com a concorrência, os bolsonaristas da rede sempre ganharam em escala, linguagem, velocidade, motivação e virulência. Como jamais havia ocorrido desde a campanha de 2018, essa militância virtual sofreu abalos. Sob inédita pressão, deu alguns passos para trás.
Irão voltar? É uma questão de “se” ou de “quando”?