Day: junho 26, 2020
Merval Pereira: Os caminhos da Justiça
Bolsonaro sabe o que está em jogo, sabe o que pode sair dali. Sabe o que fez no passado, ele seus filhos, o Queiroz
O julgamento de ontem do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mostra como são difíceis, e muitas vezes tortuosos, os caminhos da Justiça. A transferência da primeira instância para o Órgão Especial do TJ da competência para julgar o caso de Flavio Bolsonaro, acusado de ser o chefe de uma quadrilha que cometeu peculato com o dinheiro público - a vulgarmente chamada “rachadinha”, quando um parlamentar fica com parte do salário dos funcionários de seu gabinete - beneficiou o filho do presidente por um lado, mas não anulou as provas já obtidas durante a fase em que a primeira instância cuidou do caso.
A defesa queria duas coisas: tirar o caso do juiz Itabaiana e anular todas as provas obtidas nas investigações. Teve vitória parcial, e se alguém foi beneficiado foi Flavio Bolsonaro, pois existe uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de que quando o parlamentar perde o mandato, seu caso vai para a primeira instância.
A alegação de que Flavio Bolsonaro era deputado estadual quando cometeu o suposto crime, e por isso é beneficiado pelo foro privilegiado, é uma dessas interpretações distorcidas que, com os recursos, acabará sendo anulada no Supremo.
A decisão que limitou o foro privilegiado teve como relator o ministro Luis Roberto Barroso numa Ação Penal, que não produz efeito vinculante, o que quer dizer que não há obrigatoriedade de os desembargadores aderirem a ela, embora fosse recomendável.
No entanto, com a decisão de passar para a segunda instância, pela lógica todo o processo anterior deveria ter sido anulado, e o inquérito começaria da estaca zero, o que não aconteceu. Pode vir a acontecer quando a defesa de Flavio Bolsonaro recorrer ao Órgão Especial, órgão máximo do Tribunal de Justiça do Rio, formado por 25 desembargadores. Mas pode também o Órgão Especial considerar que a primeira instância é que é competente para julgar o caso, seguindo a jurisprudência do STF.
Isso tudo para dizer que Bolsonaro acusar o Judiciário de perseguir sua família por questões políticas não resiste a uma análise isenta. Desde a prisão do seu amigo Fabrício Queiroz, acusado de ter parte com às milícias e ser o coordenador da “rachadinha”, Bolsonaro está completamente diferente, a começar pela feição. Sua postura no vídeo da saída do Weintraub, no mesmo dia da prisão do Queiroz, mostra como está impactado com a notícia, que o envolve diretamente, porque seu amigo foi preso na casa de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro.
Desde então, está calado, evita fazer aqueles mini comícios na saída do Alvorada, baixou a crista, como se diz de um energúmeno que se submeteu à realidade. Todos seus seguidores também reduziram muito os ataques, e com ele calado, o clima político mudou muito.
Bolsonaro não passa da retórica, nunca teve um gesto para unir as pessoas, sempre trabalha na desunião, na disputa política, na guerra. E todo dia tinha assunto novo, um ataque a alguém, a alguma instituição. Ao contrário, ontem amanheceu propondo novamente a união entre os Poderes. Esse estender de mão é consequência do impacto que foi para Bolsonaro pessoalmente a prisão do Queiroz.
Ele sabe o que está em jogo, sabe o que pode sair dali. Sabe o que fez no passado, ele, seus filhos, o Queiroz, ele sabe que os inquéritos no STF são fortes, está ficando cada vez mais claro que a interferência na Polícia Federal existiu, e que o interesse era evitar processos contra o filho Flavio senador e a prisão de Queiroz. Além do caso do impulsionamento de WhattsApp no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Só há dois problemas para esse novo acordo proposto: o primeiro é a pessoa do presidente, que não é nem controlável, nem confiável. Depois, a cabeça dele não vai mudar - a busca do poder sem limitações, de que o Executivo tem que comandar, que o Legislativo e o Judiciário o impedem de governar. Ninguém ganha espírito democrático tendo sido autoritário a vida inteira.
Qual é a solução para esse caso? Que Bolsonaro esqueça a tese de golpe, esqueça a tentativa de controlar outros Poderes, se adapte à democracia representativa, ao presidencialismo de coalizão e faça acordos com partidos políticos no Congresso dentro da legalidade. Mas entendendo que isso não absolve o Queiroz, nem o Flavio, nem o Jair de nada do que fizeram.
Dora Kramer: Agora é cinza
O fracasso dos intentos autoritário não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país
Nada como os fatos. No devido tempo deram razão à percepção de que eram infundados os temores sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro golpear a democracia ao molde venezuelano, a fim de governar a plenos e absolutos poderes. Em um ano e meio, de maneira mais acentuada nos últimos quatro meses, o presidente, filhos e súditos passaram de intimidadores a intimidados.
Sinal eloquente do retraimento típico de gente acossada foram a suspensão do espetáculo, em duas sessões diárias, na porta do Palácio da Alvorada e a ausência do presidente nas performances dominicais nas cercanias do Palácio do Planalto logo após a prisão de Fabrício Queiroz.
O presidente & filhos foram acometidos de um súbito gosto por modos razoáveis, enquanto aqueles ministros ditos ideológicos perderam a loquacidade. Faz algum tempo que Damares e Araújo já não dão vazão em público a suas ideias reacionárias. Os ativistas do extremo digital reduziram drasticamente sua presença nas redes e trataram de apagar vídeos no YouTube para eliminar rastros e não facilitar a coleta de provas nas investigações acerca dos patrocínios e da organização de atos atentatórios à verdade e à Constituição.
Não foi preciso nada além da estrita observância das normas em vigor e do repúdio social aos abusos por eles mesmos cometidos para que lhes fosse cortado o fornecimento de oxigênio. Consideram-se injustiçados, vítimas de perseguição, ignorantes que se mostram a respeito de uma pergunta retórica que Sigmund Freud registrou na história da psicanálise: “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual se queixa?”. A resposta é de essencial utilidade para uma correção de rumos.
Bolsonaro pode não estar perto de perder o mandato, mas já perdeu a condição de abalar Bangu (sem referência outra, só força de expressão) com a estridência de suas cordas vocais. Dizem que a luz do sol é o melhor detergente. Aqui a substância responsável por imprimir clareza ao cenário tem sido o olho e as mãos da lei.
Não são fortes o bastante para impedir o retrocesso civilizatório cujas bases foram plantadas nos governos do PT com o menosprezo do então presidente Luiz Inácio da Silva pela educação formal, pelo uso correto do idioma e pelo respeito à ética na política e com a introdução da dinâmica do “nós contra eles” na sociedade, e seriamente agravados por Bolsonaro. Mas, se é real a ocorrência do atraso, é verdadeira também a consolidação dos mecanismos de contenção a ilegalidades. Vários deles, diga-se, reforçados na era petista.
“Bolsonaro e companhia passaram do papel de intimidadores à condição de intimidados”
Jair Bolsonaro não contava com o peso dessa engrenagem na imposição de limites ao exercício do poder. Felizmente é com esse aparato legal que o país conta para dissipar apressadas e inapropriadas comparações com o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Lá, Judiciário, Legislativo e Forças Armadas foram tomados de assalto como pré-requisito para transformar a Venezuela numa democracia de fancaria. Aqui, fica a cada dia, a cada fato, a cada reação mais patente: isso é impossível.
Portanto, que se recolham de um lado esperanças e de outro temores. Não vai ter golpe. Entre os motivos já explicitados, porque o candidato a golpista está identificado e queda-se refém dos próprios blefes. A cada dobra de aposta nesse jogo o presidente perde mais espaço no tabuleiro onde se posicionam as instituições, a massa crítica de setores organizados e a maioria da sociedade, conforme atestam as pesquisas de opinião.
O fracasso dos intentos autoritários, contudo, não significa que esteja tudo bem. Não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país. Impôs enormes. Em decorrência do já citado retrocesso civilizatório tivemos o prejuízo das vidas perdidas por causa da atitude negacionista em relação à pandemia, a perda de importância no campo diplomático, os monumentais riscos ao comércio exterior e aos investimentos devido ao desprezo pela preservação do meio ambiente e à depreciação de questões relativas a direitos humanos. O Brasil era um, hoje é outro bem pior aos olhos do mundo, motivo de piadas e lamentações.
Assalta-nos, então, a dúvida: a situação tem remédio ou remediada está? Nenhuma das duas hipóteses. Para a segunda, que implicaria o impedimento, ainda não se encontrou um caminho eficaz. Para a primeira, dependeríamos de uma mudança radical nos atos e no pensamento de Jair Bolsonaro, num repente transmutado em líder. Resta, portanto, o aguardo de um milagre.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693
Fernando Gabeira: Uma pausa para avançar
Além da pandemia, por décadas vamos sentir os efeitos da passagem de Bolsonaro pelo pode
A leitura da História da Europa nos anos 30 mostra uma longa tensão bélica entrecortada por pausas que enchiam de esperança os que sonhavam com a paz. Poucos percebiam, como Winston Churchill, quão importante era aproveitar os momentos de tensão para se preparar para um confronto inevitável.
Guardadas as proporções, o Brasil entra numa pausa com a prisão de Fabrício Queiroz. Jogado na defensiva pelos diferentes processos no Supremo, um contra fake news, outro contra manifestações com bandeiras ilegais, Bolsonaro tende a se acalmar por alguns dias.
Toda a sua energia certamente estará concentrada em se defender do pepino do tamanho de um cometa que ronda seu governo. A presença de Fabrício Queiroz na casa do advogado da família Bolsonaro levou, de novo, não só os problemas de Flávio Bolsonaro, mas a incômoda questão das milícias cariocas para o terceiro andar do Palácio do Planalto.
Dificilmente, nesse período, crescerão as manifestações pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Muito menos Bolsonaro, Mourão e o ministro da Defesa devem lançar novas notas afirmando que as Forças Armadas não aceitam julgamentos políticos. Isso agora soaria como um blefe.
Muito possivelmente Bolsonaro perdeu terreno nas Forças Armadas e também na faixa de seu eleitorado que esperava a luta contra a corrupção. Nesta última ele já havia perdido com a saída de Sergio Moro do governo denunciando suas tentativas de intervir na Polícia Federal do Rio. E as perdas se acentuaram quando firmou aliança com o Centrão, uma espécie de seguro contra o impeachment, que nem sempre é honrado pelos contratantes.
Quando a prisão de Queiroz apertou o botão “pausa” a sociedade estava se organizando para deter o golpe e fazer frente à política nefasta de Bolsonaro. Manifestações de rua surgiram aos domingos e manifestos brotaram de vários setores, indicando a possibilidade de uma frente democrática em gestação.
Nesse momento também a pandemia atingia seu auge, ultrapassando a casa de 1 milhão de contaminados e 50 mil mortos. O Brasil tornou-se um país a ser evitado. O fracasso no combate à pandemia, impulsionado pelo negativismo de Bolsonaro, afasta os potenciais visitantes.
A destruição da Amazônia, que pode alcançar 16 mil km2 no prazo de um ano, por sua vez, afasta os investidores. Fundos de pensão responsáveis por investimentos gigantescos podem voltar as costas ao Brasil, por causa da destruição da floresta e a cruel política para os povos indígenas.
Bolsonaro não torna o País inviável apenas simbolicamente, arrasando a cultura e atropelando nosso patrimônio histórico. Ele nos coloca nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica, agravada pela pandemia. Embora o ministro Paulo Guedes veja um futuro brilhante pela frente, grandes economistas brasileiros, ao contrário, veem no horizonte uma das grandes privações por que passará o Brasil em sua História.
Quem se preocupa com a democracia apenas quando se aquecem os motores dos tanques militares pode ter uma falsa sensação de alívio. A democracia continuará exposta a pequenos golpes cotidianos Além disso, quanto menos margem de manobras Bolsonaro encontrar, mais possibilidade de buscar ações desesperadas.
Enquanto a sociedade se move, ainda lentamente por causa da pandemia, o confronto com as aspirações golpistas concentrou-se na reação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o Congresso recuou para segundo plano, talvez temeroso da agressividade da militância bolsonarista.
É preciso que os deputados e senadores superem a fixação numa salvação individual nas eleições. Os deputados da extrema direita, segundo a PGR, usam verbas parlamentares para mobilizar o fechamento do próprio Congresso. Não há como se esconder atrás das togas negras do Supremo. É necessária uma frente democrática no próprio Congresso.
“Somos poucos”, dirão os deputados. Mas não importa tanto o número, o importante é começar. Se a pausa acionada com a prisão de Queiroz for entendida como um momento de distensão, uma época para simplesmente deixar andar o processo judicial, ela pode trazer surpresas desagradáveis…
Naturalmente, os processos legais têm de ser acompanhados. Mas os danos ao País continuam a ocorrer. E a chegada de momentos mais dramáticos da crise econômica pede a construção de redes de solidariedade.
Diz a OMS que o mundo sentirá por décadas os efeitos da pandemia de coronavírus. No caso brasileiro, além da pandemia, vamos também sentir por décadas a passagem de Bolsonaro pelo poder.
No trabalho de reparo dos estragos e reconstrução do futuro não pode haver pausa. Mesmo porque as desgraças não nos abandonam nem no cotidiano. O mínimo que esperamos de novo, nessa pausa, é uma voraz nuvem de gafanhotos que nos invade pelo sul do País.
Um aumento de chances de vitória é uma razão suficiente para intensificar a luta. Quanto menos nos preparamos para ela, mais difícil será o desfecho. Sem necessariamente estabelecer um paralelo com o nazismo, a História dos anos 30 é uma aula sobre as hesitações da democracia diante de um perigo no horizonte.
*Jornalista
Adriano Massuda: “Nem o pior ministro da Saúde fez o que Exército está fazendo, desmontando a engrenagem do SUS”
Adriano Massuda, ex-secretário de Saúde de Curitiba e professor da FGV, diz que nunca intervieram tanto na estrutura da pasta como agora, com a ocupação de cargos-chave por militares
Por Flávia Marrero, do El País
Adriano Massuda, 41 anos, não economiza termos fortes para descrever os desacertos do Governo Bolsonaro e de parte das gestões estaduais no enfrentamento da maior crise sanitária do século. “Faltou a organização de uma resposta nacional com a dimensão que essa pandemia exige. E não tem desculpa! A gente teve tempo para se preparar”, lamenta o ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e especialista em gestão em saúde, lembrando que o novo coronavírus surgiu na Ásia e levou quase três meses para chegar até aqui.
“Só não estamos em situação pior justamente porque nós temos o SUS [Sistema Único de Saúde] e porque o Brasil tem uma tradição em programas de saúde pública”, diz o professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante na Escola de Saúde Pública de Harvard. O problema, afirma Massuda, é que justamente essa tradição de saúde pública está sendo ameaçada com a profusão de militares e profissionais sem experiência instalados em cargos-chave na atual configuração do Ministério da Saúde. O pior, segundo o professor, é que mudanças nas engrenagens do sistema que foram construídas ao longo dos últimos 30 anos podem fazer um “estrago” muito além da pandemia.
Pergunta. Como o senhor avaliou essa tentativa do Ministério da Saúde, revertida pelo STF, de mudar a forma de divulgar os números da covid-19?
Resposta. Isso demonstra uma degradação cada vez maior na capacidade do Governo Federal em lidar com uma ameaça tão grave como essa pandemia. Podemos dividir a resposta em três tempos. Primeiro a gestão de Luiz Henrique Mandetta. Apesar das críticas ao atraso na tomada de medidas para preparar o país, houve iniciativas de alerta a população sobre a gravidade da situação. O segundo tempo foi Nelson Teich, o Breve. Aí o ministério praticamente parou, deixando de exercer um papel de coordenação nacional do sistema. E agora o ministério atrapalha a resposta à pandemia. Nessa terceira fase é pior, com ministro interino há mais de um mês, a tentativa de negar informação, como se isso fosse diminuir o problema —uma atitude insana que é muito a cara desse Governo— cria um conflito com Estados e municípios. O Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] publicou uma carta histórica bastante dura, com o posicionamento dos secretários estaduais de Saúde contra a possível maquiagem dos números, de dizer que os números estão inflados por Estados e municípios. Isso cria um conflito federativo bastante perigoso para governança do sistema de saúde, que antes estava restrito aos governadores e ao presidente.
P. Como senhor vê essa profusão de militares na pasta?
R. O Exército está ocupando cargos técnicos quando o Brasil tem profissionais extremamente competentes na área da saúde coletiva brasileira. Poucos países têm a inteligência que nós temos neste setor. Essa inteligência não está no Exército. Junto com a piora da pandemia, pode haver piora em outros problemas de saúde negligenciados por causa dela. Há inúmeros outros programas de saúde que dependem da coordenação técnica do ministério. Como é que vai ficar a coordenação nacional do câncer? Como é que vai ficar a política nacional do HIV, do sangue e hemoderivados, e as vacinas que dependem da ação do Ministério da Saúde? É algo muito arriscado e a sociedade tem que ficar bastante atenta. O problema não é só a covid-19.PUBLICIDADE
P. Por que o senhor acha essa presença dos militares tão perigosa?
R. O volume de ocupação de cargos técnicos por militares e por indicações políticas sem qualificação necessária na estrutura do Ministério da Saúde tem ocorrido como nunca antes desde que o SUS foi criado. Nem o pior ministro da Saúde fez o que está acontecendo agora. Há áreas técnicas do Ministério da Saúde, fundamentais a manutenção de programas de saúde, que já passaram por diferentes governos, de diferentes bandeiras políticas, e nunca foram modificadas, devido ao saber acumulado. Pode haver um processo de desmonte da engrenagem que fez o sistema de saúde funcionar nos últimos 30 anos que é muito perigoso. O Exército pode estar puxando pro seu colo a responsabilidade de desmontar o sistema de saúde brasileiro. Esse sistema que é essencial para garantir a segurança sanitária do nosso país.
P. Que estruturas estão sendo modificadas?
R. Além da coordenação de programas técnicos, mudanças na estrutura da secretaria executiva do Ministério da Saúde são preocupantes, pois é a área faz o planejamento orçamentário e que coordenada o repasse de recursos para Estados e municípios por meio do Fundo Nacional de Saúde. Não sou o primeiro a alertar isso na imprensa. Isso pode trazer vários problemas futuros para para Estados e municípios. De imediato, ajuda a entender a baixíssima capacidade de execução orçamentária na pandemia, em que menos de um terço do recurso extraordinário aprovado foi executado após três meses do seu início. Os militares tem competência em muitas áreas, mas não tem experiência na gestão do sistema de saúde brasileiro, que é muito complexo. Se eles conhecessem, não fariam as modificações em áreas extremamente sensíveis como estão fazendo.
P. Apesar dos problemas, o SUS é tido, consensualmente, como uma fortaleza de que o Brasil dispõe para lutar contra pandemia. Mas, mesmo no Estado mais rico do país, São Paulo, há hospitais que precisam de doação para funcionar bem. Como vê as condições do SUS para enfrentar o problema?
R. Primeiro, um sistema de saúde não deve depender de doações. Isso revela uma série de fragilidades estruturais do sistema. Por outro lado, só não estamos em situação pior porque nós temos o SUS. O Brasil tem experiência de resposta em epidemias anteriores, que foram razoavelmente bem sucedidas. O país poderia estar utilizando a sua estrutura de vigilância epidemiológica e de atenção primária à saúde, que cobre 75% da população brasileira. A vigilância e atenção primária poderiam jogar um papel muito importante na identificação precoce de casos, monitoramento de grupos de risco e rastreamento de contatos —pessoas que tiveram próximas de infectados. Se a gente tivesse utilizando adequadamente essa estrutura que o Brasil dispõe, talvez não precisaríamos de um isolamento tão radical por tanto tempo.
P. Por que não estamos conseguindo usar o potencial a nosso favor?
R. O sistema tem várias problemas estruturais que se agravaram nos últimos anos, como o subfinanciamento, a fragilidade de governança e má distribuição de recursos. Se conseguimos promover uma boa expansão de atenção primária, não conseguimos fazer uma reforma na atenção hospitalar: 70% das Regiões de Saúde têm o número de leitos de UTI abaixo do que seria recomendado para situação de normalidade. E estamos falando só do número de leitos. Se formos falar de qualidade da atenção hospitalar... Os doentes graves de covid-19 exigem equipes técnicas extremamente qualificadas pra lidar com a complexidade dos casos, e no Brasil há grande carência nesse aspecto. E por que razão isso acontece? O percentual do gasto público em saúde no Brasil é um dos menores do mundo. O maior gasto concentra-se no setor privado: 56% do total que dirige-se a menos de 25% da população. Ou seja, é um gasto que não ajuda a fortalecer o SUS. Nos últimos anos isso piorou, pelas medidas de austeridade fiscal, que agravaram o subfinanciamento. O Brasil perdeu de 20 a 30 bilhões de reais desde que, em 2016, foi aprovado o congelamento de gastos públicos federais. E aí agora, diante situação com a pandemia, não conseguimos utilizar adequadamente o que temos de bom, e por outro temos uma rede hospitalar tão precária que depende de doações.
P. E a questão da governança? Isso vem de antes do Governo Bolsonaro, certo?
R. Temos no sistema de saúde com áreas de excelência no SUS. Você pode cair num hospital público e pode ter um excelente atendimento, num Incor, num Hospital de Clínicas da USP [ambos em São Paulo]. Agora, são ilhas. A realidade é que a grande parte dos hospitais não é assim, e a gente está falando de São Paulo. Se formos para o interior do Brasil ou mesmo outras capitais, o problema na atenção hospitalar é ainda maior. A descentralização da gestão do SUS para os municípios, sem organizar adequadamente regiões de saúde, criou problema de governança do sistema, pois as capacidades gerenciais são muito distintas. Esse problema é agravado por iniciativas de terceirização que aumentaram a precarização, pois atribuíram responsabilidade a gestores sem nenhum compromisso com o SUS. Apesar de haver algumas boas organizações sociais, existem outras em que o interesse não é produzir saúde. Esse problema ficou mais evidente com o caso dos hospitais de campanha do Rio de Janeiro. Tem hospital que é só tenda, não tem equipamento. Às vezes tem equipamento, mas não tem profissional. Ao mesmo tempo tem um número grande de leitos em hospitais públicos que estão fechados: tem estrutura, mas não tem pessoal. E tem leitos privados ociosos: uma alternativa poderia ser o poder público contratar leito privado e pagar adequadamente para isso. Seria mais econômico do que montar hospital de campanha.
P. E como vê a situação nos Estados e municípios?
R. Os problemas na coordenação nacional afetaram a capacidade de resposta de governos estaduais e municipais. Entretanto, apesar dos problemas, o SUS conseguiu abrir mais de 7.000 novos leitos de UTI em grande medida por iniciativa de Estados e municípios. Tem alguns Estados e municípios fazendo um bom trabalho técnico, mas vemos que infelizmente predomina a falta de capacidade de planejamento e gestão. Só para dar um exemplo do problema da governança do sistema de saúde brasileiro, em vários Estados já houve troca de secretários. O Acre já mudou duas vezes [a mudança foi na gestão municipal de Rio Branco, que trocou uma vez de secretário], Amazonas duas vezes, Amapá duas vezes, Rio de Janeiro duas vezes, Distrito Federal uma vez, Minas Gerais uma vez, Paraíba uma vez, Roraima cinco vezes, Santa Catarina uma vez, Sergipe uma vez, Tocantins uma vez. Estamos no terceiro ministro da saúde desde o começo da pandemia. Como governar um sistema de saúde com tanta troca? Isso expõe fragilidades que precisarão ser enfrentadas se quisermos ter melhor capacidade de defesa a desafios como a pandemia da covid-19 nos apresenta.
El País: 'As Forças Armadas funcionam como o substituto de um partido para sustentar Bolsonaro', diz Dilma Rousseff
Ao El País, ex-presidenta afirma que Lula não quer ser candidato em 2022, cita Flávio Dino como do "mesmo campo", mas não Ciro. Ela rejeita integrar uma frente anti-Bolsonaro ao lado de Moro
Dilma Rousseff tem dividido seu tempo durante a pandemia entre participar de debates políticos online, ler sobre o passado e o futuro do mundo e, de vez em quando, ficar com os netos Gabriel, de 9 anos (“um adolescente”), e Guilherme, de 4, isolados como ela no bairro Tristeza, em Porto Alegre. Na escolha das leituras, a ex-presidenta que comandou o Brasil de 2011 a 2016 e conversou com o EL PAÍS em 10 de junho, não deixa dúvidas sobre o que lhe preocupa: está lendo M, o filho do século, uma biografia de Benito Mussolini escrita pelo italiano Antonio Scurati.
Na entrevista de quase uma hora ao jornal, transmitida ao vivo, Dilma não hesitou em classificar o Governo Bolsonaro como de cunho neofascista e em enxergar em sua cúpula o desejo de uma ruptura institucional. “É o sonho de consumo da cúpula deste Governo. A mim causa pânico. Porque seria mais grave do que a ditadura militar, com um quadro marcadamente fascista e miliciano”, afirma ela. Nesse quadro, ela vê na aproximação “notória” do Planalto com as milícias uma contradição para as Forças Armadas, que “ocupam no Executivo um papel estratégico, porque parece que funcionam como substitutos à inexistência de um partido político que dá sustentação ao Bolsonaro”.
Para a ex-presidenta sacada do poder por um impeachment e 2016, os aspectos mais preocupantes da atual conjuntura política são dois. O primeiro é o apoio que o Governo ainda tem em setores da elite financeira, das Forças Armadas e das polícias ( “Até onde vai a flexibilidade daqueles que ainda apoiam Bolsonaro? Até onde eles vão? Até a ruptura?”). O segundo é a natureza da ruptura que ela acredita estar em curso com Bolsonaro, que não se dará como num golpe clássico dos anos 60 e 70. A estratégia, ela analisa, é radicalizar e, a depender da reação, recuar —embora nunca totalmente—, acumulando um saldo corrosivo para a democracia. “Se compararmos a democracia a uma árvore, a ditadura militar vai lá e corta a árvore. Nos novos golpes que começam a ocorrer —sou um deles, com um impeachment sem crime de responsabilidade—, é como se a árvore fosse invadida por fungos e parasitas, que corroem por dentro as instituições”, disse.
Toda sua análise passa por ver seu processo de destituição e a própria Operação Lava Jato como parte de uma engrenagem que levou Bolsonaro ao poder. Daí seu alinhamento com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas críticas a manifestos anti-Planalto como o Juntos, que reuniu apoiadores de seu impeachment, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Apesar de frisar que não integraria, por exemplo, uma frente anti-Bolsonaro com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro (”Ele é diretamente responsável, figura central na chegada do Bolsonaro”), a principal crítica da petista ao manifesto é programática: “Juntos para quê?”, provoca. “Historicamente, assinar manifesto não constitui frente. Constitui frente um projeto mínimo. Não posso estar junto para nada. Tem que estar junto para tirar o Bolsonaro e colocar algo no lugar. A frente tem que ter um programinha mínimo. No Brasil, só tem um jeito de salvar a democracia: é tirar o Bolsonaro”, disse ela que, dias após a entrevista, assinou o manifesto “Mulheres derrubam Bolsonaro”.
Seja como for, a petista vê os manifestos como apenas um dos elementos no debate em torno da continuidade ou não do atual Governo. Além do apoio das fatias da elite, a falta de mobilização social contra o Planalto, num contexto dificultado pela pandemia, deixa o cenário da saída do presidente ainda distante, avalia a petista. “Se eu fosse pessimista, eu não levantava da cama. Não sou pessimista. Sou uma pessoa que tem aquilo que o Gramsci dizia: o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. A vontade transforma. Mas você tem de olhar a realidade como ela é. O que acho é que temos que construir as condições para tirar Bolsonaro”, reflete.
Enquanto isso não se dá, a ex-presidenta vê com a apreensão o Brasil que navega a crise sanitária e econômica. Ela não descarta “catástrofe” ou “caos social” caso o Governo não estenda por mais tempo o auxílio emergencial aos mais pobres e informais. A petista também vê com desconfiança, e não como uma etapa para uma futura renda mínima, a proposta anunciada por Paulo Guedes para modificar o Bolsa Família e outros programas sociais —reconhece que “teria sido melhor” se o PT tivesse transformado o programa de transferência de renda em lei: “O que o Paulo Guedes quer é fazer economia nas costas dos mais pobres”, critica.PUBLICIDADE
Já, no mundo, Dilma acredita que pode se apresentar uma saída progressista para crise: “Vai haver um aumento da tributação sobre grandes riquezas, sobre patrimônio e sobre ganhos de capital. Por quê? Porque não tem de onde tirar dinheiro”, prevê. “Não só eu falo isso. Fala também Martin Wolf, o maior economista político do Financial Times, uma pessoa que não pode ser acusado de bolivariano...”.
Sobre o cenário eleitoral, a petista vê um ambiente volátil. O que está acontecendo no EUA, que foi detonado pela morte absurda de George Floyd, é essa explosão de raça e contra a desigualdade. Ela pode surgir no Brasil. Nós não sabemos como é que as pessoas vão viver sua situação de violência, de desigualdade e de racismo e de doença. Isso vai influenciar as eleições municipais”, analisa. E sobre 2022? Para ela, ainda é cedo para traçar rumos, embora trace uma linha que pode ser definidora: afirma que seu mentor Lula, que segue inabilitado legalmente de concorrer à presidência por causa da condenação por corrupção, não deseja entrar na disputa. Quem, então? Ela cita outros nomes “do mesmo campo”, como o governador do Maranhão, Flavio Dino (PCdoB), mas não Ciro Gomes (PDT), evidenciando as feridas ainda abertas de 2018.
Leia os principais trechos da entrevista:
Forças armadas no Governo Bolsonaro
As Forças Armadas ocupam no Executivo, através de uma presença maciça, um papel estratégico, porque parece que funcionam como substitutos à inexistência de um partido político que dá sustentação ao Bolsonaro e lhe forneceria os cargos dirigentes. Chegamos ao ponto de na maior pandemia da história recente dos últimos séculos no Brasil e no mundo, o Ministério da Saúde, peça fundamental, ser ocupado por um general interino sem os necessários subsídios técnicos. Há um quadro de intervenção militar dentro do Governo. Não há esse quadro de intervenção na sociedade. Não há. Ou seja, as instituições, Judiciário e Legislativo funcionam.
Risco de ruptura
É o sonho de consumo da cúpula deste Governo. A mim causa pânico. Porque seria mais grave do que a ditadura militar, com um quadro marcadamente fascista e miliciano. Em todos os Estados modernos há um monopólio pelo Estado da força e da Justiça. Privatizar para a milícia a violência é gravíssimo e isso ameaçaria a própria estruturação das Forças Armadas. Esse processo é extremamente contraditório do ponto de vista também das Forças Armadas, porque esse Governo defende uma privatização da violência, o exercício da violência por meio de armar o povo, como nós vimos na reunião de 22 de abril. E tem uma relação pública e notória com as milícias. Mas a pergunta é: até onde vai a flexibilidade daqueles que ainda apoiam Bolsonaro? Porque você tem partes expressivas do mercado apoiando Bolsonaro, uma parte da mídia apoiando Bolsonaro ainda, de forma mais contida, mas apoiando, e setores da sociedade e de certas instâncias das Forças Armadas e da Polícia Militar apoiando Bolsonaro. Até onde eles vão? Até a ruptura? O mundo não está propenso a golpes militares.
O tipo de ruptura
Se hoje não tem a possibilidade de um autoritarismo, a ideia é radicalizar. Aí há uma reação e você recua. Se você radicalizou 100, você recua 50 e acumula 50. Na sequência, faz outra aproximação: avança mais 100, recua 50. De tal forma que você normaliza, por exemplo, a discussão sobre o AI-5 no Brasil. Quando que no Brasil se discutia abertamente a volta do AI-5. Nunca. Quando no Brasil de discutia intervenção militar? Nunca. E hoje isso se tornou pauta da imprensa. Ele faz só aproximações sucessivas, mas em busca de um objetivo ao qual ele quer chegar. Se compararmos a democracia a uma árvore, a ditadura militar vai lá e corta a árvore. O que significa que todos os direitos, de liberdade de expressão, imprensa, organização, Congresso aberto estão inteiramente cortados para toda a população. Nos novos golpes que começam a ocorrer —no meu caso sou um deles com um impeachment sem crime de responsabilidade—, ao invés de um machado cortar a árvore, é como se a árvore fosse invadida por fungos e parasitas, que corroem por dentro as instituições.
Impeachment, Lava Jato e Bolsonaro
[A corrosão da democracia] não ocorreu com Bolsonaro. Ocorreu logo após a minha eleição em 2014 e se prolongou através de várias rupturas sistemáticas dentro da estrutura. Conflitos entre o Judiciário e o Executivo. Entre o Legislativo e o Executivo, cada vez se aprofundando mais. E temos uma expressão maior disso na Lava Jato, porque a base fundamental da democracia, de que todos são iguais perante a Lei. Sem isso não há possibilidade de democracia estável. Sem a Lava jato nós não teríamos o Bolsonaro. Sem o Governo Temer nós não teríamos o Bolsonaro.
Frente? Apenas se for para tirar Bolsonaro
Uma frente que não assumir que é para tirar o Bolsonaro, eu não sei para que ela tem que ser feita. O que sustenta o Governo Bolsonaro? É só seu caráter neofascista? Ou tem uma porção de pessoas da elite que queria o Bolsonaro para aplicar uma agenda neoliberal. Tirar o Governo Bolsonaro sem evidenciar que há uma aliança neoliberal e neofascista no Brasil? O que vai acontecer com a nossa frente? Vai dar em nada. Uma frente democrática tem que ser daqueles que sabem que o Bolsonaro tem que sair. O senhor Sergio Moro jamais pode entrar numa frente. Ele é diretamente responsável, figura central na chegada do Bolsonaro. Como eu posso ser a favor de um movimento que tem uma pessoa como Miguel Reale Jr., que assinou junto coma Janaína Paschoal aquele impeachment fraudulento, que originou esse golpe. Essas pessoas se recusaram a fazer uma frente em 2018, ali tinha uma frente, nós impediríamos que eles surgissem. Não acho que as pessoas do Juntos são mal intencionadas. Acho que o Juntos, primeiro não tem proposta. Juntos para quê? Se não é para tirar o Bolsonaro, é para quê? Historicamente, assinar manifesto não constitui frente. A frente tem que ter um programinha mínimo. No Brasil, só tem um jeito de salvar a democracia: é tirar o Bolsonaro.
Chances de um impeachment do presidente
Acho muito difícil, sem movimentação social, tirar o Bolsonaro. E isso não é viável nesse quadro de pandemia. Então, temos aí já uma fraqueza. E acho que tem de ter clareza. Se eu fosse pessimista, eu não levantava da cama. Não sou pessimista. Sou uma pessoa que tem aquilo que o Gramsci dizia tenho o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. A vontade transforma. Mas você tem de olhar a realidade como ela é. O que acho é que temos que construir as condições para tirar Bolsonaro. É certo que os manifestos fazem parte disso, mas não acho que existe o manifesto que é aquele que se eu não assinar nós todos seremos traidores, como quer o Ciro Gomes. Não existe isso. É um instrumento de luta política. Mas os manifestos funcionam como essa quantidade de afluentes que vão convergindo para formar uma base para romper com Bolsonaro. Entre os manifestos, acho o pior o Juntos. Acho interessante o 70%, o Basta, aquele outro antifascista. O que eu considero é que é preciso mais do que isso, para que a gente possa, de fato, fazer uma luta democrática que restaure a democracia e os direitos do povo.
Papel do PT
O PT, junto a outras frentes e vários partidos de oposição e movimentos sociais, entrou com um pedido de impeachment, como sendo um dos instrumentos para o “Fora Bolsonaro”. Dentro da estratégia, cabe tudo: manifestos, movimentos na rua e fundamentalmente um pedido concreto de impeachment que foi assinado por todos os partidos de oposição e movimentos sociais e figuras da sociedade. Outros pedidos de impeachment também entraram. No Congresso tem várias iniciativas. No TSE tem uma discussão sobre a chapa. O que nós consideramos fundamental também é perceber que é preciso não só tirar Bolsonaro, mas ter eleições diretas. Quando a gente diz que tem que tirar a chapa e garantir eleições, é para que esse processo se desenrole democraticamente.Temos uma experiência recente que foi muito usada nas últimas semanas a respeito da questão democrática que é a Diretas Já. Foi um dos mais importantes movimentos que nós tivemos na nossa história política recente. Tínhamos no centro democrático um real centro democrático. Ulisses Guimarães era sem sombra de dúvida uma figura extraordinária que foi estratégica nessa questão da aliança de todos porque estava comprometido com o fim da ditadura. E hoje não tem [um Ulisses Guimarães]! Líder da centro-direita, não tem. E por que não tem? Porque elas foram, simplesmente, engolidas no processo que leva o Bolsonaro ao poder. Assumiram uma tática e estratégia suicidas.
Lula em 2022
Lula disse que não quer ser mais candidato, certo? Então, eu não posso falar outra coisa. Eu acho que Lula continua sendo, mesmo não querendo ser candidato, ele continua sendo a liderança mais expressiva no campo popular. Agora, ele disse que não quer ser. Pode ser uma pessoa do campo. O Lula já falou em [ex-prefeito Fernando] Haddad. O Lula já falou no [governador do Maranhão ] Flávio Dino [PCdoB]... O que não é possível é eu achar que uma pessoa fora de um determinado campo, que tem pelo menos a maioria do campo de oposição vai abrir mão pra quem tem 10% [em referência a Ciro Gomes]. Esse era o problema, a questão [ em 2018]. A troco [de quê ]? A Cristina Kirchner, na Argentina, abriu mão [da cabeça de chapa da eleição presidencial argentina] para o Alberto Fernandez, que foi o principal assessor de Néstor Kichner.
Eleições municipais em São Paulo e Rio
Jilmar Tatto ganhou legitimamente [a vaga de candidato a prefeito do PT em São Paulo], numa eleição clara e aberta, então ele tem todo o direito de se candidatar, apesar de o candidato que foi derrotado por 15 votos ser o de minha preferência, o ex-ministro Alexandre Padilha. Tatto representa aquilo que é o pensamento do PT São Paulo. Já Benedita da Silva [candidata a prefeita do PT no Rio] é um contraexemplo no Brasil. Contra porquê? Ela é uma liderança que teve capacidade enfrentar a mais grave segregação no Brasil, que sempre foi diluída e escondida, a escravidão. Benedita já foi governadora do Rio, tem tido no Congresso uma pauta que eu considero fundamental. Ela, por exemplo, relatou a pauta das domésticas [PEC das domésticas].
Pandemia, racismo e as municipais
As prefeituras são eleitas dependendo da situação, são muito influenciadas pelos problemas locais e menos pelos problemas nacionais. Mas eu acho que, neste ano, elas serão influenciadas pela forma que os Governos em exercício estão enfrentando o coronavírus de um lado e, por outro, pela forma como as pessoas estão sentindo e sentindo de forma clara quais são as consequências de tudo que até agora chegou até elas. O que está acontecendo no EUA, que foi detonado pela morte absurda de George Floyd, é essa explosão de raça e contra a desigualdade. Ela pode surgir no Brasil. Nós não sabemos. Como é que as pessoas vão viver sua situação de violência, de desigualdade e de racismo e de doença. Isso vai influenciar as eleições municipais. Impossível não influenciar.
Auxílio emergencial, “gerir” uma crise na pandemia
No Brasil, sem uma renda mínima, nós vamos ter uma catástrofe social, um caos social, porque se 104 milhões ganham per capita até 413 reais, isso considerando eles empregados, no desemprego eles sempre vão estreitar o que ganham. Você terá milhões de pessoas fora de atendimento. E essa política maluca de flexibilização é um absurdo, porque você começa a abrir sem ter condições. Ao mesmo tempo, as pessoas com maior poder aquisitivo estão mais temerosas e então haverá a redução de consumidores a restaurantes , academias, shoppings. E o Brasil não testa. Por que é campeão na falta de testes, sendo que os testes são cruciais? Para manter o isolamento e flexibilizar, para gerir a crise. Como você gere a crise, se você quer gerir? Só gere com teste. Se você não quer gerir, o negócio é a contaminação do rebanho, pois, afinal de contas, todo mundo vai morrer, como é a tese do Bolsonaro. Não precisa de teste, então. O Brasil não ter testes mostra o colapso da gestão do Brasil, da ingovernabilidade. Porque é crucial pra você saber quando você abre, quando você fecha, como você conduz num país continental a diversidade de respostas. É impossível o Brasil continuar do jeito que tá. Nós teremos a maior crise sanitária do mundo e possivelmente, segundo o Banco Mundial, uma queda de 8% do PIB, e eu acho que pode se tornar maior do que isso.
Mulher no poder
Não acredito que um negro ou uma mulher quando chegam à presidência tenham imediata capacidade de instaurar uma mudança estruturante, que no Brasil leva desde o início da nossa formação. O que nós fizemos no meu Governo foi tentar empoderar as mulheres, com o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida, a lei Maria da Penha e a do feminicídio, mas isso não significa que nós alteramos uma coisa gravíssima no Brasil que é o patriarcalismo. Você veja como usam uma linguagem, um léxico misógino contra mim. Eu não vou falar aqui do absurdos com caráter sexual... Eu era uma mulher dura. Um homem não seria duro, seria um homem forte. Você já viu um homem ser chamado de duro? Não. Porque não é qualidade. Como eles não têm nenhum compromisso com a lógica, além de eu ser uma mulher dura eu era uma mulher fraca. Porque o jogo não é lógico, o jogo é emocional.
“Primavera da juventude no Brasil”
A esperança é a juventude. Minha geração dos anos 60 e 70 é vista como uma geração que foi capaz de ir para as ruas etc., mas eu acho que ela tinha suas limitações. E hoje, quando eu vejo quem vai para as ruas, quem falou contra o racismo durante o meu impeachment, quem fez as maiores manifestações, foram os movimentos de mulheres. Acredito que o nível de consciência da juventude que está nos colégios hoje é maior que a média. Isso ficou claro quando começa aquela reação nos colégios contra todas as atitudes fechamento no Governo Temer. Eu acredito que vai haver uma grande primavera de juventude no Brasil. Vamos ver a juventude assumindo as principais bandeiras, e não só aquelas associadas a questões sociais, mas também as identitárias.
Orlando Thomé: “Fiz que fui, não fui, acabei fondo”
A frase do título é de Nunes, ex-jogador do Flamengo, dita numa entrevista para explicar como tinha conseguido fazer um gol. Lembrei-me dela acompanhando o desenrolar dos acontecimentos relacionados ao presidente nos últimos dias. Vamos aos mais relevantes.
Dia 15 – A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), Supremo Tribunal Federal (STF) autoriza e Polícia Federal (PF) cumpre mandado de prisão contra Sara Giromini e outras 5 pessoas no âmbito do inquérito que apura organização e financiamento de atos antidemocráticos.
Dia 16 – A pedido da PGR, STF autoriza PF a cumprir 21 mandados de busca e apreensão em seis unidades da Federação; STF determina quebra de sigilo bancário de 11 parlamentares bolsonaristas.
Dia 17 – Fábio Faria, deputado federal (PSD/RN) ligado ao Centrão, é empossado no Ministério das Comunicações em solenidade prestigiada por representantes dos Três Poderes.
Dia 18 – Fabrício Queiroz é preso em Atibaia na propriedade do advogado Frederick Wassef; Ministério da Educação (MEC) publica portaria extinguindo a política de cotas em cursos de pós-graduação nas universidades federais; ministro da Educação envia à Casa Civil lista de nomes para o Conselho Nacional de Educação (CNE); Abraham Weintraub anuncia em vídeo a saída do MEC.
Dia 19 – Os ministros da Justiça, da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Secretaria-Geral da Presidência da República viajam a São Paulo para uma reunião com o ministro do STF Alexandre de Moraes.
Dia 20 – A exoneração de Abraham Weintraub é publicada no Diário Oficial; o irmão do ex-ministro informa pelo Twitter que ele já está nos Estados Unidos.
Dia 22 – Senador Flávio Bolsonaro anuncia que o advogado Frederick Wassef deixa sua defesa no inquérito da rachadinha.
Dia 23 – Publicado decreto do presidente no Diário Oficial da União retificando a data de exoneração do ministro da Educação; MEC revoga portaria que acabava com incentivo a cotas em cursos de pós-graduação; ala militar do governo sinaliza ao presidente que pretende vetar nomes indicados pelo ex-ministro Abraham Weintraub para o CNE; presidente recebe o secretário de Educação do Paraná, cotado para assumir o MEC.
UFA!! Quanta coisa em tão pouco tempo! Diante desses fatos, o futuro do governo Bolsonaro tem sido objeto de dezenas de análises publicadas na mídia, além de ter acentuado a guerra nas redes sociais, em que, de um lado, grupos oposicionistas aparecem entusiasmados com a possibilidade de impeachment ou da cassação da chapa pelo TSE e, de outro, grupos apoiadores fazem a defesa intransigente do presidente e atacam o STF e o Congresso Nacional. E o que fará Bolsonaro? Quais serão seus próximos passos?
Não custa lembrar que, desde o início do mandato presidencial, há uma guerra, ora surda, ora barulhenta, entre dois grupos: os chamados olavistas e a ala militar. A recente e conturbada demissão de Weintraub significou derrota do primeiro grupo. Mais ainda, a revogação de suas últimas decisões no cargo, ao lado da sinalização quanto ao perfil de quem vai sucedê-lo na pasta revelam inflexão importante.
Não que o presidente tenha abandonado seu viés ideológico, mas a prisão do Queiroz pode ter aberto uma janela de oportunidade para que os militares, no governo e nas Forças Armadas, possam empurrá-lo em direção a uma freada de arrumação, seguida de uma limpeza.
Para ajudar a entender tais movimentos, recorro ao professor brasileiro David Nemer, da Universidade de Virgínia (EUA), um estudioso sobre o funcionamento da rede bolsonarista no WhatsApp. Para ele, o bolsonarismo é um movimento social e político que se apoia em diversas correntes de pensamento, às vezes complementares, às vezes antagônicas, permitindo ao presidente justificar uma militância em prol do patriotismo, dos bons costumes, dos valores familiares, da lei e da ordem e da caçada à esquerda, servindo de base para a estratégia de criação do inimigo, em que quem se oponha a ele é tratado como antinação, anticristão e comunista. De fato, digo eu, esse grupo tem sido a garantia para sua resiliente aprovação na faixa de 25%-30% e, por isso, ele não pode prescindir desse apoio.
Assim, arrisco afirmar que Bolsonaro continuará a fazer seus movimentos para colocar em prática as mudanças políticas supracitadas, notadamente a aliança com o Centrão, a pacificação da relação com o STF e o acordo com a alta oficialidade das Forças Armadas, ao mesmo tempo que manterá o discurso ideológico radicalizado, em sintonia com as redes.
Se adotar essa estratégia, similar à folclórica declaração do ex-jogador Nunes, terá grande chance de manter o mandato, evitando o impeachment e a cassação da chapa. E, se a economia ajudar, chegará competitivo às eleições de 2022.
Saiba mais https://focanaestrategia.com/para-alem-do-coronavirus/
Ouça também https://focanaestrategia.com/nodetalhe-em-19-03-2020/
Acesse o site do jornal https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/06/26/interna_politica,867009/novo-ministro-e-visto-como-alternativa-pacificadora-na-educacao.shtml
Cida Bento: Eugenia e coronavírus
Crianças e adolescentes da periferia e das favelas são os mais atingidos pela Covid-19
Inúmeras são as reportagens e estudos apontando que o ocultamento ou manipulação do dado cor/raça nos formulários de notificação da Covid-19 e, acrescente-se a esse contexto, a retirada do CEP dos registros representam um esforço de encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados.
Assim, o crescimento e a ampliação de vozes contra a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras, que caracteriza o fascismo e o racismo, é fundamental como forma de preservar e fortalecer as instituições, que devem se posicionar firmemente protegendo os direitos de sua população, em particular de suas crianças e adolescentes.
No Brasil, o número de mortes e internações de crianças e adolescentes na pandemia está muito acima dos demais países, e a maior parte dessas crianças e adolescentes são negras, vivem em periferias, favelas ou bairros pobres, de acordo com artigo de Julia Dolce, da Agência Pública, de junho de 2020.
No universo dos adolescentes, são 59,4% de negros entre os casos notificados, ante 38,8% dos de brancos.
Dolce destaca ainda que a mortalidade de jovens brasileiros por Covid-19 é praticamente dois terços maior do que a verificada em países ricos, segundo pesquisa da Universidade de Paris.
No entanto, o dado cor/raça, fundamental para compreender melhor essa situação, figura como “ignorado” ou mesmo não preenchido em aproximadamente 40% dos formulários de hospitalizações e óbitos, indicando que a lei não vem sendo cumprida e o Estado não desenvolveu campanhas explicativas sobre a importância dessa informação para a definição de políticas públicas a fim de enfrentar os desafios da pandemia.
Importa destacar aqui que a mortalidade de crianças e jovens negros, de indígenas, idosos, quilombolas, seja pela ação, seja pela omissão do estado, pode representar a política eugenista, na atualidade.
A eugenia significa esterilizar, exterminar, invisibilizar, separar os indesejáveis. Assim, se crianças e adolescentes das periferias e favelas são atingidos diferencialmente pela Covid-19, eles também o são pela brutalidade policial, como observamos no aumento de assassinatos de crianças e adolescentes nos últimos anos.
Em 2019, cinco crianças de menos de 12 anos e 43 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos nas favelas do Rio de Janeiro por agentes do Estado brasileiro —policiais.
E, segundo o Atlas da Violência 2019, na idade de 21 anos, quando ocorre o pico dos riscos de uma pessoa ser vítima de homicídio, negros têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos.
Mortos em casa, em parques de diversões, nas escolas, em diferentes lugares das periferias e favelas onde deveriam estar protegidos. Diversos estudos têm revelado que a identificação do local é um dos elementos que legitimam a morte.
A ideia de favela construída como ausência, ilegalidade e desordem, um “problema” a ser solucionado, vem permitindo a entrada abusiva do Estado para lidar com a violência. Então, retirar o CEP de registros não é invisibilizar a política nas periferias e favelas?
Mais do que nunca, precisamos juntar as diferentes vozes da sociedade brasileira na retomada dos pactos civilizatórios que possibilitam o cumprimento do que define a Constituição Federal: a proteção integral de todas as crianças e adolescentes e de segmentos vulnerabilizados da sociedade.
Luiz Carlos Azedo: Mudança de rota
“A nomeação de Decotelli para a Educaçao e a passagem do general Ramos para a reserva sinalizam um correção de rumo no governo Bolsonaro”
Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro deixou a rota de iminente colisão contra os demais poderes. A mudança ocorreu após forte reação das lideranças do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, sobretudo, após a prisão de Fabrício Queiroz, seu amigo, ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (PR), quando o senador ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ambos são investigados no caso das rachadinhas daquela Casa legislativa. Dois fatos assinalam a mudança de curso: a nomeação do novo ministro da Educação, o economista Carlos Alberto Decotelli da Silva, e a passagem para a reserva do general de divisão Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que anunciou a intenção na reunião do Alto Comando do Exército, ontem.
Decotelli substituirá Abraham Weintraub, protagonista de uma gestão espalhafatosa e desastrosa à frente da pasta, com uma narrativa ideológica afinada com o grupo de extrema direita liderado pelo escritor Olavo de Carvalho, guru dos filhos de Bolsonaro. Como prêmio de consolação, o ex-ministro foi indicado para o posto de diretor representante do Brasil no Banco Mundial, mas sua nomeação está sendo questionada por funcionários do órgão. Até para sair do país e entrar nos Estados Unidos, Weintraub foi atabalhoado, pois viajou como se ainda fosse ministro, quando já havia deixado o cargo. Comportou-se como um fugitivo. Weintraub é investigado por causa de suposto envolvimento com grupos de extrema direita que ameaçavam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem chamou de “vagabundos”, na reunião ministerial de 22 de abril passado.
Primeiro ministro preto do governo Bolsonaro, Decotelli será o terceiro titular da pasta em menos de 1 ano e meio. O primeiro ocupante do posto foi Ricardo Velez, que permaneceu apenas três meses no cargo. Oficial da reserva não-remunerada da Marinha, o novo ministro atuou na Escola de Guerra Naval como professor. Bacharel em ciências econômicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre pela Fundação Getulio Vargas (FGV), doutor pela Universidade de Rosário (Argentina) e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Tem um perfil muito mais de gestor do que de educador, sua nomeação é uma esperança de um comportamento mais conciliador e menos ideológico à frente da pasta, embora seja um conservador e tenha apenas breve passagem pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre fevereiro e agosto do ano passado. Depois, comandou a Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério.
Verde-oliva
Outra notícia importante foi o anúncio de que o general de exército Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e principal articulador político do Planalto, passará à reserva. Ele já havia anunciado essa intenção, mas só agora foi oficializada. Sua situação era um fator de tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e o Alto Comando, porque circulavam rumores de que o presidente da República pretendia nomeá-lo para o Comando do Exército, no lugar do general Edson Leal Pujol. Ramos era o 6º na hierarquia de comando, o que resultaria na passagem antecipada para a reserva dos principais generais hoje na ativa. Bolsonaristas fomentavam a intriga, provocando mal-estar entre os militares.
Pelo regulamento atual, militares da ativa somente podem permanecer dois anos fora dos quadros regulares de comando, mesmo ocupando função para as quais, tradicionalmente, são designados militares, no Ministério da Defesa, criado originalmente para ser chefiado por uma autoridade civil, no Gabinete de Segurança Institucional e na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. A situação era meio esquizofrênica, porque Ramos é um dos ministros mais poderosos do governo Bolsonaro e, ao mesmo tempo, era subordinado a Pujol na hierarquia militar. Outro alto oficial da ativa praticamente na mesma situação é o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, general de divisão.
Ambos são ligados ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo, como o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Neto, que também era do Alto Comando, mas passou à reserva logo após assumir o cargo. Quando Azevedo foi o comandante do Leste, Ramos comandou a Vila Militar; Pazuello, a Brigada de Paraquedistas; e Braga Neto era o chefe de Estado-Maior.
Alon Feuerwerker: Um pouco de criatividade
Dois elementos têm destaque entre as causas da nossa crônica turbulência institucional. 1) O presidente vitorioso na urna nunca consegue eleger com ele uma maioria partidária na Câmara dos Deputados. E, combinada a isso, 2) a prerrogativa de o Executivo legislar por medida provisória vem se tornando um foco de instabilidade. Para acrescentar, conforme passa o tempo o Judiciário fica progressivamente tentado a se oferecer como poder moderador. Tudo meio fora de lugar.
Vai aqui uma primeira ideia para consertar o primeiro problema: as cadeiras obtidas pelo partido em cada estado para a Câmara deveriam ser calculadas não pela votação dos candidatos a deputado, mas pela votação do candidato a presidente no estado. A mesma lógica valeria para Assembleias e Câmaras Municipais. As coligações para o Legislativo já estão proibidas. Essa medida simples eliminaria as coligações para o Executivo. Se o partido não lançasse candidato a presidente, governador ou prefeito não elegeria deputado federal, estadual ou vereador.
Os votos nos candidatos ao Legislativo continuariam valendo, mas só para definir a ordem de preenchimento das vagas conquistadas pela legenda.
Jair Bolsonaro (então no PSL) e Fernando Haddad (PT) tiveram juntos pouco mais de 75% dos votos válidos no primeiro turno. Os dois partidos elegeram somados apenas 21% da Câmara dos Deputados. A diferença é autoexplicativa. Quem hoje está na oposição vai torcer o nariz para um cenário em que Jair Bolsonaro teria maioria sólida na Câmara. Mas fica a pergunta: como lá na frente um governo de quem hoje é oposição conseguirá governar e ter alguma estabilidade mantidas as atuais regras do jogo?
E o segundo problema? Antes, uma recapitulação. A medida provisória, herdeira do decreto-lei usado no regime militar, entrou na Constituição de 1988 também por ser parte da arquitetura planejada para o parlamentarismo. Com uma maioria permanente, o chefe do gabinete governaria por MPs. Se alguma delas caísse, abrir-se-ia a crise de governo. Solucionável ou por rearranjo congressual ou por uma nova eleição. Mas o parlamentarismo não passou nem na Constituinte nem no plebiscito após a revisão da Carta.
Para oferecer uma solução mais abrangente de estabilidade sem despotismo talvez seja adequado dar outro passo e acabar também com as medidas provisórias. Cortar o nó górdio. Hoje elas oferecem a sensação e alguma possibilidade de poder, mas são, a cada dia mais, buracos no casco da autoridade do governante. Ele tenta governar por MPs para contornar seus problemas com o Legislativo, apenas para adiante bater no muro do protagonismo dos presidentes do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
E num modelo em que o presidente eleito elegesse com ele uma maioria parlamentar o fim das MPs atenuaria os impulsos despóticos presidenciais. E sempre haveria a possibilidade, já prevista na Constituição, de o governo propor projetos de lei em regime de urgência.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja 2.693, de 1o. de julho de 2020