Day: junho 30, 2020
Raul Jungmann avalia segurança pública em webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Evento online tem transmissão ao vivo no site e na página da FAP no Facebook
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Ex-ministro da Defesa e extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmann discute segurança pública com internautas, nesta terça-feira (30), das 19h30 às 21h, no quinto webinar da série Reinventar o Rio de Janeiro. O evento online é realizado pelo Cidadania 23 do município com apoio da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que é responsável pela transmissão ao vivo em seu site e em sua página no Facebook.
Jungmann é ex-deputado federal, foi ministro do Desenvolvimento Agrário e ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC (Fernando Henrique Cardoso), ministro da Defesa e ministro extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
Assista ao vivo!
O objetivo da série de webinar Reinventar o Rio de Janeiro é mobilizar lideranças para interferir nas discussões e possíveis intervenções sobre o futuro da cidade maravilhosa. A ideia é manter o comprometimento do partido de buscar sempre melhorias para a cidade, mesmo no período de isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus. Webinar evita a aglomeração física de pessoas no mesmo local e possibilita grande participação online de interessados.
Veja vídeos de outros webinars da série:
Danielle Carusi discute desigualdade no quarto webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Ligia Bahia aponta desafios da saúde no terceiro webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Washington Fajardo discute cidade em webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Confira a abertura da série Webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Bernardo Mello Franco: Quase doutor, quase ministro
Depois de se revelar um quase doutor, Carlos Alberto Decotelli arrisca virar um quase ministro. O novo titular da Educação deveria tomar posse hoje. A cerimônia foi cancelada após a descoberta de que ele turbinou o próprio currículo.
O ministro foi anunciado na quinta-feira como uma escolha técnica. Em quatro dias, suas credenciais desabaram como peças de dominó. Ao contrário do que dizia, o professor não concluiu doutorado em Rosário, na Argentina. Tampouco fez pós-doutorado em Wuppertal, na Alemanha.
Para completar, surgiram indícios de que Decotelli cometeu plágio em sua dissertação de mestrado. A Fundação Getulio Vargas informou que vai investigar o caso, e o mestre prometeu “revisar” as passagens que copiou e colou no trabalho.
O professor não é o primeiro figurão do governo Bolsonaro a ostentar títulos imaginários. O ministro Ricardo Salles já inventou um mestrado em Yale, e a ministra Damares Alves fantasiou que era mestre em educação e direito constitucional no Brasil. No passado, a então presidenciável Dilma Rousseff também teve que remover dois diplomas do currículo.
Salles e Damares conseguiram se segurar, mas a situação de Decotelli é mais complicada que a deles. O histórico acadêmico era seu principal cartão de visitas, e ele foi escolhido para a pasta que supervisiona todo o ensino superior no país.
Além de desgastar a própria imagem, o professor criou um embaraço para seus padrinhos. Oficial da reserva da Marinha, Decotelli contou com o pistolão dos ministros militares. Ontem alguns generais já se penitenciavam pela indicação. A Abin também sai mal do episódio. Mais uma vez, ficou claro que o filtro para as nomeações do governo só funciona no papel.
Em países que levam a educação a sério, quem falseia o currículo não passa um dia nessa cadeira. No Brasil de Bolsonaro, até um Weintraub pode chegar lá. Por ora, o presidente deixou a posse em banho-maria. Diante dos antecessores, um ministro que mente ainda pode ser um mal menor.
Carlos Andreazza: O silêncio de Jair
Bolsonaro teria, momentaneamente, perdido o condão de dar as cartas e pautar o debate
Fato novo de verdade será se o recato atual de Jair Bolsonaro, ainda breve, tiver vindo para ficar. À luz da história de ascensão do bolsonarismo como fenômeno reacionário com ímpeto para a ruptura e ante a forma beligerante como esse projeto autocrático se expressou uma vez no poder: duvido. Porque a permanência do “Jairzinho Paz & Amor” equivaleria à inanição da base social — a sectária — que o sustentou até aqui, e que depende de conflitos constantes e da forja de inimigos artificiais para existir. A rigor: falo de um modo de existência por meio do qual a persona pública Bolsonaro existe.
Tomaria ele o risco de prescindir da parcela da sociedade — cerca de 15% — que lhe garante um piso de partida competitivo e que o tem apoiado de maneira irrestrita? E tomaria pelo quê?
Mais prudente seria supor que se trate de silêncio circunstancial condicionado por ocorrências recentes — um presidente de súbito, e brevemente, convertido à República sob a pressão das apurações policiais.
Refiro-me, antes de qualquer outro, ao caso Queiroz; que caso Queiroz não é — ao menos não prioritariamente. O caso Flávio Bolsonaro, pois; em cujo gabinete, sempre extensão do escritório do pai, operava-se o esquema de rachadinha em função do qual o ex-assessor foi preso — e que tem investigado se o dinheiro levantado pelo caixa paralelo haveria financiado empreendimentos imobiliários da milícia.
Esta me parece ser a principal razão para o silêncio. Bolsonaro sabe que perderia o apoio dos militares se ficasse comprovado um grau de conexão de sua família com milicianos para além das relações já conhecidas nas modalidades de homenagens legislativas e empregos a parentes. Não me parece que um general como Braga Netto, que comandou a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, topasse tocar — ainda que apaixonado pelo espírito milagreiro de um Pró-Brasil — o programa desenvolvimentista pós-pandemia com o filho do chefe denunciado por associação econômica a uma organização criminosa.
Milícia seria o limite para os fardados, mesmo que esses flexíveis ora no Planalto.
Outra explicação para o silêncio transitório seria a dupla de inquéritos que correm no Supremo sob relatoria de Alexandre de Moraes; notadamente aquele dito das Fake News. Proponho ao leitor considerar que essa investigação seja o agente, o marca-passo, que dita o ritmo das reações do presidente — o que, sim, coloca-o em posição passiva. Até quando? Por quanto mais?
Trabalho com esta tese: a de que Bolsonaro teria, momentaneamente, perdido o condão de dar as cartas e pautar o debate; daí por que o silêncio. Não creio ser arranjo duradouro tanto quanto acredito que o rompimento dessa autocontenção venha com barulho. Questão de tempo até que arrebente.
Não é quadra simples. À espera do próximo movimento de Moraes, Bolsonaro estaria acuado, condição explosiva para alguém de sua natureza, e ao mesmo tempo aliviado — talvez iludido — pela sessão do STF que declarou a constitucionalidade do inquérito ter-lhe também limitado o objeto, em seguida ao quê se poderia esperar diligências menos agressivas. Será?
Ele aguarda. É espera precária. Difícil apostar na duração do Bolsonaro passivo; sobretudo porque — retomo — a continuidade de seu silêncio, tanto mais se ligado à ideia de que se deixara tutelar, significaria fazer minguar o grupo militante que lhe dá chão qualquer que seja a crise, mas cuja fidelidade depende das guerras fabricadas contra o establishment.
Note-se que influentes vozes do bolsonarismo — como Filipe Martins, depois de meses de pouca exposição — têm se manifestado, desde dentro do Planalto e não sem alguma insatisfação, para cobrar senso prático da militância diante do que seriam os limites de ação do presidente. Há algum temor aí, materializado na chegada do outrora criminalizado centrão e na debacle de Weintraub; temor lastreado em hipótese formulada assim: ainda que improvável, dado que arriscadíssima, não se poderia descartar a possibilidade de que Bolsonaro — radicalizando a troca de pele — testasse o campo para abandonar sua base social mais antiga.
Ele talvez considere ter exemplos de sucesso para encorajá-lo. Perdeu Mandetta e Moro, com prejuízos na classe média; danos, no entanto, que conseguiria compensar — mantendo estável o patamar de aprovação — com os efeitos do auxílio emergencial aos mais pobres. Este progresso continua. Bolsonaro avança, inclusive no Nordeste, e talvez o cálculo projete que a implementação do Renda Brasil, perenizando a ajuda, e englobando e ampliando em muitos milhões a população coberta pelo Bolsa Família, dar-lhe-ia a gordura para precisar progressivamente menos da porção autoritária de seu populismo.
Duvido — repito. Mas: quem tem cargo tem medo antes; e por motivos outros.
Hélio Schwartsman: Imunidade duradoura?
Talvez não viremos a ter a imunidade de rebanho nem no futuro
Causou preocupação o estudo chinês publicado na Nature Medicine que mostrou que pacientes contaminados pelo vírus Sars-CoV-2 experimentaram uma significativa redução nos níveis de IgG e de anticorpos neutralizantes entre dois e três meses após a infecção. Em alguns casos (40% dos assintomáticos e 13% dos sintomáticos), a doença se tornou indetectável pelos testes sorológicos.
O estudo, que precisaria ser replicado, tem uma série de implicações, todas inquietantes. A mais óbvia é que precisamos desconfiar dos resultados de testes para anticorpos, seja nos inquéritos sorológicos, seja para a emissão dos chamados passaportes de imunidade. Aqui, a própria ideia de liberar a circulação de pessoas que apresentem testes positivos se torna duvidosa, já que não há segurança nem de que os exames retratem adequadamente quem já teve contato com o vírus nem de que a imunidade propiciada por uma infecção prévia seja duradoura.
É esse último ponto que incomoda. Se a imunidade é mesmo de curta duração, não poderemos contar com a imunidade de rebanho nem no futuro, e até a possibilidade de desenvolvermos vacinas eficazes pode ser colocada em questão.
E não é só. Todos os modelos que usamos para projetar o avanço da epidemia são do tipo SIR, isto é, presumem que as pessoas que se recuperam permaneçam nessa condição por um tempo razoável. Se eles estão errados, deveríamos adotar modelos SIS, que trariam cenários mais sombrios.
Devemos, então, nos desesperar? Ainda não. Como dizem os médicos, a clínica é soberana. O vírus circula há mais de seis meses na China e ainda não vimos levas de pacientes recuperados voltando a ficar doentes. Quando isso acontecer, teremos uma resposta precisa sobre a duração da imunidade. Por ora, o que dá para dizer é que o enigma da resistência à Covid-19 é mais complexo e deve incluir, além de anticorpos neutralizantes, a imunidade inata e a celular.
José Casado: Prioridade aos ruminantes
Bolsonaro e o ministro do Turismo perceberam no vírus uma oportunidade para ajudar aliados nas eleições municipais
O pandemônio na pandemia avançou: o governo Jair Bolsonaro decidiu dar prioridade aos ruminantes.
Na última quinta-feira, enquanto o país contava 55 mil humanos mortos pela da doença e por deficiências na rede hospitalar, o ministro Marcelo Álvaro Antônio (PSL-MG), do Turismo, resolveu investir na “revitalização” do Bodódromo de Petrolina (PE), onde ruminantes de chifres ocos podem ser degustados a céu aberto, em geral assados.
Pernambuco é dos estados mais afetados pelo vírus, com mais de 4,5 mil mortos. O governo, porém, achou mais urgente investir R$ 32 milhões em obras turísticas no reduto eleitoral dos herdeiros de Clementino de Souza Coelho (1885-1952), o “coronel” Quelê, construtor de um império político regional no início do século passado.
O prefeito beneficiário, Miguel de Souza Leão Coelho, é candidato à reeleição pelo MDB. Seu pai, Fernando Bezerra Coelho, é o atual chefe do clã. Foi prefeito três vezes, ministro de Dilma (Integração) e está sob investigação no Supremo por suspeita de corrupção (R$ 41 milhões) em contratos da Refinaria Abreu e Lima. Bolsonaro o escolheu como líder da sua “nova política” no Senado.
Em plena pandemia, o governo separou R$ 5 bilhões para o Ministério do Turismo. No início de maio, Bolsonaro editou uma Medida Provisória (nº 963) atribuindo urgência e relevância a esse crédito extraordinário, com a justificativa de emergência por causa da Covid-19.
É caso único de governo que confere às obras turísticas importância e urgência para enfrentar o novo coronavírus. O problema é que não há turismo. As pessoas não saem de casa porque temem a morte nas filas de hospitais públicos onde falta quase tudo, de respiradores a analgésicos. E 76% das empresas do setor estão fechando as portas, segundo o Sebrae, porque não têm acesso ao crédito prometido pelo governo.
Bolsonaro e o ministro do Turismo perceberam no vírus uma oportunidade para ajutório aos aliados nas eleições municipais. Prioridade aos ruminantes é o novo símbolo do pandemônio governamental na pandemia.
Míriam Leitão: A razão de voltar ao velho debate
A resistência tem diversos caminhos, e o país vem dizendo que entendeu o risco e as ameaças do governo atual à democracia
Os shows de Gilberto Gil e Milton Nascimento no fim de semana emprestaram uma trilha sonora sutil e linda ao clima de resistência ao autoritarismo. A pesquisa da “Folha de S.Paulo” trouxe o alento de que aumentou para 75% o apoio à democracia entre brasileiros. Novas manifestações da coalizão de políticos e de atores da sociedade civil surgiram. O Brasil parece ter recuado várias quadras no seu processo histórico, tendo que retomar o esforço de convencimento das virtudes da democracia e lembrar o que foi a ditadura. É necessário?
O vice-presidente Hamilton Mourão, em artigo publicado no “Estadão” há um mês, disse que lendo “colunas de opinião e os despachos de egrégias autoridades” fica a impressão de que “sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil”. Aqueles anos não foram dourados — chumbo é o elemento químico que melhor descreve o período — e a demografia derruba a tese.
Na faixa etária de 65 anos ou mais estão menos de 10% da população. Metade brasileiros tem até 33 anos, é mais jovem que a democracia. Quem tem hoje 43 anos nasceu em 1977, o ano da última luta dentro do Exército, quando a linha dura, encarnada pelo general Sílvio Frota, foi derrotada pelo ditador Ernesto Geisel. Daí para o final do governo militar foram ainda sete anos. O Brasil se livrou penosamente do arbítrio, construiu sua democracia com esforço e deveria estar no trabalho árduo de aperfeiçoá-la. Quem vê de forma idílica aquele período terrível está dentro do governo, e não fora dele. O debate voltou porque ficou inevitável diante da agenda do atual presidente da República.
A democracia tem maioria de defensores, segundo Datafolha, mas há números que assustam. Some-se a parcela dos que concordam que é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal com os que discordam em parte ou concordam em parte e teremos 39% aceitando, total ou parcialmente, o fechamento do STF. Os que defendem o tribunal são 56%. Ainda que 62% atestem que o legado da ditadura foi ruim, 25% dizem que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas. É preciso olhar também o aviso negativo dos números.
Na entrevista à “Época”, Mourão defende os que estão sendo investigados pelo Supremo no inquérito das fake news, dizendo que eles não ameaçam ninguém e que deveriam pagar uma cesta básica e pronto. Totalmente diferente foi o tom usado por ele para definir os que se opõem ao governo. No artigo do “Estadão”, de 3 de junho, chamou os manifestantes contra Bolsonaro de “baderneiros”, “umbilicalmente ligados ao extremismo internacional”. Disse que eles são “caso de polícia e não de política”. No dia seguinte, Bolsonaro os chamou de “terroristas”.
O problema não são apenas os que pedem intervenção militar. Os atos ficaram muito mais importantes quando o presidente participou e os estimulou a seguir adiante. Por que a manifestação pró-ditadura do domingo não teve o mesmo impacto? Porque o presidente não foi. Bolsonaro tem aproveitado os últimos fins de semana para sempre fazer viagens não anunciadas a algum destacamento militar. Primeiro, no entorno de Brasília, neste fim de semana, em Minas Gerais.
Como disse Fernando Gabeira no artigo de ontem neste jornal, a democracia atualmente é comida pelas bordas. É a maneira como o autoritarismo se instala e essa é uma república com muitas tentativas de intervenção militar. O país vem dizendo, de diversas formas, que percebeu o risco.
Gil em festa junina de aniversário cantou com a família clássicos nordestinos. Um, de Dominguinhos e Fausto Nilo, parecia feito agora: “Ô tempo duro no ambiente/ Ô tempo escuro na memória/ O tempo é quente/ E o dragão é voraz/ Vamos embora de repente/ Vamos embora sem demora/ Vamos pra frente que pra trás não dá mais.” Esse duplo dizer aprendeu-se naquele tempo. Milton, no domingo, cantou profundo como se faz em Minas: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”
Pode-se entender disso a pandemia que já matou tantos brasileiros, pode-se entender muita coisa. A delicadeza poética foi afinada na ditadura. A formação de frentes também foi aprendida naquela época. A resistência tem muitos caminhos. O projeto de Bolsonaro é enfraquecer a democracia. Seria estúpido não ver.
Pablo Ortellado: Democracia em disputa
Recorde no apoio à democracia esconde disputas sobre o seu significado
A última pesquisa Datafolha mostrou que o apoio à democracia disparou e atingiu o maior índice desde que começou a ser medido, em 1989. Setenta e cinco por cento apoiam hoje a democracia, ante 62% que a apoiavam em dezembro de 2019 e índices ainda menores no passado.
Uma interpretação possível, como a que constava na manchete da Folha de domingo ("Apoio à democracia bate recorde diante do risco Bolsonaro"), é a de que, reagindo às ameaças de ruptura institucional, os brasileiros reforçaram seu apoio à democracia. Mas será que essa é a interpretação mais plausível?
Antes da pesquisa de junho de 2020, o recorde de apoio à democracia havia sido registrado em outubro de 2018, às vésperas da eleição presidencial, quando a dúvida era se Bolsonaro venceria apenas com larga vantagem ou se elegeria logo no primeiro turno.
O que parecia explicar aquele recorde de apoio à democracia era o fato de um candidato outsider, sem alianças, sem financiamento de campanha e sem tempo de TV ter conseguido derrotar todo o establishment político. De fato, se deixássemos de lado que esse candidato fazia apologia da ditadura militar e defendia a tortura —como parece que fez seu eleitor—, aquele sucesso eleitoral mostrava mesmo um vigor da democracia brasileira e um triunfo da soberania popular.
O fenômeno de 2018 talvez seja a chave para entender o novo recorde de 2020. A leitura de que o crescente apoio à democracia é apenas reação contra o autoritarismo de Bolsonaro despreza o fato de que, se uma parte dos bolsonaristas faz apologia da ditadura, celebrando até mesmo o AI-5, uma parte maior adotou o léxico da democracia.
Estes últimos acreditam que é preciso proteger a democracia de uma ditadura do STF e dos governadores: do Supremo, porque extrapola seu papel ao se impor sobre o Executivo, e dos governadores, porque ameaçam prender os cidadãos sob o pretexto de um vírus cuja letalidade é exagerada. Para eles, seriam também antidemocráticas as tentativas de censura às redes sociais, sob o pretexto de combater notícias falsas, assim como a interferência de organismos internacionais, como a OMS, que ferem a soberania nacional.
Enquanto uma parte do bolsonarismo faz o discurso da ordem autoritária, outra parte concebe esse mesmo projeto como a expressão mais plena da democracia. Isso talvez explique o fato de que, na pesquisa Datafolha, quem avalia bem Bolsonaro apoia menos a democracia, mas só um pouco menos (68% contra 79% dos demais).
Tanto críticos como apoiadores de Bolsonaro celebram a democracia --mas atribuem sentidos muito diferentes a ela.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Merval Pereira: Pouco tempo
A tentativa de escapar da primeira instancia é tão evidente que sua defesa já tentava mudar o foro para o Supremo, alegando que Flávio Bolsonaro fora eleito senador. O STF recusou
As chances de o senador Flavio Bolsonaro conseguir que seu processo sobre a “rachadinha” continue na segunda instância no Rio de Janeiro são próximas de zero. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, defensor intransigente do fim do foro privilegiado, foi sorteado para relatar uma ação do partido Rede contra a decisão do TJ do Rio, - ele deve ficar também com a ação do Ministério Público do Rio -, mas qualquer dos ministros atuais tem a mesma posição, alguns até mais drásticas.
O ministro Marco Aurélio Mello, na reunião de maio de 2018 que decidiu, por unanimidade, restringir o foro privilegiado para deputados federais e senadores, parecia estar adivinhando a polêmica decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que devolveu o processo do senador Flavio Bolsonaro para a segunda instância do Poder Judiciário, contrariando a jurisprudência definida naquela sessão.
Ao apoiar o voto de relator Luis Roberto Barroso, divergiu quanto ao que chamou “perpetuação do foro”. Queria que ficasse explícito que, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça.
Na semana passada, quando da decisão do TJ do Rio, Marco Aurelio reagiu indignado: “É o Brasil do faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso, mas eu entendo de outra forma e aí se toca. Cada cabeça, uma sentença”. Na mesma linha, depois de ajustar seu voto à maioria, o hoje presidente do Supremo Dias Toffoli propôs naquela ocasião estender a todas as autoridades que tenham prerrogativa de julgamento em instâncias superiores, inclusive ministros do Supremo e do Ministerio Público, a restrição ao foro privilegiado.
Foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes, que queria até a edição de uma súmula vinculante considerando inconstitucionais dispositivos de constituições estaduais que estendessem a prerrogativa de foro a autoridades em cargo similar ao dos parlamentares federais. Pouco tempo depois, o STF considerou inconstitucional uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão que estendia a diversas autoridades o foro privilegiado.
Naquele 3 de maio de 2018, o Supremo decidiu, de acordo com o relator, ministro Luis Roberto Barroso, que o foro por prerrogativa de função conferido aos deputados federais e senadores se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas.
Em seu voto, Celso de Mello declarou-se a favor do fim de todas as prerrogativas em matéria criminal, que é o caso de Flavio Bolsonaro, por entender que todos os cidadãos devem estar sujeitos à jurisdição comum de magistrados de primeira instância,. Já no início do julgamento do chamado mensalão ele havia defendido que a questão do foro privilegiado merecia uma nova discussão.
A nova interpretação da Constituição foi um marco na restrição do foro, fazendo uma atualização dos procedimentos adotados anteriormente, quando o foro privilegiado protegia para sempre seu detentor, mesmo quando ele já não exercia a função que lhe dava essa prerrogativa especial, como acontece hoje com o senador Bolsonaro.
A tentativa de escapar da primeira instância é tão evidente que sua defesa já tentara anteriormente mudar o foro para o Supremo, alegando que Flavio Bolsonaro agora fora eleito Senador. O STF recusou essa manobra. Essa dança das instâncias judiciais, aliás, era uma truque muito usado pelos parlamentares, que a cada nova eleição conseguiam mudar o foro para a primeira instância, levando a que o processo voltasse sempre à estaca zero, até a prescrição.
Por isso, a decisão do Supremo naquela sessão de 2018, por proposta do relator Luis Roberto Barroso, foi de que, na publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Era comum a renúncia do parlamentar quando o processo chegava na fase final, para que ele retornasse à primeira instância. Flavio Bolsonaro está fazendo o inverso, quer sair da primeira instância, onde as investigações já estão avançadas, para tentar anular todas as provas já obtidas nesses dois anos de investigações. Só que lhe resta pouco tempo.
Ana Carla Abrão: (Des) construção
Zelar pela Constituição também significa zelar pela justiça social e pela equidade
Instituições fiscais são de difícil construção. Mas, mostra a nossa história, de fácil desconstrução. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que neste ano completou exatos 20 anos, foi um dos grandes avanços institucionais que o Brasil viveu. Era um momento de grandes reformas e grandes conquistas, a maior delas a estabilidade monetária. O pilar fiscal era parte da consolidação dessa conquista. A LRF foi a sua tradução.
A elaboração do projeto de lei complementar veio na esteira da renegociação de dívidas de Estados e municípios pela União. Quebrados após anos de irresponsabilidade fiscal, com crescimento descontrolado do endividamento subnacional, o seu maior objetivo era o de aperfeiçoar a gestão fiscal do País nos três níveis da Federação. Além disso, o projeto de lei resgatava conceitos básicos da gestão orçamentária, como planejamento, transparência e equilíbrio das contas públicas, definindo diretrizes de execução fiscal e delimitando competências e responsabilidades dos agentes públicos.
Há nela o lado da receita, forçando a previsibilidade e o monitoramento da arrecadação própria e de transferências e a compatibilização com o arcabouço orçamentário público já constituído, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei do Orçamento Anual (LOA).
Há também os limites e critérios de endividamento, com uma clara conexão com os anos de descontrole dos subnacionais, amarrando Estados e municípios numa camisa de força que funcionou pelos dez anos subsequentes – até o governo Dilma sorrateiramente ir desatando os fechos, abrindo brechas nos critérios e limites, o que se traduziu no colapso de vários Estados como, por exemplo, o Rio de Janeiro. Houve aí uma primeira grande desconstrução, que deu origem a várias outras que a equipe do governo Temer tentou (e em boa parte conseguiu) reconstruir.
Mas é no lado da despesa pública, consequência de décadas de descontrole, que a LRF mais se detém. Com o objetivo de conter o aumento constante do gasto público, a LRF determina limites e define conceitos com o objetivo de garantir o equilíbrio fiscal e, consequentemente, a boa gestão pública. Há conceitos gerais, como a condicionante de apontamento de fonte de financiamento para a criação de nova despesa, e há limites objetivos, como aqueles relacionados à despesa de pessoal ou aos serviços de dívida (pagamento de juros e amortizações) em relação à receita corrente.
Mas é na dimensão das despesas de pessoal que a LRF se viu lenta e continuamente desconstruída ao longo dos anos. A lei define limites de comprometimento da receita corrente líquida com despesas de pessoal de 50%, 60% e 60% para a União, Estados e municípios, respectivamente. As sanções pelo descumprimento desse limite abrangem desde o impedimento de contratação, proibição de criação de novos cargos ou pagamento de horas extras para funcionários, até a interrupção de recebimento de transferências intergovernamentais.
Além dessas sanções, os chefes do Executivo que não cumprirem os limites da lei respondem por crime de responsabilidade fiscal e podem ficar inelegíveis. Medidas de correção devem ser tomadas para retornar aos limites em até dois quadrimestres após o descumprimento. Os instrumentos para isso são a demissão dos servidores comissionados e, sequencialmente, daqueles estáveis contratados a menos tempo. A redução de jornada de trabalho com proporcional redução de salários é também uma saída prevista na LRF. Certamente menos traumática que as anteriores, mas suspensa por liminar aguardando o julgamento que finalmente ocorreu. Infelizmente.
Na decisão da semana passada, o STF decidiu pela inconstitucionalidade de dois dispositivos da LRF e feriu de morte os conceitos de justiça social e de controle de gastos. Além de eliminar a possibilidade de uso da redução de jornada como forma de cortar despesas de pessoal, o STF também proibiu a redução dos orçamentos dos Poderes autônomos em caso de frustração de receita.
Na prática, as decisões da Suprema Corte conseguiram não só desconstruir – agora formalmente – a LRF, mas também o feito de aprofundar ainda mais nossa desigualdade social, consagrando a divisão do Brasil em castas. Há a casta de servidores públicos, que têm seus salários protegidos da crise econômica, enquanto a maioria agoniza. Mas há ainda, dentro dessa casta, um subconjunto mais protegido contra intempéries e mazelas econômicas e sociais do Brasil, que são os servidores dos Poderes autônomos.
As duas decisões são cruéis e injustas, em particular neste momento. Blindam-se alguns em detrimento de tantos e mantém-se Judiciário, Legislativo e Ministério Público com seus orçamentos – e consequentes penduricalhos – intactos.
Ao Executivo cabe agonizar e cortar na carne gastos que atingem orçamentos prioritários, como os de educação e de segurança pública.
Zelar pela Constituição – missão primeira e imprescindível do STF – também significa zelar pela justiça social e pela equidade. Ao desconstruir a LRF, os ministros preteriram essa importante missão em favor do corporativismo.
*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.
O Estado de S. Paulo: Vamos ter uma alteração estrutural da economia no pós-covid, diz Edmar Bacha
Integrante da equipe que criou o Plano Real disse que recuperação do Brasil será lenta, mas abrirá espaço para a questão da distribuição de renda do País e o aumento dos gastos públicos
Vinicius Neder, O Estado de S.Paulo
RIO - O economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (IEPE/CdG) e integrante da equipe que criou o Plano Real, vê pouco espaço para uma recuperação rápida, em “V”, da economia brasileira, que entrou em recessão no primeiro trimestre deste ano, conforme o Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Membro do órgão colegiado, Bacha acha que o mais provável é que o ritmo de recuperação da atividade estacione num platô, à medida que o impulso das medidas do governo for passando.
Embora seja favorável à discussão sobre a manutenção dos auxílios emergenciais via unificação dos programas de transferência de renda, Bacha ressalta o aperto dos gastos públicos no País, que exige reformas para liberar espaço para ampliar o investimento em políticas focadas na redistribuição da renda.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Estamos em meio à recessão, mas há espaço para recuperação em “V”?
Nos Estados Unidos, como reportou a Marcelle (Chauvet, professora da Universidade da Califórnia, integrante do Codace, na reunião da última sexta-feira, 26), foi feita uma pesquisa muito interessante com economistas sobre a forma da retomada. Já houve duas rodadas da pesquisa. Na primeira, a maior parte dos economistas colocou o “V”, e, agora, todo mundo mudou do “V”, para algo que começa com um “V” inclinado, mas logo depois atinge um platô. E essa questão do platô é fundamentalmente por causa do esgotamento dos impulsos fiscal e creditício que o governo está dando. Quando isso acabar, como vai ficar? Depois, do lado do vírus, tem a questão de que isso vai exigir uma realocação muito pronunciada da atividade econômica. O mundo pós-covid não vai ser o mesmo. Vai ser bastante diferente. A natureza da atividade econômica vai ser muito distinta, com setores que vão ser beneficiados e os setores que vão ser prejudicados. Vamos ter uma alteração estrutural, se não permanente, pelo menos prolongada na estrutura das atividades econômicas.
No caso do Brasil, o quadro é diferente, já que o espaço fiscal para manter medidas é menor?
Obviamente, o Brasil tem bastante menos espaço fiscal do que os países que têm moeda-reserva. (…) Com esse agravamento do quadro fiscal, estamos indo para uma relação dívida pública sobre PIB de 100%. Agora, se temos menos espaço fiscal, temos um pouquinho mais de espaço monetário. Os juros lá (nos países desenvolvidos) já estão em zero. Isso é uma questão complexa, que vai depender muito da capacidade que temos de reestabelecer o ânimo empresarial e a disposição dos consumidores a gastar.
Os impulsos ficais ajudam no consumo das famílias, não?
Nos Estados Unidos, por causa das transferências, houve uma retomada muito forte, praticamente no nível anterior, do consumo das classes mais pobres. O consumo que está retraído é o consumo dos 25% mais ricos, do pessoal que fugiu de Manhattan. Esse consumo vai voltar quando o medo passar. O curso do vírus é que vai determinar um pouco esse processo de retomada do consumo da parte mais substantiva do total. Embora seja menos gente (os 25% mais ricos), o poder de compra é muito maior.
Isso vai acontecer no Brasil ainda?
Com certeza. Não temos ainda esse tipo de dado. Nos Estados Unidos é um pouco mais fácil porque aqui as pessoas mais pobres ainda gastam em dinheiro. Isso é mais difícil de traçar.
Diante disso, deveríamos investir na manutenção dos auxílios emergenciais?
O ideal seria a gente encontrar um espaço fiscal para fazer uma ampliação do Bolsa Família. Esse é um tema que está em discussão muito ampla, tem propostas pipocando para todo lado, algumas mais fantasiosas, outras mais realistas. Há uma coisa emergencial, que é o prolongamento do auxílio, dado que o vírus não se abateu no período que estávamos com esperança que se abatesse. A outra questão é como será o formato mais ou menos prolongado desse processo.
O sr. é favorável a uma ampliação das transferências?
Acho importante, temos que discutir isso. Podemos fazer desta crise uma oportunidade para uma discussão séria sobre distribuição de renda no País.
É possível fazer isso sem reformas, como a administrativa e a tributária?
A alternativa a isso seria aumentar brutalmente os impostos, o que não é o caso. Já estamos com uma carga tributária, para nosso nível de renda, bastante alta. Temos que conseguir um jeito é de redistribuir o gasto. E tem que melhorar a qualidade dos impostos, obviamente.
Qual a consequência de continuar aumentando a dívida pública?
Isso seria autodestrutivo, porque a retomada depende do restabelecimento de um ambiente de negócios. As oportunidades estão aí. A do saneamento está sendo criada (com a aprovação, na semana passada, do novo marco regulatório para o setor). A questão é saber se o pessoal (os investidores) vai vir. Para vir, precisa ter confiança no ambiente de negócios e em tudo o mais. Num País que está com a dívida descontrolada, quem vai ser louco (de investir)?
Como fazer as reformas?
Vai ter que fazer uma redistribuição. Então, vai haver perdedores, sem dúvida. Não é fácil. Não é uma coisa para fazer do dia para a noite. Vai precisar de um debate amplo na sociedade, para ter uma avaliação muito clara para as pessoas do que se trata. Não vai chover dinheiro. Vamos tirar dinheiro de um lado e colocar no outro. É importante que esse debate seja bastante amplo, porque se depender só dos lobbies que pressionam o Congresso, não vamos chegar a lugar algum.
O sr. está mais pessimista ou otimista com os rumos da economia?
Estamos numa situação extremamente difícil. Normalmente, os períodos de expansão são muito mais prolongados do que os períodos recessivos. É uma característica do ciclo econômico tradicional. Agora, pega essa última leva. Tivemos um período recessivo, de 2014 a 2016, que é praticamente da mesma extensão (11 trimestres) que a expansão que tivemos até o ultimo trimestre do ano passado (de 12 trimestres). Só isso já é uma sinalização bastante clara da precariedade. A economia já estava andando de lado. Essa expansão não foi nada para ficar muito entusiasmado. A economia já não vinha bem das pernas. Precisamos ter um conjunto de mudanças muito substantivas para uma retomada mais vigorosa e para termos um espaço mais amplo para essa discussão dos sistemas redistributivos, que são tão importantes no Brasil.
As medidas dos países desenvolvidos podem beneficiar o Brasil com um crescimento global maior?
Já estamos nos beneficiando da retomada na Ásia. As exportações brasileiras para a Ásia estão indo muito bem, obrigado. Nesse sentido, sim, mas isso olhando para os próximos meses. A questão que se coloca mais à frente, pós-covid, é como vai ser essa reestruturação, a recomposição da economia mundial, toda essa questão do protecionismo e do papel das organizações internacionais. Isso vai depender muito do resultado das eleições (presidenciais) americanas (marcadas para novembro).
Andrea Jubé: Os “influencers” de Bolsonaro
Preocupação de presidente é maior do que qualquer coisa que se possa imaginar
Jair Bolsonaro é o terceiro chefe de governo mais popular do mundo nas redes sociais, atrás do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e do presidente Donald Trump, segundo levantamento da consultoria Quaest. Se Bolsonaro se impôs como “influencer”, com dezenas de milhões de seguidores - embora adversários questionem uso de robôs - a pergunta é: quem influencia Bolsonaro?
Em 2019, na primeira semana do governo, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), ministro Augusto Heleno, disse em uma coletiva de imprensa que o instinto de Bolsonaro havia falhado no trágico dia do atentado à faca na campanha eleitoral.
“Ele tem um sentimento muito grande de quando pode e quando não pode, mas um dia esse sentimento falhou”, comentou Heleno. “Com o tempo passando, talvez podemos ter algum trabalho para contê-lo, porque é da personalidade dele”, completou o ministro, até então considerado o “guru” presidencial.
Apesar do sentimento de “quando pode e quando não pode” que Heleno atribuiu a Bolsonaro, esse instinto de sobrevivência vinha dando sinais de nova pane nos últimos meses, guiando o presidente rumo ao cadafalso. Se a primeira falha quase lhe custou a vida, o novo defeito poderia lhe custar o mandato.
Foi o que o presidente ouviu do ampliado grupo de conselheiros de seu entorno, que há pelo menos três meses insistiam que ele governasse um tom abaixo. Como Heleno havia advertido, foi trabalhoso conter o presidente. Uma das primeiras crises que o chefe do GSI teve de contornar foi o episódio do “golden shower” no Carnaval do ano passado.
O esforço de tutela da ala militar ficou evidente quando dois dias depois da desastrosa publicação do vídeo obsceno, Bolsonaro apareceu na estreia das “lives” das quintas-feiras espremido entre dois generais: um Heleno com o cenho franzido à esquerda, e o porta-voz, Otávio do Rêgo Barros, à direita.
Naquela época, Heleno, Rêgo Barros e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas despontavam como conselheiros presidenciais no campo moderado, em contraponto aos filhos Eduardo e Carlos Bolsonaro, de perfil combativo.
Um ano depois, em meados de março, Bolsonaro fez os primeiros movimentos de aproximação do Centrão e inaugurou as conversas ao pé do ouvido com caciques como Gilberto Kassab (PSD) e Ciro Nogueira (PP). Em paralelo, a ala militar ganhou o reforço dos generais Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).
Todos tentavam convencer Bolsonaro a suspender as declarações incendiárias na saída do Alvorada, e a não comparecer às manifestações antidemocráticas, a fim de arejar a cena política. Mas como Heleno havia alertado, esse comportamento é da “personalidade dele”.
O discurso da caçamba de uma caminhonete em abril, diante do Forte-Apache, no Dia do Soldado, selou o início do agravamento da crise. “Nós não queremos negociar nada (…) é o povo no poder”, bradou a apoiadores, que portavam faixas pela intervenção militar, AI-5 e fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Desde então, sucederam-se reveses ao governo - o impedimento da nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal, a divulgação do vídeo da reunião ministerial, a ação policial no inquérito das “fake news” -, até que um apelo eloquente de conciliação veio do discurso de posse do ministro das Comunicações, Fábio Faria, que conclamou um “armistício patriótico”. Ironicamente, era a véspera da prisão de Fabrício Queiroz.
Vários conselheiros presidenciais reconhecem que a detenção de Queiroz foi o fator decisivo para que Bolsonaro aceitasse renunciar ao estilo bélico. Desde a prisão, o Bolsonaro das declarações inflamadas emudeceu. Sobre o revés, apenas lamentou na “live”: “parecia que prenderam o maior bandido da face da terra”.
Uma fonte que acompanhou de perto esses desdobramentos diz que Bolsonaro finalmente assimilou os conselhos porque percebeu que não tinha força para continuar com todo aquele radicalismo. Foram decisivos para a mudança de postura o receio de interrupção do mandato e a necessidade de blindar os filhos. “A preocupação com o futuro dos filhos é maior do que tudo que você possa imaginar”, ressaltou.
A escalada da crise nos últimos meses fez surgir no entorno presidencial grupos de conselheiros. Na ala jurídica - certamente a mais sensível - despontam como os mais ouvidos: o ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, o presidente do STF, Dias Toffoli, e o ministro do STF Gilmar Mendes.
Embora o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, tenha assessorado Toffoli, fontes ligadas a “Jorginho” (como é chamado pelo presidente) atribuem a ele a aproximação entre Bolsonaro e o presidente do STF.
Durante a transição, o então Subsecretário de Assuntos Jurídicos (SAJ) do governo Michel Temer, Gustavo do Vale Rocha, e Jorge Oliveira, que ia assumir o mesmo posto, se aproximaram. Estreitados os laços, Rocha aproximou Oliveira e Toffoli.
Na esfera política, o grupo mais influente é formado pelo ministro Fábio Faria, e pelos presidentes de partidos: Kassab, Ciro Nogueira, e Marcos Pereira, presidente do Republicanos. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), reforça esse núcleo.
O Republicanos de Marcos Pereira abriu as portas para Flávio e Carlos Bolsonaro, que estavam desconfortáveis em suas legendas, onde não poderiam esperar pela criação do Aliança pelo Brasil. Flávio deixou o PSL, e Carlos saiu do PSC do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, desafeto de Bolsonaro. Na última semana, Pereira ofereceu um jantar de afago a Flávio, que contou com a presença de Maia e Alcolumbre.
Fontes privilegiadas do meio jurídico afirmam que a relação de Bolsonaro com o futuro presidente do STF, Luiz Fux, não será a mesma construída com Toffoli, que tem estilo conciliador. Fux deverá frequentar menos o Planalto. O passado também vai pesar: Fux era amigo do ex-ministro Gustavo Bebbiano, morto em março de ataque cardíaco, e com quem Bolsonaro rompeu no começo do governo.
Eliane Cantanhêde: A crise continua
Bolsonaro mantém Decotelli em nome de seus 42 anos de vida pública, mas até quando?
A erosão do “robusto currículo” do professor Carlos Alberto Decotelli dá raiva, pena e, principalmente, medo da disputa reaberta no Planalto para fazer o novo ministro da Educação depois do inusitado Vélez Rodríguez, do inqualificável Abraham Weintraub e do constrangedor Decotelli. A ala militar, que indicou o doutor que não é doutor, está envergonhada. A ala ideológica, dos filhos do presidente, está esfregando as mãos, gulosa. E o Centrão, vai desperdiçar essa chance?
As chances de Decotelli permanecer ministro pareciam ter ruído junto com o seu currículo, já que a tese de mestrado na FGV é acusada de fraude, o título de doutor na Argentina não existe e o pós-doutorado na Alemanha foi uma um devaneio – não há pós-doutorado sem doutorado. O presidente Jair Bolsonaro, porém, decidiu prestigiar “o lastro acadêmico e sua experiência de gestor”, em detrimento de “problemas formais de currículo”. Por enquanto, Decotelli fica. Até quando?
O único item do currículo que fica em pé é o curso de Administração na Universidade Estadual do Rio (Uerj), o que poderia ser suficiente para a posse no MEC. O problema é inventar títulos e ser acusado de plágio, um vexame inominável para ele próprio e um constrangimento desnecessário para Bolsonaro, que, induzido ao erro, publicou nas redes sociais o currículo cheio de buracos. Assim como ele, a mídia também.
Bastaram os repórteres vasculharem daqui e dali para descobrir esses buracos. Por que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não fez o seu trabalho de filtro? Ou displicência, ou a checagem de nomes é só ideológica, ou a decisão foi tão rápida pelo presidente que não deu tempo de consultar o GSI/Abin. A terceira hipótese faz mais sentido. Bolsonaro tinha pressa para indicar um nome, porque a “ala ideológica” – leia-se: os filhos e assessores fascinados pelo tal guru da Virgínia – não queria perder a vaga. A “ala militar” agiu rápido e o presidente assinou a nomeação.
O fato é que Bolsonaro não dá a mínima para o ministério e para a própria Educação, fundamentais em qualquer lugar do mundo e ainda mais no Brasil, onde o problema maior, o problema-mãe, é a desigualdade social. Como criar uma grande nação com uma parcela tão grande da população excluída, sem chance de um lugar ao sol. Como salvar a Educação, garantir o futuro das crianças pobres? Com Vélez, Weintraub, Decotelli, ideologias fajutas, currículos fraudulentos? E esse drama não acabou. Pobre MEC, pobre Educação, pobres crianças pobres.
E por que a “pena”, ao lado de raiva e medo no primeiro parágrafo? Decotelli é um professor negro, respeitado no meio acadêmico, com perfil técnico, e foi muito bem recebido depois de dois traumas sucessivos no MEC. Num momento de mobilizações nos Estados Unidos e no mundo democrático pela igualdade racial, ele seria o primeiro negro num governo que tem na Fundação Palmares Sergio Camargo, um negro que nega o racismo no Brasil. Logo, Decotelli tinha tudo a ver. Mas não resiste aos fatos.
O professor deu estranhas versões ontem ao presidente e à mídia, dizendo que o plágio na tese de mestrado na FGV foi porque “leu demais” e que sua tese de mestrado foi reprovada por ser “muito profunda”, o que remete a uma comparação injusta, mas que acaba surgindo, com o mentiroso advogado Frederick Wassef. Haja cara de pau!
O que fica é tristeza, desencanto, constrangimento, vergonha. Decotelli parecia uma grande referência e exemplo, mas foi virando uma grande decepção e constrangimento. O presidente anuncia que ele fica, mas, como tudo o que é ruim sempre pode piorar, não convém desprezar a hipótese de um terceiro “olavista” no nosso MEC.