Day: junho 28, 2020
Eleições 2020: Qual desafio de prefeitos e vereadores eleitos? Veja resposta agora
Em artigo publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, Luiz Paulo Vellozo Lucas diz que renovação das lideranças pode inaugurar agenda democrática e reformista
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Prefeitos e vereadores eleitos em 2020 serão desafiados a conquistar e acumular confiança pública e capital cívico, para dar conta de governar seus municípios nesta crise”. A avaliação é do engenheiro Luiz Paulo Vellozo Lucas, ex-prefeito de Vitória (ES) e mestrando em Desenvolvimento Sustentável na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), em artigo que publicou na 20ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com o autor do artigo, a renovação das lideranças locais em eleições livres pode inaugurar uma agenda democrática e reformista, visando a corrigir e fazer avançar as instituições que estruturam o Estado brasileiro em um processo de baixo para cima.
“Começa no processo eleitoral deste ano debatendo, sem as muletas do populismo e do pensamento mágico, soluções viáveis de enfrentamento pactuado do déficit de vida urbana civilizada e da exclusão social, tanto nas metrópoles, com suas favelas, como nos distritos e vilas do interior, distantes do dinamismo industrial”, afirma o analista, no artigo que publicou na revista Política Democrática Online.
A agenda reformista precisa sair das caixinhas setoriais para adotar o ponto de vista das cidades, que, segundo ele, é o ponto de vista das pessoas. “O desafio das reformas é um só, Inter setorial e holístico. A cidade integra todas as dimensões: fiscal e tributária, política e federativa, social e econômica, tecnológica, ambiental e humana”, diz o autor. “O desafio das eleições municipais é abrir caminho para esta agenda em cada cidade e para o Brasil”.
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Gustavo Franco: Liberalismo e pandemia
A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica
Os adversários do liberalismo econômico, à direita e principalmente à esquerda, são de três tipos:
Há os que dizem que o liberalismo, o neoliberalismo e a teoria econômica convencional estão todos obsoletos, já mortos, ainda mais agora com a pandemia.
Há os que dizem que o liberalismo econômico é hegemônico no Brasil e, por isso, precisa ser abandonado, uma vez que a economia brasileira está estagnada desde os anos 1980.
E há os que dizem as duas coisas.
Sobre os do tipo número dois, me ocorre um comentário a esse respeito do próprio Roberto Campos, feito nos idos de 2000, quando afirmou que, até aquele momento, o liberalismo ainda não havia sido tentado no Brasil.
Campos deixou esse mundo em 2001.
Pois bem, depois disso o PT fez dois presidentes que foram reeleitos, e os dois outros presidentes a seguir, colegas improváveis de Campos da 50.ª legislatura (entre 1991 e 1994), Michel Temer e Jair Bolsonaro, nada tinham de liberais.
É verdade que o Brasil está estagnado desde os anos 1980, mas muito provavelmente isso tem a ver com deficiência de liberalismo, e não com hegemonia.
Sobre os que dizem que o liberalismo e o saber convencional em economia estão mortos, seria bom lembrar que uma das piores consequências do politicamente correto, à esquerda e à direita, era desvalorizar a “expertise”.
A internet, como se sabe, cada vez mais funciona como uma espécie de memória auxiliar do cérebro humano: o que você não sabe, pode ser encontrado no Google ou na Wikipedia, em segundos, basta teclar no seu celular. Com esses auxílios, qualquer um se torna um especialista ou, pior, um apoquentador de especialistas: subitamente, a expertise não apenas não vale mais nada como atacá-la virou uma demonstração de independência e desprendimento. Os novos idiotas da objetividade são os cretinos da internet, Nelson Rodrigues e Humberto Eco estariam rigorosamente na mesma página nesse assunto.
A ciência devia nos guiar, sobretudo quando a noite cai, mas, em vez disso, nesse clima de rede social sem controle há tempos que se ouve que a ciência é apenas uma narrativa, uma de muitas, e que todas são legítimas, todas estão presentes na internet, ao alcance dos dedos, e que vai prevalecer a que tiver mais clicadas.
Sou um otimista, acho que vai ser o contrário, a pandemia vai sumir com essa cretinice de que a ciência é apenas uma narrativa. Tomara que seja também o caso da medicina alternativa em economia, que possui uma vertente milagreira de viés contábil, crescentemente presente em Brasília, com o auxílio da qual sempre se pode encontrar algum tesouro escondido (amiúde no balanço do Banco Central) que vai pagar todas as contas da pandemia, ou algum truque contábil que vai fazer sumir as dívidas do Estado.
É claro que são truques ordinários, como o que fazia desaparecer o déficit da Previdência com uma reclassificação contábil, e que nada se resolve desse jeito. Mas os políticos adoram. Perde-se tempo precioso com isso, remédios milagrosos, cloroquina contábil.
O fato é que a urgência sanitária vai elevar o gasto e a dívida pública a níveis impensáveis em 2020. Depois de muito esforço, nesse ano íamos fazer um déficit de uns R$ 100 bilhões, e estávamos na beira do precipício da sustentabilidade fiscal. Pelo que se fala no Congresso, o déficit vai para perto de um trilhão, e a dívida pública vai chegar em 100% do PIB.
Como será o funcionamento do governo federal nessas condições? Será parecido com o que se vê em alguns Estados quebrados? Atrasos e calotes todo o tempo? Como nos países que lutaram na Segunda Guerra durante muitos anos depois do término do conflito?
As democracias liberais não deixam de ser democracias, nem deixam de ser liberais, quando lutam guerras. Democracias adultas pagam as suas contas e sabem de onde vem o dinheiro. A pandemia não pode servir de pretexto para ressuscitar a feitiçaria econômica.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS
Eliane Catanhede: ‘Caráter inusitado’
PGR em chamas, MP, PF, Receita e ex-Coaf são peças do quebra-cabeças lançado por Moro
A Procuradoria-Geral da República está em chamas e a força-tarefa da Lava Jato reclama do “caráter inusitado” da ação da subprocuradora geral Lindôra Araújo, braço direito de Augusto Aras e ligada à família Bolsonaro, que desembarcou em Curitiba exigindo arquivos e dados sigilosos das investigações e criando a impressão de uma devassa na Lava Jato que pode atingir até o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Esse, porém, é apenas mais um fato “inusitado” num país com quase 60 mil mortos de covid-19.
A audácia de Lindôra corresponde à sucessão de mentiras ridículas do advogado Frederick Wassef, capaz de inventar até “forças ocultas” que queriam matar Fabrício Queiroz para atingir o presidente Jair Bolsonaro. E lembra o pedido inusual da delegada da PF Denisse Ribeiro para o Supremo suspender as investigações sobre bolsonaristas golpistas e, assim, evitar “risco desnecessário para a estabilidade das instituições”. Tudo muito inusitado.
O mais grave, porém, é que a ida da procuradora a Curitiba ocorre quando o presidente Jair Bolsonaro é investigado pelo Supremo justamente pela acusação, feita por Moro, de intervir politicamente na Polícia Federal. E tudo num contexto maior de controle dos órgãos de investigação do País, não só para proteger filhos e amigos, como admite o presidente, mas também para perseguir adversários, como suspeitam governadores, ministros do STF, cúpula do Congresso e o próprio Moro. Ou seja, os alvos.
Lindôra, aliás, também exigiu os arquivos da Lava Jato em São Paulo e Rio e já tinha requisitado de todos os Estados e DF as investigações contra governadores. Ela alega que é coordenadora da Lava Jato na PGR e isso faz parte do trabalho, mas seus próprios pares desconfiam dessa “justificativa técnica”, convencidos de uma ação política coordenada. Tanto que três procuradores pediram demissão do grupo de trabalho e uma quarta já tinha saído por divergências.
Assim como Bolsonaro é investigado por intervir na PF e Lindôra invade investigações do MP em Curitiba, Rio e São Paulo, vale lembrar que, depois de revelar ao mundo a existência de um tal de Queiroz, o Coaf saiu do Ministério da Justiça, pulou de galho em galho e foi parar no Banco Central com o nome de UIF. E Bolsonaro, segundo o Estadão em 30/4, já pressionou a Receita Federal para perdoar dívidas milionárias de igrejas evangélicas.
Tudo somado, tem-se que Bolsonaro e seus seguidores têm uma visão muito particular e pouco republicana dos órgãos de investigação: PF, MP, Receita e Coaf, agora UIF. Essas peças vão montando o quebra-cabeças lançado por Moro a partir da demissão do competente delegado Maurício Valeixo da PF e das sucessivas mexidas na superintendência do Rio. Foram inusitadas, mas fazem todo o sentido.
Com Bolsonaro acuado e os militares passando a estabelecer (finalmente...) claros limites entre governo e Forças Armadas, veio à tona o personagem “Jairzinho Paz e Amor”, que dialoga com Judiciário e Legislativo, baixa o tom, ameniza a expressão, para de incendiar o País a cada manhã e de atiçar golpismos a cada domingo. Paz e amor, porém, implicam também órgãos de Estado e de governo independentes, apartidários, sem ações de “caráter inusitado” para salvar filhos e amigos e massacrar “inimigos”. Paz é paz, guerra é guerra.
Saúde
Reunido na quinta-feira para definir as promoções, o Alto Comando do Exército manteve em aberto e não indicou ninguém para a vaga de general de Divisão de Eduardo Pazuello, que foi cuidar da logística na Saúde e acabou ministro. Ele avisou que volta à Força em três meses. É a previsão para o fim da pandemia?
Elio Gaspari: Foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair
Estabilidade se deveu à primeira conciliação nacional partida da oposição, graças à genialidade de Tancredo
O primeiro general entrou no Palácio do Planalto em 1964 e o último (o quinto) saiu por uma porta lateral em 1985.
Contada assim, a ditadura durou 21 anos, mas ela se diferenciou de outras latinoamericanas, comunistas, africanas e até mesmo de algumas europeias.
Sua maior singularidade esteve na rotação da Presidência. Enquanto pelo mundo afora os ditadores só deixavam o poder mortos ou depostos, no Brasil todos tiveram mandatos. O regime intitulava-se “revolução”.
Disso resultou que o governo do marechal Castello Branco (1964-1967) pouco se parece com o de Arthur da Costa e Silva (1967-1969).
A Presidência de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) pouco teve a ver com a de Ernesto Geisel (1974-1979). Foi Médici quem escolheu Geisel para sucedê-lo e anos depois diria que, “se arrependimento matasse, eu já teria morrido”.
Nenhum dos quatro se pareceu com João Baptista Figueiredo (1979-1985). Quando ele saiu pela porta lateral do Palácio, estava afastado de Geisel, o país estava quebrado, o regime havia perdido a credibilidade.
A estabilidade política foi salva pela primeira conciliação nacional partida da oposição, graças à genialidade de Tancredo Neves. (Ele viria a ser eleito indiretamente, mas morreu sem tomar posse.)
As duas décadas de ditadura produziram progresso e pleno emprego, bancarrota e recessão, ordem pública, censura e torturas, moralidade e corrupção (numa escala centesimal).
O coronel-deputado Costa Cavalcanti, que construiu a hidrelétrica de Itaipu, morreu com patrimônio irrelevante.
Até hoje, as viúvas da ditadura fingem que as ruínas não aconteceram, e seus adversários relutam em admitir que algumas coisas deram certo.
Fulanizando: o general Augusto Heleno disse em 2018 que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia.”
E o que fizeram no Araguaia? Entre outubro de 1973 e o segundo semestre de 1974, a tropa do Exército combatia uma guerrilha do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia.
Matou cerca de 40 combatentes, inclusive aqueles que atenderam aos convites para que se rendessem.
Presos, eram interrogados e em seguida, assassinados. Uma guerrilheira achada debaixo de uma árvore à míngua foi presa, alimentada, ouvida e executada.
A ditadura teve períodos de relativa liberdade de imprensa e de severa censura. A repressão política exacerbou-se a partir de 1968 e declinou depois de 1977. Praticada em nome do combate a um surto terrorista que foi debelado em 1971, gerou uma força militar indisciplinada.
A bomba que explodiu na casa do jornalista Roberto Marinho em 1976 foi colocada por oficiais. Eram militares lotados no DOI-Codi o capitão e o sargento que em 1981 levaram outra bomba para o estacionamento do Riocentro na noite em que se realizava um espetáculo musical. (O sargento morreu quando ela explodiu no seu colo.)
Como os cinco presidentes foram generais, uma memória seletiva do período finge que a disciplina militar deu ordem ao regime. Falso.
Em 35 anos de regime democrático, o Brasil ainda não teve um só episódio significativo de anarquia militar. Durante a ditadura, registraram-se pelo menos cinco episódios relevantes (em 1965, 1968, 1969, 1977 e 1981).
Castello Branco era um general de tintas francesas. Recusou-se a suspender os direitos políticos do jornalista Carlos Heitor Cony e escreveu:
“Não vejo razão para cassar-lhe o mandato [Cony não tinha mandato, seria o caso de tirar-lhe os direitos políticos]. É, às vezes, insolente, e quase sempre, mentiroso. Tem atacado desabridamente o ministro da Guerra e enuncia ideias que desrespeitam as Forças Armadas. Contra mim, formula insultos: o presidente é um ‘pau-mandado’ na mão de seus subordinados. Em vez de retirar-lhe os direitos políticos, o que muito o valorizaria, prefiro deixá-lo com seus artigos. A revolução sairá ganhando”.
O general francês foi emparedado por seu ministro do Exército, Costa e Silva. Eleito presidente em 1967, o marechal autoemparedou-se em 1968 e baixou o Ato Institucional nº 5, fechando o Congresso, emasculando o Judiciário e criando o mecanismo processual que facilitava a tortura de presos.
Para isso suspendeu o instituto do habeas corpus para crimes contra a segurança nacional e garantiu a incomunicabilidade dos presos por dez dias.
Em 1969, Costa e Silva teve uma isquemia cerebral que o deixou mudo e semiparalítico.
Seu vice era um civil, o deputado Pedro Aleixo, prontamente impedido com a posse de uma Junta Militar. A censura proibia o uso dessa expressão, mas os três ministros militares foram chamados de “Os Três Patetas” pelo general Ernesto Geisel (em conversas privadas) e pelo presidente do MDB, Ulysses Guimarães (mais tarde, em declaração pública).
À isquemia de Costa e Silva sucederam-se semanas de anarquia militar enquanto um conclave de generais escolhia o novo presidente. “Elegeu-se”, não se sabe como, o general Médici. Dias depois a escolha foi ratificada pelo Congresso reaberto.
O mito da ordem da ditadura pode ser avaliado a partir de dois episódios. Durante o governo de Costa e Silva, o general Ernesto Geisel, que havia chefiado a Casa Militar de Castello Branco e se opusera à sua escolha, estava no Superior Tribunal Militar.
Quando alguém lhe telefonava para tratar de política, mesmo sendo uma pessoa que habitualmente não usava palavrões, fazia o seguinte preâmbulo:
“Cuidado, que tem uns filhos da puta aí que andam empoleirados nos cargos públicos aí que querem ouvir a minha conversa. De maneira que vão à merda”.
A esse tempo, Antonio Delfim Netto (que não trabalhava com grampos), mandava na economia. Foi o ministro da Fazenda mais poderoso da história republicana.
Anos depois, Geisel estava na Presidência e impediu-o de ser governador de São Paulo. Como preferia tê-lo na administração, desde que ficasse longe, em junho de 1974 Delfim chegou discretamente a Brasília para uma conversa com o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel. Entrou na sala da Granja do Ipê e o anfitrião indicou-lhe o lugar onde deveria sentar.
Eram dois os microfones ocultos e o devia ser ligado debaixo de uma armário da cozinha. “Eu desconfiei quando ele apontou a cadeira”, contaria Delfim mais tarde.
A anarquia militar chegou ao seu ponto culminante no segundo semestre de 1977, quando o ministro do Exército, general Sylvio Frota, embandeirou-se para suceder Geisel.
Adversário da política de abertura “lenta, segura e gradual” do presidente, em suas memórias Frota viria a atribuir-lhe “tendências socialistas” 11 vezes. No dia 12 de outubro de 1977, Geisel demitiu-o.
O ministro foi para a audiência em que foi dispensado achando que demitiria Geisel, com a autoridade que lhe teria sido conferida pelos integrantes do Alto-Comando do Exército, algo como o Conselho de Administração de uma empresa trocando seu executivo.
Enganou-se, e ao prevalecer, Geisel restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas.
A abertura iniciada por Geisel foi conduzida e concluída por Figueiredo, um cavalariano cardiopata, que cultivava um folclore de vulgaridade. A sorte faltou-lhe. Explodiram no seu colo três bombas.
Em 1981, deu-se o atentado do Riocentro. Meses depois, suas coronárias entupiram, e no ano seguinte a dívida externa levou o país à bancarrota.
Seu governo foi ruinoso, mas, salvo seus maus hábitos pessoais, não foi ele quem provocou as desgraças. As ruínas eram do regime.
Se a ditadura certamente começou em 1964, não é fácil dizer quando ela terminou. O AI-5 foi extinto em 31 de dezembro de 1978.
Figueiredo assinou a Lei da Anistia em agosto de 1979, e em 1982 realizaram-se eleições diretas para os governos dos Estados. Leonel Brizola, exilado e vigiado desde 1964, voltou ao Brasil e elegeu-se governador do Rio de Janeiro.
Castello Branco dizia que era fácil entrar numa ditadura, mas era difícil sair dela. Vem daí a dificuldade para se dizer quando acabou a “revolução” de 1964.
Ela acabou aos poucos e aos solavancos. O Brasil ficou devendo a Tancredo Neves a costura dos atos finais desse processo. Ele ajudou a construir uma coisa que ainda hoje muita gente acha que não aconteceu: uma conciliação vinda da oposição.
Sergio Fausto: Trump e Bolsonaro, não há mal que sempre dure
A maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática parece retroceder
Após 155 anos da aprovação da emenda constitucional que pôs fim à escravidão e 56 anos depois da entrada em vigor do Civil Rights Act, que tornou inconstitucional a segregação racial e quaisquer outras formas de discriminação nos Estados Unidos, milhões de norte-americanos foram às ruas para protestar contra a sistemática prática policial de violência contra os cidadãos negros daquele país.
“The arch of History is long, but it bends towards justice”, dizia Martin Luther King. O longo arco da História americana curvou-se em direção à justiça sempre que negros e brancos se juntaram para fazer valer a mais importante passagem do documento que em 1776 fundou a nação. “Todos os homens são criados iguais e com direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, se lê na Declaração de Independência. Em dois séculos e meio, a História americana alternou períodos de conformismo com momentos em que uma maioria social e política se formou para encurtar a distância entre o ideal proclamado e a realidade vivida. Vivemos uma dessas conjunturas críticas.
O assassinato de George Floyd por um policial da cidade de Minneapolis pode vir a ser o gatilho de um realinhamento de forças sociais e políticas de longa duração nos Estados Unidos, com efeitos para além das fronteiras do país. As manifestações que se seguiram não apenas reduzem ainda mais as chances de reeleição de Donald Trump, já abaladas pela avaliação negativa do seu desempenho diante da pandemia, como também dão impulso a tendências que podem levar a uma derrota histórica do Partido Republicano em novembro deste ano.
O partido de Abraham Lincoln foi colonizado ao longo das últimas décadas pelo fundamentalismo religioso, pela xenofobia e pelo racismo (não dito, mas praticado, como transparece nas diversas medidas aprovadas em Estados dominados pelo partido para dificultar o exercício do voto por negros e latinos). O Grand Old Party, quem diria, terminou sequestrado por um político sem ideais ou escrúpulos, como Donald Trump.
Pesquisas de opinião mostram que os democratas consolidam progressivamente uma ampla coalizão majoritária. A indignação contra o atual presidente fornece a energia que provavelmente levará jovens, negros e latinos às urnas em maior número do que quatro anos atrás. A vantagem do candidato democrata entre as mulheres não tem precedente histórico. Além disso, o partido está recuperando parte dos votos dos brancos de menor escolaridade e seu candidato presidencial está à frente entre os maiores de 65 anos.
Joe Biden na Casa Branca com maioria democrática nas duas Casas do Congresso tornou-se uma possibilidade real (basta o partido conquistar três cadeiras no Senado e terá a maioria, com o voto de Minerva da vice-presidente). Sim, no feminino, pois é dado como certo que Biden terá uma companheira de chapa, ao que tudo indica, uma mulher negra.
Não é certo, mas é possível, mesmo provável. Se acontecer, a vitória será do partido que espelha no seu eleitorado e nos seus representantes eleitos as transformações culturais, comportamentais e demográficas da sociedade americana, contra um partido agarrado à nostalgia de uma América em que negros, latinos e mulheres eram cidadãos de segunda classe, a homofobia era a regra e as energias fósseis, sinônimo de progresso. Tão ou mais importante, será a vitória de um partido que, além do apoio de grupos específicos, conquistou corações e mentes do cidadão comum para a necessidade urgente de civilizar o capitalismo americano com a adoção de políticas sociais abrangentes, em especial na área da saúde.
A admiração basbaque de Bolsonaro por Trump é conhecida. Eles têm afinidades, a começar pela falta de empatia com o sofrimento humano e a insensibilidade em relação às injustiças sociais. Para o presidente americano, George Floyd foi apenas mais um negro morto pela polícia. E daí? Perante os protestos, brandiu a ameaça de chamar os militares. Obteve uma resposta à altura de Forças Armadas que bem compreendem o seu papel numa democracia: repúdio. O mais eloquente vindo de ninguém menos que o general James Mattis, ministro da Defesa até dezembro de 2018, que acusou Trump de dividir a nação e infringir os direitos constitucionais dos cidadãos americanos ao ameaçar os manifestantes com o uso das Forças Armadas. O atual chefe do Estado-Maior Conjunto fez um mea culpa público depois de acompanhar Trump numa encenação política diante de uma igreja perto da Casa Branca.
A provável virada política nos Estados Unidos é um alento para as democracias. Indica que a maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática pode estar retrocedendo. E não por motivos fortuitos, mas porque, uma vez no governo, os mesmos atributos antiestablishment que os tornaram eleitoralmente vitoriosos os fazem incapazes de liderar seus países em tempos que pedem políticos de qualidade superior, e não mediocridades orgulhosas de sua ignorância.
- Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP
Luiz Carlos Azedo: Aras versus Moro
“A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda informações obtidas por escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores”
Tudo indica que o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu mesmo domar a Operação Lava-Jato, neutralizando completamente o que ainda resta de influência junto ao Ministério Público do ex-ministro da Justiça Sergio Moro — idealizador e líder da operação, quando juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. Nos bastidores, Aras vem repetindo a interlocutores que sua principal missão à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR) é “despolitizar” o órgão. Na avaliação dele, a PGR vinha sendo palco de disputas políticas entre grupos internos. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo, fora da lista tríplice eleita pelos procuradores, parece ter sido esse o grande pacto firmado entre ambos.
O problema é que a Lava-Jato é uma linha de força do processo político brasileiro, uma espécie de fronteira entre a ética e a política, que deveriam andar de mãos dadas, mas não é bem assim que acontece. Mesmo que os procuradores da Lava-Jato percam o protagonismo nas investigações, permanecerão tendo enorme influência no comportamento da opinião pública e no processo eleitoral. Quando nada porque já promoveram um notável expurgo na vida política brasileira, ao conseguir a aprovação da Lei da Ficha Limpa e denunciar boa parte da atual elite política do país. É ilusão imaginar que Moro e seus aliados serão carta fora do baralho nas eleições de 2022. Eles já têm até um partido pronto para oferecer uma alternativa: o Podemos, do senador Álvaro Dias (PR).
Por isso mesmo, é bom prestar atenção na queda de braço entre a subprocuradora da República Lindora Maria de Araújo, atual responsável pela condução da Lava-Jato na PGR, e a força-tarefa de Curitiba. Na sexta-feira, os procuradores Hebert Reis Mesquita, Victor Riccely Lins Santos e Luana Macedo Vargas pediram exoneração das funções, permanecendo no grupo que trabalha com Lindora apenas Alessandro José Fernandes de Oliveira e Leonardo Sampaio de Almeida. Antes, a procuradora Maria Clara Noleto, também por divergências, já havia chutado o balde. A crise foi provocada por uma visita de Lindora Araujo à força-tarefa de Curitiba, na quarta e na quinta-feiras, que gerou, inclusive, uma reclamação desses procuradores junto à Corregedoria Nacional do Ministério Público Federal, “como medida de cautela” e “para prevenir responsabilidades”.
Caixa-preta
Segundo o coordenador da operação no Paraná, procurador Deltan Dallagnol, a chefe da Lava-Jato na PGR buscou acesso a procedimentos e bases de dados da força-tarefa “sem prestar informações” sobre a existência de um processo formal no qual o pedido se baseava ou o objetivo pretendido. “Diante do caráter inusitado das solicitações, sem formalização dos pedidos e diligências”, os procuradores do Paraná realizaram uma reunião virtual para discutir o caso. Para Dallagnol, era preciso adotar cautelas formais para a transferência, a fim de evitar questionamentos e arguição de nulidades sobre informações e provas. Segundo ele, a corregedora Elizabeta Ramos os informara de que não há qualquer procedimento ou ato no âmbito da Corregedoria que embase o pedido de acesso da subprocuradora-geral aos procedimentos ou dados da força-tarefa.
A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda grande quantidade de informações e provas obtidas por meio de escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores, além de depoimentos de testemunhas e investigados pela Lava-Jato. Lindora pretendia ter acesso também ao sistema de escutas telefônicas utilizado pela força-tarefa. Os procuradores de Curitiba recusaram-se a ceder as informações. Em nota, a PGR negou a busca de “compartilhamento informal de dados”, mas assumiu, sim, a intenção de obter “informações globais sobre o atual estágio das investigações e o acervo da força-tarefa, para solucionar eventuais passivos”. De acordo com a PGR, a visita foi agendada previamente, e a corregedora Elizabeta Ramos somente não participou da comitiva porque estava doente.
Autor de Corpo e alma da magistratura brasileira, o professor Luiz Werneck Vianna, certa vez, classificou os integrantes da Lava-Jato como uma espécie de “tenentes de toga”, comparando-os aos jovens oficiais que integraram o Tenentismo, movimento de insubordinação militar que resultou na Revolução de 1930 e, depois, na ditadura do Estado Novo (1937). “Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”, comparou, em 2016. Quatro anos depois, os militares estão de volta ao poder, sem um programa, e os “tenentes de toga” ensaiam um projeto próprio de poder, com Moro.
Cristovam Buarque: Renda inclusiva
Renda mínima merece apoio mas não tem consequência emancipadora da pobreza real
A crise social e econômica pela Covid-19 criou unanimidade na defesa da Renda Básica da Cidadania Universal. Este apoio à generosidade de uma renda para os pobres é natural, mas é incorreto passar a ideia de que ela promove inclusão social. Deve-se apoiar a ideia da renda mínima, alertando para o fato de que se trata de um gesto sem consequência emancipadora da pobreza real. Uma ferramenta positiva para reduzir a penúria, sem superar a realidade da pobreza.
Quando a ideia da Bolsa Escola foi divulgada, em 1987, no livro “A revolução nas prioridades”, seu nome era Renda Mínima Vinculada à Educação. Reconhecia o papel inspirador de Eduardo Suplicy, mas explicitava a diferença estratégica com a Renda Mínima. A adoção posterior do nome Bolsa Escola teve como propósito deixar claro que no lugar da renda era a educação que faria a inclusão, a bolsa era um salário à mãe para que seus filhos não faltassem às aulas.
A Renda Mínima parte do conceito de que a pobreza pode ser atendida pelo aporte de dinheiro à família para ela comprar o que precisa no mercado. Distribui uma pequena renda, sem distribuir patrimônio. A Renda Vinculada parte do conceito de que a pobreza decorre da falta de acesso a uma cesta essencial, composta por, no mínimo: comida; endereço com água potável, coleta de lixo e esgoto; educação de base com qualidade; atendimento ambulatorial e hospitalar; transporte público.
Parte da cesta essencial exige renda e compra no mercado, parte exige acesso a bens e serviços públicos. A Renda Vinculada à Inclusão funciona como um incentivo monetário que assegura renda para o beneficiário pagar pela comida e transporte público, e induz seu trabalho na produção de serviços de que sua família precisa para completar a cesta essencial: educação, saneamento, moradia. Além disso, diferentemente da distribuição mínima de renda, distribui também o patrimônio produzido.
A Bolsa Escola é um exemplo. Transfere renda para enfrentar as necessidades imediatas, mas, ao exigir que as crianças frequentem a escola até o final do ensino médio, promove a inclusão social. A bolsa atende à possibilidade de sobrevivência, a escola induz a sair da pobreza. O mesmo conceito se aplica aos outros incentivos sociais que atuam como rendas emancipadoras, tais como: pagamento condicionado a melhorar a própria moradia do beneficiado; renda vinculada à plantação de árvores no bairro, à construção ou cuidado de parques infantis, pintura de escolas; bolsa para analfabetos aprenderem a ler; renda para jovens fazerem serviço militar-civil ou para obterem um ofício; um salário para pessoas se submeterem a treinamento e depois cuidarem de crianças sem vaga em creche; emprego em obras de saneamento; pagamento de renda para promover desmigração de quem desejar sair de grandes cidades e voltar à sua cidade de origem.
O beneficiado que recebe uma renda mínima sem vinculação necessita ser rentista para sempre, sem sair da pobreza; aquele que recebe uma renda inclusiva, com vinculação, ao final de um prazo, tem o patrimônio que ele produziu: a casa ampliada, rebocada, pintada, com saneamento; os velhos alfabetizados e os filhos educados. A renda atende às necessidades imediatas, seu condicionamento promove a ascensão social, graças ao que será produzido.
O custo financeiro de um programa de Renda Inclusiva pela Vinculação seria o mesmo de um programa de Renda Básica da Cidadania; requer, entretanto, esforço gerencial do Estado na sua execução. Por isso, a simplicidade da ideia da renda mínima sem condicionamento sensibiliza os defensores da estratégia do “neoliberalismo social”, com o Estado mínimo, limitado a uma rede de agências bancárias, como está sendo feito com o Auxílio Emergencial.
*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília
Igor Gielow: Ditadura formou geração de militares que hoje povoam governo Bolsonaro
Uma das bases de sustentação do atual governo, fardados trazem do regime autoritário a mentalidade de que as Forças Armadas são importantes para a união nacional
A ascensão do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro ao poder fez brilhar os olhos de uma geração de oficiais-generais brasileiros.
Após 33 anos fora do núcleo decisório do país, os fardados enxergaram uma oportunidade de redenção.
Em aproximação mediada por generais da reserva que haviam encampado a candidatura, houve, depois do primeiro turno, a bênção do Alto-Comando do Exército, principal órgão da estrutura militar brasileira, a Bolsonaro.
O resultado, passado um ano e meio de governo de fato, é a maior crise existencial recente das Forças Armadas.
“Há uma confusão institucional. Chama a atenção o grande número de militares no governo”, diz o primeiro general da reserva que deixou o primeiro escalão, Carlos Alberto dos Santos Cruz (ex-Secretaria de Governo).
Em uma “live” do Instituto Brasiliense de Direito Público no sábado (20), ele classificou de desequilibrado o papel dos militares na política. “Há excesso. Isso começa a deteriorar o comportamento.”
Hoje, 10 dos 23 ministros do governo vieram da caserna, incluindo aí o interino da Saúde, general Eduardo Pazuello. A exemplo do sucessor de Santos Cruz, Luiz Eduardo Ramos, Pazuello é da ativa. “Para ir ao governo, todo mundo tem de passar para a reserva”, afirma o ex-ministro.
Ramos prometeu adiantar sua saída do serviço ativo. Mais próximo militar, historicamente, de Bolsonaro, ele personifica um conflito que remonta ao regime de 1964.
A ditadura foi a última de uma série de intervenções militares desde a proclamação da República, em 1889, um clássico golpe fardado.
A República Velha terminou em 1930 com outro golpe. Os anos de 1945, com o fim do Estado Novo, e 1954, marcado pelo suicídio de Getúlio Vargas, também veriam ações decisivas de alteração do poder civil pelas mãos militares.
Em 1975, o cientista político americano Alfred Stepan (1936-2017), analisou a correlação das Forças Armadas com o poder civil no Brasil.
Ele traça a formação do caráter de tutela que os militares se arrogaram ao longo da história. Mas estabelece limites, lembrando que duas tentativas de golpe (1955 e 1961) que não tiveram apoio legitimador de parte expressiva da elite civil fracassaram.
Essa leitura salvacionista, de união nacional, é visível nas duas notas assinadas pelo ministro da Defesa de Bolsonaro, o general da reserva Fernando Azevedo, acerca do golpe de 1964.
Ali está o resumo do que sua geração acredita: o movimento militar teria sido necessário para deter o alinhamento do governo de João Goulart (1919-1976) com o então comunismo internacional e teve amplo respaldo interno.
Sendo parte de um processo histórico, o golpe não deveria envergonhar os militares —torturas e assassinatos, além das progressivas perdas de liberdades civis, são esquecidas na avaliação.
Bolsonaro sempre promoveu a ditadura, enquanto um obscuro deputado, principalmente seu caráter repressivo.
No poder, envernizou um pouco o discurso, mas seu instinto provocador de crise entre Poderes constante manteve a tensão alta entre os fardados a seu lado.
Não são poucos: além dos ministros e altos funcionários, há hoje 2.900 militares da ativa emprestados para funções civis na Esplanada.
A dita ala militar do governo, sempre fraturada, buscou apresentar-se moderada e também moderadora.
Isso teve altos e baixos, dado o embate dela com a ala ideológica representada pelos filhos presidenciais e seus aliados no governo, mas de forma geral repetiu o formato de pretensa tutela do poder civil pelos militares.
Não deu muito certo na prática, dado o caráter incontrolável de Bolsonaro, mas a crescente ocupação de cargos vitais no Planalto e na Saúde durante a pandemia da Covid-19 mostra um efeito prático da intenção.
Antes da posse de Bolsonaro, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, disse em uma entrevista à Folha que a vitória do capitão não era a volta dos militares ao poder, embora temesse uma politização dos quartéis.
Hoje ela assusta observadores nem tanto nas Forças, mas sim nas polícias, em especial militares, muitas vezes identificadas ao bolsonarismo.
Isso é uma novidade histórica, dado que nas oportunidades em que houve conflito envolvendo forças estaduais, como em 1930, 1932 ou 1961, eram os governadores que retinham o apoio das tropas.[ x ]
A grande quantidade de questões internas para as Forças é ressaltada por Stepan em seu trabalho. Tendo travado sua última grande guerra regional no Paraguai há 150 anos, desafios externos acabam sendo substituídos por tarefas de cunho político.
O grande período de turbulência e tutela de 1945, após a queda de Getúlio Vargas, até o golpe de 1964 viu tal espírito intervencionista se expandir até o paroxismo da ditadura.
No primeiro governo militar, do marechal Humberto Castello Branco (1899-1967), foi feita uma reforma buscando normalizar tal agitação.
Foi determinado um sistema pelo qual 25% do efetivo de oficiais-generais, em todos os níveis, seria renovado todos os anos.
Na outra ponta, foram tomadas medidas para reduzir a politização dos estratos mais baixos da tropa, vistas como vulneráveis ao socialismo.
Antes, os fardados já haviam passado pelo processo interno de apagamento da memória da FEB, a Força Expedicionária Brasileira que lutou em 1944 e 1945 na Itália.
Quando voltaram ao país, os comandantes foram espalhados de forma a não constituir um núcleo político: tinham ido lutar contra o nazifascismo e voltaram para a ditadura do Estado Novo, que seguia tal orientação. Ainda assim, foi por pressão militar que Vargas deixou o cargo.
A reforma dos anos 1960 veio com dificuldade, e trouxe o conflito entre Castello Branco e seu ministro da Guerra, Arthur da Costa e Silva (1899-1969), e por fim o último se tornou o presidente do AI-5.
Só Castello Branco havia lutado na FEB, entre os presidentes da ditadura. Costa e Silva, diz Stepan, “era considerado simpático aos desejos de um governo mais militante e autoritário e de uma posição menos pró-americana e mais nacionalista”.
O ato institucional que recrudesceu a ditadura, em 1968, foi um divisor de águas. Os militares aferraram-se ao poder de forma definitiva.
É na década de 1970 que se forma o núcleo dos generais de Bolsonaro, ele mesmo um cadete da turma de 1977. O decano deles, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1969 e sempre abraçou causas políticas enquanto estava no serviço ativo.
Suas críticas à política indigenista do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lhe custaram o Comando da Amazônia e, em 2011, foi impedido de saudar o golpe de 1964 em sua despedida à reserva.
De forma paradoxal, foi sob Lula (2003-2010) que os militares tiveram um grande ganho do ponto de vista material.
Projetos estratégicos de armamentos, liderança na Missão de Paz da ONU no Haiti, aumento de verbas e de participação nas GLOs (operações de garantia da lei e da ordem) marcaram o período.
Os anos Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) são, por sua vez, lembrados com desprezo pelo oficialato.
Consideram que foram relegados ao segundo plano em suas funções militares, já estando fora da política, e a criação do Ministério da Defesa foi vista como uma subordinação indesejada ao poder civil.
Sob Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), os ruídos políticos cresceram, devido principalmente à Comissão da Verdade, que apontou crimes da ditadura, avaliada pela cúpula militar como um tribunal de um lado só.
Com o impeachment da petista e a chegada de Michel Temer (MDB) para seus dois anos de poder em 2016, o caminho para a volta ao protagonismo foi aberto.
A Defesa foi entregue em 2018 para um general de quatro estrelas, acabando com o princípio simbólico da pasta, e o general Sérgio Etchegoyen (GSI) assumiu papel vital no aconselhamento do governo.
O sequestro do estamento militar pela ritualística do governo Bolsonaro desandou nas ameaças veladas de uso das Forças contra outros Poderes pelo presidente.
Em uma “live” do grupo Personalidades em Foco, em 20 de maio, Heleno rechaçou golpismo.
“Não passa [pela cabeça] golpe, intervenção. [Devo isso aos] nossos instrutores, vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política.”
A frase é reveladora pelo seu aposto: “muitas vezes necessária”. Heleno é visto como o mais duro dos generais que migraram para o Planalto com Bolsonaro, mas sua visão não é hegemônica.
Coube ao general Azevedo fazer o papel de pivô moderador da turma fardada, com um alinhamento grande com seu ex-subordinado Walter Braga Netto, o general que comanda a Casa Civil. Ramos, que também serviu sob o comando do atual ministro, já esteve mais próximo dele.
O agravamento da crise tríplice pela qual passa o Brasil, com a Covid-19 se somando a uma recessão à vista e à tormenta política, tem aumentado os ruídos entre o serviço ativo e os militares de terno.
Stepan aponta que isso ocorria já no auge da ditadura. Se estivesse vivo, poderia fazer associações à repulsa dos comandantes pelo ativismo sindicalista que era preconizado por Bolsonaro, um militar indisciplinado.
Nas três décadas fora do poder, as Forças “se afastaram das crises políticas, impeachments, casos de corrupção” e têm “credibilidade alta” entre a população, diz Santos Cruz.
O general, que passou pelos dois lados do balcão, resume o momento militar atual: “Situação complexa”.
Onde estavam os bolsonaristas
General Augusto Heleno
Concluiu a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1969. Em 1977, capitão recém-promovido, assumiu o cargo de assessor do ministro do Exército, Sylvio Frota
General Fernando Azevedo
Iniciou a carreira no Exército em 1973, na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, e fez parte da Brigada de Infantaria Paraquedista
General Hamilton Mourão
Formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1975
Jair Bolsonaro
Em 1977, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras
General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira
No ano de 1979, foi aspirante a Oficial da Arma de Infantaria
General Eduardo Pazuello
Em 1984, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras, como oficial de intendência (assessor do comandante na administração financeira e na contabilidade)
General Walter Souza Braga Netto
Entrou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1975. Foi aspirante a oficial da arma de Cavalaria, em 1978.
Olavo de Carvalho
Entre 1966 e 1968, militou no Partido Comunista contra a ditadura militar. Nos anos 1970, atuou como astrólogo.
Paulo Guedes
De 1974 a 1978 estava fazendo doutorado na Universidade de Chicago (EUA)