Day: julho 22, 2020
Luiz Carlos Azedo: Política do novo normal
"Guedes propôs a unificação de PIS e Cofins, na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%, para aumentar a base de arrecadação do governo em mais de 40%"
Quem acompanha os Três Poderes tem a impressão de que a política está voltando ao normal em plena pandemia. A Operação Lava-Jato aperta o cerco contra o senador José Serra (PSDB-SP), acusado de caixa 2 eleitoral, desmentindo as próprias previsões de que o envio de investigações para a primeira instância e a Justiça eleitoral sepultaria os inquéritos abertos pelas delações premiadas. A Câmara volta a negociar com o governo a aprovação de projetos, ambos foram obrigados a ceder no caso do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Depois de muitas idas e vindas, finalmente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou a primeira de suas quatro propostas de reforma tributária. O presidente Jair Bolsonaro aposta no “milagre da cloroquina” e pretende viajar, ainda nesta semana, para o Piauí, de olho nos eleitores do Nordeste.
No seu melhor estilo, a Lava-Jato fez, ontem, mais uma operação de busca e apreensão contra o tucano José Serra. O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar para suspender as buscas e apreensões determinadas pela primeira instância no gabinete do senador, em Brasília. A operação Paralelo 23, da Polícia Federal, investiga suposto caixa 2 na campanha de José Serra ao Senado em 2014. É uma nova fase da Lava-Jato, que apura crimes eleitorais. Nas residências do parlamentar, a operação foi feita. “Defiro a liminar para suspender a ordem judicial de busca e apreensão proferida em 21 de julho de 2020 pelo Juiz Marcelo Antonio Martin Vargas, da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, nas dependências do Senado Federal, mais especificamente no gabinete do Senador José Serra”, decidiu o presidente do STF. Como o ex-governador Geraldo Alckmin é outro envolvido na Lava-Jato, o desgaste do PSDB em São Paulo é enorme, embora ambos aleguem inocência. Dor de cabeça para o prefeito de São Paulo, o tucano Bruno Covas, que luta contra um câncer e pela reeleição
Fundeb e impostos
Na Câmara, finalmente, saiu um acordo majoritário para aprovar renovação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica. O governo tentou tirar uma fatia dos recursos do fundo e adiar sua implantação para 2022, mas não conseguiu o apoio do Centrão, que agora é o eixo de sua base parlamentar. Teve que negociar. A deputada Dorinha Seabra (DEM-TO), relatora da emenda constitucional, apresentou um novo parecer no qual a participação da União passará de 10% para 23%, em 2026, destinando 5% à educação infantil. O aumento da participação será escalonado: 12% em 2021; 15% em 2022; 17% em 2023; 19% em 2024; 21% em 2025; e 23% em 2026. Propõe, ainda, piso de 70% para o pagamento de salário de profissionais da educação. O governo defendia que esse percentual fosse o limite máximo para pagar a folha de pessoal, mas desistiu. O novo relatório é um “meio-termo”: limite de 85%, garantindo 15% para investimento.
Na reforma tributária, não há consenso. O ministro Guedes propôs a unificação de PIS e Cofins, os dois tributos federais sobre o consumo, para criar uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%, o que corresponde a aproximadamente 29% da base de consumo. Os críticos dizem que isso aumentará a base de arrecadação em mais de 40%. Ou seja, a reforma quer matar a fome do leão e, não, adotar um sistema tributário mais equilibrado e justo. A CBS incidirá sobre a receita de venda de bens e serviço; igrejas, partidos políticos, sindicatos, fundações, entidades representativas de classe, serviços sociais autônomos, instituições de assistência social ficarão isentas. Em 2016, no Brasil, 48% da arrecadação incidiu sobre o consumo, contra 33% na média da OCDE, grupo que reúne as nações mais desenvolvidas do planeta, e 18% nos Estados Unidos. Em 2018, o PIS-Pasep e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) arrecadaram R$ 310 bilhões, de um total de R$ 1,54 trilhão de provenientes de tributos federais.
O Estado de S. Paulo: 'Armar a população é desqualificar as Forças Armadas', diz Jungmann
Ex-ministro critica medidas armamentistas e cobra debate sobre Política de Defesa, que deve ser entregue nesta quarta, 22, ao Congresso
Ricardo Brandt, O Estado de S.Paulo
Ministro da Defesa em 2016, quando o governo federal elaborou a mais recente Política Nacional de Defesa (PND), Raul Jungmann diz que o presidente Jair Bolsonaro promove um contrassenso com sua política armamentista: “Propor o armamento da população é desqualificar o papel das Forças Armadas”.
Ao avaliar a PND que o governo deve entregar nesta quarta-feira, 22, ao Congresso, Jungmann afirma que o poder político tem se esquivado desse debate e lembra que o texto elaborado no governo Michel Temer nunca foi sancionado - o projeto passou dois anos praticamente parado na Câmara e no Senado, foi aprovadas em dezembro de 2018, mas nunca sancionado. “É a demonstração conclusiva e cabal de que o Poder Político se aliena das suas responsabilidades de definir os rumos, ou seja, as políticas para a Defesa e as Forças Armadas.”
Além da PND, o governo deve entregar nesta quarta-feira a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa, que traçam diretrizes para a Defesa e o papel das Forças Armadas. Por lei, tem que ser revisados a cada quatro anos.
No documento, o governo Bolsonaro aponta que a América do Sul não é mais considerada “área livre” de conflitos, como revelou o Estadão, no dia 16.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Qual a importância da Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa?
Dentre as decisões mais cruciais e de mais alto nível que cabem ao poder político de uma nação está definir a sua estratégia de defesa e o papel das Forças Armadas nessa política, que está sendo enviada agora. O grande problema é que o Congresso se aliena dessa responsabilidade, porque não tem dado a atenção, não tem debatido, não tem dialogado com os militares e trazido a sociedade para essa discussão que é vital para a soberania e para a sobrevivência de uma nação e do próprio Brasil. A expectativa é de que essa alienação seja revertida. Estive com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, conversando para que tenhamos um envolvimento do Congresso diferenciado.
O que o senhor destaca da atual PND?
Em política de Estado não se pode dar cavalo de pau. Aproximadamente 90% do que ali está é continuidade e manutenção do plano em curso, áreas estratégicas, os eixos, os objetivos nacionais de Defesa, as ações estratégicas que são mais de 100, elas têm mudanças, mas têm muito mais continuidade. O que chamou atenção foi exatamente a percepção de maior tensão na América do Sul. É verdade que o Brasil não se envolve há mais de um século e meio em conflitos interestatais. Temos que ter Forças Armadas preparadas, balanceadas e modernizadas.
O governo tem criado cargos exclusivos para militares no Executivo, tem elevado valores de adicionais pagos a militares. Isso é um problema, necessidade ou só política de governo?
Militares sofreram durante muito tempo defasagem salarial. A necessidade de recomposição salarial dos militares era reconhecida, era algo de direito. Precisamos olhar o momento fiscal e econômico do País, tem a questão da pandemia. Então talvez não seja o momento mais adequado, mas é preciso observar os direitos e as condições.
Como o senhor vê a política armamentista do governo?
Infelizmente, recentemente, a divisão de produtos controlados emitiu três portarias fundamentais para o rastreamento de armas, para o controle de armas, para elucidação de crimes e de combate ao contrabando de armas a facções criminosas que foram derrubadas. Isso é um caso clássico, como também se propor o armamento para a população. Ora, qualquer Estado para se constituir tem que ter o monopólio da violência. Da violência legal. E esse monopólio vem exatamente das Forças Armadas. Então propor o armamento da população é desqualificar o papel das nossas Forças Armadas, em relação ao pilar da capacidade posta de defesa da soberania.
O senhor é contra dar armas à população?
O governo tem que prestar mais atenção às questões de segurança pública, o que não se confunde de modo algum, com flexibilização na posse e porte de armas. Isso não é política pública. Muito pelo contrário. Essa é uma política contra a vida. Uma política séria é dar armas a quem precisa e tem habilidades, com o controle, que tem que ser feito e ao mesmo tempo desenvolver um sistema único de segurança pública, que envolva, por exemplo, o Ministério Público, a Justiça, policiais civis, militares, os guardas, as Forças Armadas, estados, municípios, em um esforço coordenado. Porque o crime se nacionalizou e transnacionalizou. Como podem os estados aguentar isso sozinhos? Não tem como.
A falta de recursos e o contingenciamento de verbas são um problema para a Defesa. O governo Bolsonaro muda esse cenário?
O presidente Bolsonaro, do qual fui contemporâneo na Câmara, era o que podemos chamar de parlamentar de nicho. Ele tinha dois nichos: defesa da corporação policial e defesa dos militares. Quando ele chega ao governo, ele não pode preencher o governo a partir do nicho policial, porque eles têm uma formação voltada para o espaço territorial do Estado. Já os militares têm uma formação e preparo nacional. Eles têm conhecimento prático e acadêmico do País. A convivência e o fato de o presidente ser militar e ter certos valores e conceitos trazem para dentro do governo uma quantidade expressiva de militares. Se isso pode ser um problema, a pergunta é, por que o poder político não regulamentou isso? Outra questão em que há uma crítica, e essa eu endosso, é ter militares na ativa em grande quantidade. Chegamos a ter quatro generais oficiais dentro do governo. Aí a possibilidade do problema com a forte presença militar é criar uma correia de transmissão nos quartéis. Mas essa correia de transmissão não aconteceu. As Forças Armadas continuam impecavelmente adstritas aos seus papéis constitucionais. Mas não se pode negar que os quartéis, os militares, estão na política. Acredito que isso não é bom para as Forças Armadas.
O problema de facções criminosas, de milícias, é de Defesa?
Fiquei 22 meses à frente do Ministério da Defesa e tive 11 GLOs (Garantia da Lei e da Orde), 80% delas relativas a crises de segurança. A de maior gravidade foi a que aconteceu no Espírito Santo. Ali foram amotinados que se fecharam dentro dos quartéis armados e estivemos muito próximos de uma situação que eu diria crítica. As Forças Armadas têm essas funções subsidiárias, como as de garantia da lei e da ordem, seja ela em questões de segurança, ou desastres ambientais. Temos um problema crônico que precisa ser enfrentado. Segurança Pública desde a época das províncias até os tempos atuais é responsabilidade dos Estados. Se você não tem responsabilidade constitucional do governo central, também não tem uma política nacional de Segurança Pública. Outro problema é o sistema prisional do Brasil. Uma superpopulação insustentável de se manter, que é controlado por 77 facções criminosas. O sistema não dá condições, é disfuncional. Precisa de reforma para o sistema prisional. Precisa de reforma da política de drogas, mas a sociedade não se interessa por isso. O interesse dela, e com razão por estar vulnerável, apavorada, é com a repressão. Como se mais carro, mais polícia, mais bala, resolvessem o problema. Repressão, aumento de pena, não tem como. Não é por aí.
O fato de ter militares no governo significa que as Forças Armadas estão com Bolsonaro?
É só o uso político e simbólico das Forças Armadas. Elas não estão com Bolsonaro, assim como não estavam com Lula, nem com Dilma, nem com Fernando Henrique, nem com o Itamar. As Forças Armadas estão com a Constituição. E o problema é que, como tem um grande número de militares (no governo), a fala deles é tomada como (se fosse) da instituição. Mas não é. O presidente nunca contou e tenho certeza de que nunca contará com as Forças Armadas para a hipótese dele, ou outro, buscar um atalho autoritário.
Luiz Werneck Vianna: A muralha e a sua porta
Aparentemente a atual conjuntura experimenta um tempo homogêneo e vazio em que se reitera o já vivido, como se a sociedade estivesse condenada a movimentos de repetição de suas experiências passadas sem lhe conceder a faculdade de descobrir suas alternativas de futuro. A aceitar esses termos viver-se-ia agora, no Brasil, nas mesmas condições dos idos de 1964 a 85, restando a nós reiterar as práticas bem-sucedidas naquele período. Mas, de fato, nosso tempo nem é homogêneo e nem vazio, pois forças surgidas das entranhas da sociedade capitalista contemporânea brasileira trazem consigo a heterogeneidade e fazem emergir novos sentidos na vida social, alargando a porta estreita de que falava Walter Benjamin pela qual podem entrar as forças da transformação.
Com efeito, se em boa parte novos processos benfazejos que transcorrem no mundo devem sua aparição à ação do domínio dos fatos como protagonista, outra parte se deve ao plano da consciência do ator que se anima e se inova ao vislumbrar as novas possibilidades que percebe na porta entreaberta que tem diante si. De fato, a intervenção sem freios que a expansão do capitalismo expôs o mundo, desencadeando exponencialmente suas forças produtivas, vem precipitando processos disfuncionais que põe sob ameaça sua própria reprodução, entre os quais os riscos ambientais, como a atual pandemia, que, se não controlados, podem, no pior dos cenários varrer do planeta a nossa espécie ou degradar a herança cultural que ela acumulou em sua jornada de séculos.
A onda neoliberal que tomou conta do mundo a partir dos anos 1970, em sua versão de um capitalismo vitoriano, deixou em sua esteira, como o demonstra incansavelmente o economista Thomas Piketty, um lastro de desigualdades que corrói por dentro a legitimidade do seu modo de produção. Ao lado disso, o legado do colonialismo com que o capitalismo iniciou sua trajetória de triunfos deu como um dos seus frutos amargos a questão do racismo, primeiro pela importação massiva, sob o estatuto da escravidão, de africanos com que se supriu as plantations de mão de obra com que as Américas realizaram sua inserção no mundo do capitalismo, e bem mais tarde, aí já em cenário europeu, com as migrações originárias das antigas colônias, também em grande escala, em busca de oportunidades de vida em sociedades carentes de força de trabalho barata em serviços subalternos.
A entrada em cena do racismo, em especial nos contextos europeus e americanos, como que vieram a sobredeterminar as desigualdades sociais, instalando um sentimento generalizado de que a injustiça se naturalizou na vida social, sentimento particularmente experimentado pelos jovens que se deparam com sociedades adversas à sua participação. O movimento catártico dos jovens em grande número de países, massivo no caso americano, em reação ao bárbaro assassinato de um negro por motivo banal pelas forças policiais, trouxe à luz a existência de uma ainda embrionária sociedade civil mundial e de novos personagens políticos prontos a entrarem em ação.
A atual pandemia que nos assola, por sua vez, acentua o quadro de fim de época que se insinua neste tempo que parece nos ensinar a abandonar as concepções de mundo do utilitarismo que o capitalismo nos impôs para buscar novos caminhos, alguns deles já conhecidos pela longa história humana como os que investiram nos ideais da igual-liberdade, para usar uma forte expressão de E. Balibar.
A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal.
Se Bolsonaro é prisioneiro dos idos do AI 5, a oposição democrática a isso que aí está, não deve ficar retida na sua história de sucessos nos anos 1980, embora deva estar atenta às suas lições. A trama é nova e novos são os personagens, muito particularmente aqueles que surgiram com a auto-organização da vida popular em suas lutas pela vida em meio à catástrofe da pandemia, eles e os seus intelectuais que ganharam estofo nessas lutas, e junto a eles os movimentos de cientistas, de universitários e de intelectuais que a eles se associaram. A política democrática não poderá perdê-los de vista, assim como abrir generosos espaços a esses emergentes setores da esquerda, que, embora ainda imaturos em alguns casos, trazem consigo seiva nova a ser valorizada.
As eleições municipais – eleições, na nossa experiência, consistem em uma forma superior de luta – estão batendo em nossas portas, e aí estará o momento, especialmente se a malfadada pandemia arrefecer para recuperarmos os espaços que fomos coagidos a abandonar. Nessa hora de retomada cumpre alargar, de forma tal que empalideça todas nossas experiências anteriores, uma frente democrática que invista com energia contra as muralhas reacionárias que os desavindos com a nossa história e melhores tradições ergueram para a proteção dos seus privilégios e de suas crenças malévolas.