Day: julho 1, 2020
Cristiano Romero: Uma economia marcada pela concentração
Modelo que faliu em 1982 nos legou vários oligopólios
Quando um cidadão vai a um banco solicitar empréstimo para comprar um apartamento ou uma casa, fica sabendo que, entre outras taxas, ele tem que pagar R$ 3 mil para a “avaliação” do imóvel. Sob qualquer escrutínio, é um valor salgado. Muitos ou a maioria dos clientes nem sequer tomam conhecimento da cobrança, não porque a considerem módica, mas simplesmente por não saberem de sua existência.
Incomodado com essa situação, um brasileiro do Banco Central (BC) avistou-se com banqueiros para saber por que a taxa é tão alta e, também, o porquê da cobrança. Mandaram-lhe procurar representante dos peritos, os profissionais autônomos encarregados de avaliar imóveis.
A autoridade inquiriu o perito: “Vem cá, por que R$ 3 mil?”. Constrangido, o representante dos peritos respondeu: “Doutor, na verdade, a nossa parte é R$ 300”. “E os R$ 2.700?”, quis saber o brasileiro do BC. “Vão para o banco, doutor.”
Não mate o mensageiro, diz o provérbio originário do latim "ne nuntium necare". Diz a lenda que Dario III, rei da Pérsia, foi derrotado pelas tropas de Alexandre, o Grande, por ter matado Charidemus, um de seus generais, responsável por levar-lhe conselhos que contrariavam toda a sua estratégia até então. O brasileiro do BC respirou fundo ao retornar aos banqueiros.
“Vamos lá, os peritos me contaram outra história. Por que vocês ficam com R$ 2.700 da avaliação sem fazer absolutamente nada?”, questionou. Embaraço geral, crianças foram retiradas da sala e, assim, emergiu a verdade nua e crua: “Margem, por margem…”. Novamente: “Não mate o mensageiro”, meditou o brasileiro dom BC.
Margem, neste caso, é lucro ou aquilo que se pode auferir de um negócio num mercado controlado por poucas empresas. Os R$ 3 mil são rigorosamente cobrados por todos os bancos - é provável que isso tenha mudado, mas o fato serve para ilustrar a falta de concorrência no setor bancário.
O cliente não tem para onde correr, afinal, dois bancos estatais - Banco do Brasil e Caixa - respondem por 50% do varejo bancário, e três privados - Itaú Unibanco, Bradesco e Santander -, pelo restante. Uma pergunta que não se cala: a quem não interessa a privatização dos bancos estatais?
A atual gestão do Banco Central tem implementado agenda, desde sua chegada a Brasília, há um ano e meio, para tentar diminuir a concentração bancária, um dos principais gargalos da economia brasileira. Por que é um gargalo? Porque o custo do crédito na Ilha de Vera Cruz é altíssimo, e, no caso das micro, pequenas e médias empresas, proibitivo. Esta realidade impede o desenvolvimento na base da economia, onde estão os novos empreendedores, a possibilidade de inovação disruptiva e a maioria dos empregos.
Durante décadas - e isso ainda não acabou -, o Estado brasileiro deu subsídio fiscal e creditício, por meio do BNDES e outros bancos federais, a grandes empresas, inclusive multinacionais. Estas companhias não tomam dinheiro nos bancos locais pela mesma razão de todos nós: juro alto. Mas, elas têm acesso a capital barato lá fora, onde as taxas de juros são as menores da história.
A Constituição, corretamente, proíbe discriminar o capital estrangeiro investido aqui, mas, convenhamos, não faz nenhum sentido um país de 50 milhões de miseráveis e outros 100 milhões ou mais de pobres bancar as margens de lucro dessas empresas, bem como das grandes corporações nacionais.
A liberdade de expressão está para a democracia assim como a concorrência está para a economia de mercado. Não existe democracia sem que os cidadãos tenham o direito de dizer o que pensam de seus governantes. Do mesmo modo, não há economia de mercado onde monopólios e oligopólios vicejam. Economias de mercado, em que há verdadeira e acirrada competição entre as empresas, se desenvolvem mais rapidamente sob regimes democráticos. Democracias onde o poder econômico se concentra nas mãos de poucos são mancas e sempre sujeitas à instabilidade.
Na Ilha de Vera Cruz, os grandes monopólios e oligopólios foram criados pelo governo, como mencionado por esta coluna nesta série dedicada à história econômica do país desde 1964 - o objetivo é tentar, humildemente, saber onde estamos depois de duas décadas diametralmente opostas neste século: segundo o Valor Data, na primeira, a economia avançou em média 3,71% ao ano, e, na segunda, -0,02%; como se vê, estamos no último ano de uma década perdida.
A justificativa do Estado para estimular a emergência de grandes empresas, principalmente nos setores de matérias-primas e bens intermediários, era a de que não havia por aqui, na ocasião (década de 1970), capitalistas com capital suficiente para bancar investimentos vultosos. Adotou-se o modelo tripartite, que combinava a participação de capital estatal, privado nacional e estrangeiro.
Em alguns setores, considerados "estratégicos", o controle estatal era absoluto, como na Petrobras, fundada muito antes, em 1953, na CSN (fundada em 1941, mas inaugurada apenas em 1946), na Vale (1942) e na Eletrobras (1962, que surgiu como uma empresa de estudos na área energética, mas, depois, tornou-se holding e incorporou, durante o regime militar, uma série de estatais).
O modelo de desenvolvimento vigente era o de substituição de importações. De fabricante de quase nada, a Ilha de Vera Cruz transformou-se, graças aos portões fechados e a um enorme endividamento externo, em produtor de quase tudo - o “quase” aqui é crucial para entender que a economia fechada fez o país ficar à margem da corrida tecnológica, atraso que ainda nos custa muito caro. Em 1982, com o advento do que ficou conhecido como “crise da dívida”, o modelo de substituição de importações começou a ruir.
Monica De Bolle: Taras
A ligação entre medicina e economia se estende pela história do pensamento econômico
“A economia é uma disciplina afinada com a ideia e a produção de fetiches e taras. Então, por que não dizê-los? Uma tara do momento é aquela pela busca dos “cenários pós-covid”. Fala-se em recuperação em V, em L, em U, em W. Mas o que significa “pós-covid”? Ao mesmo tempo, no Brasil, o fetiche fiscal não se desgarra de muitos economistas. Mas e a dívida? Mas e o déficit? Mas e a dívida e o déficit? Mas e a dívida, e o déficit, e a inflação? A situação atual, que é de transição para algo que não sabemos o que é, não permite enxergar com clareza. É também verdade que, confrontadas com a incerteza, as pessoas muitas vezes se agarram àquilo que conhecem, projetando no futuro o passado. Contudo, é importante algum esforço e desprendimento para julgar o que do nosso passado econômico importa – se é que alguma coisa – para imaginarmos o que vamos enfrentar nos próximos meses e anos.
Antes, contudo, vou repetir algo que já escrevi algumas vezes neste espaço e já disse outras tantas mais no meu canal do YouTube. De nada adianta pensar nas letrinhas da retomada se não há um entendimento subjacente da epidemia e algum acompanhamento dos estudos científicos publicados sobre ela. Muitos economistas preferem pensar que nada precisam entender do assunto para traçar seus diagnósticos e suas previsões. É curiosa essa crença de economistas na autonomia da razão econômica em relação não só às Humanidades, mas a outras ciências. Afinal, na sua formação, a economia como disciplina sofreu a influência de grandes médicos, como John Locke (1632-1704) e François Quesnay (1694-1774), apenas para citar esses dois, cuja obra e pensamento influenciaram Adam Smith (1723-1790). Portanto, a ligação entre a medicina e a economia se estende pela história do pensamento econômico, retornando às suas origens. E, embora pareça divagar aqui, o desvio se justifica porque ignorar as origens da crise econômica para formular políticas públicas e previsões de crescimento é não apenas profundamente equivocado, mas dissonante da própria história da economia como ciência social.
O fetiche fiscalista é outra manifestação do mesmo mal. É claro que temos de nos preocupar com o tamanho do déficit público e com a trajetória da dívida. Mas o que isso significa? Vamos propor o que em termos de medidas econômicas para responder a essas preocupações?
Que o governo retome a defunta agenda de reformas, que nada faria neste momento para sustentar a economia? Que o Estado brasileiro não cumpra o seu papel constitucional de atender aos mais atingidos pela crise, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por meio de repasses para a saúde, seja por meio de recursos destinados à educação, sobretudo para permitir que crianças sem acesso às escolas e sem acesso digital possam dispor de algum meio para o aprendizado? Vamos insistir que parte importante de nossos males vêm do sistema Simples, que as empresas sofrem muito com a carga tributária, que é preciso rever todas as políticas públicas para melhorar a eficácia? Nada disso é compatível com a urgência da falta de recursos hospitalares, das filas de quem não consegue receber o auxílio emergencial. É ainda menos compatível com uma ideia que tem de estar clara: a inação do governo é fator determinante da forma de recuperação da economia e do que venha a acontecer com o déficit e com a dívida pública.
Governo que não age à altura da crise atira o país contra a parede. Não à toa, o FMI revisou a projeção para o encolhimento do PIB brasileiro de 5,3% esse ano para 9,1%, chegando bem perto do quadro de depressão econômica sobre o qual venho falando há meses. Quedas do PIB dessa magnitude não precisam de nada mais para fazer um estrago considerável nas contas públicas. A arrecadação salta do precipício, elevando o déficit de forma abrupta. O encolhimento da renda decorrente da redução do PIB diminui o denominador da razão dívida/PIB, elevando-a. Ainda que seja impossível quantificar o estrago da inação, é possível dizer que a falta de medidas adequadas, ou a insuficiência delas, gera precisamente a deterioração tão temida pelos fiscalistas. Por que eles apontam, então, em outras direções, como se essa não fosse determinante de suas ideias fixas?
Por fim, o fetiche do teto. Escrevi sobre ele na semana passada, em modo catabólico – o artigo chamava-se “A Bioquímica do Teto”. Retomo-o agora em modo anabólico: a síntese do teto metaboliza produtos com alto grau de toxicidade para a economia brasileira, impedindo que as ações necessárias de combate à crise aguda e à crise crônica que dela sobrevirá sejam articuladas. Francamente? É duro ter de repetir isso quase toda semana.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Míriam Leitão: A escalada do desemprego
O desemprego real só será visto depois. Oito milhões saíram da população ocupada e 12 milhões já estavam desempregados
Quando a pandemia tiver passado, e a economia começar a voltar ao normal, o número de desempregados vai aumentar muito. O país estará com mais confiança, empresas que sobreviverem pensarão em investir e é nesse momento que mais pessoas responderão sim à pergunta: “você procurou emprego e não encontrou?” Dessa resposta sai o índice do desemprego. E hoje muita gente não procura. Por causa da pandemia, da crise, da certeza de que não será contratado. E, se não procura, não entra na estatística de desocupados. O verdadeiro número se esconde em outros dados.
Ontem o IBGE informou que no trimestre terminado em maio a média do desemprego ficou em 12,9%. O número é alto, mas significa 12,7 milhões de brasileiros desempregados, 368 mil a mais do que no trimestre terminado em fevereiro, portanto, antes da pandemia se instalar no país. No mesmo trimestre do ano passado, o total de desempregados era 13 milhões. E há um ano a situação não estava tão ruim quanto agora. Por isso é que a verdade do fosso que nos aguarda se vê nos números laterais, e o tamanho do buraco será visto quando o país estiver se sentindo melhor. Pessoas esperançosas sairão procurando emprego e não encontrarão.
Quando setembro vier, pensa o economista Bruno Ottoni, o número subirá. Ele acha que no terceiro trimestre é que será o fundo do poço. Números ruins circulam em muitas planilhas, inclusive nas governamentais. Mas é difícil saber ao certo.
O que se sabe hoje é que caiu em 7,8 milhões o número de pessoas na população ocupada comparado com o trimestre móvel terminado em fevereiro, e esse é o dado mais relevante. A população subutilizada chegou a um número recorde: 30,4 milhões de pessoas. Os que estão em desalento, ou seja, nem pensam em procurar emprego, aumentaram em 15,3%. São 5,4 milhões de brasileiros. Vai somando. A situação está dramática.
Há números que parecem bons, mas não são: caiu a informalidade para o menor percentual da série, 37,6%. Já foi mais de 40%. E aumentou o rendimento real habitual em 3,6%. Em outro momento, isso seria sinal de que informais passaram a ter emprego com carteira assinada e que estavam ganhando mais. Infelizmente, contudo, eles são sinais de que o desemprego bateu mais fortemente nos mais vulneráveis, explicou Ottoni. Quem não tem vínculo está perdendo o emprego mais rapidamente. E os formais têm salários maiores. Isso explicaria a aparente contradição. A massa real de rendimentos, ao contrário do que afirmou ontem o ministro Paulo Guedes, caiu, como era de se esperar.
O governo costuma se creditar ter poupado 11 milhões de empregos, que é o número de contratos do mercado formal que foram atingidos pelas Medidas Provisórias do emprego, a que formalizou a redução do salário e da jornada, e a que permitiu a suspensão do contrato de trabalho. As MPs ajudaram sim, mas não quer dizer que as empresas demitiriam todos os seus empregados. E as que recorreram a esse expediente só manterão seus funcionários se sobreviverem, evidentemente. Portanto, quando o governo falha, miseravelmente, como tem falhado nas linhas de crédito para as micro, pequenas e médias empresas, está ameaçando as empresas e os empregos.
O Brasil já estava mal quando veio a pandemia. É isso que precisa ficar claro. Estava mal porque não tinha se recuperado da recessão iniciada no governo Dilma, e que consumiu 7% do PIB entre 2015 e 2016. E estava mal porque a recuperação estava perdendo o pouco de força que tinha quando veio a pandemia. O Codace, da Fundação Getúlio Vargas, que mede os ciclos econômicos, mostrou esta semana que a recessão começou já no primeiro trimestre. Em outras palavras: o Brasil não estava decolando. O país estava com dificuldade de manter o ritmo fraco de atividade quando foi atingido por um meteoro.
O dado mais eloquente é o número absoluto de pessoas ocupadas. É o menor da série histórica. São 7 milhões a menos do que há um ano, e 7,8 milhões a menos do que antes da pandemia. Esse exército de desempregados se junta aos 12 milhões de brasileiros que já não tinham emprego antes da pandemia.
O Brasil tem vários trabalhos a fazer depois de vencer o vírus para superar os desequilíbrios do mercado de trabalho. A situação já era ruim antes e ficou muito mais grave com a queda brusca da economia nesta nova recessão. O remédio terá que ter a grandeza da crise.
Bruno Boghossian: Bolsonaro abandona negacionismo da pobreza
População de baixa renda passa de 32% para 52% dos apoiadores do governo, segundo Datafolha
Jair Bolsonaro chegou ao poder como um negacionista da pobreza. Crítico contumaz de programas de transferência de renda, ele disse no ano passado que a fome no Brasil era "uma grande mentira" e que o papel do governo era facilitar a vida "de quem quer produzir".
Sob risco, o presidente se converteu. Nesta terça (30), o governo anunciou o pagamento do auxílio emergencial do coronavírus por mais dois meses. A prorrogação poderia ser um ato burocrático, mas Bolsonaro organizou uma cerimônia no Planalto e chamou o programa de "o maior projeto social do mundo".
O presidente adiou o fim do benefício por uma questão de sobrevivência. As novas parcelas e o plano de reformulação do Bolsa Família se tornaram decisivos para a permanência de Bolsonaro no cargo e para sua aposta na reeleição em 2022.
A pandemia marcou uma mudança na composição da base do presidente. Em 2019, os mais pobres correspondiam a 32% do grupo que considerava o governo ótimo ou bom, de acordo com o Datafolha. Desde então, o presidente manteve a popularidade estável, mas o segmento de baixa renda passou a representar 52% de seus apoiadores.
A atuação desastrosa de Bolsonaro na pandemia afastou segmentos mais ricos, mas levou para seu campo eleitores que estão na base da pirâmide social. O fim do pagamento do auxílio representaria um risco de erosão num nicho agora majoritário.
O cálculo político é claro. No início da pandemia, o governo propôs apenas três parcelas de R$ 200 aos mais pobres para amenizar a crise. Só triplicou o valor após pressão do Congresso. Quando o programa chegava ao fim, o ministro da Economia afirmou que a prorrogação era arriscada porque "aí ninguém trabalha".
Bolsonaro tenta consolidar apoio em novos grupos, mas ainda poderá buscar a retomada de territórios perdidos. "Ele tem chance de recuperar apoio nos segmentos mais abastados se mantiver a postura atual, menos explosiva", avalia Mauro Paulino, diretor do Datafolha.
Elio Gaspari: Bolsonaro avacalha a direita
Essa paçoca não é conservadora nem sequer atrasada, é chumbrega e inepta
Em menos de dois anos o governo de Jair Bolsonaro avacalhou a direita e foi além, avacalhando até o atraso.
Com três ministros da Educação decapitados, cinco secretários de Cultura, "gripezinha" e piromania florestal, a charanga do capitão bateu no vexame do "doutor" Carlos Decotelli.
Um secretário da Cultura papagueando o nazista Joseph Goebbels e um ministro da Educação com currículo bombado desonram até o atraso. Não só pela apropriação dos títulos acadêmicos. Decotelli presidiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação no governo do capitão e na sua gestão construiu-se um edital viciado para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino.
A Controladoria-Geral da União impediu a consumação da maracutaia, mas ninguém explicou quem armou o golpe. Tratava-se de uma despesa de R$ 3 bilhões.
A direita brasileira já produziu grandes administradores como Carlos Lacerda (vindo da esquerda). Até o atraso deu ao país políticos notáveis, como Bernardo Pereira de Vasconcelos no Império. Ele foi à tribuna do Senado em abril de 1850 para dizer que havia "terror demasiado" em relação à epidemia de febre amarela. Morreu uma semana depois, de febre amarela.
No segundo turno da eleição presidencial de 2018 o candidato Jair Bolsonaro teve 58 milhões de votos.
Ali estavam eleitores que simplesmente não queriam a volta do PT ao Planalto e também conservadores que acompanhavam a vaga agenda do candidato. Era o jogo jogado.
No dia 1º de janeiro de 2019, feliz, esse eleitorado ganhou Sergio Moro no Ministério da Justiça. No pacote estavam também a contabilidade de Fabrício Queiroz, os delírios do chanceler Ernesto Araújo e, meses depois, os de Abraham Weintraub.
Essa paçoca não é conservadora nem de direita nem sequer atrasada, é chumbrega, inepta. Pretende ser um governo com militares, quando é acima de tudo um governo com uma milícia desconexa. Orgulha-se de ter equipado sua cúpula com generais e nomeia para o Ministério da Educação um doutor de titulação forçada por baixo de cuja mesa, na atual administração, passou um edital viciado de R$ 3 bilhões.
No século passado Carlos Lacerda dizia que o Serviço Nacional de Informações não funcionava às segundas-feiras porque naquele dia não circulavam os jornais matutinos.
O Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro não consulta os relatórios da CGU.
Decotelli não foi o primeiro hierarca a inflar currículo.
Dilma Rousseff nunca concluiu seu doutorado na Universidade de Campinas e o governador Wilson Witzel jamais teve vínculo com Harvard. Contudo, o doutor exagerou: sua dissertação de mestrado tinha indícios de plágio, o doutorado argentino e o pós-doutorado alemão não haviam sido concluídos.
Para quem viu a passagem pela administração pública de grandes conservadores, muitos direitistas e até mesmo alguns ilustres representantes do atraso só resta parodiar os versos de Casimiro de Abreu: Oh, que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida / Da minha direita querida / Que os anos não trazem mais.
Fernando Exman: O frágil armistício entre as instituições
Destino de Flávio Bolsonaro entra no radar dos Poderes
O destino político do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) entrou de vez na agenda do Legislativo e do Judiciário. Nos últimos dias, virou assunto de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), integrantes do Ministério Público e parlamentares. Sob a ótica governista, ataca-se o “filho 01” para atingir o presidente da República e desestabilizar o Executivo. Defendê-lo, portanto, é também proteger o próprio governo.
Essa visão transformou as apurações sobre denúncias de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, um caso paroquial que revela algumas das tristes características da política brasileira, numa matéria capaz de afetar a relação entre os três Poderes. Num cenário extremo, até prejudicar o atual momento de relativa estabilidade institucional.
Brasília vive hoje um período de trégua. Um armistício há tempos demandado pelos aliados e auxiliares mais experientes do presidente, mas que só ganhou forma depois da prisão de Fabrício Queiroz.
O ex-assessor do senador foi encontrado no interior de São Paulo há cerca de duas semanas. Estava na casa do advogado Frederick Wasseff, que é ligado à família Bolsonaro e fazia a defesa do parlamentar no caso das chamadas “rachadinhas” da assembleia fluminense.
O primogênito do presidente da República é investigado pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa por supostos desvios de salários de funcionários de seu gabinete quando era deputado estadual. Não foi condenado e, portanto, mantém a ficha limpa. Pode insistir no discurso de que querem atacá-lo para atingir seu pai e o governo, apesar das incertezas relacionadas ao caso.
Ainda estão turvas as explicações de Wasseff sobre as motivações que o levaram a manter Queiroz sob seus cuidados pessoais, longe da sociedade e mais longe ainda dos olhos dos investigadores. Estão mais nítidos, por outro lado, os sinais emitidos pela esposa de Queiroz, que está foragida, de que poderia ter interesse em fazer uma delação premiada.
O episódio alterou o comportamento do presidente. Ele tem evitado contatos com a imprensa e com os apoiadores que insistem em esperá-lo na portaria do Palácio da Alvorada. Dias antes da prisão de Queiroz, pessoas não alinhadas ao governo foram ao local até então ocupado apenas por bolsonaristas para contestá-lo - uma moda que tinha tudo para pegar e gerar seguidos constrangimentos ao chefe do Executivo, diante da prisão do antigo aliado.
Se a sua disposição para o embate público diminuiu, aumentou nos bastidores o empenho de Bolsonaro para recompor as relações com as cúpulas do Parlamento e do Judiciário. E é justamente no Supremo Tribunal Federal (STF) onde o presidente e seu grupo político-familiar encontram hoje maior imprevisibilidade.
Enquanto deputados e senadores se esforçam para votar um projeto de lei que busca combater a disseminação de “fake news” a contragosto do governo, o STF já foi além e identificou entre aliados do presidente alguns dos responsáveis pelo financiamento e pela publicação de mensagens de ódio e notícias falsas na internet. Um outro inquérito em andamento na Corte também alcançou apoiadores de Bolsonaro quando se foi procurar quem estava por trás da realização de atos antidemocráticos.
Já a Justiça Eleitoral começou a julgar as ações que, em tese, podem levar à cassação da chapa vitoriosa da eleição de 2018. Independentemente do resultado desses julgamentos, algum recurso acabará sendo protocolado no STF.
Todos esses fatores já estavam no cálculo do presidente e o preocupavam. Agora, no entanto, o cenário se agravou.
Não tardou para que o caso de Flávio chegasse ao Supremo. Na segunda-feira, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) pediu que seja revertida a decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) que concedeu foro privilegiado ao senador. A demanda é que ele volte a ser julgado pela primeira instância, o que já teve ressonância entre os integrantes da Corte que mantêm a visão segundo a qual a prerrogativa de foro deve ser aplicada apenas a crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados às funções desempenhadas.
O caminho de Flávio parece um pouco mais fácil no Congresso, onde o governo está tendo sucesso em construir uma base aliada e tem poder de barganha para atingir seus objetivos com mais facilidade quando está disposto a negociar.
Bolsonaro decidiu abrir as portas do governo para os partidos do Centrão. Emissários do Executivo também já não se preocupam mais em esconder que o governo tentará, sim, influenciar as eleições para presidente da Câmara dos Deputados e do Senado, pois quer aliados fiéis à frente das Casas Legislativas.
As disputas ocorrerão apenas em fevereiro do ano que vem, mas os pré-candidatos já se movimentam. Terão diversos testes à frente durante votações de interesse do governo e precisarão dar demonstrações de combatividade para proteger Bolsonaro e sua família.
O tratamento dado aos filhos do presidente é um critério que será observado no Palácio do Planalto, onde até agora não há motivos para queixas. Flávio não foi incomodado pelo Conselho de Ética do Senado e a tendência é que assim continue, caso não ocorra um considerável agravamento da sua situação no âmbito do processo na Justiça. O colegiado é presidido por um aliado do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que foi eleito com apoio do governo e precisará continuar com esse respaldo para alterar a Constituição se quiser concorrer a um novo mandato.
Na Câmara, diversos pré-candidatos à presidência, todos eles influentes em suas bancadas e entre correligionários do Senado, prestigiaram Flávio Bolsonaro em um jantar promovido recentemente por seu partido para demonstrar o apoio que o Centrão lhe dará nesta fase difícil da vida.
Espera-se a mesma eficiência do governo na articulação para a aprovação de projetos que continuem a reduzir os efeitos da crise e construam uma agenda de saída para o pós-pandemia. Isso se a trégua durar.
Ricardo Noblat: O ministro que entrou no governo vestido e saiu nu
Decotelli, a fake news em pessoa
Deve-se ao governo de Jair Bolsonaro, o presidente acidental, a criação de uma nova categoria de servidores públicos – a “Quase”. O primeiro a inaugurá-la foi Carlos Decotelli, o quase ministro da Educação. Nomeado há 5 dias, caiu antes de ser empossado.
Decotelli entrou no governo como ex-oficial da Marinha, professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Saiu sem nada. Nu.
Um dia antes de ser forçado a pedir demissão, ele havia reescrito seu currículo pela quinta vez – desta, para acrescentar o título de ministro. O que fazer agora? Reescreve de novo ou deixa como está? Afinal, sua nomeação foi publicada no Diário Oficial.
Bolsonaro sentiu-se enganado por Decotelli e não disfarçou seu aborrecimento ao recebê-lo, ontem, no Palácio do Planalto. A audiência de despedida não durou 15 minutos. Bolsonaro sequer leu a carta de demissão para analisar se era de fato autêntica.
O encontro foi testemunhado por um só ministro – o general Braga Neto, da Casa Civil. Os demais generais com gabinetes ali e que patrocinaram a escolha de Decotelli, estavam ocupados à procura do quarto ministro da Educação em um ano e meio.
Um deles, Augusto Heleno, do Gabinete da Segurança Institucional, postou uma mensagem no Twitter onde disse que nada teve a ver com o fato de Decotelli apresentar-se como quem não era. Não lhe cabe checar currículo de candidatos a ministro.
A descoberta de que Decotelli era uma fake news em pessoa enfraquece, por ora, a ala militar do governo em sua marcha sobre cargos disponíveis na administração. As viúvas do ex-ministro Abraham Weintraub querem de volta o ministério que era delas.
Em sua nova versão de presidente moderado, Bolsonaro mandou logo dizer que o sucessor de Weintraub será um técnico, especialista em educação e, se possível, repleto de títulos… De preferência, verificados antes do anúncio.
Palácio do Planalto serve de cenário à despedida de um cachorro
Augusto Bolsonaro, ou melhor Zeus, volta para casa
Por 12 dias, Zeus, um cão da raça pastor-maremano, chamou-se Augusto Bolsonaro e desfrutou do raro privilégio de poder conviver na intimidade com a família presidencial brasileira. Foi visto nos fundos do Palácio do Planalto à procura de uma cadela no cio. E imediatamente adotado por Michelle, a primeira-dama.
Passou a morar no endereço mais exclusivo de Brasília – o Palácio da Alvorada. Ganhou uma página no Instagram. Posou para fotos com uma coleira que ostentava a bandeira nacional. E brilhou nas redes sociais passeando ao lado do deputado Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente. Sua repentina fama foi seu mal.
Apareceu o dono de Zeus, um morador da Vila Planalto, a pouca distância do local em que ele fora achado. E pela primeira vez na história do Palácio do Planalto, sede do governo, armou-se uma cerimônia para marcar a despedida de um cachorro. O presidente compareceu sorridente. A primeira-dama chorou.
Zeus perdeu o nome recém-adquirido e foi devolvido ao dono. A propósito: quando os Bolsonaro devolverão o país aos seus verdadeiros donos?
Vera Magalhães: Até o totó era fake
Cãozinho Augusto e ministro mitômano povoam anedotário bolsonarista
E eis que, quando as atenções do Brasil estavam voltadas para o currículo a la “jogo dos sete erros” do novo-ex-ministro da Educação, vem a bomba, por avisos de push dos jornais: “Cachorro adotado pela família Bolsonaro já tem dono e será devolvido”.
É verdade que estamos calejados com tantos absurdos, que parecem pastiches de livros de realismo mágico e viraram diários nesses tempos de pandemia. Mas essa manchete, combinada às sucessivas erratas no currículo lattes (até aqui cabe trocadilho) de Carlos Decotelli, foi demais até para quem acompanha o enredo dia a dia.
Sim, faltava um mascote ao anedotário do bolsonarismo. Agora não falta mais. Augusto (talvez nunca saibamos se o nome era homenagem a algum dos Augustos próximos ou a Augusto Pinochet, ditador de estimação da família) na verdade era Zeus. Já tinha dono e teria de ser devolvido, depois de acolhido pela primeira-dama, Michele Bolsonaro.
Os memes vieram imediatamente: nem cachorro Bolsonaro consegue fazer durar no posto; nem o cachorro aguentou esse governo, e por aí vai. A hashtag Bolsonaro ladrão de cachorro (!) foi levada aos temas mais comentados do Twitter. O fato é que a piada foi elevada a categoria política na nova era, dada a dificuldade, em vários episódios, de se encontrar balizas sérias para analisar os acontecimentos.
Basta lembrar que não faz uma semana que, em meio a lives históricas de artistas como Gilberto Gil e Milton Nascimento, fomos submetidos a um show de sanfona do presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, que pretendeu entoar a Ave Maria em homenagem aos mortos pela covid-19 na transmissão semanal de Bolsonaro nas redes sociais, para visível constrangimento de Paulo Guedes.
O que tudo isso quer dizer? Que este governo virou um sitcom de mau gosto, e não de hoje. Os Bolsonaros sempre foram um elenco para lá de cafona, mas, por circunstâncias também elas dignas de um roteiro rocambolesco, seu patriarca chegou à Presidência, levando a tiracolo a “família buraco”, como bem definiu Eduardo em seu inglês avançado.
Os ministérios da Saúde e da Educação viraram a ribalta principal desse pastelão. O primeiro não tem ministro já mais de 40 dias em plena pandemia. O segundo se livrou de um maluco para ser entregue a um mitômano. A linha sucessória Vélez Rodríguez – Weintraub – Decotelli é a demonstração cabal do desapreço que o presidente dedica à Educação – que, não por acaso, é o único caminho seguro para que o País supere a miséria que fideliza o eleitorado a populistas de diferentes cortes ideológicos, mas práticas em muito similares.
Nada disso deveria estar numa coluna de política em pleno 2020 em que mais da metade da população ativa do Brasil está sem ocupação, que o vírus avança sem controle e que o governo não sabe como, por quanto tempo e em que valor vai pagar o auxílio emergencial a quem precisa, esses sim temas urgentes e nacionais.
Mas Bolsonaro consagrou a petecagem como política de Estado. Vulgarizou de tal maneira a Presidência à qual se agarra com o temor dos covardes que temos de comentar pessoas que jamais teriam, com currículo fake ou real, de estar nos postos que estão.
Houve farialimer e passapanista aos borbotões enchendo a boca para falar do ministério “técnico” de Bolsonaro. Já era uma lorota bem antes de Decotelli, basta ver as mentiras sinceras dos currículos de figuras como Ricardo Salles e Damares Alves.
Agora que tudo está descortinado e que o presidente ou nomeia Decotellis ou entrega os cofres ao Centrão sem intermediários, há quem ainda se agarre a Guedes ou a nomes como Tarcísio Gomes de Freitas. Triste sina a deles: virar coadjuvantes de filme sessão da tarde de cachorrinho. Ou plateia de sanfoneiro de beira de estrada.
Rosângela Bittar: Insinceridade geral
A fábula de como se faz um governo aleatório encontrou a simbologia máxima
Com toda a ambiguidade que imprime às suas manifestações, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu disfarçar, já na segunda-feira, o desfecho que só viria ontem: o convidado e nomeado estava dispensado da posse. Na nota com que se despediu do seu terceiro ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, depois de uma reunião improvável em que teria tido paciência para ouvir detalhes técnicos da estrutura curricular da pós-graduação, os elogios feitos pelo presidente se destinavam a consolar a si mesmo, por tê-lo escolhido, e a eximir de culpa os militares, por tê-lo indicado.
Motivação igual teve para dar-lhe a tribuna de 24 horas em que ainda contaria com audiência para se explicar. O que, convenhamos, foi atitude mais elegante do que a da Fundação Getúlio Vargas, que o renegou muitas vezes depois de prestar-lhe homenagens anos a fio pelos cursos que promoveu na instituição. Constatou-se que a FGV foi mais relapsa que a Abin.
Para ser ministro da Educação não é necessário ter doutorado. Mas é preciso ter decência. Este caso não deu para desentortar, como já se fez com tantos outros, inclusive nesta gestão, mas pode ainda inspirar o pensamento sobre o processo e o método de formação do governo Bolsonaro.
A fábula de como se faz um governo aleatório, sem critério e sem identidade, encontrou a simbologia máxima. Convite feito e aceito, ganhou a desculpa da urgência pelo rumo imediato exigido pela área em causa, a começar pela sua atividade mais elementar, o funcionamento das atividades em sala de aula. Nenhum filtro, nenhuma informação ou análise mais profunda sobre alguém que havia ingressado na história do Brasil há apenas cinco dias, levando na bagagem de chegada uma bomba de detonar a partida.
Saudado como técnico e gestor, Decotelli tinha um currículo composto por falsos brilhantes que, na insinceridade geral dos dois ambientes, o acadêmico e o do governo Bolsonaro, abalou as estruturas. Mestrado com tese de trechos copiados sem a citação do autor; doutorado contestado pela banca de Rosário; pós-doutorado, conhecido como posdoc no meio científico, inexistente em universidade alemã. O nomeado retocou a maquiagem, mas não ficou bem para a posse.
Enfeitar o currículo com estas lantejoulas é um clássico nacional. O pós- doutorado pode ser só um atraente turismo científico e, em muitos currículos, não passa disto. Em outros, é uma espécie de emprego temporário para doutores até aparecer coisa melhor. No conjunto desta obra, porém, pesou muito. O mestrado e o doutorado têm significados, sobretudo para quem pretende seguir a carreira acadêmica, mas não pesam para ser gestor público.
Há outras demonstrações de competência acadêmica além dos títulos, como há demonstrações de competência específicas na gestão pública ou privada. Mário Henrique Simonsen possuía de sobra as duas condições. Não tinha nem mestrado nem doutorado e estava fazendo, às pressas, uma graduação formal numa escola qualquer do Rio quando já era um economista respeitado e constava do catálogo de Harvard como professor visitante.
Para o currículo da plataforma Lattes não bastam os créditos do curso, é preciso ter defendido e aprovado tese para receber o título. Na vida acadêmica, a maioria já fez a assepsia. Na iniciativa privada e na administração, os titulares negligenciaram as correções.
Nos governos Collor, Lula, Dilma e Bolsonaro houve escândalos de currículos falsos ainda na memória de todos. Passaram a borracha e continuaram nos cargos.
Comparado com Ricardo Vélez, o primeiro, que saiu sem entrar, e com Abraham Weintraub, o segundo, que fugiu do País, Decotelli não pode ser culpado pela desdita do governo e mais um atraso no início de um plano de recuperação do funcionamento do MEC.
Quem seleciona é que não sabe o que quer nem para onde vai.
Merval Pereira: Como farsa
Estratégia deu certo para Lula, que se reelegeu em 2006, mas Bolsonaro não conta a economia a seu lado
O comportamento do presidente Jair Bolsonaro desde a prisão de seu amigo Fabricio Queiroz assemelha-se ao de Lula depois do escândalo do mensalão em 2005. A estratégia deu certo para Lula, que se reelegeu em 2006 mas, diferentemente, Bolsonaro não conta com a economia a seu lado. Naquele ano as exportações bateram recorde, o Real valorizou-se, a inflação ficou sob controle. A economia mundial estava crescendo, e o Brasil, apesar da crise política, conseguiu captar dinheiro no exterior.
As denúncias de corrupção não causaram grandes danos imediatos à popularidade de Lula, que tinha um índice de ótimo ou bom de 36%, mas em dezembro daquele ano de 2005 o Datafolha já registrava que esse índice caíra para 28% da população, o menor nível desde seu primeiro dia no Palácio do Planalto.
No dia em que o publicitário Duda Mendonça confessou na CPI dos Correios que recebera dinheiro ilegal em um paraíso fiscal como pagamento da propaganda para a campanha presidencial que elegeu Lula em 2002, houve choro no Congresso, e daí nasceu o Psol, com dissidentes do PT.
Foram meses com o fantasma do impeachment rondando o Palácio do Planalto, e houve até mesmo uma tentativa de acordo, levada a cabo pelos ministros Antônio Palocci, da Fazenda, e Marcio Thomaz Bastos, da Justiça, para que a oposição não insistisse no processo, com o compromisso de Lula desistir da reeleição.
A oposição, na definição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não tinha “gosto de sangue” na boca e temeu a ameaça de que os chamados “movimentos sociais” sairiam à rua para defender o mandato de Lula. O próprio Fernando Henrique dizia que não era inteligente criar um “Getúlio vivo”, referindo-se ao episódio do suicídio de Getúlio Vargas, que reverteu o estado de espírito da população a favor do presidente morto.
O mesmo temor de um impeachment contra Bolsonaro provocar reação de seus seguidores, ou dos militares que se transformaram em uma teórica força política de apoio ao governo, faz com que a questão ainda esteja fora de cogitação imediata. A pandemia da Covid-19, que ajudou a piorar a imagem do presidente Bolsonaro interna e externamente, ao mesmo tempo impediu que os protestos contra seu governo se materializassem nas ruas.
O PT em 2005 ainda dominava as manifestações populares, mas Bolsonaro hoje já perdeu essa hegemonia. É muito provável que quando a vida voltar ao normal, com o Congresso atuando presencialmente, o debate político se acirre e transborde para manifestações populares além da bateção de panelas nas janelas durante a quarentena.
O programa Bolsa Família, que teve início em 2004 ajudou a garantir a popularidade de Lula entre os mais carentes, especialmente no nordeste, mas Bolsonaro não tem dinheiro para criar o Renda Brasil, que seria uma versão ampliada do programa implantado pelo PT.
O auxílio emergencial, que será prorrogado para mais dois meses, tem ajudado a compensar a perda de apoio entre as classes média e alta, mas seu fim pode criar uma fragilidade no apoio das classes C e D. A crise econômica provocada pela Covid-19, com previsão de queda do PIB de cerca de 9% este ano, não ajudará o governo, ao contrario do que aconteceu com Lula, que conseguiu em 2005 um aumento no nível de empregos e um crescimento econômico de cerca de 2,5%, que, embora baixo, é um sonho inatingível neste momento.
O apoio do Centrão, negociado à base de troca de favores, tem a mesma origem. Lula recusou no início de seu governo um acordo com o PMDB, e só depois do escândalo do mensalão a presença do partido tornou-se oficial no primeiro escalão.
Os partidos que formam o centrão, na sua maioria, estavam envolvidos no esquema do mensalão, enquanto o PMDB, por não fazer parte do governo, ficou de fora das acusações. Hoje, ao contrário, Bolsonaro fez um acordo direto com o Centrão, apesar do passado que condenara durante a campanha presidencial.
Lula chegou ao governo indo para o centro. Bolsonaro chegou à presidência na radicalização política de direita, para se contrapor ao Lula radical de esquerda. Depois de um ano e meio no mesmo diapasão radical de direita, Bolsonaro quer se transformar em moderado, para superar as relações com grupos extremistas e milicianos. Passamos do mundo do crime para o submundo do crime. É a tragédia se repetindo como farsa.
Olavo de Carvalho recorre a conceito de Gramsci para atacar esquerda, explica Marcos Sorrilha
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, professor da Unesp analisa pensamento de escritor brasileiro
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O escritor Olavo de Carvalho recorre ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci para interpretar o mundo e a construção da Nova Era, apropriando-se do paradigma gramsciano da política-hegemonia. Essa é a análise do historiador Marcos Sorrilha Pinheiro, em artigo de sua autoria publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!
Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Professor assistente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Pinheiro diz que a palavra hegemônica é fundamental para entendermos como se daria a construção da Nova Era na versão de Olavo de Carvalho.
“Na verdade, não se trata apenas de uma palavra, mas de um conceito elaborado por Antonio Gramsci no início do século 20. Segundo Gramsci, o conceito de hegemonia retirava o socialismo do plano revolucionário e o trazia para o paradigma político/democrático”, explica o historiador.
Em Gramsci, de acordo com o professor, a construção de uma sociedade igualitária, principalmente no Ocidente, não se daria mais pela revolução, mas pela articulação do campo político, por meio da difusão de valores, tradições e ideias junto ao sistema nervoso das sociedades: a cultura.
Segundo Pinheiro, os partidos e seus intelectuais deveriam atuar como sujeitos articuladores dessa cultura, lançando mão dos aparatos próprios para sua mobilização: a mídia, a escola, as artes etc. “À medida que tais ideias fossem ganhando maior abrangência e concordância entre os cidadãos, seria aberta a possibilidade de que líderes comunistas fossem eleitos pelo voto e, uma vez no comando do Estado, lançariam mão das ferramentas do poder para organizar a sociedade em torno de seus ideais, convertendo-os em uma hegemonia”, diz.
Olavo de Carvalho, de acordo com o professor, recorre ao conceito de hegemonia gramsciano, pois, conforme explica, entende que, com o ocaso da União Soviética, Gramsci se converteu no grande paradigma de atuação da esquerda global. “Por meio de seus métodos (a contaminação da cultura com valores marxistas), foi possível aos intelectuais gramscistas o predomínio junto às principais instituições internacionais responsáveis pela elaboração de estratégias de desenvolvimento global, como a ONU, a OMS, ONGs etc., transformando pautas da esquerda em pautas da própria humanidade”, escreve.
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Luiz Carlos Azedo: “Meritocracia”
“Bolsonaro nunca quis um educador reconhecido, mas alguém que pudesse confrontar ideologicamente a oposição nas universidades e demais órgãos da Educação”
Em absoluto descrédito, por ter fraudado o próprio currículo, o ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, entregou a carta de demissão ao presidente Jair Bolsonaro, antes mesmo de tomar posse oficialmente. Foi uma saída até honrosa, depois de idas e vindas do Palácio do Planalto e tentativas de justificar o injustificável por parte de Decotelli. Jair Bolsonaro havia anunciado o seu nome como uma espécie de contraponto à passagem histriônica e turbulenta de Abraham Weintraub pelo cargo. Parecia um reposicionamento estratégico na pasta, substituindo a ideologia na escolha do ministro por uma suposta meritocracia. O problema é que o currículo do ministro era fake.
Bolsonaro chegou a publicar uma carta nas redes sociais elogiando a capacidade do ministro; na noite de segunda-feira, porém, já havia se convencido de que era preciso voltar atrás. Desde a indicação de Decotelli, a cada dia surgia uma nova informação desmoralizadora, de alguma instituição acadêmica, desmentindo os títulos que constavam no seu currículo Lattes. Três desmentidos foram demolidores: a denúncia de plágio na dissertação de mestrado da Fundação Getulio Vargas (FGV); a declaração da Universidade de Rosário desmentindo um título de doutorado na Argentina, que não teria obtido; e o pós-doutorado na Alemanha, não realizado. Trocando em miúdos, o professor não era sabichão, era apenas sabido.
É óbvio que a situação é desmoralizante também para Bolsonaro e os serviços de inteligência do governo, a Agência Brasileira de Informações (Abin), que falhou na checagem do nome, e o “serviço particular” do presidente da República, que pode até ter atuado com sinal trocado, indicando ou referendando a indicação de Decotelli. O vício de origem do problema, porém, é o conceito adotado por Bolsonaro para a Educação. Ele nunca quis um educador reconhecido no mundo acadêmico, sempre buscou alguém que pudesse confrontar ideologicamente a oposição nas universidades e demais órgãos do Ministério da Educação. A opção Decotelli, supostamente para “despolitizar” o Ministério da Educação, foi embasada por uma “visão tecnocrática” dos militares do Palácio do Planalto: já que Weintraub perdeu a batalha política na sociedade, optou-se por levar a disputa para o terreno da gestão. Deu errado.
Bolsonaro examina, agora, a possibilidade de nomear Anderson Ribeiro Correia, reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), renomada instituição militar de ensino, cargo para o qual foi escolhido em lista tríplice pelo Comando da Aeronáutica, entre 11 candidatos, após rigorosa seleção. Por três anos, o atual reitor do ITA havia exercido a Pró-Reitoria de Extensão e Cooperação. Para conquistar o posto, apresentou cinco propostas de trabalho: melhorar o relacionamento institucional com a FAB e com a sociedade; modernizar o ensino de engenharia; fortalecer a pós-graduação e a pesquisa em conjunto com a graduação; modernizar a gestão; e oferecer mais resultados à sociedade.
Ou seja, uma metodologia impessoal e meritocrática completamente diferente da adotada por Bolsonaro para formar sua equipe. Correia é graduado em engenharia civil pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em engenharia de infraestrutura aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e concluiu doutorado em engenharia de transportes pela University of Calgary, no Canadá. É membro do Conselho de Administração da Organização Brasileira para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Controle do Espaço Aéreo (CTCEA); do Comitê Transportation Research Board — USA; e do Conselho Deliberativo da Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes (Anpet).
Negacionismo
Passando de pato a pandemia, o Brasil deve ultrapassar as 60 mil mortes por coronavírus hoje. Ontem, eram 58.927, de um total de 1,383 milhão de casos confirmados. De acordo com um monitoramento da universidade norte-americana Johns Hopkins, o mundo já tem mais de 19 milhões de infectados e 500 mil mortos, sendo que o Brasil é responsável por 11% das mortes ocorridas no planeta. Esse indicador está fazendo com que as autoridades sanitárias de todo o mundo voltem os olhos para o Brasil. Os brasileiros, por exemplo, já não podem mais viajar para a Europa.
A comissária de direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, que, por duas vezes, presidiu o Chile, criticou o negacionismo do governo Bolsonaro e incluiu o Brasil entre os países que não lidam bem com as consequências sociais da pandemia da covid-19. “Na Belarus, Brasil, Burundi, Nicarágua, Tanzânia e nos Estados Unidos — entre outros —, estou preocupada com declarações que negam a realidade do contágio viral e pela crescente polarização em temas-chave, que pode intensificar a severidade da pandemia por torpedear esforços para conter o surto e fortalecer os sistemas de saúde”, afirmou.