Day: junho 28, 2020

O Estado de S. Paulo: Aliados de Bolsonaro tentam isolar extremistas

Grupos de apoio ao presidente moderam discurso e apagam vídeos depois de participarem de atos antidemocráticos e STF pôr em xeque ‘presidencialismo de colisão’

Marcelo Godoy, Pedro Venceslau e Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo

Após fracassar sua ofensiva para deter as ações do Supremo Tribunal Federal (STF), o bolsonarismo propõe agora uma détente entre as instituições e procura isolar os grupos radicais que pregam “intervenção militar”, com o fechamento do Congresso e da Corte. Nos círculos mais próximos do presidente, o movimento é justificado em razão da avaliação de que extremistas, como Sara Geromini, estariam “contaminando” os movimentos pró-governo.

A decisão de se descolar desses grupos veio após ações do STF que levaram extremistas à prisão e à quebra de sigilos de apoiadores e parlamentares bolsonaristas, além da prisão de Fabrício Queiroz, apontado pelo Ministério Público como operador financeiro de Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no esquema das rachadinhas. Os grupos intervencionistas sempre foram tolerados e até dividiram carros de som com expoentes do bolsonarismo. Organizadores de atos pró-governo e aliados do presidente pregam agora que eles sejam isolados e rotulados como indesejados, como se fossem black blocs da direita.

“Desde as Diretas-Já sempre tem um maluco com uma placa que diz bobagem. Esse pessoal com bandeiras inadequadas não representa o pensamento do grupo que apoia Bolsonaro”, disse ao Estadão Luís Felipe Belmonte, terceiro na hierarquia do Aliança Pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro tenta criar. Belmonte foi um dos alvos da ação da PF no caso das fake news. “Essa história de fechar Congresso e STF é uma conversa estúpida e sem nenhum fundamento. Não tem apoio no grupo do Bolsonaro.”

Um dos fundadores do Avança Brasil, Newton Caccaos disse que os grupos radicais “atrapalham” com atitudes impensadas, como os fogos contra o STF. “Não sei qual é a da Sara Geromini, que já foi de esquerda, mas virou de lado. Não podemos ser confundidos com os mais radicais e intervencionistas.”

A operação de retirada do bolsonarismo das pautas extremistas ocorre dois meses após o presidente ter ido a ato que defendia o golpe em frente ao quartel do Exército, em Brasília. A mudança pode ser vista nas redes sociais. Na quinta-feira, o youtuber Alberto Silva, do canal O Giro de Notícia, publicou vídeo no qual aparece vociferando contra “eles”, sem especificar o alvo. “Eles fazem esse tipo de notícia como se nós fôssemos bandidos”, disse, citando escândalos do noticiário nos últimos anos. “Aqui o dinheiro é lícito.”

Dias antes, o canal de Silva apagou 148 vídeos, segundo levantamento de Guilherme Felitti, da empresa de análise de dados Novelo. Os títulos e descrições das obras removidas dão uma ideia de quem seriam “eles”: a sigla STF aparece 251 vezes, sempre como alvo. Outros canais também moderaram o discurso. “Sou contra fechar o Supremo”, disse em vídeo Adilson Dini, do Ravox Brasil, um dos investigados pela Justiça. 

Os bolsonaristas apagaram 3,1 mil vídeos desde que o STF agiu contra o esquema que buscava emparedar a Corte, segundo os dados de Felitti. “É claro que o STF está agindo com base em uma demanda, porque a democracia vem sendo atacada. O problema é que a gente está concentrando o poder no Supremo. Qual a garantia de que isso não vai ensejar abusos?”, indagou o cientista social Caio Machado, da Universidade de Oxford, que pesquisa desinformação e discursos de ódio no YouTube.

Colisão

Para o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, Bolsonaro se elegeu como representante da antipolítica e com as redes sociais. “Mas não se governa com a antipolítica ou com as redes.” Ao se recusar a criar uma coalizão, Bolsonaro escolheu o que Jungmann chama de “presidencialismo de colisão”, uma fórmula que está esgotada.

“Desarticulada pelo STF, a base digital dele perde capacidade de operar. Também ficou evidente que as Forças Armadas nunca estiveram à disposição de Bolsonaro (para aventuras).” Símbolo disso seria a passagem à reserva do ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, após pressão do Alto Comando do Exército. 

Com a pandemia, as ações do STF e a falta de apoio à ideia de um golpe, o presidente se veria, na análise do cientista político José Álvaro Moisés, em uma encruzilhada. “Ele não cria uma resposta coordenada e eficaz contra a crise da covid-19. Isso afeta todas as classes sociais.”

É por isso que Bolsonaro lançou a détente, afastando-se de manifestações e demitindo Abraham Weintraub da Educação. Na Guerra Fria, a détente foi a política entre as superpotências – EUA e URSS – que visava a diminuir as tensões e o risco de uma guerra catastrófica. A détente bolsonarista serve para estancar a crise com o STF e o Congresso. Em encontro com Dias Toffoli, presidente da Corte, Bolsonaro disse: “O nosso entendimento pode sinalizar que teremos dias melhores para o nosso país”.

Para Manoel Fernandes, sócio da consultoria Bites, Bolsonaro precisa manter a base mobilizada com confrontos. “Em breve vai arrumar outro inimigo.” O alvo, então, pode ser um governador ou o resgate da pauta de costumes. Na guerra fria entre os Poderes, o STF e o Congresso têm suas armas – o primeiro, inquéritos criminais e o segundo, o impeachment. Bolsonaro sabe. E, por isso, adota o estilo Jair paz e amor. “O que ninguém sabe é até quando”, disse Moisés.

Cresce oposição nas redes

Levantamento da Bites mostra que no Facebook, Bolsonaro obteve neste ano mais compartilhamentos do que o presidente americano, Donald Trump. O presidente tem 10,5 milhões de seguidores, fez 990 publicações e conseguiu 20 milhões de compartilhamentos. Trump, com 28 milhões de seguidores, publicou 2.680 posts e teve 17 milhões de compartilhamentos.

Desde a posse, Bolsonaro somou 14 milhões de seguidores nas suas redes – hoje tem 37,4 milhões. Fez 8,7 mil posts e obteve 1 bilhão de interações. Ao mesmo tempo, segundo Fernandes, ele criou um sistema de comunicação em torno dele – só os cinco principais sites de propaganda em forma de notícia do bolsonarismo contaram 24 milhões de visitas em maio, enquanto seus influenciadores mantêm de 400 mil a 2 milhões de seguidores no YouTube.

Mas nem tudo são rosas para o bolsonarismo. A radicalização dele criou um movimento – ainda difuso – de oposição. De 15 de março a 25 de junho, Bolsonaro teve 38,7 milhões de menções no Twitter associadas a hashtags positivas e 17,2 milhões negativas. “Um dado importante é a quantidade de perfis únicos que produziram as hashtags, incluindo as repetições. São 7,1 milhões de bolsonaristas e 8,2 milhões de perfis de oposição. Tem mais gente de oposição falando do que bolsonarista. Os bolsonaristas falam mais vezes”, disse Fernandes. Para ele, os números mostram que só uma oposição unida e com um líder claro pode derrotar Bolsonaro.

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O Estado de S. Paulo: Cresce adesão a rede de extrema direita

Criada nos Estados Unidos em 2016, plataforma Gab não restringe discursos de ódio e desinformação e tem atraído usuários brasileiros

Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Com a adesão de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, o Gab, uma rede social de extrema direita conhecida por não se opor a publicações com teorias conspiratórias, desinformação e discursos de ódio, afirma que seu crescimento explodiu nas últimas semanas, na esteira dos protestos contra o governo e do cerco das grandes plataformas da internet a conteúdos racistas e violentos.

Um comunicado enviado pela empresa a usuários cadastrados, no início deste mês, fez um aceno aos críticos dos movimentos que foram às ruas após a morte de George Floyd, segurança negro assassinado após abordagem policial, em Minnesota (EUA), e zombou do que chamou de “religião” de empresas como Facebook e Twitter.

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Rede social não faz restrição ao conteúdo publicado pelos seus usuários, mesmo que tenham notícias falsas, discurso antissemita, racista ou campanhas de ódio Foto: Reprodução

“Nas últimas semanas, Gab experimentou o maior aumento de crescimento em quase quatro anos de história. À medida que as gigantes de tecnologia continuam a sinalizar apoio aos manifestantes e proíbem qualquer um que se atreva a discordar de sua religião de ‘wokeness’ (expressão relacionada à preocupação com injustiças sociais e racismo), as pessoas estão ficando cansadas e saindo das plataformas do Vale do Silício em busca de comunidades que compartilham seus valores”, afirmou o comunicado.

Desde que foi criada, no período das eleições americanas de 2016, a rede social acumula críticas por servir, quase sem filtros, como repositório a discursos antissemitas e racistas. Tornou-se um fórum popular entre os chamados “supremacistas brancos”, simpatizantes de ideias nazistas e demais radicais de extrema direita dos Estados Unidos que eram banidos das maiores plataformas.

O homem que cometeu um atentado contra uma sinagoga, em Pittsburgh, em outubro de 2018, era um ativo usuário do Gab e usava sua conta para disseminar mensagens como “judeus são filhos do satã” e compartilhar memes de cunho racista com textos que mencionavam judeus como “inimigos dos brancos”.

Apesar de os números atuais não serem revelados, a comunidade brasileira exerceu papel importante para consolidar a rede social. Em 2018, os brasileiros eram 22,7% dos 635 mil usuários registrados, segundo informações prestadas pela empresa à agência americana equivalente à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A participação colocou o Brasil em segundo entre os maiores mercados do Gab, à frente de Canadá, Inglaterra e Alemanha.

Em 2019, eram 900 mil usuários, ao todo. Conforme o relatório anual apresentado pela empresa em 29 de maio, atualmente 1,175 milhão de pessoas têm perfis na plataforma, que mistura características do Twitter e do Facebook. Há um limite de caracteres a cada publicação, os usuários se organizam por hashtags, é possível seguir perfis e interagir com os posts. 

A preferência da extrema direita pela plataforma não se dá por acaso. Por trás do Gab está Andrew Torba, um empresário conservador crítico do que considera “viés ideológico” das empresas de tecnologia e alguém que classifica as fake news como liberdade de expressão. “A liberdade de expressão significa que você pode ofender, criticar e fazer memes sobre qualquer raça, religião, etnia ou orientação sexual. Estou doente e cansado dos padrões de ‘discurso aceitável’ e ‘classes protegidas’, tanto à esquerda quanto à direita”, escreveu Torba, na rede social que criou.

O movimento que passou a levar brasileiros ao Gab, em 2018, foi influenciado por críticas que Facebook e Twitter também sofriam à época por restringir publicações. Além disso, campanhas de desinformação que alertavam para uma falsa cobrança de mensalidade nas redes mais populares funcionaram como incentivos, relatam pesquisadores.

Houve, ainda, propagandas veladas no Twitter. O emoji que representa um sapo foi apropriado por grupos de extrema-direita e passou a ser usado no microblog. Uma ilustração do animal era usada como marca do Gab. A inspiração vem de Pepe The Frog, um desenho animado com cabeça de sapo e corpo humanoide. O personagem foi listado como símbolo de ódio por organizações judaicas.

O presidente Jair Bolsonaro e os filhos não têm perfis oficiais no Gab, mas brasileiros se organizam em grupos de apoiadores que replicam ataques feitos por bolsonaristas em outros meios. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso são alvos frequentes, assim como ex-aliados, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) e o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Inspirado pelos protestos nos Estados Unidos, um perfil identificado como “STFDefendeBandido17” publicou mensagem que chama os negros de preguiçosos porque “botaram os brancos para protestar para eles”. 

O grupo Direita Brasil é um dos mais movimentados por assuntos de política brasileira no Gab, com 10,2 mil integrantes. Embora os números sejam módicos, se comparados com o alcance de Facebook, Twitter e Instagram, pesquisadores salientam que esses sites não podem ser analisados de maneira dissociada. “Temos a mania de encarar as plataformas como universos distintos, mas são todas um mesmo ecossistema. Quem vê um meme no Instagram manda pelo WhatsApp ou compartilha em outra rede. O conteúdo vai quicando. Ainda que o número de usuários de 4Chan e Gab, por exemplo, seja restrito, a estratégia é de escoamento. Uma parte vai atingindo plataformas maiores, e a gente não sabe quanto”, afirmou Caio Vieira Machado, pesquisador do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut).

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Rede social não faz restrição ao conteúdo publicado pelos seus usuários, mesmo que tenham notícias falsas, discurso antissemita, racista ou campanhas de ódio Foto: Reprodução

Ideal

Para o coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio, Ivar Hartmann, os métodos das grandes redes sociais para controlar conteúdos têm problemas, o que dá margem para o surgimento de plataformas que apostam na ideia de liberdade irrestrita. “Hoje, a maior parte da comunicação e da manifestação política se dá em plataformas privadas. E as empresas decidiram tomar decisões sobre o que, como e quando censurar. Não está claro que elas tenham legitimidade para isso. No Brasil, certamente não, porque a Constituição Federal diz que liberdade de expressão é direito fundamental”, avaliou. “Facebook e Twitter tomam decisões sobre quando censurar e, talvez, não devessem ter todo esse poder. Se têm, temos que repensar o nível de transparência sobre o exercício desse poder.”

Para Hartmann, o relativo sucesso de redes sociais como o Gab, com inclinação à direita, se dá pela conjuntura política atual. Caso o cenário fosse outro, uma plataforma com o mesmo perfil, mas à esquerda, poderia despontar. “Uma parte do impulso do apelo de uma rede social como o Gab é se identificar com essa reivindicação de que empresas privadas não podem ser as donas da liberdade de expressão das pessoas. Essa reivindicação não é só da extrema direita ou da direita. Qualquer pessoa na esquerda ou na extrema-esquerda também não quer que empresas privadas possam definir o que pode e não pode ser dito. Nesse momento, em função da conjuntura atual, são os grupos de direita que estão mais cientes e escaldados com a atuação das redes sociais privadas.”


Alon Feuerwerker: Poupança

A Instituição Fiscal Independente, do Senado Federal, diz que o déficit do INSS, que paga os benefícios e as aposentadorias do setor privado, deve fechar o ano em R$ 306,2 bilhões (leia).

Um aumento de R$ 92,3 bilhões em relação ao buraco de 2019, três vezes o crescimento de R$ 30 bi projetado lá atrás pelo Ministério da Economia.

O que mudou?

A arrecadação caiu, algo esperado no contexto da pandemia que surpreendeu todos, inclusive os especialistas em projeções econômicas.

Qual é a solução, então?

Duas: aumentar impostos e/ou fazer a economia crescer.

Como a primeira hipótese geraria uma grave tensão política, além de não resolver o problema, o governo certamente estará quebrando a cabeça para ver como faz acontecer a segunda.

Os investimentos privados continuam sendo a aposta da equipe econômica. Há algum ceticismo quanto a isso, porém um detalhe anima: o desempenho do agronegócio.

São contextos diferentes, mas nunca é demais recordar que a lavoura cafeeira ofereceu a poupança que criou a indústria paulista.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Bernardo Mello Franco: O vírus da cartolagem

Entre 40 milhões de rubro-negros, só um podia dizer que conquistou a América duas vezes. Jorge Luiz Domingos integrou a comissão técnica do Flamengo nas Libertadores de 1981 e 2019. Foi massagista das duas gerações mais vitoriosas do clube, onde trabalhou por quase quatro décadas.

Jorginho morreu no início de maio, vítima da Covid. A tragédia comoveu os atletas, mas não interrompeu a cruzada dos cartolas contra a quarentena. Duas semanas depois, o Flamengo atropelou decretos do estado e da prefeitura e retomou a rotina no Ninho do Urubu. No dia do treino clandestino, o presidente Rodolfo Landim voou para Brasília e almoçou com Jair Bolsonaro.

O repasto uniu dois negacionistas que ignoram ou fingem ignorar a gravidade da pandemia. Eleitos no fim de 2018, Landim e Bolsonaro forjaram uma aliança de interesses. A tabelinha colou a imagem do Flamengo, que já teve nove jogadores infectados, à extrema direita no poder. Uma mistura entre bola e política que ofende torcedores e desonra as tradições do clube.

No dia 18, o rubro-negro liderou a volta açodada do Campeonato Carioca. O Fla bateu o Bangu por 3 a 0, num jogo sem público e sem transmissão de TV. No mesmo dia, dois pacientes morreram no hospital de campanha ao lado do Maracanã. Bolsonaro ameaçou ir ao estádio, mas desistiu após a prisão do amigo Fabrício Queiroz.

O coronavírus adiou a Olimpíada, cancelou o torneio de Wimbledon e parou o circo da Fórmula 1. Nada disso convenceu a cartolagem a esperar um pouco mais pelo Carioquinha. Botafogo e Fluminense reclamaram, mas terão que voltar hoje aos gramados. Em outra partida inadiável, o Madureira enfrentará o Resende.

O técnico do alvinegro, Paulo Autuori, resumiu a situação como uma “bandalheira”. “Não há a mínima preocupação de salvar a integridade dos jogadores”, protestou. Em entrevista ao GLOBO, ele definiu a Federação de Futebol do Rio como “feudo”, “grande mamata” e “federação dos espertos”. Por dizer o que todos pensam, recebeu 15 dias de gancho.

A punição ao treinador combina autoritarismo e hipocrisia, duas faces do Brasil de 2020. Na sexta, o procurador André Valentim disse ao Tribunal de Justiça Desportiva que Autuori “ofendeu e denegriu” a imagem da Ferj. A entidade ganhou fama nas mãos de Eduardo Viana, o Caixa d’Água, que chegou a ser afastado por sumir com a renda do Maracanã. Há 14 anos, é comandada por Rubens Lopes, discípulo de Eurico Miranda e Castor de Andrade.

Home Office

O presidente do Santander, Sergio Rial, é uma alma caridosa. Ao dissertar sobre as vantagens do home office, ele sugeriu que funcionários abram mão de parte dos salários e benefícios para trabalhar de casa após a pandemia.

“Se tudo isso te poupa tempo, você deixa de gastar combustível, tua vida fica mais fácil (…), por que não talvez dividir alguma coisa dessas com a empresa?”, propôs.

Num lapso de memória, o banqueiro deixou de mencionar a economia com despesas de escritório e a transferência de custos fixos para os trabalhadores. No ano passado, o Santander festejou lucro de R$ 14,5 bilhões.


Elio Gaspari: Decotelli poderá explicar o edital do FNDE

Empossado, ministro poderá acabar com o silêncio oficial, desvendando o mistério

Como ministro da Educação o doutor (?) Carlos Alberto Decotelli poderá contar como foi concebido o edital 13/2019, que licitava a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino, coisa de R$ 3 bilhões. Afinal, ele presidia o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação no dia 21 de agosto de 2019, quando o edital foi publicado.

Tratava-se de um imenso e silencioso jabuti. O próprio FNDE havia anunciado no dia 8 de agosto que Decotelli deixaria o cargo. Ele saiu semanas depois, e o novo presidente suspendeu o edital.

A Controladoria-Geral da União havia estudado o jabuti e descobriu o seguinte:

Armava-se uma despesa de R$ 3 bilhões sem que o Ministério da Economia tivesse sido ouvido.

Trezentos e cinquenta e cinco colégios receberiam mais de um laptop por aluno. A Escola Municipal Laura de Queiroz, de Minas Gerais, receberia 30.030 laptops para seus 255 estudantes. Na Chiquita Mendes, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG), cada aluno ganharia cinco laptops.

Duas das empresas que encaminharam orçamentos ao FNDE mandaram cartas com o mesmo erro de português: “Sem mais, para o momento, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessária”. Noutra coincidência, as duas empresas pertenciam à mesma família.

A CGU interpelou o FNDE e recebeu respostas pífias, até que em novembro ela emitiu um relatório de 66 páginas. Como o jabuti andava sem fazer barulho, o caso ficou no escurinho da burocracia e o edital foi cancelado. Em dezembro o repórter Aguirre Talento expôs o caso. Seria natural que viesse alguma explicação do governo. Passaram-se sete meses e nada. Abraham Weintraub, aquele que propôs botar os “vagabundos” do Supremo Tribunal na cadeia, trocou mais três vezes o presidente do FNDE, mas nunca tocou no assunto.

Decotelli tem uma peculiaridade no Ministério de Bolsonaro, ele ri. Empossado, poderá acabar com o silêncio oficial, desvendando o mistério do edital 13/2019. Um governo que se diz comprometido com o combate à corrupção deveria se orgulhar do que aconteceu, pois a CGU viu o jabuti, alertou a administração, detonou a compra e poupou a Viúva de uma facada.

Falta responder a mais elementar das perguntas: Como esse edital foi montado? À época, Decotelli estava na presidência do Fundo. Fica combinado que é falta de educação perguntar por que o governo nunca tocou nesse assunto.

Aviso
Se o Planalto e os agrotrogloditas pressionarem a ministra da Agricultura para que ela se empenhe na aprovação do projeto de lei da grilagem, Tereza Cristina coloca o segundo pé fora do governo.

Weintraub no Banco
O governo buscava uma saída honrosa para Abraham Weintraub e conseguiu um episódio desonroso com um ministro escafedendo-se. Em condições normais ele assumiria seu cargo no Banco Mundial, mas quando a burocracia da instituição mostra-se contrariada com sua presença, é bom que se preste atenção.

Em 2007 os burocratas derrubaram o presidente do banco. Paul Wolfowitz era uma espécie de Weintraub de luxo do governo de George W. Bush. Como subsecretário da Defesa, foi uma dos ideólogos da desastrada ocupação do Iraque. Premiado com a presidência do banco, arrumou uma boquinha para sua parceira. Um protesto interno detonou-o em apenas três meses. (O doutor lambia o pente antes de passá-lo no cabelo.)

Novembro vem aí
Jair Bolsonaro deveria conversar com veteranos do Itamaraty para decidir como conduzirá as relações com os Estados Unidos, caso Joe Biden vença a eleição presidencial de novembro.

Se a diplomacia brasileira persistir na sua postura aloprada, consolidará sua posição de saco de pancadas do mundo.

Em 1976, quando o democrata Jimmy Carter ganhou a eleição, a ditadura brasileira passou pelo mesmo constrangimento. O novo presidente tinha uma agenda de defesa dos direitos humanos e pretendia sedar o acordo nuclear que o Brasil havia assinado com a Alemanha. Houve tensão e momentos de crise, mas profissionais dos dois lados impediram que a emoção agravasse as divergências.

(O presidente Ernesto Geisel detestava Carter. Anos depois, quando os dois estavam fora do poder e o americano visitou o Brasil, recusou-se a recebê-lo. Carter ligou para sua casa e ele não atendeu.)

Quitanda caótica
Se um general no comando de uma brigada fizesse as trapalhadas que o palácio do capitão faz com atos administrativos elementares, perderia o comando. A saber:

O ato de demissão do diretor da Polícia Federal tinha a assinatura do ministro Sergio Moro, mas ele não havia tocado no papel.

No dia 20, uma edição extra do Diário Oficial informou que o ministro da Educassão Abraham Weintraub havia sido demitido. No dia 23, em outra edição, disse que ele deixou o governo no dia 19.

Na quinta-feira, o ministro Luiz Eduardo Ramos anunciou novas parcelas do benefício emergencial para os invisíveis e pouco depois apagou a mensagem.

Bolsonaro é inocente
Defensor da cloroquina e inimigo do isolamento, Jair Bolsonaro já tem o lugar assegurado na história da pandemia da “gripezinha”. Mesmo assim, ele nada tem a ver com os repiques da Covid que estão acontecendo em diversos estados. Eles são da responsabilidade de governadores e prefeitos oportunistas e fracos que cederam diante da impopularidade da medida e da pressão de comerciantes e empresários.

Na semana passada o Ministério da Saúde admitiu que o tal “platô” de contágios não aconteceu e que a curva continua subindo. Em nove estados a rede pública tem 80% dos leitos de UTIs ocupados.

Cidades que relaxaram a quarentena estão pagando o preço, em vidas.

Estátuas
Em vez de se sair por aí destruindo estátuas, pode-se lidar com o passado de forma mais civilizada. É sabido que os russos resolveram a questão colocando os monumentos dos comunistas num parque de Moscou. (Stalin, com o nariz arrebentado.)

A universidade Harvard mostrou outro caminho, menos destrutivo e mais edificante. Puseram uma placa na porta da casa dos presidentes da instituição, homenageando os escravos Titus, Venus, Bilhah e Juba, que lá trabalharam no século XVII.

Tomara que a estátua de Theodore Roosevelt que está na entrada do Museu de História Natural de Nova York seja colocada num lugar onde possa ser observada. O branco, poderoso, está num cavalo, embaixo dele um índio e o negro, dominados, ficam a pé. Ela foi um monumento à supremacia branca e a ideia tornou-se uma caricatura, como a dos heroicos arianos do escultor Arno Breker, o queridinho de Hitler.

Os dias futuros
Bolsonaro teria entrado num modo conciliador. Resta saber qual é a carga dessa bateria. Isso é vital, porque o pacificador referiu-se a dias melhores que vêm pela frente. O que vem pela frente são dias piores.


Míriam Leitão: No futuro, não acreditaremos

Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o Brasil contava 52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era proteger infratores do trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do inacreditável. Na última terça-feira, o governo mobilizou sua base parlamentar, agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos olhos: os motoristas terão mais chance de cometer infrações de trânsito, antes de chegar ao ponto de perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de Vigilância Sanitária, usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e dura: que a curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.

Naquela mesma quarta-feira, em que morreram 1.103 brasileiros pela covid-19, o presidente e seu filho e divulgador, conhecido pela alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo diretor-geral Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com várias armas, o que pode ser conferido no vídeo postado nesse jornal pela competente Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado do contexto do país naquele dia, se perguntará: que presidente é este? Teremos dificuldade de explicar.

No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições democráticas, foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A instituição passou os últimos anos atualizando seus valores para fugir exatamente do que o ministro leva na bagagem das suas convicções.

No futuro duvidaremos de nós quando relatarmos aos mais novos que tudo estava fora do lugar no mesmo momento. O ministro do Meio Ambiente é aliado de desmatadores, o presidente da Fundação Palmares ofende Zumbi dos Palmares, a ministra da Mulher acredita que mulheres devem se submeter aos maridos, o ministro das Relações Exteriores destrata países com os quais o Brasil tem relações e alimenta teorias conspiratórias sobre as organizações multilaterais, o Ministério da Saúde enfrenta duas demissões e uma longa interinidade no meio de uma pandemia, um militar chefia a Casa Civil, e o ministro da Justiça acha que o presidente é um profeta.

Será difícil explicar o contorcionismo dos últimos dias em torno do caso Queiroz. Sumido há muito tempo, ele foi encontrado na casa do advogado que defendia Flávio Bolsonaro e o próprio presidente. Frederick Wassef é realmente um fenômeno. Inicialmente ele negou que conhecesse seu próprio hóspede. Depois disse à “Veja” que escondeu Queiroz para proteger o presidente da República. O ex-assessor poderia ser morto e o presidente, responsabilizado. Quem no futuro não entender essa rocambolesca história não deve se culpar. Não será a única estranheza do caso. A Justiça do Rio deu ao filho mais velho do presidente o direito a foro por prerrogativa de função que ele já não exerce. Inventou a prerrogativa de ex. Um detalhe talvez comprometa mais ainda a verossimilhança dos eventos: o governo foi eleito dizendo que combateria a corrupção.

O brasileiro vive dois grandes tormentos: uma pandemia e a pior crise econômica. Nesse quadro o presidente propôs aos ministros “escancarar”. A verdade sobre a pandemia? Não. A necessidade de proteger a população? Não. As medidas para socorrer pessoas e empresas contra a crise econômica? Não. Ele propôs escancarar a liberação das armas.

Mais armas nas mãos das pessoas, e menos punição para os delitos de trânsito. Eis a solução para todos os nossos problemas, da covid-19 à recessão econômica.

Os desatinos diários, os berros, as palavras chulas, a falta de demonstração de sentimento em relação às vítimas da tragédia tudo se tornou tão rotineiro que o país foi se acostumando. Por isso, só daqui a muito tempo teremos dimensão da ignomínia vivida pelos brasileiros nesse triste momento da nossa história. Nos últimos dias o presidente não foi a qualquer manifestação antidemocrática, não ameaçou chamar as Forças Armadas contra o Supremo, não mandou jornalistas calarem a boca. Dizem que daqui para frente tudo vai ser diferente. Que ele vai se comportar para escapar dos inquéritos do Supremo e vencer a eleição para um segundo mandato presidencial. Contando, ninguém acredita.

(COM MARCELO LOUREIRO)


Janio de Freitas: Decisão da Justiça sobre Flávio Bolsonaro merece uma investigação

Nada acontece por acaso nesse inquérito sobre anos de apropriação de salários no gabinete do filho do presidente

A mais recente decisão da Justiça sobre Flávio Bolsonaro, favorecendo-o contra a investigação que mais abala seu pai, merece ela mesma uma investigação. Nada acontece por acaso nesse inquérito sobre anos e anos de apropriação de salários no gabinete de Flávio quando deputado estadual.

Em torno desse tema, emergem interações com milícias, exóticos negócios imobiliários e outros indícios. Todos do tipo que, nas ocorrências de combinação entre submundo e política, em geral são causa de ameaças, chantagens e subornos.

Os desembargadores Mônica Oliveira e Paulo Rangel têm comprovado conhecimento do acórdão do Supremo contra o qual votaram para transferir o inquérito, do juiz de primeira instância ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça-RJ. Como desejado por Flávio. E com possível anulação de tudo até agora apurado por decisões do juiz Flávio Itabaiana, como movimentações financeiras anormais e a reveladora prisão de Fabrício Queiroz.

Em tentativa anterior da defesa de Flávio, Mônica Oliveira negou a transferência do caso. Como fixado pelo Supremo para o investigado que deixou a função privilegiada com instância especial. Hoje senador, Flávio não pode ter os privilégios dos deputados estaduais. Paulo Rangel deixou em livro seu apoio à norma contra a qual votou agora. Contradições tão acintosas, em oposição também à relatora Suimei Cavalieri (Flávio foi favorecido por dois votos a um), precisam de mais do que recurso ao Supremo para repor o respeito à norma, lá mesmo decidida e já aplicada.

Há mais do que a razão óbvia para estranheza e suspeição. A reviravolta expõe a Justiça ao mesmo comprometimento moral, e quem sabe legal, a que militares da reserva e da ativa estão expondo o Exército, como participantes diretos ou indiretos nos danos ao país causados pelo quarteto Bolsonaro e seus contribuintes. Os conselhos nacionais de Justiça e do Ministério Público, no entanto, notabilizaram-se, até agora, por sua tolerância com ilegalidades nas respectivas áreas, muitas delas gravíssimas como violação e nos efeitos. Resta contar, sem exagero, com o reencontro iniciado entre o Supremo e sua dívida com o país que tanto lhe dá.

Por sua conta, procuradores da República dão ao procurador-geral, Augusto Aras, um sinal da justa indignação que grassa entre eles: sua maioria sente, e repele, o incipiente reaparecimento de um Geraldo Brindeiro, o procurador-geral de Fernando Henrique batizado de engavetador-geral, símbolo de indignidade na Procuradoria e no governo de então.

Os procuradores elegem agora para o Conselho Superior do Ministério Público Federal o colega Mario Bonsaglia, o mais votado pela classe e preterido por Bolsonaro para substituir o dúplice Rodrigo Janot. Como reforço da mensagem, Nicolao Dino, já conselheiro, foi reeleito. Foi outro dos mais votados que Bolsonaro preteriu pelo sem voto Augusto Aras.

O primeiro teste pós-sinal já bate na porta de Aras, o relutante. Não há dúvida de que Ricardo Salles, ministro contra a preservação ambiental, já fez mais do que o necessário para responder por vários crimes de responsabilidade. Providência pedida à Procuradoria-Geral da República por nove ex-ministros do Meio Ambiente.

Ricardo Salles, invenção política de Geraldo Alckmin, é condenado por improbidade administrativa. Credencial que foi o mais provável motivo, à falta de qualquer outro, para ser o escolhido de Bolsonaro com a missão de destruir reservas indígenas, propagar o garimpo ilegal e os recordistas desmatamentos e incêndios amazônicos. Quase ignorado pela imprensa, abaixo de Bolsonaro é o maior causador de danos ao Brasil nas relações econômicas, diplomáticas e culturais do Brasil com o exterior.

Mas o próprio Bolsonaro iniciou nova fase: entrou em confinamento verbal. Desde a prisão de Queiroz, o que é uma prova irrefutável, e mesmo uma forma confessional, do perigo que agora lhe vem dessa longa ligação pessoal e funcional. Com novo dispositivo e novas figuras para remendar sua imagem, borrada por Wassef, Queiroz e o fugitivo Weintraub, Bolsonaro seguiu a recomendação de uma visita bem popularesca ao Nordeste. E foi celebrar, até com variadas mímicas de entusiasmo, um feito para a vida nordestina. A irrigação com águas do São Francisco. Obra de Lula e Dilma.


Arminio Fraga: Navegando a crise e construindo o futuro

Caminho requer comprometimento e liderança por parte do governo

Tudo indica que ao final de 2020 o PIB terá tido duas quedas acumuladas de 7% ou mais em apenas sete anos. A renda per capita terá caído cerca de 14%. Trata-se do maior fiasco econômico de nossa história. Disparado. O que fazer para sobreviver à pandemia e voltar a crescer?

Desde a chegada do vírus venho defendendo uma linha geral de inspiração keynesiana e humanitária: aumentar o gasto público, com foco na assistência social e na saúde, expandir o crédito e reduzir a taxa de juros. O governo merece crítica por falhas de execução e pela falta de estratégia e planejamento, mas o gasto aumentou expressivamente e o BC vem fazendo a sua parte.

Essa resposta é necessária, mas tem custos. Há risco de exagero no gasto, em virtude da duração prolongada da crise e de uma guinada do governo em direção a um engajamento político fisiológico.
O Estado brasileiro está tomando emprestado para cobrir o buraco corrente e os juros devidos. A dívida voltou a crescer em bola de neve, a despeito da enorme queda da taxa de juros. Com o colapso da economia a relação dívida/PIB deve chegar a 100% no final do ano.

Cabe registrar que o crescimento recente do endividamento decorre da aplicação do receituário fiscal correto para se lidar com um problema temporário, no caso a pandemia: expansão fiscal forte no curto prazo, compensada por um ajuste previsível e diluído no tempo, para suavizar o impacto sobre a atividade econômica.

Mas, passada a crise, será, sim, necessário que se reduza o endividamento. Por quê? Para recompor um colchão de segurança que permita lidar com o que a ciência prevê que serão desastres naturais maiores e mais frequentes, como novas pandemias e mudanças climáticas, e também para evitar descontrole macroeconômico, uma doença crônica aqui por nossas bandas, sempre mais penosa para os mais pobres.

Os objetivos de curto e longo prazo dialogam e até competem entre si. Faz-se necessário gastar para amenizar a dor da crise, mas faz-se também necessário garantir a saúde financeira do Estado e abrir espaço no orçamento para se investir mais, sobretudo nas áreas de maior impacto social como saúde, educação, tecnologia e infraestrutura.

O gasto público vem subindo praticamente em linha reta há três décadas, chegando a cerca de 34% do PIB em 2019. No entanto, o investimento público caiu de um pico de 5,4% do PIB em 1969 para cerca de 2% em 2013, para menos de 1% neste ano. Não surpreende, portanto, que o investimento nacional tenha caído de 21% do PIB em 2013 para 15% a partir de 2018. Com essa taxa de investimento é impossível crescer mais rápido. É também impossível gerar as indispensáveis oportunidades e a mobilidade social tão ausentes.

E para onde vão os gastos? Oitenta por cento para previdência e funcionalismo, um ponto fora da curva quando se contrasta com a maioria dos países de renda média e alta. Não vejo qualquer razão para acreditar que o Brasil seja estruturalmente tão diferente dos demais.

Outra fonte importante de gastos (e desigualdades) são vultosos (e regressivos) subsídios como os implícitos nos regimes especiais do Imposto de Renda (os regimes Simples e de Lucro Presumido). Ademais, são baixas as alíquotas máximas dos impostos sobre as rendas do trabalho e do capital e sobre heranças.

Esses são os principais espaços que propiciariam uma radical correção de rumo. Acredito inclusive que não haja outro caminho. Listo a seguir um roteiro.

Será necessário buscar um ajuste maior na conta previdenciária, imagino que de mais dois pontos do PIB por ano. Alguns estados vêm tomando providências nessa área, um bom sinal.

Na área tributária, a eliminação de subsídios aliada a aumentos nas alíquotas mencionadas acima geraria pelo menos três pontos do PIB de receita e eliminaria um foco inaceitável de desigualdade.

No campo do funcionalismo, vejo espaço para uma reforma administrativa básica, mas altamente relevante, sobretudo por seu potencial de impacto na qualidade dos serviços prestados pelo Estado, uma clara demanda da sociedade. O primeiro e crucial passo seria avaliar todo funcionário público periódica e sistematicamente. Quem pode ser contra isso?

As avaliações deveriam ser a única base para promoções e aumentos salariais, assim como para eventuais demissões, respeitadas as defesas previstas no artigo 41 da Constituição. Esse primeiro passo poderia ocorrer através de lei complementar. Junto com uma modernização tecnológica seria fonte de grandes ganhos de produtividade do Estado e da economia em geral. O governo dá um péssimo sinal deixando o assunto para o futuro.

Essa reforma é visceralmente rejeitada por boa parcela do funcionalismo, que teme exageros e injustiças, e não se vê como privilegiada no contexto maior de um país onde mais do que a metade da população está na informalidade ou desempregada. Certamente não sou dos que demoniza o funcionalismo, muito pelo contrário. Do Banco Central ao SUS bem sei que o Estado brasileiro é repleto de pessoas competentes e vocacionadas. Mas, como se dizia no BC, há também muitos cuja ausência preenche uma lacuna.

Não há, portanto, justificativa para não se investir em uma área de recursos humanos para o setor público. Transparência e disciplina fariam muito bem ao sistema e prestariam contas à sociedade, que arca com os custos. E permitiriam enfrentar as corporações mais fortes, coibindo abusos e eliminando absurdos.

Essas reformas liberariam ao longo do tempo recursos da ordem de nove pontos do PIB por ano que permitiriam a recuperação da saúde fiscal do Estado e um aumento substancial de investimentos de alto impacto social e distributivo. O resultante ganho de confiança estimularia um significativo aumento no investimento privado e no consumo. O resultado seria um surto de crescimento sustentável e inclusivo.

Uma palavra final para não perder o hábito: o caminho requer comprometimento e liderança por parte do governo.Arminio Fraga

Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Hélio Schwartsman: O segredo da democracia

Não faltam teorias românticas, quase religiosas, para justificar esse regime político

Por que a democracia é boa para nós? Não faltam teorias românticas, quase religiosas, para justificar esse regime político, que se consolidou nos países mais avançados a partir do século 20.

Uma delas, de forte apelo popular, diz que a democracia faz sua mágica ao promover escolhas conscientes por parte dos cidadãos. Quanto mais instruída for a população, melhores decisões ela tomará. Outra, mais comum nos meios acadêmicos, sustenta que a democracia funciona porque permite que os governantes sejam recompensados (reeleitos) ou punidos (postos para fora) de acordo com seu desempenho.

É bobagem, e há um bom número de obras de divulgação de que já tratei aqui, como “The Myth of the Rational Voter”, “Democracy for Realists”, “Democracy Despite Itself?” e vários títulos de Adam Przeworski, que desmontam, até com algum humor, essas e outras teorias. Mas, se não é isso, perguntar-se-á o leitor, o que é então.

Vem ganhando força a ideia de que a democracia funciona porque, sob determinadas condições, permite que as disputas políticas se resolvam sem recurso à força. Ela cria um ambiente em que é mais vantajoso, mesmo para quem perde eleições, esperar algum tempo para voltar ao poder do que impor-se pela violência.

Para que isso ocorra, é preciso assegurar que os vencedores não tenham como abusar do poder conquistado, o que implica a existência de um núcleo duro de direitos e garantias que não podem ser suprimidos em nenhuma hipótese, como incolumidade física, liberdade de expressão e a própria manutenção de eleições.

Przeworski vai ainda mais longe e afirma que, para funcionar bem, é importante que, ao longo do tempo, os resultados de eleições não façam muita diferença, isto é, não criem nada muito irreversível. Basicamente, a democracia dá certo porque ela limita as possibilidades de mudança diante de eleitores e de governantes. É paradoxal, mas faz sentido.


Dorrit Harazim: Sobras de guerra

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto

Não é de hoje que números redondos são ferramentas infalíveis para atrair leitores, concentrar homenagens, turbinar emoções. Não fosse a pandemia que imobiliza este 2020 fantasmagórico, o 250º aniversário do nascimento de Beethoven e os festejos pelos 75 anos do final da Segunda Guerra na Europa seriam mais tonitruantes. Basta comparar com o passado recente: em 2019 o mundo se entregou a comemorações voluptuosas pelos 50 anos de Woodstock, os 30 anos da Queda do Muro de Berlim, e tantos outros marcos históricos.

Em tempos de coronavírus, números redondos também são ferramenta de primeira linha, só que às avessas — eles nos arrancam do torpor de um amanhã incerto. Sabidamente o medo que mais imobiliza o ser humano é o medo de ver o que está à sua frente. Isso inclui o presidente da República. Para Jair Bolsonaro, cada novo número-choque da pandemia no Brasil tem impacto dobrado, pois atesta sua falha histórica como governante da nação em tempos turvos.

Na linha desse tempo pandêmico o mundo mal teve tempo de atravessar o choque do primeiro milhão de infectados. No momento rumamos para 10 milhões mundo afora, e logo mais a régua terá de ser levantada. Na manhã da última sexta-feira dados apontavam para 55.304 mortos no Brasil. Portanto nova barreira redonda derrubada, com a anterior (50 mil) já esquecida.

Como nossas mentes dificilmente registram o número por inteiro, é mais provável que em conversas de quarentenados tenhamos arredondado para 55 mil. Em textos jornalísticos ou legendas noticiosas, o número completo acaba encurtado para “mais de 55 mil”. Ou, “55,3 mil”. Acabam ficando de fora do nosso imaginário as chamadas “sobras da guerra” — no caso, os 4 últimos dessas 55.304 vidas perdidas para a Covid. É natural: quem pensa nos centavos diante de um cheque de 10 mil reais, certo?

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto. A morte em massa se torna a soma de vidas anônimas tragada por essa avalanche. Só que, ao contrário do que ocorre em furacões, terremotos ou guerras, a mortandade por pandemia é condenada ao silêncio. E esta, em particular, parece não ter fim.

Na Guerra do Vietnã, onde morreram 58.209 G.I.s, foi fácil levantar a identidade dos dois últimos soldados americanos a não voltarem para casa. Um se chamava Charles McMahon, estava prestes a completar 22 anos e desembarcara em Saigon 11 dias antes de morrer. O outro, Darwin Lee, de 19 anos, também era novato na guerra que durou 7 anos. Ambos tinham por missão proteger a Embaixada dos Estados Unidos. Morreram juntos na manhã do 29 de abril de 1976, atingidos por um foguete. No dia seguinte, a guerra acabou, Saigon foi tomada pelos comunistas, e o que restava de presença americana bateu em retirada afoita. Inglória das inglórias, os corpos de McMahon e Lee foram deixados para trás. Só conseguiram ser recuperados um ano mais tarde por mediação da diplomacia.

Historiadores da Segunda Guerra Mundial também puderam cravar a identidade do último soldado das tropas aliadas a morrer no front europeu: Charles Havlat, 34 anos. No dia 7 de maio de 1945 seu pelotão avançava na região da Tchecoslováquia quando sofreu emboscada de uma divisão de tanques alemães. Fatalidade: nove minutos antes fora negociado o cessar-fogo que levaria à rendição incondicional da Alemanha, comemorada em 8 de maio.

Difícil imaginar que pesquisadores do futuro conseguirão identificar a última vítima da pandemia de Covid-19 no Brasil. Isso porque, por trás de números tão monumentais, se escondem várias causas mortis. Inclusive a falta de medicamentes críticos em várias UTIs do país. O estoque de 22 insumos indispensáveis para pacientes que precisam ser intubados (sedativos, anestésicos, bloqueadores neuromusculares) está à míngua em 21 hospitais de referência, aponta um levantamento nacional divulgado esta semana. Sem esses medicamentos, o paciente não morre de Covid, morre por não poder ser intubado.

Também pode morrer por ter desistido de entender o emaranhado de protocolos de segurança e reclassificações de atividades.

Desistido de aguardar o auxílio emergencial do governo, desistido de se proteger. O método universalmente reconhecido como o mais simples e barato — o uso de máscara — é sabotado pelo presidente da República. Como levar a sério um protocolo municipal que libera viagens de pé em ônibus mas limita a ocupação no interior do veículo em 2 pessoas por metro quadrado? Isso, na cidade do Rio de Janeiro! O efeito sanfona das medidas de flexibilização desnorteia mais do que disciplina, a lição primeira de lavar as mãos com sabão não serve para os mais de 100 milhões de brasileiros hoje ainda expostos ao esgoto a céu aberto.

Em resumo, no Brasil de 2020 ainda vai se morrer muito durante a Covid-19. Sobras desnecessárias da soma de irresponsabilidades nacionais.


Vera Magalhães: Sapo na festa do céu

Enquanto esquerda discute quem pode integrar frente, Bolsonaro lhe rouba a agenda

A discussão em torno da formação de uma frente, que se pretendia “ampla”, em defesa da democracia e dos direitos e em reação às investidas de Jair Bolsonaro contra esses dois pilares empacou em critérios tão adultos e democráticos como birra, picuinha, ciúme, ressentimento e cálculo eleitoral para 2022.

Enquanto entidades, políticos e partidos do espectro que vai da centro-direita à esquerda discutem quem pode integrar a frente, tirando dela qualquer amplitude, Jair Bolsonaro vai, na surdina, lhes roubando a principal agenda: a discussão da renda básica universal.

Mais esse erro crasso dos que se opõem a Bolsonaro me remeteu à fábula da festa no céu. Poderiam participar todos os animais voadores. Mas o sapo deu um jeito de burlar as restrições e entrar no céu escondido na viola do urubu.

O sapo é Bolsonaro. Assiste subitamente calado aos desdobramentos do caso Fabrício Queiroz, sabendo que pode se complicar feio por aí, enquanto vai, por meio do auxílio emergencial, entrando no baile da esquerda, que se perde na distração de discutir quem pode ou não fazer parte da tal frente.

Quando o necessário auxílio emergencial de R$ 600, por três meses, foi aprovado, alguns analistas logo enxergaram o potencial que aquilo, dinheiro na veia dos mais pobres, teria para dar a Bolsonaro uma nova base social. Me lembro de textos nesse sentido de Carlos Pereira, no EstadãoCarlos Andreazza, no Globo, e Fernando Canzian, na Folha, para ficar nos primeiros que trataram do tema.

Não deu outra. Dados da Pnad Covid divulgados pelo IBGE mostram o efeito rápido e impressionante do auxílio – mesmo com todos os seus problemas de logística na distribuição, fraudes e exclusão de gente que preenche os critérios para recebê-lo – na redução da pobreza e da extrema pobreza.

Mesmo Bolsonaro, cuja inteligência não é tão grande quanto à do engenhoso sapo, já percebeu o filão de recuperação de sua popularidade, assolada pela absoluta incompetência que ele demonstrou para conduzir o País na pandemia e por seus arreganhos autoritários, entre outras inadequações ao cargo que ficaram escancaradas desde janeiro.

Com a costumeira falta de sutileza, foi ao Twitter expor um casal “muito humilde” do Vale do Jequitinhonha que lhe agradecia pelo auxílio. “De tudo o governo está fazendo, dentro do possível, para garantir a mínima dignidade ao povo”, postou, assumindo o populismo e já despido da fantasia liberal que vestiu para a eleição.

A renda básica universal é uma pauta que Eduardo Suplicy carregou como um Quixote por décadas. Era ridicularizado até no PT. Com a pandemia, o assunto voltou à discussão pelos escritos de economistas como Monica de Bolle, no Brasil, e ganhou também outros países. 

Paulo Guedes a princípio resistiu, tentou limitar a R$ 300 o benefício e achou que seria possível circunscrevê-lo a três meses, mas agora já trabalha com a possibilidade concreta de a transformação do Bolsa Família num programa turbinado e rebatizado ser a única agenda possível daqui para a frente, já que as reformas parecem ter perdido o bonde.

E Bolsonaro vê seus índices nas pesquisas pararem de despencar em pleno caso Queiroz. “Como?”, perguntam os desatentos. É o auxílio, estúpido. Bolsonaro já sacou, e daqui para a frente apostará tudo que puder na fidelização de uma nova base social, nas classes D e E e nas periferias das cidades e rincões do País, ao passo que coopta o Centrão para não ver o impeachment avançar.

Alheia a tudo isso, a esquerda deixa de constituir a frente e construir uma agenda que era sua, para ficar fiscalizando quem tem asa para entrar na festa do céu. E lá vai o sapo escondidinho na viola.


José Roberto Mendonça de Barros: O agronegócio ameaçado

A destruição da Amazônia é uma ameaça real e tem gente que teima em não reconhecer

Meu primeiro artigo deste ano, neste espaço, tinha por título “O aquecimento global entrou na alta finança”, comentando a reunião do Fórum Econômico Mundial, realizada em Davos, Suíça.

Nela, “Klaus Schwab, fundador do evento, distribuiu uma carta aos participantes, escrita em coautoria com os presidentes do Bank of America e da Royal DSM, na qual diz que o atual modelo econômico não é mais sustentável e que terá de mudar para incorporar, entre outras coisas, tolerância zero com a corrupção, proteção ao meio ambiente, uso ético de informações privadas e respeito aos direitos humanos em toda a cadeia de fornecedores”. 

Em suporte a essa visão, Larry Fink, presidente da Black Rock, gestora global de recursos, em sua influente carta anual, disse que sua empresa evitará investimentos em companhias que apresentem grandes riscos associados a sustentabilidade.

Daqui em diante, não se poderá dizer que meio ambiente é apenas objeto de manifestações da esquerda, de “onguistas” ou de europeus. Ao contrário, os maiores líderes mundiais de negócios estão dizendo que a coisa é “importante e urgente”. 

Entretanto, o governo federal não tomou conhecimento do que lá foi dito. Ao contrário, o ministro do Meio Ambiente continuou inteiramente dedicado a “passar a boiada” e, em consequência, o fogo e o desmatamento ilegal da Amazônia continuaram a crescer sem parar. 

Não bastasse isso, ministros, como o (ex, felizmente) da Educação e o das Relações Exteriores continuaram insistindo em insultar e atacar o nosso maior cliente, a China. 

Finalmente, certas lideranças do setor mantêm uma atitude agressiva e pouco construtiva de que “eles não têm alternativa, têm que comprar de nós”. A propósito, seria bom lembrar que o cemitério de empresas está cheio de gente arrogante que, em algum momento, desprezou seus clientes, esquecendo que ninguém é insubstituível. 

Na semana que passou, 29 grandes gestores de fundos de investimento, que administram mais de US$ 4 trilhões, enviaram carta às embaixadas do Brasil para alertar que “desenvolvimento econômico e proteção ao meio ambiente não são mutuamente excludentes...instamos o governo do Brasil a demonstrar um compromisso claro para com a eliminação do desmatamento e a proteção dos direitos dos povos indígenas”. Pedem ainda, os fundos, uma conversa com representante do Executivo. 

É impossível maior clareza quanto ao risco que estamos correndo.

Importantes lideranças empresariais, ao contrário de certos ministros, também alertam para o perigo e as consequências da forma como o Brasil está lidando com a questão ambiental. Estas preocupações foram manifestadas, ainda nestes dias, pelos presidentes dos dois maiores bancos brasileiros.

O agronegócio tem sido um dos poucos segmentos a enfrentar com galhardia esta que é a maior crise do Brasil moderno. Na verdade, o faz desde a recessão de 2014/2016. 

Mas a destruição da Amazônia é uma ameaça real. É inacreditável que ainda tenha gente que teima em não reconhecer este fato. 

ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE