Day: junho 26, 2020

Benito Salomão: Renovar o auxílio emergencial?

O Brasil caminha para adentrar no quinto mês de Coronavírus e é o atual epicentro mundial da pandemia. O conjunto de erros cometidos pelo governo federal na gestão da pandemia, deu ao Brasil este nefasto status, o Brasil é hoje o exemplo mundial do que não se fazer em termos de medida de combate a uma crise sanitária. Diante da evidente deterioração do panorama econômico, em simultâneo ao descontrole do quadro epidemiológico, a proposta de prorrogar por mais 3 ou 4 meses o auxílio emergencial pago a trabalhadores informais ganha força na Câmara dos deputados.

No começo da crise escrevi o artigo Macroeconomia em Tempos de Coronavírus em que defendi um auxílio emergencial de 1 salário mínimo para as camadas vulneráveis, a ser pago pelo tempo que durasse a quarentena. No meu entendimento, para que o programa cumprisse sua finalidade, deveria o pagamento deveria ser condicionado a uma rigorosa quarentena entre 2 a 3 meses. Os 53 milhões de brasileiros atendidos por um coronavaucher de R$1.000,00/mês, custaria aos cofres públicos cerca de R$212 bilhões em quatro meses. Isto ao lado de outras medidas também adotadas como a antecipação do 13°, a liberação de saques do FGTS, além do pagamento serviriam para arrefecer a ansiedade das populações, sobretudo as mais pobres, para cumprirem seu isolamento social com segurança. Investir R$212 bi na segurança da população não seria um custo, se a quarentena tivesse sido respeitada e talvez hoje tivéssemos 20 ou 25 mil mortos a menos.

Ao contrário da nossa sugestão inicial, Executivo e Legislativo negociaram em conjunto um auxílio emergencial de R$600,00/mês por três meses e o custo total da política foi de aproximadamente R$95,4 bilhões. Entretanto, o isolamento social foi definitivamente abandonado como estratégia sanitária de enfrentamento da proliferação da doença e o Brasil se aproxima de 60.000 óbitos pela síndrome. Ultima vez que um episódio exógeno ceifou a vida de 50 mil brasileiros foi há 150 anos atrás, na guerra do Paraguai que durou 6 anos. Agora que o desastre humanitário já é um fato e a economia vai apresentar uma queda de dois dígitos em 2020, novamente executivo e Legislativo dialogam no sentido de prorrogar o Coronavaucher. Isto deverá causar um gasto primário extra de R$95,4 bi, ou seja, ao final de setembro o Tesouro terá gasto cerca de R$201 bilhões no pagamento do auxílio para os informais.

Não é sobre gastar ou poupar recursos públicos, é sobre qualidade do gasto público. Ao final o Brasil gastará em 6 meses um montante muito próximo do que gastaria em 4 meses pagando minha proposta inicial de 1 salário mínimo. No entanto, o pagamento do auxílio na ausência da obrigação de uma quarentena efetiva gerou a despesa, mas não evitou os 60 mil óbitos. Como sempre gasto público no Brasil é empenhado em função das suas intenções e não em função dos seus resultados e a prorrogação do coronavaucher por mais três meses novamente vai se orientar por esta lógica. A pergunta é, qual o motivo de se ampliar o tempo do benefício sem a exigência de uma contrapartida da população? Defendo até que dadas as condições socioeconômicas vigentes o auxílio seja estendido, no entanto, isto precisa estar atrelado a outras políticas e a resultados, não pode ser apenas um benefício.

Mas não foi apenas no pagamento do Coronavaucher que a política pública fracassou, praticamente todas as medidas de enfrentamento ou foram tímidas, ou foram concebidas com atraso, ou simplesmente não existiram. O SUS foi realmente fortalecido? O número de leitos ampliados de forma não apenas a socorrer neste momento de pandemia, mas de suprir deficiências históricas que o sistema apresentava? Tais como filas em cirurgias eletivas, falta de leitos, insuficiência de insumos e equipamentos descoordenação?

E a educação? Em todos os seus níveis parada sob pretexto de que uma porção relevante dos seus alunos não dispõem de instrumentos básicos como computadores e acesso à internet para acompanhar o ensino remoto, ou ainda que parte expressiva dos professores não domina o uso de tecnologias que já apontam para o futuro da docência no século XXI. Tal constatação é perfeitamente pertinente, mas as crianças do resto do mundo estão tendo aula remotamente mesmo diante da pandemia. Por que o MEC não aproveitou o pretexto da pandemia para lançar um amplo programa de inclusão digital das famílias e regiões mais pobres do Brasil? Utilizando bancos públicos para subsidiar parte dos equipamentos adquiridos por estes alunos e vinculando inclusive (e apenas neste caso já que se trata de um subsídio) a compras de computadores e tablets produzidos pela indústria doméstica?

Muito se argumentou que “iriam morrer mais pessoas de fome do que pelo Coronavírus”, de repete se descobriu que na maior potência produtora de alimentos do mundo, existem pessoas que passam fome. Por que não se criar consórcios públicos de compra de alimentos da agricultura familiar e utilizar o exército ou até mesmo a expertise dos Correios (uma das poucas empresas de logística no mundo com estas características) para distribuir alimentos nos subúrbios das grandes cidades? Ou mesmo nos rincões do país? E o envio através do exército de caminhões pipas para que os 39 milhões de brasileiros desabastecidos de água tratada pudessem se higienizar nas periferias das grandes capitais?

O Brasil vai ter um déficit primário de 12% do PIB este ano, deve se desfazer ainda de uns 4% do PIB em reservas internacionais com impacto fiscal e a sensação que se tem é a de onde está sendo empregado este dinheiro? Não se vê o emprego destes recursos acontecendo na prática. Se o déficit era inevitável que ao menos fosse utilizado salvando a população e construindo um novo Brasil.

Benito Salomão é doutorando em Economia UFU e visiting researcher na UBC.


Racismo: Cineclube Vladimir Carvalho indica filmes para ver após manifestações

No Brasil, negros representam mais da metade da população e maioria dos mortos pela polícia

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Após mobilizações contra o racismo, como a do grupo Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), tomarem conta do mundo, o Cineclube Vladimir Carvalho indica neste mês de junho filmes sobre o assunto para reforçar a luta contra esse tipo de crime. No total, no Brasil, negros são 56% da população e 75% dos mortos por policiais. Nos Estados Unidos, representam 13% das pessoas e 24% das vítimas assassinadas pela polícia.

Mantido pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em cima da Biblioteca Salomão Malina, em Brasília, o Cineclube Vladimir Carvalho está com as atividades presenciais suspensas desde o início da pandemia do coronavírus. A seguir, veja as sugestões:

1 - A Última Abolição

 A Última Abolição

Uma retrospectiva detalhada de um momento emblemático da história do Brasil, a abolição da escravidão, apresentado de uma outra perspectiva. Ao contrário do que foi pregado por livros didáticos e outras vertentes da história oficial por muito tempo, não foi meramente a assinatura da Princesa Isabel na Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, que libertou os escravos, e tampouco tal liberdade foi um presente ou um passo na direção da mitológica democracia racial.

Durção: 1h 22min / Documentário
Direção: Alice Gomes
Nacionalidade Brasil


2 – 12 Anos de Escravidão

 12 Anos de Escravidão

Não recomendado para menores de 14 anos

1841. Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) é um escravo liberto, que vive em paz ao lado da esposa e filhos. Um dia, após aceitar um trabalho que o leva a outra cidade, ele é sequestrado e acorrentado. Vendido como se fosse um escravo, Solomon precisa superar humilhações físicas e emocionais para sobreviver. Ao longo de doze anos, ele passa por dois senhores, Ford (Benedict Cumberbatch) e Edwin Epps (Michael Fassbender), que, cada um à sua maneira, exploram seus serviços.

Duração: 2h 13min / DramaHistórico
Direção: Steve McQueen (II)
Elenco: Chiwetel EjioforMichael FassbenderBenedict Cumberbatch
Nacionalidade: EUA


3 - Cafundó

João de Camargo (Lázaro Ramos) viveu nas senzalas em pleno século XIX. Após deixar de ser escravo, ele fica deslumbrado com o mundo em transformação ao seu redor e desesperado para viver nele. O choque é tanto que faz com que João tenha alucinações, acreditando ser capaz de ver Deus. Misturando suas raízes negras com a glória da civilização judaico-cristã, João passa a acreditar que seja capaz de curar e realmente acaba curando. Ele torna-se então uma das lendas brasileiras, popularizando-se como o Preto Velho.

Direuração: 1h 42min / Drama
Direção: Paulo BettiClovis Bueno
Elenco: Paulo BettiLeona CavalliLázaro Ramos
Nacionalidade: Brasil


‘Witzel poderá ser primeiro governador do Rio a sofrer impeachment’, analisa Paulo Baía

Em artigo publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, sociólogo diz que governador também implantou política de extermínio do ‘tiro na cabecinha’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O sociólogo e cientista político Paulo Baía, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que o comportamento inefável do governador Wilson Witzel (PSC) contaminou todos os níveis da administração pública do Estado. “O ex-juiz federal apostou na grave crise de violência, expondo o abismo da segregação que os moradores das favelas vivenciam, ao implantar uma política de extermínio do ‘tiro na cabecinha’”, diz, em artigo de sua autoria publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online. “O ex-juiz federal poderá ser o primeiro governador do Rio a sofrer impeachment”, afirma, em outro trecho.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com o autor do artigo, Witzel incentivou ações ilícitas de agentes públicos das forças policiais e, para completar, acabou com a corregedoria externa e a ouvidoria das polícias. “Uma de suas medidas centrais foi desfazer a Secretaria de Segurança Pública, recriando as fracassadas Secretarias de PM e de PC, que funcionaram de 1983 até 1994”, lamenta o sociólogo.

No artigo publicado na revista Política Democrática Online, Baía lembra que as demais secretarias foram assumidas, com raras exceções, por pessoas sem lastro administrativo, escolar e acadêmico, evidenciando a ausência de pessoas com expertise em governança pública. “Desde que tomou posse, em janeiro de 2019, o governador passou a ser protagonista de uma ‘ópera bufa’, com atitudes e falas capazes de demonstrar o quanto ter poder era seu maior objetivo, com atitudes espalhafatosas e comportamento de líder que pretendia fazer história com bravatas e mortes”, critica.

A crise sanitária da Covid-19, de acordo com o cientista político, escancarou o descalabro das violências policiais e milicianas contra jovens pretos, pobres, favelados e moradores das periferias. “De tal forma que o ministro Edson Fachin, em ato judicial inédito, concedeu liminar proibindo as ações policiais em favelas, sem justificativa prévia informada ao MPE e ao Poder Judiciário”, escreve.

Apesar de o ex-juiz querer ser o representante de uma renovação política, com as vistas postas no Planalto, conforme analisa o artigo, Witzel cometeu erros crassos por não fiscalizar medidas fundamentais, como a contratação milionária com empresas sem tradição e de baixíssimo capital social.

Leia mais:

‘Não há solução econômica sem solução sanitária’, diz economista Benito Salomão

‘Decisão de organização internacional tem, em geral, caráter recomendatório’

‘Bolsonaro transformou saúde em território de guerra’, diz Alberto Aggio

Bolsonaro é responsável pelo avanço da pandemia no país, diz Política Democrática

Polêmica da intervenção das Forças Armadas é destaque da Política Democrática Online

Veja todas as edições anteriores da revista Política Democrática Online


Eliane Cantanhêde: Jairzinho Paz e Amor

É melhor ‘presidente banana’ que ex-presidente prematuro e Bolsonaro tenta uma inflexão

A escolha do professor Carlos Alberto Decotelli da Silva para o estratégico e sofrido Ministério da Educação é mais um passo na metamorfose do presidente Jair Bolsonaro em Jairzinho Paz e Amor. Decotelli é conservador, sim, e não se poderia esperar algo diferente, mas carrega um belo currículo, não tem nada a ver com o antecessor Abraham Weintraub e muito menos é do grupo “olavista”. Logo, já é um avanço. Sua nomeação ocorre com Bolsonaro acuado, se enfraquecendo na área militar, e esquece manifestações golpistas e se aproxima de Judiciário e Legislativo, amenizando até a expressão facial e o tom de voz. Não à toa. São duas investigações contra ele no Supremo, uma contra Flávio Bolsonaro na Justiça Federal do Rio e outras contra parlamentares, empresários e militantes bolsonaristas, por fake news e atos golpistas, que se aproximam do “gabinete do ódio” e dos filhos do presidente.

O vice Hamilton Mourão entrou no radar, Bolsonaro finalmente concluiu que estava afundando e era hora de nadar e parar de afogar todo o resto. Essa pausa para reflexão, digamos assim, tem um papel fundamental da ala militar do governo, que manifestou incômodo com a ignorância e beligerância de Weintraub e não se dispõe a um abraço de afogados por problemas pessoais de Bolsonaro e seus filhos.

Tanto a queda de Weintraub quanto a ascensão de Decotelli, que teve uma fugaz passagem pela Marinha, têm a influência direta da ala militar, que tem tido contatos com ministros do Supremo e as cúpulas da Câmara e do Senado. Bolsonaro sempre bate no peito para demonstrar autoridade e já perguntou: “vou ser um presidente banana?”. Bem, é melhor ser um presidente um tanto “banana” do que um ex-presidente antes do tempo. De um lado, os militares mostraram desconforto. Do outro, o tal Olavo de Carvalho extrapolou ao postar um vídeo, aos palavrões, ameaçando o presidente. Somados, os dois movimentos reequilibraram o jogo, com a vitória da ala militar sobre a ala ideológica não só na questão pontual do MEC, mas na estratégia de sobrevivência.

Qualquer equilíbrio, porém, é precário. Bolsonaro atacou governadores, prefeitos, STF, Câmara e Senado. E também universidades, professores, alunos, médicos, enfermeiros, ambientalistas, indigenistas, jornalistas, artistas, intelectuais, militantes dos direitos humanos, movimentos negros… E a imagem do Brasil no exterior jamais esteve tão tristemente esgarçada desde os tempos da tortura. Bolsonaro não é vítima e sim réu nesse desgaste nas relações institucionais, federativas e internacionais. E é nesse ambiente adverso que tem de enfrentar as ações no Supremo e as revelações sobre a simbiose entre Flávio, Fabrício Queiroz, Márcia Aguiar, Capitão Adriano, milícias e o imprevisível Frederick Wassef.

Aliás, por que o general Augusto Heleno, do GSI, implodiu de vez a versão mal-ajambrada de Bolsonaro para a acusação de interferência na PF? O presidente dizia que seu alvo não era a PF, mas sim a segurança dele e da família do Rio, a cargo do GSI, quando, furioso, reclamou: “Eu não vou esperar foder a minha família toda (…), porque eu não posso trocar alguém (..).” Em oficio, Heleno responde que não houve “óbices ou obstáculos” para troca nenhuma. Em um ano e meio de governo, foram três na segurança no Rio.

Assim, o presidente tirou Weintraub, nomeou um nome respeitável para o MEC, reabre o diálogo e faz a alegria do Centrão, mas a crise continua. As investigações se aprofundam e não se tem ideia de como Bolsonaro vai se virar no depoimento ao STF. Sobretudo depois de Heleno, é impossível manter a versão inverossímil. E que outra versão podem inventar? O depoimento de Bolsonaro não será mais mera formalidade. E é um problemão.


Rogério Furquim Werneck: Brasil e Uruguai

Não há espaço para autoengano. No combate à pandemia, nosso país está levando um baile dos uruguaios

Dia 16 de julho, os uruguaios comemorarão 70 anos de sua lendária vitória sobre o Brasil na final da Copa de 1950, perante 199 mil torcedores que abarrotavam o recém-inaugurado Maracanã. Nas décadas seguintes, o Brasil encantaria o mundo com seu futebol, sagrando-se tricampeão mundial, em 1970, e penta, em 2002. Para nós brasileiros, contudo, não importa de que idade, o Maracanazo de 1950 continuou entravado na garganta. Uma amargura mal resolvida que, depois de tantos anos, teima em nos assombrar cada vez que, mesmo como franca favorita, a seleção brasileira enfrenta a uruguaia. Coisas do futebol.

Mas os uruguaios têm agora outra razão incomparavelmente mais importante para comemorar: seu desempenho espetacular no macabro torneio mundial de combate à pandemia. Num momento em que o Brasil já acumula mais de 55 mil mortes decorrentes da Covid-19, o Uruguai registra não mais que 26. Isso mesmo, 26 mortes.

Há que ter em conta, claro, que o Brasil, com 211,7 milhões de habitantes, tem uma população 60 vezes maior que seu vizinho de 3,5 milhões de habitantes. O razoável, portanto, é que a letalidade da Covid-19 nos dois países seja recalculada por milhão de habitantes. No Brasil, a pandemia já trouxe 259,8 mortes por milhão de habitantes. No Uruguai, 7,4 mortes.

A comparação é acachapante. Com base nessa métrica, o desempenho do Brasil no combate à pandemia mostra-se mais de 35 vezes pior do que o do Uruguai. É bom notar que não se trata de comparação com Nova Zelândia, Austrália, Cingapura ou Japão. E, sim, com outro país sul-americano, limítrofe, com o qual temos tanto em comum.

Não faltará quem alegue que, sendo o Uruguai um país pequeno, menos desigual, com população mais educada, melhores condições de saneamento básico e um sistema de saúde mais eficaz, não é surpreendente que venha tendo mais sucesso no combate à pandemia.

Tudo isso, claro, pode e deve ser levado em conta. E talvez pudesse explicar que o desempenho do Brasil fosse, digamos, dez vezes pior. Mas o que os dados mostram, vale repetir, é que nossa performance foi, por enquanto, mais de 35 vezes pior.

Não há espaço para autoengano. No combate à pandemia, o Brasil está levando um baile do Uruguai. A comparação deixa exposta a extensão da trágica lambança que estamos aprontando. E, também, a extraordinária competência com que os uruguaios souberam se mobilizar para combater a Covid-19.

Tal como no Brasil, o Uruguai vem padecendo de inegável polarização política. Mais civilizada do que a que se vê por aqui, mas, ainda assim, acirrada. No segundo turno da eleição presidencial do final do ano passado, Luis Lacalle Pou, à frente de uma coalizão de centro direita, ganhou com 50,8% dos votos válidos, contra 49,2% do candidato de centro esquerda.

Mal empossado em 1º de março, com um discurso de conciliação nacional, o novo presidente se viu às voltas com a chegada da pandemia ao Uruguai. Mas a polarização política não impediu que, extraindo lições corretas dos erros e acertos de países que já haviam sido colhidos pela pandemia, os uruguaios articulassem um combate concertado e extremamente eficaz à Covid-19.

Em contraste com o negacionismo sarcástico e eleitoreiro de um presidente entregue ao obscurantismo sanitário, em Brasília, o que se viu em Montevidéu foi um governo respaldado por assessoria científica de excelente nível e firmemente empenhado em liderar o país no combate à pandemia, com entrevistas coletivas diárias na televisão, em que se revezavam ministros e o próprio presidente da República.

Sem recurso a medidas compulsórias de distanciamento social, o novo presidente soube apelar para o espírito cívico dos uruguaios para conseguir que o país aderisse em massa a longo esforço voluntário de confinamento.


Cristina Serra: Sombras explosivas da nossa história

Com Queiroz e Wassef, o Brasil desenha círculos no tempo

Queiroz, Wassef, PC Farias e Fortunato. O que essas figuras têm em comum? A história é pródiga em personagens dos arredores sombrios do poder que, não raro, levam a desfechos trágicos. Em agosto de 1954, no episódio que ficou conhecido como o “atentado da rua Tonelero”, Carlos Lacerda, o mais ferrenho opositor do então presidente Getúlio Vargas, ficou ferido e o major da Aeronáutica Rubens Vaz morreu. O crime desencadeou a crise que culminou no suicídio de Vargas. O chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, acusado de ser o mandante do crime, foi condenado e morreu assassinado na prisão.

Um salto no tempo nos traz a 1992. Escândalos em série levam à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar um tentacular esquema de corrupção chefiado por Paulo César Farias, tesoureiro da campanha do então presidente Fernando Collor. A CPI leva ao impeachment do presidente, o primeiro na história do Brasil. O que segue é enredo de cinema: PC Farias foge e é preso na Tailândia. No Brasil, é condenado, preso, mas logo posto em liberdade condicional. Em junho de 1996, duas balas certeiras matam o empresário e a namorada em sua casa de praia. O crime é um mistério até hoje.

Mais um salto e outro caso de polícia nas cercanias de um presidente, com duas peças-chave. O notório Fabrício Queiroz, suspeito de ligações com milicianos, amigo de Jair Bolsonaro e faz-tudo do filho deste, Flávio Bolsonaro, quando era deputado estadual. Segundo as investigações, Queiroz operava o esquema de “rachadinha” que beneficiava o deputado. O segundo personagem é Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaros, pai e filho, até menos de uma semana atrás. O desaparecido Queiroz foi encontrado pela polícia na casa de Wassef.

O advogado e operador tem personalidades muito distintas. Wassef é tipo histriônico, dado aos holofotes e que, até outro dia, arrotava sua intimidade com o presidente. Já Queiroz, se valia da penumbra para articular esquemas criminosos com múltiplas ramificações. Ambos são bombas-relógio de alto teor explosivo. A história desenha círculos no tempo.


Reinaldo Azevedo: TJ-RJ ignora o Supremo; democracia nele!

Concessão de foro especial a Flávio Bolsonaro ignora a regra do jogo

O presidente Jair Bolsonaro descobriu a autocontenção só depois que a Justiça decretou a prisão de Fabrício Queiroz. A propósito: a concessão, pelo TJ-RJ, de foro especial a Flávio Bolsonaro afronta decisão do Supremo. Tem de ser revertida por meio de recurso especial ao STJ ou de reclamação ao próprio STF.

Fui contra o fim do foro especial —e apanhei muito dos bolsonaristas por isso—, mas o meu entendimento foi derrotado. Viva o colegiado! A menos que a 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ tenha encontrado no acórdão alguma regra excetuando filhos de Bolsonaro, esse Flávio volta para as mãos do outro, o Itabaiana. Que coisa! O apreço de certos varões de Plutarco pela democracia depende mais da polícia do que da Constituição.

A luta é longa, e estamos só no começo. Enquanto o primeiro-amigo se homiziava na realidade quântica de Frederick Wassef —o buliçoso advogado que, ao mesmo tempo, abrigava e não abrigava o subtenente de milícias--, o "capitão" nos ameaçava com a cólera das legiões, secundado por fardas e pijamas verde-oliva pendurados nos cabides do Planalto.

O Brasil anda tão doidão que debatíamos até a semana retrasada se um golpe, ou autogolpe, era ou não possível. Dar golpe para quê? Para render as Forças Armadas ao Comando de Rio das Pedras? Para transformar o país num grande Ministério da Saúde de Recrutas Zero, onde sobram coturnos e faltam médicos?

O Brasil já está levando pito até de fundos de investimento, alertando que o país não verá o verde do dinheiro enquanto não controlar a Amazônia em chamas. Entidades de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos denunciaram à ombudsman da União Europeia os retrocessos em curso. Eurodeputados enviaram carta ao presidente da Câmara conclamando o Legislativo a resistir à devastação.

O acordo Mercosul-UE está subindo no telhado; os investimentos externos, já minguados, podem nos abandonar de vez; o agronegócio de ponta é hoje prejudicado por madeireiros e grileiros de casaca mal cortada, que ousam falar pelo setor. E lá estávamos nós a interpretar falas e silêncios de generais. No país dos cemitérios eloquentes, fazíamos um debate com quase 60 anos de atraso. A prisão de Queiroz evidenciou o ridículo dentro do trágico.

Golpe? Autogolpe? Não percamos mais tempo com as ideias mortas que oprimem o cérebro dos vivos. Participo nesta sexta à noite do que pretende ser um grande ato virtual em defesa da democracia. Não se trata de frente ampla de partidos nem de ensaio geral para a deposição de Bolsonaro ou para a disputa eleitoral de 2022.

A exemplo de outras iniciativas, como o manifesto Estamos Juntos, brasileiros se articulam em defesa da garantia dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição, repudiando retrocessos no terreno institucional. Mas não só. O coronavírus não é professor nem guia moral. É um patógeno assassino. Mas também ensina.

E as milhares de vítimas da pandemia —todas sem vela e muitas sem sepultura— escancaram a necessidade de a democracia avançar além das garantias formais. A cor da morte na pandemia é preta. Seu lugar privilegiado na pirâmide das iniquidades é a pobreza. Não podemos mais tolerar um modelo que tenta harmonizar privilégios inaceitáveis com racismo, miséria e desigualdade aviltante.

O mais provável hoje é que Bolsonaro caia. E depois? Ele lidera o desastre, mas as condições que o levaram ao poder sobreviveriam. E é nelas que mora o problema. Há que se cobrar democracia em miúdos: em políticas públicas, em atendimento aos vulneráveis, em fim de privilégios. Para que ela possa existir também para os pretos e para os pobres.

E viva esta Folha, com sua campanha em defesa da democracia e com as aulas de Oscar Pilagallo sobre a ditadura militar! É preciso pensar o passado para instruir o futuro, em vez de ser esmagado por ele. Bolsonaro e seus golpistas são só o que passa.

Reitere-se: o TJ-RJ não tem licença para ignorar decisão do Supremo. É a regra do jogo, coisa dessa tal democracia.


Ricardo Noblat: A prisão de Queiroz pode ter feito muito bem a Bolsonaro

Um governo aparentemente normal até quando?

Um dia desses, pressionado por dívidas que atingiam a casa de 3 milhões de reais, Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro, queixou-se de ter sido abandonado pelos amigos. E escreveu na sua conta no Twitter que o presidente Jair Bolsonaro deveria enfiar naquele lugar a medalha que lhe conferiu no ano passado, durante viagem aos Estados Unidos. Dispensava a honraria.

Esse pode não ter sido o propósito de Bolsonaro, mas ao escolher Carlos Alberto Decotelli para ministro da Educação, ele enfiou goela abaixo do autoproclamado filósofo em apuros econômicos um nome que lhe é estranho. E logo no lugar que Olavo havia emplacado os dois últimos e desastrosos ministros – o colombiano Ricardo Vélez e o fugitivo Abraham Weintraub, de triste memória.

Ex-oficial da Marinha, professor da área de finanças na Fundação Getúlio Vargas, Dacotelli era o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) quando o órgão publicou um edital de R$ 3 bilhões que foi suspenso pela Controladoria-Geral da União (CGU) por suspeitas de fraudes. História estranha, essa, que ninguém esclareceu até hoje.

O pregão previa a compra de computadores, notebooks, projetores e lousas digitais para alunos das redes públicas de ensino estaduais e municipais. Relatório de auditoria da CGU apontou que a licitação estimou um número desnecessário de computadores. Só para a Escola Municipal Laura Queiroz, em Minas, seriam 30.030 laptops educacionais. Detalhe: a escola só tinha 255 alunos.

O edital foi publicado no dia 21 de agosto do ano passado. Decotelli deixou o cargo uma semana depois. Foi substituído pelo advogado Rodrigo Sergio Dias, indicado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O episódio não manchou a biografia de Decotelli aos olhos dos ministros militares do governo. E foram eles que convenceram Bolsonaro a promovê-lo a ministro.

Duro golpe para a chamada “ala ideológica” do governo, como se fosse possível faltar ideologia às demais alas. Nas redes sociais, inspirados por Olavo e sempre obedientes a ordem de comando do vereador Carlos Bolsonaro, os bolsonaristas de raiz, os mais sinceros, são justamente os que defendem o presidente, faça o que ele o que fizer. Devem estar se sentindo traídos.

Mas não só por isso. Desde a reunião ministerial de abril último, célebre pelos rolos que produziu, Bolsonaro começou a marchar para trás com medo de não completar o mandato. O medo bateu no teto com a prisão de Fabrício Queiroz, parceiro do seu filho Flávio em negócios suspeitos. Finalmente, parece ter-se rendido aos conselhos dos generais para não criar mais turbulências.

Abandonou seus devotos no cercadinho do Palácio da Alvorada. Viajou ao Rio para o enterro de um paraquedista no domingo em que eles foram às ruas de Brasília para defender uma nova intervenção militar. Acelerou a entrega de cargos ao Centrão e a liberação de dinheiro para prefeituras controladas por deputados e senadores encantados com tanta generosidade.

Nunca mais acenou com um golpe. Deu para exaltar a harmonia entre os Poderes. E, na sua live de ontem no Facebook, lembrou os mortos pela pandemia pedindo ao sanfoneiro e presidente da Embratur, Gilson Machado, que cantasse a “Ave Maria”. É verdade que, no fim da apresentação, voltou a criticar as medidas de isolamento social. Ninguém é perfeito.

Bolsonaro reencarnado como presidente moderado antecipou-se ao Congresso e resolveu estender por mais três meses o auxílio emergencial para os brasileiros mais pobres. E concordou com a passagem para reserva do general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria do Governo. Foi mais uma exigência dos generais da ativa que preferem manter distância da política.

Em 1964, quando o regime militar ainda fingia não ser uma ditadura, o jornalista Millôr Fernandes escreveu:

– Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que as pessoas pensem por sua própria cabeça… corremos o risco de em breve cairmos numa democracia.”

Pois é. Se Bolsonaro não atacar mais a imprensa, se não ameaçar mais o Congresso e nem marchar sobre o prédio do Supremo Tribunal Federal, se desistir de enfraquecer a democracia e, principalmente, se mantiver a boca fechada… corremos o risco de em breve cairmos num governo normal.

Duvida? Eu também.

Quando a Justiça para de fingir que é cega

A vitória de Flávio Bolsonaro
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, uma vez acionado como será, corrija a decisão esdrúxula e suspeita da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio que, por 2 votos contra 1, recriou o foro privilegiado para quem o havia perdido – no caso, o atual senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um do presidente da República.

Mais do que um atentado à inteligência, a decisão foi uma afronta ao Supremo que em 1999 estabeleceu que foro privilegiado só vale em caso de crime cometido no exercício do cargo. Investigado por desvio de dinheiro público, à época do suposto crime Flávio era deputado estadual. Deixou de ser no final do ano passado.

“Não há a menor dúvida que a decisão do Tribunal de Justiça do Rio é diversa da decisão do Supremo”, disse o ministro Marco Aurélio Mello. “Isso é o Brasil! É o faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso. Cada cabeça uma sentença”. Ouvidos por este blog, mais dois ministros foram na mesma linha de Mello.

O autor do voto que transferiu da 1ª para a 2ª instância da Justiça o inquérito que envolve Flávio e Fabrício Queiroz foi o desembargador Paulo Rangel. Em livro que escreveu, Rangel desancou uma lei de 2002 que garantia o direito ao foro a autoridades que haviam deixado seus cargos. Contraditório? E daí?

Daí que seu voto foi decisivo para tirar do caso o juiz Flávio Itabaiana, da 1ª instância, que quebrou o sigilo fiscal do senador enrolado e mandou prender Queiroz. Itabaiana tem justa fama de juiz que come abelhas, de preferência as africanas. As decisões que ele tomou poderão ser anuladas por órgão especial do tribunal.

O Tribunal de Justiça do Rio é famoso, digamos assim, por sua generosidade com políticos de grosso calibre e pessoas afins. Não é o único. Em julgamento que durou 4 minutos e meio, o do Distrito Federal, anteontem, absolveu a empresária Maria Cristina Boner, condenada por pagamento de propina para obtenção de contratos.

Maria Cristina vem a ser a ex-mulher de Frederick Wassef. Que vem a ser o ex-advogado de Bolsonaro e de Flávio na casa do qual Queiroz foi preso. Wassef é chamado de homem-bomba por ministros de Bolsonaro. Eles temem que Wassef possa um dia contar tudo o que sabe sobre a família presidencial brasileira.


Humberto Saccomandi: Uma epidemia de ódio ameaça EUA e Brasil

O ódio político pode afetar a economia pois leva ao impasse

Cuidado com a sua raiva. Raiva do presidente Jair Bolsonaro, do PT, do STF, do MST, da mídia, do movimento LGBT, dos ambientalistas, do seu colega evangélico, do seu primo que pede intervenção militar. A raiva política, que parece ter o efeito positivo de ressaltar nossas convicções e/ou indignações, provavelmente está trazendo prejuízos a todos. É um epidemia para a qual não existirá vacina tão cedo.

Essa é, adaptada ao Brasil, a tese de Steven Webster, professor de Ciências Políticas na Universidade de Indiana (EUA), que lancará em setembro o livro "American Rage", a raiva americana. Há uma extensa literatura recente que tenta lançar luz sobre o crescente fenômeno da polarização política nos EUA. Webster disse ao Valor que se concentrou nas consequências sistêmicas.

Para ele, a raiva ao oponente político virou a força dominante da política americana. E essa extrema polarização está destruindo a confiança das pessoas nas instituições, o que leva a um governo disfuncional, ameaça a democracia e causa prejuízos à economia. Isso parece ocorrer no Brasil também.

A disfunção ficou evidente na reação catastrófica dos dois países, na área da saúde, à epidemia. Para os apoiadores de Donald Trump/Bolsonaro, a cloroquina era uma solução, apesar da evidências científicas de que o medicamento não funciona. Os presidente não buscaram políticas de consenso nem colaboração com os Estados. Agora, ambos ignoram a disparada no número de casos.

Sempre houve raiva política na história dos EUA. O que há de novo nos últimos 25 anos, diz Webster, é a extensão da raiva dos americanos e a frequência com que eles estão dispostos a expressá-la.

Ele atribui isso a três fatores principais: um é o casamento da identidade partidária com a identidade racial, cultural ou ideológica. “Cada vez mais os republicanos são o partido dos brancos, e os democratas são uma coalizão multiétnica. Essa diferente composição influencia as políticas que os partidos acabam defendendo.”

Os outros dois fatores são: as mudanças na mídia, com a importância crescente da mídia explicitamente partidária; e as novas tecnologias de internet, que facilitam a expressão do ódio. É mais fácil ser agressivo com alguém numa rede social, sentado no sofá de casa, do que fazê-lo socialmente, num bar.

“Trata-se cada vez mais de um jogo de soma zero. Minha vitória é a sua derrota, e vice-versa. Houve uma transição de eu perceber que há pessoas que discordam de mim para eu achar que essas pessoas são oponentes a serem derrotados”, diz Webster. “A raiva leva as pessoas a enxergar os outros pela lente da política, e não como pessoas, numa espécie de desumanização política. Os apoiadores do outro lado são vistos cada vez mais como uma ameaça ao bem-estar do país e até como menos inteligentes.”

Essa polarização pela raiva não foi criada nem por Trump nem por Bolsonaro. Ela os precedeu e é provável que continuará depois deles. Mas ambos deliberadamente a fomentam e se nutrem dela.

Webster diz que os dois principais partidos americanos mudaram e rumam para os extremos. Mas ele condivide a teoria da polarização assimétrica, isto é, que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda. E, para se justificarem, precisam tentar colar no oponente a pecha de extremista. Trump repete todo dia que os democratas foram tomados por radicais. No Brasil, qualquer um que se oponha a Bolsonaro vira instantaneamente socialista ou comunista.

“O ódio político pode afetar a economia porque leva ao impasse. Se os eleitores estão com raiva do partido rival, isso cria o incentivo para as autoridades eleitas não façam acordos com membros do outro partido. E sem esse entendimento suprapartidário, é difícil enfrentar grandes questões nacionais”, disse.

O Medicare, o programa de saúde público para pessoas com mais de 65 anos, criado em 1965, no governo do democrata Lyndon Johnson, só passou no Congresso dos EUA graças ao voto favorável de 13 senadores republicanos, pois 7 senadores democratas votaram contra. Quando o Obamacare, seguro saúde compulsório com ampla participação privada, foi aprovado em 2010, nenhum deputado ou senador republicano votou a favor. Trump não conseguiu derrubar o programa, mas o desidratou. Com isso, dezenas de milhões de americanos enfrentam agora a epidemia sem plano de saúde.

Nem todo o mundo é assim, claro. A Dinamarca aprovou nesta semana um ambicioso plano de cortar as emissões de carbono em 70% até 2030. A proposta teve o apoio de mais de 95% do Parlamento. Os principais lobbies empresariais defendem o plano, ainda que ele possa levar a um aumento de impostos para financiar a conversão energética.

No Brasil e nos EUA, esse consenso é impossível. Temas de ambiente e aquecimento global foram colocados no escaninho da esquerda. Viraram não-assunto para a direita. Do mesmo modo, limitar a imigração é tema ignorado pela esquerda, apesar de ser demanda legítima de parte da população.

O candidato democrata, Joe Biden, pode não alimentar o ódio na sua campanha, mas ele quase não precisa disso, pois boa parte do país já tem tanta raiva de Trump e só a presença do presidente nas eleições já basta. “E é muito provável que grupos democratas explorem essa raiva.”

Ainda que a raiva possa ajudar os democratas nas eleições, ela é um risco à democracia, diz Webster. “Quanto mais os EUA ficarem polarizados, mais difícil se tornará manter a democracia. A democracia requer confiança, fazer concessões, um equilíbrio delicado, cada vez mais raro.”

Há saída para essa epidemia de ódio? “Espero, mas sou pessimista”, diz Webster. “Acho que será preciso algo grande e que afete todo o país para fazer as pessoas deixarem de lado a sua natureza partidária. Há evidência de que, quando algo as fazem se enxergar como americanos, e não democratas ou republicanos, isso reduz a hostilidade. Foi o que ocorreu no 11 de Setembro. A confiança no governo aumentou, o presidente George W. Bush teve a sua maior aprovação e muita gente trabalhou junto para um objetivo comum. É difícil saber se isso é factível sem que algo terrível aconteça. E ninguém deseja um ataque terrorista.”

Ele recomenda conter a raiva. “Uma dose de raiva é bom, pois eleva a participação na politica. Precisamos de uma quantidade saudável de raiva, não demais”.

*Humberto Saccomandi é editor de Internacional


Claudia Safatle: Crédito começa a chegar às microempresas

Até agora só a Caixa conseguiu liberar R$ 308 milhões de crédito

A avaliação do governo é de que ele, finalmente, começou a entregar os créditos prometidos no início da pandemia, para sustentar milhões de micro e pequenas empresas durante a crise da covid-19. E isso se deve, sobretudo, ao efetivo início do Pronampe (Programa Nacional de Apoio as Microempresas e as Empresas de Pequeno Porte), linha de financiamento equivalente a 30% do faturamento da empresa no ano passado, para capital de giro, ao custo de Selic mais 1,25% ao ano. O universo é o de empresas com faturamento de até R$, 4,8 milhões por ano.

Na verdade, porém, apenas a Caixa já está operando com essa linha de crédito. “O Banco do Brasil é mais lento e o Itaú, Bradesco e Santander estão em fase final de arrumação para operacionalizar os procedimentos com esse público que não é o deles”, segundo disse um assessor do Ministério da Economia que está acompanhando o dia a dia dessas operações para se certificar de que o crédito está chegando ao tomador final.

“Nas nossas previsões, até o dia 15 de julho estarão todos os interessados operando com o Pronampe”, acredita essa mesma fonte, que monitora com lupa a atuação principalmente dos cinco maiores bancos do país.

Há, de fato, uma fase de adaptação até à elaboração dos novos modelos de contratos onde as garantias deixam de ser dadas pelo cliente e passam a ser assumidas integralmente pelo Tesouro Nacional, mediante o FGO - o Fundo Garantidor das Operações.

O fundo foi capitalizado pela União nesta semana em cerca de R$ 15,9 bilhões. E a taxa de juros que passa a ser de cerca de 0,3% ao mês e deixa de ser os 2% a 3% ao mês das linhas próprias das instituições financeiras para as micro e pequenas companhias.

O Pronampe somado à linha de crédito para empresas “âncoras”, do BNDES, e ao Programa Emergencial de Acesso ao Crédito com garantia integral do FGI - Fundo Garantidor de crédito de Investimentos, também do BNDES, devem representar quase R$ 300 bilhões em oferta de crédito para as micro, pequenas e médias empresas.

Foi exatamente esse universo das micro e pequenas empresas que a Caixa havia definido como estratégico para suas operações desde o ano passado e, em poucos dias, conseguiu “botar no ar” a linha de crédito do Pronampe.

Segundo o vice presidente de Negócios de Varejo da Caixa, Celso Leonardo Barbosa, do dia 17 até ontem, a instituição havia fechado 6.500 contratos no valor de R$ 308 milhões que já foram depositados nas contas das empresas. Além disso, tem 5.700 contratos no valor de R$ 310 milhões, em fase final de negociação sejam os empreendedores clientes da Caixa ou não. A previsão inicial da Caixa é de atender a demanda de até R$ 3 bilhões mas, se for necessário, ela aportará mais recursos para esse fim.

Criado pela lei 13.999 de 19 de maio, o Pronampe já nasceu com a necessidade de adiar por mais 90 dias o prazo de contratação que se encerraria no fim de julho. Portanto, a linha de crédito estará em vigor até outubro.

O quadro atual de interesses do sistema financeiro em contratar crédito com as micro e pequenas empresas, até quarta feira, era o seguinte: 21 instituições manifestaram intenção de aderir ao programa. Dessas, no entanto, apenas oito iniciaram o pedido de adesão, três instituições concluíram testes para operacionalização (Caixa, Itaú e Bancoob) e 2 formalizaram adesão ao programa (Caixa e Itaú). Até ontem porém, só a Caixa havia contratado operações com garantia do FGO.

Esse é um mundo novo para os bancos tradicionais que gostam mesmo é de ter na sua clientela grandes empresas que podem despejar garantias em eventuais contratos de financiamentos. Para colocar o Pronampe em pé, o governo teve que capitalizar os fundos garantidores (FGO e FGI) e dar um jeito de assumir integralmente o risco de crédito para micro, pequenas e médias empresas.

Feito isso, o sistema financeiro está tendo que reavaliar suas premissas de análise de risco e ampliar as hipóteses de tamanho das empresas em seus portfólios. E não é raro um ou outro banco pedir ajuda da Caixa para lidar com essa nova clientela.

Isso leva o mais liberal dos liberais a defender a existência de um banco estatal com funções sociais para os momentos de crise aguda.

E reforça, ao mesmo tempo, a postura do ministro da Economia, Paulo Guedes, que na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, entre uns e outros desatinos cometidos pelos participantes, defendeu a privatização do Banco do Brasil que, afinal, é um bicho híbrido e, como tal, não justifica sua porção estatal.

Quando o Comitê Gestor do Simples Nacional prorrogou o prazo para o pagamento dos impostos federais, o fez por até 180 dias. Os Estados e municípios, no entanto, prorrogaram por somente 90 dias o pagamento do ICMS e do ISS, de forma que dia 20 de julho serão cobradas as parcelas relativas à abril.

O assessor especial do Ministério da Fazenda, Guilherme Afif Domingos, telefonou para o secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, Henrique Meirelles, que é o porta voz dos governos estaduais nessa questão, para saber porque eles não pensam em ampliar a prorrogação dos impostos por mais 90 dias, Meirelles tergiversou, dizendo que essa não era a proposta dos demais governadores etc. e tal.

Afif interpretou tal posicionamento como uma maneira de os Estados da federação tentarem obter mais alguma vantagem da União em troca de uma nova prorrogação.

“Eles pararam a atividade econômica nos seu Estados e agora querem cobrar impostos dos microempresários! Querem o quê? Incentivar a inadimplência?”, indagou Afif, que pautou sua vida pública em defesa dos micro, pequenos e médios empresários.

“Isso aí é moeda de chantagem. Eles querem usar os microempresários para ver se tiram uma vantagem a mais da União”, disse ele.


Míriam Leitão: A desigualdade piora na pandemia

Ministro Marco Aurélio diz que há vários caminhos na Constituição para diminuir os gastos com servidores sem ter reduzir salários

O ministro Marco Aurélio Mello disse que a despesa com os servidores pode ser reduzida, ainda que o Supremo tenha decidido que são irredutíveis os salários dos funcionários públicos da União, Distrito Federal, estados e municípios. No mesmo dia dessa decisão, que protege um grupo profissional, o IBGE divulgou que a renda do brasileiro caiu 18% em maio, e que, dos afastados do trabalho, quase dez milhões passaram a não ter renda alguma. Desses, 33% são empregadas domésticas sem carteira. São os retratos do país.

O Brasil sabe como construir desigualdades e faz isso na saúde e na doença, na prosperidade e na crise. Agora, por exemplo, alguns, como eu, conseguem trabalhar de casa porque têm boa internet e bons equipamentos. Os de maior escolaridade, avisa o IBGE, são a maioria entre os que conseguiram continuar produzindo de casa.

O ministro Marco Aurélio explicou que a Constituição estabelece a irredutibilidade dos salários dos servidores, mas não o de trabalhadores do setor privado.

— É bom pensar nisso para uma futura emenda — disse.

O tratamento é desigual, afinal, o Brasil vive uma pandemia, um colapso da arrecadação que devasta as finanças de estados e de municípios, e o gestor público pode cortar tudo, menos o salário do servidor. Imagine uma cidade sem recursos que tenha que, em vez de comprar remédio para um hospital, manter o mesmo rendimento para o servidor num país que empobreceu?

O que o ministro argumenta é que a própria Constituição aponta um caminho:

— O rol de medidas, para reduzir as despesas com pessoal, contido na Constituição, é exaustivo. Está no artigo 169. Permite a redução dos gastos de pessoal, primeiro afastando 20% dos detentores de cargos de confiança, depois exonerando os servidores não estáveis e por último até os estáveis, desde que pagando-se uma indenização de um mês por ano trabalhado. Mas tem que conciliar todo ajuste à irredutibilidade dos salários dos servidores — disse.

Nesse artigo a Constituição estabelece que os salários dos servidores de qualquer esfera administrativa do setor público não pode exceder o limite estabelecido por lei complementar. E faz a lista desses ajustes que podem ser feitos. Nada impede agora que o governo federal diante da conhecida queda de arrecadação reduza em 20% os cargos comissionados. Mas, pelo visto, na negociação com o centrão para defender seu mandato, o presidente está fazendo o caminho oposto. Aumentando as nomeações de apadrinhados.

Os efeitos econômicos do coronavírus no mercado de trabalho são como um bombardeio sobre os postos de trabalho. Os servidores que têm estabilidade já estão num abrigo antiaéreo. Na outra ponta, estão 19 milhões de trabalhadores que foram afastados e, desses, quase 10 milhões ficaram sem remuneração alguma. Somando-se os brasileiros que gostariam de procurar trabalho mas não estão procurando por causa da pandemia e os desempregados, há 36,4 milhões de brasileiros “pressionando o mercado de trabalho”, como disse o IBGE.

E, ao contrário do que o presidente Bolsonaro argumenta, isso não é provocado pelas decisões de isolamento, mas sim pelo vírus em si. As medidas, agora cada vez mais neglicenciadas, são decorrentes da necessidade de proteger a vida. Se o governo tivesse sido eficiente nas linhas de crédito para as empresas micro, pequenas e médias, teria reduzido em muito a crise atual. Se tivesse organizado com competência a distribuição do auxílio emergencial, teria evitado a maior parte das filas que certamente aumentaram as taxas de contaminação. E, principalmente, se o presidente não tivesse passado tantos sinais contraditórios, não tivesse negado a ciência, mas agido como coordenador, o peso da pandemia e da crise econômica teriam sido menores.

Em todas as áreas o que se vê no Brasil durante a pandemia é o aprofundamento das desigualdades. A falta da cobertura de banda larga no país, a falta de computadores nos lares dos mais pobres, a falta de celulares afastam pessoas do mercado e tiram a capacidade de aprendizado dos estudantes. E pensar que quando foi criado o FUST era para ser, como o nome diz, um fundo para universalizar os serviços de telecomunicação. O dinheiro ficou parado no fundo, no meio de muito debate sobre o seu destino, e agora o governo Bolsonaro propôs sua extinção.


Bernardo Mello Franco: Uma boia para Flávio Bolsonaro

Flávio Bolsonaro é um sujeito de sorte. Depois da prisão de Fabrício Queiroz, o senador parecia prestes a se afogar na lama da rachadinha. Foi salvo por uma boia arremessada pelo Tribunal de Justiça do Rio.

Para resgatar o primeiro-filho, a 3ª Câmara Criminal inovou. Os desembargadores Mônica Tolledo de Oliveira e Paulo Rangel inventaram o foro privilegiado de ex. Flávio não é mais deputado estadual, mas será julgado como se ainda fosse. Ganhará o mesmo tratamento dos atuais inquilinos da Alerj.

Para o professor Walter Maierovitch, a decisão representa um “atentado à inteligência”. Ele lembra que o nome oficial do foro privilegiado é “foro por prerrogativa de função”. “Se ele não ocupa mais a função, como pode ter a prerrogativa?”, questiona. “É o Brasil. É o faz de conta”, resumiu ontem o ministro Marco Aurélio Mello.

Graças à criatividade dos desembargadores, o caso sairá das mãos do juiz Flávio Itabaiana. Subirá para o órgão especial do TJ, que nunca incomodou figuras como o ex-governador Sérgio Cabral. Agora a defesa tentará anular os atos do magistrado de primeira instância. Entre eles, a prisão de Queiroz e a quebra de sigilo fiscal do senador.

O Zero Um já havia tentado levar as investigações para o Supremo Tribunal Federal. A manobra foi barrada pelo ministro Marco Aurélio. Ele aplicou o entendimento da Corte, que restringiu o alcance do foro e já mandou dezenas de políticos para a primeira instância.

No passado, o Supremo permitia que os políticos mantivessem o foro após o fim do mandato. A regra foi abolida em 1999 em nome do princípio da igualdade perante a lei. Ao ressuscitá-la, os desembargadores premiaram Flávio com uma viagem no tempo. Ele será julgado no século XXI como se ainda estivéssemos no século XX, resumiu o professor Diego Werneck Arguelhes.

Antes de ser flagrada no laranjal, a família Bolsonaro fazia comício contra o foro privilegiado. Era tudo marketing para tapear eleitores. Segundo o advogado Rodrigo Roca, que substituiu o enrolado Frederick Wassef, ontem o dia foi de comemoração. “O senador ficou muito satisfeito com a vitória”, contou.