Day: julho 17, 2020
Cristian Klein: Irritação dos militares é com o fracasso
Alvo é Gilmar Mendes, mas raiva da caserna é ver frustrado plano de mostrar independência em relação a Bolsonaro
Orientador de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas por militares, o professor da UFRJ e da UFRRJ Francisco Teixeira costuma travar conversas semanais com um grupo de 11 ex-alunos - seis generais, um almirante e quatro coronéis, da ativa e da reserva.
Na mais nova polêmica, o Ministério da Defesa, como se sabe, protocolou uma representação na Procuradoria-Geral da República contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que havia associado a atuação dos militares no Ministério da Saúde a um “genocídio”, devido às mortes na pandemia do novo coronavírus.
A fala ocorreu no fim de semana, mas ainda não foi digerida pelos oficiais. “Eles estão muito irritados por causa da palavrinha forte, genocídio, mas o gozado é que reconhecem que o negócio está errado”, conta Teixeira, que já lecionou na Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).
O “negócio”, em primeiro lugar, é a presença do general da ativa Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Especialista em logística, Pazuello deveria exercer uma interinidade, desde a saída do empresário e oncologista Nelson Teich, que durou 28 dias no cargo.
Há 62 dias na função, Pazuello está mais que o dobro do tempo que Teich. Nesse período, o número de mortos pela covid-19 no país saltou de 15 mil para mais de 75 mil.
O segundo erro que os militares reconhecem, afirma Teixeira, seria o profundo desmonte promovido no ministério por alguém que, no máximo, deveria estar de passagem. Pazuello desalojou quadros técnicos e instalou pelo menos 25 colegas de farda no primeiro escalão da Pasta, a maioria sem experiência na área, assim como ele próprio. Em alguns casos, diz, as substituições do general até optaram por médicos, mas sem qualquer notório saber em controle de pandemias.
A irritação dos militares, porém, seria menos com a acusação de Gilmar Mendes ou com Bolsonaro, já que o presidente não só não interveio de maneira firme a favor da caserna como sugeriu ao ministro da Saúde que conversasse com o magistrado. A exasperação seria de outra ordem, interna, como se a ficha tivesse caído. “O ponto principal é que as Forças Armadas, definitivamente, amarraram-se ao Bolsonaro e é isso, no fundo, a irritação delas. Não estão irritados com Gilmar, com Bolsonaro ou com o genocídio. Estão irritados com o fracasso da operação de relações públicas de se mostrarem como uma instituição independente. É isso que eles estão percebendo com o chute no balde dado pelo Gilmar: que fracassaram, sobretudo o Exército”, analisa Teixeira.
Para o historiador, os militares tentam tapar o sol com a peneira ao defenderem os 25 da Saúde, quando se sabe que há mais de 3 mil integrantes das Forças Armadas espalhados por todo o governo federal. Em sua opinião não vai adiantar tirar esse pequeno grupo - informação que começou a circular nos bastidores do ministério - e nem a saída de Pazuello, como antecipada pelo vice-presidente Hamilton Mourão. “Esperar agosto não vai mudar em nada. A única coisa que mudaria o carimbo de Bolsonaro que eles receberam seria tirar os militares que estão dentro do Palácio do Planalto. E isso eles não vão fazer. Estão umbilicalmente ligados ao destino do Bolsonaro”, diz, em referência aos três ministros/generais palacianos.
Antes mesmo do fracasso de relações públicas para se diferenciar do governo, a irritação dos militares é composta por outra derrota: a de domesticar o presidente da República. “Eles não podem fazer as duas coisas: tentar tutelar o Bolsonaro e, ao mesmo tempo, se separarem dele. E o Gilmar, inocentemente, ou como as pessoas querem, conspirativamente, evidenciou essa equação que não fecha. Ou são governo ou são independentes”, afirma.
O ministro do Supremo, segundo o professor, ainda que por meio de um arroubo de retórica, proposital ou não, durante uma transmissão ao vivo pela internet, “acertou o tiro” e “a vítima é o Pazuello”. “Porque, agora, já se estabeleceu o prazo. Eles não podem exonerá-lo amanhã de manhã, porque seria um escândalo, seria a aceitação de que, de fato, está havendo um genocídio, mas já disseram que em agosto ele vai sair. Encaçaparam a bola”, afirma.
A fala de Gilmar tende a fortalecer o grupo das Forças Armadas que é refratário à presença de militares da ativa no governo Bolsonaro e que defende a passagem para a reserva, caso queiram permanecer com o presidente. O problema, pondera Teixeira, é que para a opinião pública não “faz a menor diferença se o militar está na reserva ou na ativa”.
Também especialista de longa data em militarismo, o ex-deputado federal e professor aposentado da UFF e da UFCE, Manuel Domingos, destaca o suposto papel contraditório do comandante do Exército, Edson Pujol. O general tem sido considerado o expoente da ala que prefere manter Bolsonaro à meia distância, mas não estaria evitando a militarização do governo, até por falta de maior pressão popular. “Ele vive um dilema muito profundo entre segurar e proteger o governo Bolsonaro ou a corporação, porque o Exército é abalado em seus alicerces. É uma enrascada”.
Segundo Domingos, a Marinha está “particularmente incomodada”, já que a conta da pandemia está chegando às Forças Armadas e a “face mais visível da mortandade e do descalabro da economia será a do militar”. “O Brasil será o campeão mundial desse campeonato macabro. Está na hora de os militares tirarem o time de campo”, defende.
O problema, reconhece, é a falta de unidade na cúpula militar, no que concorda Teixeira. “Isso é o mais improvável. Porque o Alto Comando teria que desautorizar todo esse grupo representado pelo Ramos, Heleno, Braga Netto e Mourão. Aí haveria um racha, um terremoto. É por isso que eles fazem o contrário: tomam a crítica a um deles, como foi a Pazuello, como ofensa às Forças Armadas e acham que os cargos são prebendas”.
Merval Pereira: Vivandeiras
Bolsonaro foi enquadrado dentro das limitações constitucionais que ele rejeita, mas às quais teve que se submeter
A oficialização da ida para a reserva do General de Exército Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, publicada ontem, deixou o ministro interino da Saúde General de Divisão Eduardo Pazuello como único oficial-general da ativa no primeiro escalão do governo Bolsonaro. A crise, que já está sendo superada, devido à crítica contundente do ministro do STF Gilmar Mendes à ação do ministério da Saúde durante a pandemia, acabou envolvendo o Exército como instituição.
A saída de Ramos coloca mais pressão no debate sobre a presença de militares no governo, ainda mais porque Pazuello, como oficial de intendência já chegou ao topo de sua carreira militar, e não tem razão, a não ser as de coração, para continuar na ativa.
Pazuello só pode chegar a 3 estrelas, saindo ou ficando no ministério, porque ele é um general de intendência. Somente os oficiais de uma classificação chamada "armas combatentes" podem chegar a General de Exército, são de 4 estrelas. Ao todo são 16 Generais de Exército que formam o Alto Comando, chefiado pelo Comandante de Exército.
Pazuello formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras como Oficial de Intendência, e tem assumido postos importantes, ligados à sua especialidade, a logística. O general coordenou as tropas do Exército nas Olimpíadas do Rio em 2016 e a Operação Acolhida, que cuida de refugiados da Venezuela em Roraima, onde já havia sido Secretário de Fazenda no período em que houve uma intervenção militar no Estado.
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, na entrevista que deu ao J10 da Globonews, deixou bem claras as diversas etapas de preparação dos oficiais do Exército, lembrando que o presidente Bolsonaro ficou menos tempo no Exército do que está na política, fazendo as etapas de preparação física, sem chegar à preparação cultural dos oficiais.
Essas diferenças de preparação e dedicação características da carreira militar é que causam desconforto por um militar da ativa estar atuando num posto civil, que tem uma carga política irrecorrível. O General Pazuello, por exemplo, é classificado como “político” na Wikipedia, e o General Mourão lembrou que só no Governo Castello Branco, ficou definida essa separação entre a atividade militar e a civil, justamente para não permitir a mistura da política dentro dos quartéis.
Castello Branco falava dos políticos que andavam atrás dos militares: “Como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”. O presidente Bolsonaro, considerado pelo General Geisel “mau soldado” devido às atividades de caráter sindicalista que exercia quando estava na ativa, tendo sido acusado por uma tentativa de ação terrorista para reivindicar aumento salarial, agiu como “vivandeira” durante este primeiro ano e meio de governo, chegando a ir às portas do Quartel-General do Exército em Brasília para participar de uma manifestação que pedia a intervenção militar no país.
Foi baseado nesse pretenso apoio dos militares que Bolsonaro berrou literalmente diante das câmeras um “basta” ao Supremo Tribunal Federal (STF) que parecia um ultimato. As manifestações a favor da intervenção militar usavam uma interpretação do artigo 42 da Constituição brasileira para legitimar suas reivindicações, e foi preciso manifestação do STF para deixar claro que qualquer intervenção desse tipo seria um golpe militar, não apoiado pela Constituição.
Ninguém mudou de voto ou posição por causa desse arreganho presidencial, e as instituições democráticas foram dando conta de acalma-lo. À medida que os fatos se sucediam e as ameaças de Bolsonaro se esvaziavam diante da realidade de que as instituições republicanas bloqueavam tentativas golpistas, o presidente Bolsonaro foi enquadrado dentro das limitações constitucionais que ele rejeita, mas às quais teve que se submeter.
Inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior de Justiça (TSE) mostraram na prática que ninguém está acima das leis, e as investigações sobre a “rachadinha” do hoje senador Flavio Bolsonaro resistiram às tentativas de interferência na Polícia Federal e seguem seu curso, com disputas judiciais que, embora sujeitas a interferências políticas, são acompanhadas pela opinião pública e denunciadas quando surgem indícios de desvios.
Webinar discute mulher, território e desenvolvimento humano
Participam do evento online Maria Amélia Enríquez, Jane Monteiro Neves e Maria Ivonete Coutinho da Silva; mediação é do jornalista e analista político Luiz Carlos Azedo
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A mulher, o território municipal e as novas relações de desenvolvimento humano é tema de webinar que será realizado, nesta sexta-feira (17), das 10h às 11h30, pela Associação de Mulheres Eneida de Moraes, com apoio da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. O evento terá transmissão ao vivo e aberta ao público em geral no site e na página da FAP no Facebook.
Assista ao vivo!
Veja, abaixo, a lista de palestrantes:
Maria Amélia Enríquez, economista, Phd em Desenvolvimento Sustentável e professora da UFPA (Universidade Federal do Pará);
Jane Monteiro Neves, mestre em Saúde Coletiva, militante do SUS e professora da Uepa (Universidade do Estado do Pará);
Maria Ivonete Coutinho da Silva, doutora em Ciências Sociais e professora adjunta da UFPA;
Luiz Carlos Azedo, jornalista, analista político, diretor-geral da FAP e mediador.
De acordo com o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o conceito de desenvolvimento humano nasceu como um processo de ampliação das escolhas das pessoas para que elas tenham capacidades e oportunidades para serem aquilo que desejam ser. Diferentemente da perspectiva do crescimento econômico, que vê o bem-estar de uma sociedade apenas pelos recursos ou pela renda que ela pode gerar, a abordagem de desenvolvimento humano procura olhar diretamente para as pessoas, suas oportunidades e capacidades.
Especialistas avaliam que a renda é importante, mas como um dos meios do desenvolvimento e não como seu fim. “É uma mudança de perspectiva: com o desenvolvimento humano, o foco é transferido do crescimento econômico, ou da renda, para o ser humano”, explica o Pnud.
O conceito de desenvolvimento humano, conforme divulgado pelo programa, também parte do pressuposto de que para aferir o avanço na qualidade de vida de uma população é preciso ir além do viés puramente econômico e considerar outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana.
Esse conceito é a base do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e do RHD (Relatório de Desenvolvimento Humano), publicados anualmente pelo PNUD.
Veja também:
Webinar do Igualdade 23 e FAP analisa desafios da cultura afro-brasileira
Cristovam Buarque: Um antipanteão
Ao ler recente coluna do escritor José Paulo Cavalcanti Filho, na revista Será?, de Pernambuco, lembrei que toda nação requer um Panteão, onde lembrar personagens e heróis que fizeram o passado e formaram o presente. Estátuas são parte desses panteões. Mas, de vez em quando, descobrem-se pecados dos heróis e aparecem movimentos para
lhes retirar o nome e a estátua do Panteão. Nas últimas semanas, surgiram movimentos contra personagens que deram contribuições positivas ao mundo, mas patrocinaram escravidão e racismo.
José Paulo alerta para os riscos desses gestos bem-intencionados: ao derrubar estátuas de escravocratas, derruba-se parte da história da escravidão. Melhor do que pôr ao chão estátuas seria escrever os crimes no pedestal - escravocrata, torturador, explorador, colonialista - transformando homenagens em denúncias, sem apagar a história. Com isso, não se presta a homenagem do esquecimento a um escravocrata fundador de uma universidade, por exemplo.
Ao derrubar a estátua, os alunos se esqueceriam da origem do dinheiro que serviu para construir o prédio onde assistem às aulas, a biblioteca onde estudam, os laboratórios onde pesquisam. Todas as grandes e tradicionais universidades americanas foram fundadas por donos ou traficantes de escravos. Recentemente, elas assumiram os pecados.
Se criarmos estátuas apenas de personagens perfeitos, raros papas estariam ainda firmes em pedestais, raros filósofos resistiriam ao escrutínio de hoje, provavelmente nenhum general ou político. Porque o valor das lembranças é medido pelo que pensam as gerações no presente. Além disso, as estátuas não são apenas história e homenagem, são também obras de arte, e com valor e transcendência estética que merecem respeito, independentemente do que representam.
A estátua em pedestal é para homenagear e formar sentimento coletivo de nação. Para tanto, é preciso combinar memória e explicação plena da biografia do homenageado. Sem esquecer que foram escravocratas, mas lembrando que a sociedade do passado tolerava essa maldade.
No Brasil, ainda não fizemos a autocrítica. Até o final do século 19, quase todos
os que não eram escravos tinham escravos. Diz-se que alguns ex-escravos livres no Quilombo dos Palmares tinham cativos. Até então, prédios de faculdades eram construídos por escravos. Até hoje, são erguidos por operários com mínimos salários, e raros de seus filhos estudarão nelas. Algum brasileiro de hoje mereceria uma estátua, no futuro, quando forem lembrados os privilégios usufruídos por ele, diante das relações sociais perversas ao redor, graças à concentração de renda?
Quando cheguei ao Senado, minha sala ficava na Ala Senador Felinto Muller, lembrado por ter sido chefe da tortura nos tempos do primeiro governo Vargas. Eu não podia mudar o nome oficial, mas nos meus cartões colocava Ala da Biblioteca do Senado. Fui favorável a mudar o nome da Ponte Costa e Silva para Honestino Guimarães. A luta do estudante pela liberdade e igualdade tinha valor mais sintonizado com o futuro desejado do que a obra autoritária do general.
O casamento da lembrança histórica com os valores morais do presente fizeram Ruy Barbosa cometer crime contra a história ao queimar documentos da escravidão, apagando nome de escravos e seus donos com o propósito de expor a “virtude a favor do futuro”, impedindo que descendentes dos donos pedissem indenização ao Estado brasileiro.
Verdade, história e estética devem ser a base para justificar a permanência da homenagem e seu papel pedagógico. Formar a memória completa dos povos com os erros e acertos de seus heróis. No lugar de derrubar estátuas, melhor criar uma ala para manter o nome e a cara dos escravocratas, dos racistas, dos colonialistas. Nessa ala, os visitantes poderiam vaiar e cuspir nos malditos.
Teríamos dois panteões, uma ala para os bons e outra para os maus. Espécie de Divina Comédia da História, teríamos duas alas: a dos heróis e a dos malditos. Dependeríamos do humor de Deus na história que, de tempos em tempos, mandaria mudar o endereço da estátua - embora tenhamos o direito de desejar que racistas e escravocratas enferrujem no antipanteão.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
Luiz Carlos Azedo: Como um romance noir
“As delações premiadas da Odebrecht vincularam até as doações legais da empresa às campanhas eleitorais ao seu gigantesco esquema de desvio de recursos públicos”
Mestre do romance policial, o professor Luiz Alfredo Garcia-Roza — que durante 40 anos lecionou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) —, somente aos 60 anos resolveu recorrer aos seus conhecimentos de psicologia, filosofia e psicanálise para se tornar escritor. Dedicou-se à literatura noir. Faleceu em abril passado, aos 84 anos, mas nos legou 12 romances — entre os quais O silêncio da Chuva e Uma janela em Copacabana —, e um grande personagem, o detetive Espinosa.
Amigo do falecido escritor Rubem Fonseca, de quem era grande admirador, ao lado escritor norte-americano Edgar Allan Poe, numa entrevista ao jornalista Alberto Dines, Garcia-Roza resumiu seu estilo: “O assassinato puro e simples dá a chave daquilo que vai constituir o fundamental da literatura policial. (…) acabo me colocando frente esta morte no lugar que não me caberia como escritor, que é o do investigador, que pode ser policial ou não”. O embaixador André Amado, estudioso da sua obra, no recém publicado A História de Detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza, um belíssimo ensaio sobre literatura policial, destaca o método lógico-dedutivo do detetive Espinosa como fio condutor de uma obra literária que não fica nada a dever aos grandes escritores do gênero.
Espinosa é um personagem excêntrico, um delegado meio filósofo, em conflito com a profissão. Na sua última obra, vive um jogo de gato e rato com um cafetão, sua nova prostituta e um policial corrupto, entre outros seres do submundo da Lapa, o tradicional bairro boêmio do Rio de Janeiro. O delegado Espinosa entra no caso quando começam a surgir mulheres mortas com requintes de crueldade. Precisa descobrir quem é o assassino antes que ele faça sua nova vítima. Obviamente, o personagem se inspira, também, em Baruch Spinoza (ou Benedito Espinoza),o filósofo holandês descendente de judeus expulsos de Portugal pela Inquisição, que foi excomungado pela comunidade judaica de Amsterdã, da qual fazia parte, por causa de suas ideias racionalistas.
Não faltam personagens na Operação Lava-Jato que se inspiram em heróis noir, como Espinosa, para desempenhar suas funções. A grande diferença para os bons romances policiais é que não existe nenhum caso de assassinato puro e simples até agora, apesar do grande número de delações premiadas, que muitos condenados veem como grande traição. Por exemplo, nos casos das investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, e do escândalo das rachadinhas, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual estão envolvidos o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, o capitão Adriano Nóbrega, suspeito de ser o mandante do crime, que estava foragido, morreu em confrontos com a polícia na Bahia.
Tucanos
Mesmo assim, a Lava-Jato produz histórias policiais em série, com a generosidade de um Georges Simenon, o criador do Comissário Maigret, protagonista de 78 novelas e 28 contos, escritos entre 1931 e 1972. A nova novela da operação foi lançada ontem, como a denúncia apresentada pela Polícia Federal contra ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB), indiciado por suspeita de três crimes: lavagem de dinheiro, caixa dois eleitoral e corrupção passiva. O inquérito investiga, no âmbito da Justiça Eleitoral, as doações da empreiteira Odebrecht. Em depoimento aos procuradores da Lava-Jato na época da investigação, Carlos Armando Paschoal, então diretor da empreiteira em São Paulo, disse ter repassado mais de R$ 10 milhões, via caixa dois, às campanhas de Alckmin. O ex-tesoureiro do PSDB Marcos Monteiro e o advogado Sebastião Eduardo Alves de Castro também foram indiciados. Alckmin foi governador de São Paulo entre 2001 e 2006 e de 2011 a 2018.
No início deste mês, a força-tarefa da Operação Lava Jato em São Paulo também denunciou o senador José Serra (PSDB) e sua filha, Verônica Allende Serra, por lavagem de dinheiro. Quem acreditava que a Operação Lava-Jato estava morta, pode pôr as barbas de molho. As delações premiadas de Emílio e Marcelo Odebrecht, assim como de todos os executivos da empresa envolvidos com as chamadas “operações estruturadas”, vincularam até as doações legais da empresa ao gigantesco esquema de desvio de recursos de obras e serviços públicos da empreiteira, que mantinha um caixa 2 para financiar campanhas eleitorais, investigado a partir de uma planilha apreendida em poder de uma das secretarias do grupo. Os casos considerados caixa dois eleitoral foram remetidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à Justiça Eleitoral, que tem no atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Barroso, um dos principais defensores da Lava-Jato.
Elena Landau: Rios de tinta
Separei as melhores piores frases de Guedes ditas desde o início da pandemia
Meu querido mestre Sergio Bermudes conseguiu vencer o covid-19 depois de meses de muita luta. Grande notícia. Resolvi estudar Direito depois dos 40. Teria cinco anos de curso pela frente e estava impaciente para aprender. Pedi uma lista de leitura a um jovem professor. Com ar blasé ele respondeu: “melhor esperar”. Tudo tem seu tempo. Quase desisti do curso ali.
Um amigo me sugeriu conversar com Bermudes. Eu só o conhecia de nome por conta de uma vitória emblemática durante a ditadura. Muito jovem, foi o autor da petição inicial do caso Vladimir Herzog. Propôs uma ação civil pedindo que o Judiciário reconhecesse a responsabilidade do Estado pela morte do jornalista. Pela primeira vez, o Estado reconhecia que o Estado usava a tortura como instrumento.
Tomei coragem e pedi uma reunião, sem muitas esperanças. Me recebeu em sua casa para um delicioso almoço, em todos os sentidos.
Após quatro horas, saí de lá não só com uma lista de livros, mas com o convite para usar sua famosa biblioteca no escritório.
No antigo prédio da Marechal Câmara não havia espaço para me acomodar, nem mesmo uma mesa disponível. Sergio cedeu o sofá de sua sala e, na sua ausência, sua própria mesa. Isso foi em abril de 2002. Nesses 18 anos, fui estagiária, consultora para assuntos econômicos, sócia, e, acima de tudo, ele foi meu confidente, amigo e parceiro de dança.
Ouvindo suas teses nas discussões de casos com meus colegas aprendi muito mais que nos cinco anos de faculdade. Nos almoços, na disputada mesa da copa, as histórias, as piadas e a poesia são a sua marca, nada de trabalho. Me lembro dele declamando A Carolina, de Machado de Assis, em uma de nossas reuniões. Foi o primeiro de vários poemas e sonetos por ele recitados. Tem uma memória melhor do que elefante.
Nestes três meses que esteve lutando pela vida, Sergio não presenciou o criminoso tratamento deste governo com os infectados pelo vírus. Não ouviu o presidente debochar da gravidade da epidemia. Perdeu a demissão de dois ministros da Saúde e a entrega do cargo, de forma interina, a mais um dos militares, entre os 3 mil, que compõem este governo. Quando voltar a ler seu jornal diário vai ver que o número de mortos consegue lotar um Maracanã. Vai ficar surpreso com o fato que ainda não temos um ministro da Saúde e que as estatísticas confiáveis agora são aquelas divulgadas pelo pool de veículos da imprensa. Já imagino ele me perguntando: “o piloto sumiu?” Sumiu, está alimentando emas no palácio.
Sergio adora comentar as notícias do dia. Nos almoços, sempre vem com as inevitáveis perguntas sobre futebol, especialmente quando o Botafogo perde, e a economia do país: “e o dólar?” “Essa privatização da Eletrobrás sai mesmo?” E, em uma piada interna, vai perguntar o que estou achando do Pacheco, o personagem do Eça de Queiroz que é usado entre nós para identificar uns economistas que se acham.
Fui resgatar as frases de Guedes ditas desde o início da pandemia para contar a ele as peripécias de um Pacheco. Comecei com a “com 3,4 ou 5 bilhões a gente aniquila o vírus e os “40 milhões de testes semanais que o amigo inglês garantiu que vão chegar na semana que vem”, junto com a reforma tributária.
Nessa pesquisa das melhores piores frases de Guedes, encontrei uma dita ainda no início da campanha:
“Bolsonaro reconheceu que não entendia nada de economia (…) Queria um cara que estivesse ‘na lua’ e eu, por acaso, estava na lua”. Profética.
Sergio é o avesso da superficialidade. Mesmo sendo o grande processualista que é, e sabendo os Códigos de cor, continua, a cada caso, a buscar na lei a confirmação da estratégia escolhida para atender ao cliente. Filólogo, tem o Houaiss ao alcance da mão. Participar dos seus ditados para uma petição é um privilégio. Das teses jurídicas ao correto significado de cada palavra, tudo se aprende.
As peças do escritório tem sua marca pessoal. Usa títulos que levam o leitor direto à tese usada para explicar o mérito do pedido.
Nada de receita de livro-texto, como “Das Preliminares” ou “Do Pedido”. Os estagiários do escritório sofrem nas mãos de professores caretas. Eu quase fui reprovada por usar na prova seu estilo.
Sergio não gosta de petições longas e uma de suas expressões que mais me diverte é “Dispensem-se rios de tinta para demonstrar a nitidez da situação”. Descrever de forma concisa uma questão complexa é difícil, mas torna temas áridos em leitura acessível. Não vê necessidade de mostrar sua erudição mesmo tendo lido centenas de livros, no original.
Para escrever tudo que Sergio contribuiu para o Direito no país, e, especialmente, para minha vida, teria que gastar um rio Amazonas.
*Economista e advogada