Day: junho 25, 2020
Carlos Marchi: O pai de todos
Ante a guerra iminente, no dia 2 de setembro de 1792, George Jacques Danton, o personagem mais encantador da Revolução Francesa, ditou um caminho para a França: “Il nous faut de l’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace!” (*) Ele falava de enfrentamento da guerra, mas bem caberia como o discurso do paraninfo de uma turma de formandos em Jornalismo, evocando a maior virtude que aqueles jovens deveriam cultuar e praticar em sua futura vida profissional, posto que a audácia é a maior virtude do jornalista – desde que haja, nele, coragem necessária para forjá-la. Não será bom jornalista o que não for audaz.
Em vida, nunca ninguém se deu conta de que essas virtudes eram fartas em Carlos Castello Branco, o Castelinho, talvez por seu biótipo frágil, a voz débil, o falar engrolado e quase ininteligível, o perfil discreto, o horror aos exercícios físicos. Mas elas sobejavam nele, até porque lhe seria impraticável enfrentar de peito aberto a ditadura militar durante dezenove anos – em especial, nos anos de chumbo – sem ser audaz e sem dispor da indispensável coragem para sê-lo. Não era fácil enfrentar uma ditadura militar que perdera os freios – e Castelinho era o adversário número 1 escalado pelos militares, aquele que pacientemente debulhava os atos e explicava seu sentido autoritário, para que os leitores entendessem a tragédia da ditadura.
E, no entanto, ele nunca foi temerário, era cirúrgico; nunca foi abusado, era resolutivo; e nunca foi apressado, era paciente. Ao longo de trinta anos consecutivos, chovesse ou fizesse sol, escreveu 7.446 colunas, entre janeiro de 1963 e abril de 1993, lidas sofregamente todos esses anos pela inteligência brasileira. Seu artigo diário na página 2 do Jornal do Brasil contava ao lado consciente da sociedade o que estava acontecendo na República. Castelinho atravessou regimes e governos; começou sob o governo caótico de João Goulart, entrou pelo golpe de 1964, sustentou-se aos solavancos no autogolpe de 1968 e voltou ao esplendor no processo de redemocratização – seu canto de cisne.
Por que Castelinho foi um jornalista político referencial, diria, o pai de todos? Porque reunia um conjunto seletivo de atributos, além da natural audácia e da indispensável coragem.
A primeira qualidade primorosa de Castelinho era usar acurácia na apuração de dados para suas análises. Nunca se soube como ele obtinha informações, se por telefone, se por conversas reservadas com as melhores fontes da República. Por telefone não deveria ser, porque os telefones eram interceptados pelo SNI; mas o fato é que ele escrevia sua coluna nas manhãs, entre 10 horas e meio-dia; depois ia almoçar com seu grupo de amigos, sempre no mesmo restaurante. Por volta das 18 horas, saíam bêbados, cada um para sua casa. O único horário disponível para apurar era, portanto, a noite – e bêbado.
(A bebida não lhe alterava a coordenação mental, apenas aguçava os sentidos. Num sábado de manhã, eu estava sozinho no plantão da sucursal do JB, em Brasília, quando a porta da redação se escancarou bruscamente; era Castelinho completamente bêbado, com três laudas emboladas na mão – a coluna do domingo. Enrolando a voz, me disse: “Mande transmitir pro Rio.” Transmitir significava repassar por telex, o instrumento da época. Antes de me entregar, esbarrou numa mesa e as laudas caíram ao chão. Pensei: ‘Se o texto corresponder ao estado geral do autor, não teremos coluna do Castello amanhã’. Peguei as laudas, desamassei e li. O texto era uma perfeição).
Em segundo lugar, o refinamento, a elegância do texto. Castelinho usava frases não muito longas, sempre em sentido direto; poucos, mas bem ajustados adjetivos, sem maiores firulas ou ornamentos. Não fosse o requinte, o texto poderia parecer um relatório burocrático, porque apenas alinhava informações e dados que o leitor precisava saber para fechar um diagnóstico sobre a situação política relatada. Mas aquelas linhas pareciam saídas de um romance. E essa riqueza do texto vinha do seu conhecimento literário e dos tempos em que tentou ser romancista e se frustrou. Ele era impecável para narrar situações, mas talvez não dominasse a técnica da tessitura dramática de longo curso.
(No Rio e em Belo Horizonte, seus melhores amigos eram romancistas e poetas. Integrou a Turma de Minas, com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Murilo Rubião. No Rio, andava com Dalton Trevisan, de quem invejava o método, e Autran Dourado. Brigou com Carlos Drummond de Andrade quando eram jovens, mas os dois produziram uma emocionante reconciliação na velhice. Vivia envolto nesse mundo de criação literária, mas sua primeira e única novela, Arco de triunfo, não funcionou; ele percebeu e optou pelo jornalismo.)
Em terceiro lugar, ao longo dos anos, Castelinho ganhou a absoluta confiança de suas fontes e de seus leitores. Para um analista político, a confiança das fontes é a garantia da continuidade da fluidez de boas informações através dos tempos; e a confiança dos leitores é vital para manter o prestígio intocado e aceso. Ele manteve essa situação equilibrada, ininterruptamente, por mais de 50 anos de atuação profissional, cada vez mais prestigiado.
(O Jornal do Brasil se tornou a referência de jornal de qualidade no país. Ostentava algumas grifes e Castelinho era a principal delas; o Informe JB, feito por uma infinidade de ótimos jornalistas, sendo Ancelmo Góis, hoje em O Globo, um dos últimos; as outras eram a coluna de Zózimo Barroso do Amaral e Carlos Drummond de Andrade, no Caderno B, o melhor caderno de cultura e variedades do país. Era um jornal de texto primoroso e edição sempre brilhante. Era chique trabalhar no JB. Eu me gabo de ter ficado lá por 7 anos).
Em quarto lugar, não fugia das verdades incômodas. Castelinho as narrava do jeito que elas tinham acontecido, com as cores (ou ausência de cores) originais. Naturalmente, agregava ponderação às situações mais conflituosas ou difíceis, de forma a evitar que a narrativa induzisse o leitor para uma interpretação apaixonada. Mas não edulcorava fatos, falas ou personagens.
(Todo político queria ser citado na Coluna do Castello. Eu fui repórter do jornal e ouvia frequentemente pedidos de parlamentares que queriam ser apresentados a Castelinho).
Em quinto, era dono de uma memória elástica, mágica, surpreendente, que lhe permitia nunca fazer anotações de conversas e entrevistas, o que sabidamente estimula a fonte a falar mais e mais. Gravar uma conversa inibe instantaneamente a fonte; anotar frases e dados freia a liberdade de falar das fontes; não gravar e não anotar transmite confiança – e a fonte fala mais.
(Mário Andreazza era candidato a presidente pela Arena e achava que sua candidatura só ficaria madura se Castelinho fizesse uma coluna sobre ele. Pressionou seu assessor até que Castelinho topou jantar com ele. Andreazza falou por longas horas, Castelinho não fez nenhuma anotação. À saída era um Andreazza furioso: “Ele não fez nenhuma anotação! Não achou nada do que eu falei importante!” No dia seguinte, a coluna mencionava todas as ideias do candidato).
Em sexto lugar, Castelinho incorporou a seu estilo, ao longo do tempo, a virtude mais cultuada no Jornalismo – a dita imparcialidade. Tinha cuidados extremados para não se flagrar debruçado com certo engajamento em alguma posição político-partidária; o que revelava de suas filiações era apenas que prezava as liberdades públicas e as garantias de cidadania, a democracia e o respeito às instituições.
Enfim, com a mineiridade apreendida em minúcias, seus artigos diários alinhavam os fatos, mas também construíam uma proposta narrativa que se ordenava a partir de sua própria crença geral – chamemos assim o liberalismo clássico que era seu credo político-ideológico. Disse-me uma vez um professor de Comunicação da USP: “Ler a sequência das colunas de Castelinho significava fazer uma graduada incursão pela História do Brasil.” Sua coluna não era um texto de repórter ou redator, mas de comentarista – talvez dissesse melhor, de cronista político. Mas um cronista que tinha o minucioso cuidado de fazer interpretações sem parecer comprometido com elas.
Até que chegou a ditadura, e a fórmula antiga deixou de funcionar à perfeição. À medida que a ditadura encorpava e ficava raivosa, a elaboração diária de Castelinho passou a agregar uma linguagem meio cifrada, cheia de encriptações, as quais, curiosamente, foram captadas, decifradas e interpretadas por seus leitores. Castelinho passou a usar eufemismos e certas construções indiretas que suavizavam a narrativa – era o que dava para fazer na época. Na medida do possível, manteve a linguagem direta e objetiva, ancorada em fatos, pessoas e datas, confrontando suavemente versões díspares; mas nem sempre a censura aceitava isso.
A CENSURA
Por razões gerais e razões pessoais, nunca nutriu simpatia pelos militares brasileiros, talvez por detectar neles um repetido – ele talvez dissesse cansativo – e sintomático quisto autoritário. As razões gerais eram óbvias – o golpe de 1964, a agudização do endurecimento em sucessiva escalada contra as instituições democráticas; as pessoais, eram doridas – a morte do filho Rodrigo, em 1976, num acidente de carro inexplicável, que lhe legaria uma suspeição e uma dúvida irrespondível para o resto da vida.
Quando a ditadura militar sobreveio, ele já trazia a experiência de do enfrentamento de outra ditadura, a varguista, com a qual conviveu no começo da carreira jornalística. Quando teve de lidar com as “recomendações” do Dops percebeu que elas eram tão estúpidas quanto (e muito parecidas com) as instruções do DIP, na década dos 40, e, portanto, similares em causa e efeito.
Os censores militares eram reproduções do velho Ataliba, o censor que toda noite ia à redação do Estado de Minas para censurar a edição do dia seguinte. E Castelinho aprendera a lidar com eles.
(O aprendizado com Ataliba fora assim. No dia 22 de fevereiro de 1945, com o ditador Getúlio Vargas balançando no poder, o Correio da Manhã publicou, à revelia da censura, a entrevista de Carlos Lacerda com José Américo de Almeida. Alguém pular o muro da censura era a senha para os outros jornais; esperto, Assis Chateaubriand determinou a seus jornais que não aceitassem mais a presença dos censores.
No Estado de Minas, Castelinho, então secretário de redação, recebeu a ordem e esfregou as mãos – era o seu dia da caça. Ataliba chegou à hora aprazada, pendurou o chapéu panamá no cabideiro, pôs o paletó de linho HJ branco no espaldar, esparrachou-se na cadeira e pediu o jornal. Castelinho lhe disse secamente:
– Se você quiser ler o jornal, vai ter de comprar amanhã na banca. Porque aqui você não vai ler mais, não.
Calmo, Ataliba não se apoquentou. Levantou-se, vestiu o paletó, pegou o chapéu panamá e disse a Castelinho:
– Não tem importância. Um dia eu volto.
Saiu em silêncio. Voltou vinte e três anos depois, em 1968. Mas aí Castelinho já sabia como enfrentar e como driblar os novos Atalibas).
O difícil foi enfrentar a pressão interna, a partir de 1968, quando a censura apareceu na redação. Castelinho não convivia com os censores, pois escrevia de Brasília, mas seus textos faziam babar os militares. Ele aperfeiçoou os eufemismos, abrandou até o limite o que pudesse ser interpretado como crítica, mas evidentemente nunca satisfazia a censura – quando acionados, censores ampliam suas exigências a cada dia, como se tivessem índices de produtividade a cumprir.
A partir de 1969, com o governo Médici, tudo piorou para ele. Não porque a censura tivesse arrochado mais, mas porque o dono do Jornal do Brasil, Nascimento Britto, em intermináveis dificuldades financeiras, fechara um polpudo acordo de propaganda oficial para apoiar o governo. E aí Castelinho passou a ser o impasse central dessa desditosa aventura, não porque vivesse atirando pedras no governo, mas porque o governo militar pedia elogios, nada menos – e isso Castelinho não dava, nem mesmo de graça.
A situação se agravou a ponto de Nascimento Britto pedir que ele parasse de escrever sobre política e passasse a comentar fait-divers. Castelinho ligou para Fernando Pedreira e sondou se o Estadão o acolheria; Pedreira consultou Júlio de Mesquita Filho e ligou de volta – a resposta era um sim vigoroso. Castelinho pediu demissão e Nascimento Brito teve de recuar, porque não podia perder a maior grife do seu jornal. A solução era buscar uma forma de convivência; e Castelinho conviveu razoavelmente com o ditador, criticando-o em um nível suportável e sendo admirado por ele.
Em depoimento ao CPDOC, Roberto Médici contou que a Coluna do Castello era a primeira leitura de seu pai todos os dias, pareada com as informações recebidas do SNI, no auge da ditadura. Na viagem oficial que fez aos EUA, Médici apresentou Castelinho ao então presidente Richard Nixon como “o mais importante jornalista brasileiro”.
No governo Ernesto Geisel, que prometera a abertura lenta, gradual e responsável, Castelinho cobrava sempre que a velocidade da abertura aumentasse. Certa vez, criticou a renovação política na ditadura (como uma ditadura poderia propiciar renovação política?), que, a seu ver, fracassara. No fundo, não estava criticando o que (não) se fizera, mas cobrando que, doravante, houvesse mais abertura e democracia. Ele agia sempre assim, embrenhando-se nas frestas possíveis para disparar suas flechas democráticas, denunciando com moderação o autoritarismo e atropelando com habilidade as interdições decretadas pelo regime. Sempre em linguagem contida e elegante, impossível de ser rotulada como radical.
Quatro dias após o Pacote de Abril (1977), disse o que a imprensa não podia dizer: “Estamos definitivamente num Estado ditatorial, fundado em identidade ideológica dos seus chefes.” Na imensa maioria das vezes, acertava a dosagem. Em algumas, raras, errou. Foi preso uma vez, em 1968, após o AI-5 – e tratado com respeito pelos carcereiros.
E hoje? Como seria se Castelinho ainda escrevesse? Para quem enfrentou uma ditadura que esquartejou a Constituição e subverteu a hierarquia jurídico-institucional, explicar os arroubos pré-ditatoriais de hoje seria café pequeno para ele. Mas se escrevesse agora, ele estaria ajudando os brasileiros a entenderem consciente e objetivamente a proposital desarrumação institucional a que o Brasil tem sido submetido. Esta era a sua melhor função, que ele aperfeiçoou ao conviver com a ditadura: explicar os absurdos que se cometem fora da democracia.
Ao fim, quero explicar que Danton tem pouco – e, ao mesmo tempo, muito – a ver com Castelinho. O combativo tribuno francês se notabilizava pela oratória violenta – e nisto os dois estão em extremos opostos, pois Castelinho era péssimo de discurso (além de ninguém entender uma frase proferida por ele). A parecença dos dois, no entanto, está na devoção ao iluminismo e na crença de que o homem pode ser sempre melhor se absorver os princípios das ideias que promovem avanços civilizatórios. Na crença de que o homem deve ser, ao mesmo tempo, exigente e indulgente.
(*) “Precisamos de audácia, ainda audácia, sempre audácia!”
‘Não há solução econômica sem solução sanitária’, diz economista Benito Salomão
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, pesquisador aponta ‘recuperação econômica errante’
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Não há solução econômica sem prévia solução sanitária, de acordo com o economista Benito Salomão, doutorando em Economia pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia) e pesquisador visitante da University of British Columbia. Em artigo de sua autoria que publicou na 20ª edição da revista Política Democrática Online, ele critica o governo. “O Brasil fracassou ao lidar com a pandemia quando o presidente [Jair Bolsonaro] se aliou ao vírus e sabotou as medidas de isolamento social”, afirmou.
Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online
De acordo com Salomão, a postura do governo brasileiro, fatalmente, levará ao fracasso da recuperação econômica. “Não existe retomada sem a construção de um estado de confiança prévio, capaz de induzir agentes econômicos a consumir e investir”, observa. “Sob este aspecto, a incapacidade do governo em lidar com as medidas de isolamento social criou ambiente de desconfiança, alimentado interna e externamente, que se estende também à sua capacidade de lidar com as pautas necessárias para reaquecer a economia”, afirma.
Duas preocupações preponderam no caso brasileiro, de acordo com o economista. “A primeira diz respeito à visão equivocada do Ministério da Economia acerca da natureza da crise e dos instrumentos necessários para enfrentá-la”, diz ele. Na avaliação do autor, a mescla da visão liberal antiga com um fiscalismo exagerado pode ser perigosa neste momento; será preciso certo nível de pragmatismo para passar por este momento com danos minorados.
“Não é possível delegar a recuperação à simples trajetória do ciclo econômico”, escreve Salomão, para continuar: “A dívida pública vai crescer, estimativas apontam para uma necessidade de financiamento do setor público de R$ 800 bilhões, em 2020. Ora, se este passivo é inevitável, é importante que cada real empenhado neste contexto cumpra seu papel de salvar vidas, empregos e empresas. Infelizmente, não é o que acontece”, analisa.
A segunda preocupação, segundo o economista, é com o que ele chama de “recuperação econômica errante”, que é reflexo da letargia das ações”. “O governo não só se empenha em insistir em uma agenda que não cabe no contexto, mas também demora em implementá-la”, afirma. Segundo ele, o mundo começa a se preparar para o relaxamento das medidas de isolamento social e discutir as medidas de estímulo econômico que envolvem equilíbrio macroeconômico, desenvolvimento social e humano, redução das desigualdades e deslocamento da fronteira tecnológica.
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José Pastore: A recuperação do emprego
Reabsorção dos 36,6 milhões de desempregados no mercado de trabalho brasileiro seguirá caminhos e ritmos diferentes
Com a chegada da pandemia de covid-19, a destruição de empresas e empregos foi rápida, mas seus impactos serão de longa duração. Nova pesquisa do IBGE (Pnad-Covid) indica que 36,6 milhões de brasileiros estão sem trabalho ou trabalhando aquém do que podem ou do que gostariam de trabalhar. A reabsorção desses trabalhadores no mercado de trabalho seguirá caminhos e ritmos variados.
Desempregados recentes nutrem a esperança de voltar ao emprego que tinham. Muitos conseguirão. Para as empresas, isso é bom, pois a recontratação de ex-empregados economiza tempo e dinheiro.
Nos EUA, a maioria dos 2,5 milhões de trabalhadores foi recontratada pelas mesmas empresas quando, em maio, voltaram a operar novamente.
Mas nem todos os desempregados terão essa sorte. As firmas que quebraram, evidentemente, destruíram os empregos de forma permanente. Seus ex-empregados terão de procurar trabalho em outras empresas, o que será incerto e demorado.
As firmas que estão reabrindo seus negócios enfrentam severas restrições de funcionamento. Por um bom tempo, necessitarão de menos empregados. Não haverá razão para novas contratações.
As empresas que descobriram ser possível realizar muitas de suas atividades por meio do teletrabalho assim prosseguirão após a pandemia, o que provocará redução de empregados de apoio requeridos pelo trabalho presencial (pessoal de conservação e limpeza, motoristas, zeladores, seguranças, profissionais de ambulatórios, cozinheiros, garçons, etc.). O trabalho remoto reduzirá empregos também em outras atividades, como é o caso, por exemplo, do transporte público, de serviços de bares e restaurantes, venda de combustível, enfim, tudo o que é utilizado pelos empregados que trabalham presencialmente.
Nas empresas que reiniciarem suas atividades como faziam antes da pandemia, o potencial de contratação de trabalho dependerá do volume de sua demanda, lembrando que grande parte das famílias sairá da crise excessivamente endividada, o que exigirá moderação no consumo em várias áreas.
Muitas empresas darão continuidade e até acelerarão a incorporação de novas tecnologias com vistas a reduzir gastos com pessoal. Novas atividades decorrentes das próprias tecnologias demandarão pessoal, é verdade, mas em menor escala.
Ou seja, com exceção de poucos setores essenciais, do e-commerce e outras atividades operadas a distância, antecipa-se uma grande redução na demanda por trabalho nos primeiros tempos pós-pandemia. Dentre os que forem contratados, espera-se um grande remanejamento entre as empresas e profissões.
Essas transformações terão impacto nas promoções e nas carreiras, com tendência à redução de salários e benefícios para muitos trabalhadores e por um bom tempo.
São problemas gigantescos. A contração dos empregos e da renda afetará, é claro, a capacidade de consumo, o que retardará a retomada do crescimento econômico e de novas contratações. A incorporação dos 36,6 milhões de brasileiros no mercado de trabalho será extremamente demorada. Os que trabalham por conta própria serão igualmente afetados.
O governo brasileiro foi ágil ao aprovar medidas trabalhistas que ajudaram a preservar muitas empresas e mais de 10 milhões de empregos. No pós-pandemia, o desafio é outro: será preciso criar condições para o surgimento de oportunidades de trabalho para grandes massas de trabalhadores. Para tanto, o Brasil precisará de um megachoque de investimentos, que, por enquanto, não se sabe de onde virá.
*Professor da FEA-USP, membro da Academia Paulista de Letras. É presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomércio-SP.
El País: Wassef, o fiel advogado que virou uma bomba prestes a explodir
Após a prisão do ex-assessor, investigado em suposto esquema de rachadinha, o advogado e dono do esconderijo em Atibaia deu sucessivas entrevistas à imprensa que se contradizem
Felipe Betim, do El País
Frederick Wassef está uma pilha de nervos. Com livre trânsito nos bastidores do poder, ele se comporta ―ou se comportava― como o Sancho Pança de Jair Bolsonaro. Enquanto na frente das câmeras o presidente segue em sua luta quixotesca contra os moinhos de vento ―a “histeria” do coronavírus, os governadores, o PT, o comunismo e toda sorte de delírio―, o advogado agia fora dos holofotes para manter o controle das batalhas reais que acontecem nos tribunais. Até que a polícia bateu na porta de seu imóvel em Atibaia (SP), às seis da manhã da quinta-feira 18 de junho, e encontrou Fabrício Queiroz. O ex-policial movimentou cerca de três milhões de reais entre 2007 e 2018, segundo o Ministério Público do Rio, sob o comando do então deputado Flávio Bolsonaro, recolhendo parte dos salários de outros assessores ―fantasmas― e repassando o dinheiro para o chefe.
Wassef representava formalmente o senador no inquérito até o último domingo. Após umas primeiras declarações no dia da detenção, manteve um breve silêncio. Até que começou a dar sucessivas entrevistas no final de semana para alguns jornalistas. “Todos estão convictos hoje de que o Fred virou o alvo. Se bater no Fred atinge o presidente, eu e o presidente viramos uma pessoa só”, afirmou à CNN, sem explicar por que Queiroz estava na sua casa. Fez ilações, simulou mistério, falou em não antecipar estratégia de defesa. Disse que nunca falou com Queiroz, embora investigadores tenham constatado que ele estava escondido em sua casa há um ano. “Nunca telefonei para Queiroz, nunca troquei mensagem com Queiroz nem com ninguém de sua família. Isso é uma armação para incriminar o presidente”, assegurou ele ao jornal Folha de S. Paulo.Virou piada a pergunta por telefone da repórter Andrea Sadi, da TV Globo, no último sábado: “O Queiroz pulou o muro? Apareceu voando para casa do senhor?”.
Durante suas entrevistas ao vivo, as câmeras revelavam um homem agitado, como uma bomba prestes a explodir, apresentando versões desencontradas e confusas sobre os motivos de ter abrigado o ex-policial. Disse, por exemplo, que não sabia que Queiroz estava em sua casa no dia de sua detenção. “Soube algumas vezes que estava lá. É óbvio que tem risco [em abrigar Queiroz], mas essa é uma questão de natureza de saúde (...). Se eu permito que ali se acomodasse por proximidade ao local, por preservação, para que não ficasse exposto, não quer dizer que eu tenha tido contato ou qualquer irregularidade”, afirmou mais uma vez à CNN no domingo.
Depois de inúmeros rodeios, ainda tentou descolar o presidente do assunto. “Nunca, jamais, o presidente Jair Bolsonaro soube ou teve conhecimento desses atos, desses fatos. Essa é minha inteira responsabilidade. Eu omiti essas informações do presidente da República e do senador Flávio Bolsonaro”. Passou a dizer, então, que abrigou o ex-assessor por razões “humanitárias”, para que ele pudesse realizar um tratamento de saúde na região. E avisou que deixava o cargo de advogado de Flavio, informação depois confirmada pelo próprio senador, filho do presidente, em seu Twitter.
Se aos olhos do país Wassef se tornou mais um personagem surreal de uma surreal novela, o fato é que suas contradições podem acabar respingando no inquérito que tanto atormenta o presidente Jair Bolsonaro. Há evidências e registros de sobra da proximidade do advogado com o presidente. Um dia antes da operação policial que encontrou Queiroz em sua casa, Wassef se encontrava no Palácio do Planalto para a cerimônia de posse do novo ministro da Comunicação. Ele é conhecido por sua atuação discreta, nos bastidores, dos assuntos ligados ao presidente. Entre os mais importantes, era ele quem representava Bolsonaro nas investigações sobre o atentado a faca contra o então candidato às vésperas das eleições de 2018. Nos dias de apuração das urnas, se encontrava ao lado do atual presidente no sofá de sua casa. Fiel ao clã, acabou ganhando apelido de Anjo, que deu nome à operação da última quinta.
De acordo com a decisão do juiz Flávio Itabaiana Nicolau, havia uma ”rotina de ocultação do paradeiro de Queiroz que envolvia restrições em sua movimentação e em suas comunicações”. Ele era monitorado por “uma terceira pessoa” que, por sua vez, se reportava a um superior hierárquico referido como “Anjo” ―ou seja, Wassef. Chamou a atenção dos investigadores o fato de que o ex-policial recebia dinheiro de terceiros para se manter. O EL PAÍS tentou sem sucesso contactar o advogado.
Caso a versão do Ministério Público se confirme, Wassef mentiu em uma entrevista que concedeu em setembro de 2019 para a jornalista Andreia Sadi na Globo News. Ao ser questionado sobre o paradeiro de Queiroz, foi assertivo: “Não existe a frase o sumiço de Fabrício Queiroz. Eu não sei [onde ele se encontra], não sou advogado dele”. Depois, enfatizou que o ex-assessor havia, sim, comparecido ao Ministério Público. “Jamais deixou de comparecer a qualquer intimação ou chamada do poder público no Rio de Janeiro. Ele disse que jamais, que nunca, repassou um único centavo a Flávio Bolsonaro”, explicou.
No dia da detenção de Queiroz, na quinta-feira, 18, em sua live semanal no Facebook, o presidente Bolsonaro, que não é investigado no inquérito, opinou que a operação policial havia sido “espetaculosa” e tratou de explicar a presença na casa de seu advogado: “E por que estava naquela região de São Paulo? Porque é perto do hospital onde faz tratamento de câncer. Então, esse é o quadro. Da minha parte, está encerrado aí o caso Queiroz”. Wassef também adotou esse argumento, ao afirmar que Queiroz estava no local por causa da proximidade da Santa Casa de Bragança Paulista, onde o ex-policial faria o tratamento para um câncer de próstata.
De acordo com o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, conhecido por defender várias pessoas do universo político em processos criminais, todas essas declarações desencontradas podem trazer mais “complicações” no âmbito do inquérito. “Há uma pergunta óbvia. Por que Queiroz estava lá [na casa de Atibaia], quem efetivamente o protegeu e quem pagou por aquilo. A partir do momento que ele diz que não conhecia e que agora ele diz que escondeu por razões humanitárias, isso evidentemente pode trazer algumas complicações”, disse ao EL PAÍS.
Suas declarações já começam a causar estragos aos olhos do Planalto. Segundo publicou a jornalista Mônica Bergamo na Folha de S. Paulo, o presidente Bolsonaro já teria afirmado a interlocutores estar irritado com Wassef. Ainda na quinta-feira da operação policial a advogada Karina Kufa divulgou uma nota afirmando que seu escritório de advocacia é o único representante do mandatário. “Wassef não presta serviço advocatício em nenhuma ação que seja parte de Bolsonaro e não faz parte do referido escritório”. De acordo com a coluna de Bela Megale, agora o advogado pressiona o presidente para que Kufa seja demitida. Irritado ou não, Bolsonaro vem se apresentando abatido diante das câmeras e com pouco fôlego para travar suas lutas diárias. No dia que Wassef deixou de representar Flávio, o senador destacou o trabalho e a lealdade do advogado. Não há sinais, por ora, de que será jogado aos leões.
José Serra: Epidemia de desgoverno
A irresponsabilidade com relação ao ensino superior beira o sadismo
Pesquisas de opinião, quando avaliam o apoio popular do presidente, costumam perguntar aos entrevistados sobre o desempenho do seu governo. A primeira dificuldade, no caso, é identificar de que governo se trata. É aquele que precisa proteger um ministro contra uma deposição na Justiça, enviando-o para o exterior de modo tão pouco ortodoxo?
É o governo que mantém nas áreas que mais afetam o bem-estar e o modo de vida das famílias – a educação e a saúde – ministros interinos perpétuos sem nenhuma afinidade e experiência nessas áreas? E que utiliza as áreas de Justiça, Segurança Pública e Advocacia da União como uma banca advocatícia a serviço da família presidencial?
É o mesmo governo esse que anuncia para daqui a três meses o início da tramitação das reformas estruturais da economia e da administração, consideradas prioritárias – e admite, com isso, que já considera o segundo ano de mandato perdido? E cujo chefe do Executivo é o primeiro a patrocinar, contra a orientação de seu próprio ministério, brechas no equilíbrio fiscal, já abalado pela pandemia?
É o governo que promove uma queda de braço dos partidários da desregulação da propriedade rural e da inação diante da destruição das florestas, contra aqueles que promovem a imagem externa e o acesso a mercados do nosso agronegócio?
Como alertei neste jornal, em meu primeiro artigo deste ano (9/1), “na área da Educação, preocupa-me a inação do governo e do Congresso Nacional. Em 2019 não avançamos na discussão sobre o Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb). Além de assegurar os repasses desses recursos para 2020, precisamos dar caráter permanente ao fundo, melhorar a sua distribuição e aumentar os recursos de forma responsável. Paralelamente, precisamos garantir a correção pela inflação do piso salarial nacional do magistério público da educação básica.
Criado no governo Fernando Henrique e ampliado em 2006, no governo Lula, o fundo representa 80% do investimento em educação em mais de mil municípios brasileiros, como demonstra levantamento da organização Todos pela Educação. É utilizado para o pagamento de salários, merenda, transporte escolar, material didático e reformas em escolas. Neste ano, a previsão é de que alcance R$ 173 bilhões”.
Pois bem, diante da total omissão do governo, a matéria aguarda, há 13 meses, decisão da Mesa do Senado, e perderá sua validade no final deste ano!
De fato, o desgoverno na Educação é geral. A irresponsabilidade com relação ao ensino superior beira o sadismo. O Enem, que afeta o futuro imediato, e para toda a vida, de milhões de brasileiros, ora está sob ameaça de não ser efetuado no futuro, por alegada falta de orçamento, ora é mantido para o pico da pandemia, ora é adiado, mas sem data, aumentando, em vez de atenuar, a verdadeira angústia dos candidatos e de suas respectivas famílias.
O ensino superior está sendo gravemente afetado pelo fechamento de escolas e universidades, e parte do próximo ano letivo será prejudicada. Assim como não tomou providências para tornar viável a integridade do ensino básico, o Ministério da Educação limitou-se a “autorizar” o ensino à distância, sem se preocupar com orientações e recursos indispensáveis para o modo não presencial.
As instituições de ensino superior (IES) públicas não estão preparadas para o ensino não presencial, que pode ser até improvisado numa emergência, mas perde muito em conteúdo e qualidade na falta de uma preparação prévia de professores e alunos. Estes, em número não desprezível, nem sempre têm acesso à internet, o que poderia facilmente ser resolvido com recursos redirecionados dos gastos economizados com o fechamento das IES. Aqueles, porque suas instituições não têm equipamentos nem recursos administrativos para tornar viável essa modalidade de ensino.
Mesmo as IES públicas que se empenharam em manter o ensino no modo não presencial perderam parte do primeiro semestre letivo. Outras, entretanto, simplesmente suspenderam as aulas. O então ministro da Educação, muito empenhado em demolir as instituições constituídas, e em interferir na autonomia universitária, limitou-se a “autorizar” um ensino não presencial, para o qual não há preparo nem equipamentos nas instituições de ensino. Simplesmente se omitiu.
Já é muito difícil desentortar setores falhos de um governo, mas transformar o desgoverno em governo minimamente atuante é praticamente impossível. Impedir o governo de fazer o mal é uma das funções mais nobres do Parlamento e do Judiciário, mas é difícil esses Poderes obrigarem o governo a fazer o bem.
O Parlamento não pode nem deseja governar no lugar do Executivo e até aqui toda a legislação mais relevante, que dependia de grandes maiorias para ser aprovada, resultou do empenho parlamentar em contribuir proativamente para a superação da crise econômica e da pandemia, que a agravou.
Estou certo de que tudo o que depender do Parlamento, para impedir a calamidade que a omissão do MEC está provocando na Educação será feito com a urgência e a qualidade devidas.
*Senador (PSDB-SP)
Ribamar Oliveira: Equipe econômica quer veto para desoneração
Fim do benefício sobre a folha de pagamento abre espaço no teto de gastos em 2021
O projeto de conversão da medida provisória 936, aprovado pelo Congresso Nacional, aguarda sanção do presidente Jair Bolsonaro, o que deverá acontecer nos próximos dias. A equipe econômica propôs o veto do presidente ao artigo 33 do projeto, que adiou o fim da desoneração da folha de pagamentos de vários setores da economia de 31 de dezembro deste ano para 31 de dezembro de 2021. O argumento principal para o veto é que a prorrogação do benefício contraria a emenda constitucional 106, recentemente aprovada.
A concessão de benefício tributário que resulte em renúncia de receita tem que ser acompanhada de medida de compensação, com aumento de outro tributo, de acordo com o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A área técnica argumenta que a EC 106/2020 estabeleceu que, para criação de benefício tributário, o artigo 14 da LRF não precisa ser obedecido desde que o efeito da medida fique restrito à duração da situação de calamidade, o que, no atual caso, é 31 de dezembro deste ano. Como o objetivo da prorrogação é estender o benefício para 2021, a medida seria inconstitucional para a equipe econômica.
Há, no entanto, um complicador nesse entendimento. No mesmo mês de maio, em que promulgou a EC 106, o Congresso aprovou também a lei complementar 173, alterando algumas regras da LRF. O artigo 3º da nova lei diz que durante o estado de calamidade pública fica afastado o artigo 14 da LRF. E, ao contrário da EC 106, não dá prazo para a produção dos efeitos da renúncia de receita.
O artigo 7º da mesma lei também afasta as condições e vedações do artigo 14 da LRF, desde que o incentivo ou benefício seja destinado ao combate à calamidade pública, sem estabelecer prazo de vigência dos efeitos. A questão agora é saber se uma lei complementar pode “flexibilizar” um dispositivo constitucional, segundo especialista consultado pelo Valor.
A desoneração da folha de pagamento das empresas foi instituída pela ex-presidente Dilma Rousseff, em 2011, com o objetivo de estimular a geração de empregos formais. Amplos setores da economia foram beneficiados com a medida e substituíram a contribuição ao INSS incidente sobre a folha de salários por uma contribuição calculada sobre o faturamento da empresa. Dilma chegou a tornar a desoneração permanente
Em 2015, no entanto, ela mudou de ideia. Como parte de um amplo programa para reequilibrar as contas públicas, a ex-presidente começou a reduzir o número de setores com direito ao benefício e aumentou a alíquota da contribuição sobre a receita bruta das empresas. Em 2018, já no governo do ex-presidente Michel Temer, foi fixada a data de 31 de dezembro deste ano para a extinção do benefício para todos os setores da economia.
A lei que instituiu a desoneração da folha (lei 12.546/2011) determinou que o governo compensasse a Previdência pela perda de receita decorrente da medida. A perda com a desoneração chegou a R$ 25,4 bilhões em 2015. Para este ano, a perda foi estimada em R$ 9,891 bilhões.
A compensação à Previdência é contabilizada como despesa do Tesouro Nacional. Na verdade, é uma despesa puramente contábil, pois qualquer que seja o déficit da Previdência o Tesouro é obrigado a cobri-lo. Assim, se o presidente vetar a prorrogação da desoneração da folha, será aberto um espaço de cerca de R$ 10 bilhões no teto de gastos da União em 2021.
Sem esse espaço, os técnicos dizem que terão que fazer corte significativo nas despesas discricionárias (investimentos e custeio da máquina), inviabilizando vários programas governamentais. Ou seja, é o fim da desoneração da folha que viabilizará o teto de gastos no próximo ano. Junto, é claro, com o congelamento dos salários dos servidores e a não realização de concursos públicos para preencher todos os cargos que ficarem vagos.
Se o cidadão quiser saber o que foi discutido e quais as decisões tomadas pela Junta de Execução Orçamentária (JEO) em qualquer mês de 2018, por exemplo, terá que esperar até 2023. As atas da JEO foram classificadas com o grau de sigilo reservado e só podem ser divulgadas cinco anos depois das reuniões realizadas.
A JEO é um órgão de assessoramento direto ao Presidente da República na condução da política fiscal do governo federal e se reúne, normalmente, uma vez por mês. A ela cabe assessorar o presidente na elaboração dos atos que estabeleçam a programação financeira e o cronograma de execução mensal das dotações orçamentárias e no estabelecimento das metas fiscais, entre outras atribuições. Dela fazem parte os ministros da Economia e da Casa Civil.
As reuniões têm atas, que devem trazer um resumo dos assuntos tratados, dos debates ocorridos e das deliberações tomadas. Com base na lei de acesso à informação, o Valor pediu acesso a uma das atas da JEO do último ano do governo do ex-presidente Michel Temer. Recebeu a resposta de que as atas da JEO são classificadas com o grau de sigilo reservado, tendo como fundamento o inciso IV do artigo 23 da lei 12.527/2011. Este inciso se refere a informações que oferecem “elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país”
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“É incrível que essas atas sejam sigilosas”, protestou Gil Castello Branco, do Contas Abertas. “Desde quando a divulgação de uma ata da JEO, que discute e define critérios para a execução orçamentária, pode oferecer algum risco à estabilidade financeira, econômica e monetária do país”, questionou Castelo Branco, lembrando que até as atas do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central são divulgadas na semana seguinte à reunião. Ele acredita que está ocorrendo um retrocesso no acesso à informação no Brasil, com o governo adotando medidas no sentido de reduzir a transparência dos atos da administração pública. “Não é fácil exercer o controle social neste país”, constatou.
O Valor apresentou recurso, contestando a decisão de sigilo reservado para as atas da JEO.
César Felício: O caminho de Canossa
Nunca Bolsonaro pareceu tão perto da normalidade
“A cobra vai fumar”. Essa era a mensagem nas redes sociais de várias contas bolsonaristas na noite do dia 16. Durante a manhã e a tarde daquela terça-feira, deputados, empresários e militantes virtuais haviam sido alvo de operações de busca e apreensão, no âmbito dos inquéritos que correm no STF.
O neobolsonarista Roberto Jefferson quis se mostrar bem informado: “Nossas sondagens indicam que o presidente Bolsonaro está há muitas horas reunido com o Gabinete de Segurança Institucional. Assunto GLO. Artigo 142. Deus nos abençoe a espantar os urubus”, escreveu no Twitter.
À medida que avançaram as horas, pulularam imagens de onças bebendo água, fogo de artilharia sendo preparado e imagens de um reloginho marcando tic tac. Todos pintados para a guerra, de prontidão, esperando o toque do clarim para dispararem em louca cavalgada. A defesa do presidente - sentiam - era a defesa de si mesmos, porque o presidente não deixaria seus diligentes soldados ao relento. São uma equipe.
A quarta-feira 17 começou, portanto, com a sensação de que algo muito grave ia ser anunciado pelo presidente. Logo na porta do Alvorada, Bolsonaro pôs essas esperanças por terra. Falou que estava chegando a hora de botar as coisas no devido lugar, mas deixou claro: “Eu não vou ser o primeiro a chutar o pau da barraca”.
Foi uma maneira bastante clara, para quem quis entender, que o ocorrido na véspera, por iniciativa do Supremo contra seus apoiadores, não havia sido um chute no pau da barraca. Na sequência, o presidente foi dar posse a Fábio Faria no Ministério das Comunicações, em companhia de Rodrigo Maia e Dias Toffoli, um pouco antes de o Supremo decidir por 9 a 1 que o inquérito sobre as “fake news” é legal.
Como já escreveu algumas vezes no Twitter Carlos Bolsonaro, tirem suas próprias conclusões. A quinta-feira 18 foi o dia da demissão de Weintraub do Ministério da Educação e da prisão de Queiroz.
A partir daí, é interessante observar o trabalho dos bolsonaristas em administrar as expectativas da sua militância de base. Um bom termômetro são as postagens e respostas do deputado Helio Lopes no Twitter.
Lopes perde só para Eduardo Bolsonaro em intimidade com o presidente na Câmara dos Deputados. Mas é um bolsonarista que fala pouco para fora. Em público, não entra em caneladas com adversários, busca realçar a agenda positiva do seu ídolo e dialoga sem parar com a base.
“Ninguém disse que seria fácil”, escreveu no dia da queda de Weintraub. “A distância entre a largada e a chegada é grande”, comentou. “Desistir não é uma opção” e “é importante que tenhamos fé” foram comentários feitos no sábado. “Tudo vai melhorar, mas isso demanda tempo”, “a mudança não se dará do dia para a noite” e “não podemos perder a esperança” foram outras mensagens. É conversa de quem está cedendo, e cedendo muito.
Nunca Bolsonaro pareceu tão perto de se dobrar ao modelo de um presidente normal. Em 1077, o imperador Henrique IV foi ao castelo de Canossa para encontrar-se com o papa Gregorio VII e pedir a reversão da sua excomunhão. Ir a Canossa passou a ser um jargão na política para se referir a certos rituais de expiação que um governante precisa cumprir. Talvez seja o que ocorre agora.
Clima e pandemia
A pandemia impacta a equação climática no planeta, conforme atesta o engenheiro Carlos Nobre, o mais renomado cientista brasileiro que se dedica ao tema. Há, evidentemente, menos queima de combustíveis fósseis e emissão de poluentes. Nas primeiras semanas do isolamento, houve uma queda de até 50% da poluição urbana em algumas cidades. Nobre estima que em 2020 a queda global de gases que contribuem para o efeito estufa poderá chegar a 8%.
O Brasil, contudo, é um relativizador dos efeitos paradoxalmente benéficos da catástrofe mundial. Aqui, essa emissão tende a aumentar em 2020, pela ação do desmatamento na Amazônia. O país governado por Bolsonaro, com o auxílio luxuoso de um Ricardo Salles, se converterá portanto em uma grande exceção. “No Brasil, 70% das emissões são da atividade agropastoril e do desmatamento”, comenta.
A tendência começou em 2015, quando a crise econômica do governo Dilma afrouxou a fiscalização dos órgãos ambientais. Agravou-se em 2016 por uma seca mais intensa que o normal. Houve ligeiro refresco nos dois anos seguintes e em 2019 subiu com força. “A única variável relevante é a guinada política que o país teve”, diz Nobre.
Se graças ao Brasil a redução global de queima de gases influencia menos a questão climática, é perturbador quando se pensa no que pode acontecer no sentido inverso, ou seja: na forma como modificações no meio ambiente podem produzir pandemias.
Zoonoses tendem a aparecer em situações de desequilíbrio ecológico, em que espécies de animais antes distantes fazem migrações. Convivências inesperadas com microorganismos antes isolados passam a acontecer.
Nobre não é biólogo e não sabe explicar porque a Amazônia ainda não originou nenhuma epidemia com capacidade global de propagação, mas alerta que a perturbação do bioma pode gerar consequências imprevisíveis. A Amazônia possui a maior coleção de microorganismos do mundo e é uma incógnita como essa fauna irá se adaptar à mudança de suas condições de vida.
Nas regiões polares, submetidas ao degelo das calotas, o campo é vasto para se projetar cenários catastróficos, em função do acúmulo de desequilíbrios.
O cientista lembra que Hollywood produziu bom entretenimento no passado fantasiando as consequências catastróficas que existiriam caso dinossauros reaparecessem, por algum fator disruptivo na lei natural. O perigo, contudo, está nos vírus e bactérias de milhares de anos atrás.
Eles estão congelados em camadas de terreno de forma permanente, que devem descongelar se a temperatura se aquecer. São camadas conhecidas como “permafrost”. Animais de grande porte extintos há várias eras não reviverão, mas a volta da atividade de vírus e bactérias de outros tempos é bastante factível. E não há resposta sobre o que estes microorganismos poderão provocar voltando à atividade.
Mariliz Pereira Jorge: Rouba, mas é pouco
O apoio ao clã presidencial pode evoluir para 'rouba, não faz nada, mas e daí?'
Impressiona, ainda que não surpreenda, o contorcionismo dos apoiadores do governo para empacotar a corrupção como um mal menor diante da prisão de Fabrício Queiroz e da possibilidade de o primeiro-filho, o senador Flávio Bolsonaro, ter o mesmo destino.
Corrupção, confirmamos mais uma vez, nunca foi a razão para eleger um sujeito ignóbil como Jair. Fosse isso, bolsonaristas não defenderiam agora rachadinha como prática aceitável, “porque todo mundo faz”, “porque nem se compara ao que o PT ou Sérgio Cabral roubaram”. Mesmo para o padrão tupiniquim de lambe-bota de político, essa praga que nos assola, a mítica frase “rouba, mas faz” sofre aqui um duplo twist carpado.
Sabemos que a moral de parte da população é flexível. Bate palmas para tipos como Paulo Maluf, porque construiu pontes e avenidas, embora tenha enchido o bolso com milhões. Defende que partido que tira pobre da miséria não merece crítica nenhuma, apenas redenção, apesar dos comprovados pesares.
De Adhemar de Barros ao PT, o “rouba, mas faz” sempre foi exaltado. Coisa nova na vida política é a defesa apaixonada do “rouba, mas é pouco”. Não é pouco e faz falta na educação, na saúde, na segurança.
Bolsonaro tem razão quando diz que os brasileiros deveriam ser estudados. Muitos fecham o nariz e pulam no esgoto do pragmatismo político. Apoiadores do presidente têm demonstrado que podem nadar de braçada nessa imundice ao aceitar rachadinha, contratação de funcionário fantasma, inclusive pelo então deputado Jair, uso de verba pública para financiar atos privados e sites ideológicos, além dos superfaturamentos tão disseminados nos gabinetes parlamentares.
Com um ano e meio de governo, resultados desastrosos em todas as áreas, já sabemos que o apoio ao clã presidencial é irrestrito e pode evoluir até mesmo para o “rouba, não faz nada, mas e daí?”.
Bernardo Mello Franco: Mercador de ilusões
Nos anos 80, Paulo Guedes ganhou o apelido de Beato Salu. O economista era conhecido pelo hábito de fazer previsões apocalípticas. Lembrava o personagem da novela “Roque Santeiro” que vivia anunciando o fim do mundo.
A serviço do bolsonarismo, o pessimista crônico se converteu num mercador de ilusões. Faz profecias que não se confirmam e divulga planos que não saem do papel. Na semana passada, ele garantiu que “lá para setembro, outubro, novembro, nós já estamos num novo país”. Faltou dizer de que ano.
Antes da pandemia, Guedes já era especialista em anunciar terrenos na Lua. Na campanha, ele prometeu arrecadar um trilhão de reais com a venda de imóveis da União. Depois prometeu outro trilhão com a privatização de estatais. Há poucos dias, requentou a promessa de vender a Eletrobras até dezembro. A ideia é descartada por nove entre dez parlamentares.
No intervalo entre os factoides, o ministro se dedica a causas exóticas. Uma de suas favoritas é a liberação dos cassinos, defendida por um poderoso lobby em Brasília. Na famosa reunião de 22 de abril, ele tratou do assunto com polidez: “Deixa cada um se f… do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa cada um se f…, pô!”.
Após a chegada do coronavírus, o discurso ultraliberal de Guedes virou conversa de alienígena. A contragosto, ele tem sido obrigado a abrir os cofres para socorrer os mais pobres. Mesmo assim, insiste em fazer previsões sem lastro na realidade.
Na semana em que o Brasil entrou em quarentena, o ministro assegurou que o impacto da pandemia seria mínimo. No cenário que chamou de “mais grave”, o PIB cresceria 1%. O Banco Mundial ignorou o blefe e projetou um tombo de 8%. Agora o governo retaliou a entidade com o envio de Abraham Weintraub a Washington.
Ontem o Fundo Monetário Internacional anunciou uma previsão ainda mais lúgubre: a economia brasileira pode encolher 9,1%. Para reagir à nova desfeita, Guedes deveria exportar a ministra Damares Alves. O FMI não perde por esperar.
Merval Pereira: O investigado
Como presidente, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis de multa
A falta de noção do que seja público ou privado marca a gestão do presidente Bolsonaro e de muitos de seus assessores diretos, como aquele coronel que deu uma coletiva usando um broche na lapela com uma caveira cravada por um espada, símbolo do Comando das Forças Especiais do Exército. Ou de seu chefe, o ministro de facto da Saúde General Eduardo Pazuello que, ao identificar-se como militar da ativa, pontificou: “Cumpro ordens. Missão dada é missão cumprida”.
Foi assim que o uso da cloroquina foi estimulado no serviço público de saúde mesmo depois de não indicado por organizações médicas internacionais, ou o número de mortos pela pandemia foi manipulado.
A mais recente demonstração de que o presidente da República tem uma visão distorcida de sua autoridade está no anúncio de que a Advocacia-Geral da União (AGU) vai recorrer da decisão da Justiça Federal de exigir que Bolsonaro use máscara em espaços públicos no Distrito Federal, obedecendo a uma lei local. A alegação é “preservar a independência e a harmonia entre os Poderes".
Coloca-se assim o presidente acima dos demais cidadãos que residem no Distrito Federal, como se tivesse prerrogativas além das que lhe concede a situação temporária de ser presidente da República. Às vezes, não tem nem mesmo os mesmos direitos, como no caso em que a Justiça o obrigou a revelar seus exames médicos, a bem da informação completa ao público. Como presidente da República, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis Rocha da multa a que todos os que circulam sem máscara na cidade estão sujeitos.
A decisão tem ainda uma exemplar demonstração do que deve ser uma República. Quem impetrou o pedido foi um advogado, em uma ação civil pública, e o juiz Renato Borelli definiu como “desrespeitoso” o ato de andar em público na pandemia sem proteção "colocando em risco a saúde de outras pessoas", expondo-as "à propagação de enfermidade que tem causado comoção nacional".
Por falar em comoção nacional, no dia em que o país alcançou o triste recorde de mais de 50 mil mortes, deixando para trás o Reino Unido e tornando-se potencial candidato a superar os Estados Unidos no número de mortes, o presidente Bolsonaro foi ao Rio para participar do funeral de um paraquedista que morrera durante um treinamento.
Morte que provocou justa comoção na comunidade militar da qual Bolsonaro faz parte, como ex-paraquedista do 8 Grupo de Artilharia de Campanha. Nenhum gesto institucional, porém, foi feito pelo presidente diante do morticínio provocado pela Covid-19.
Essa permanente exigência de singularidade diante da lei fez com que ele se recusasse, em tese, a entregar seu celular se requisitado pelo Supremo nas investigações sobre interferência na Polícia Federal, para proteger sua família e amigos ( leia-se Flavio, o filho, Queiroz, o amigo) em que aparece como investigado, não testemunha. É também nesse inquérito que surge agora um novo empecilho.
O ministro Celso de Mello, relator do inquérito do STF, está estudando se Bolsonaro pode responder às perguntas da Polícia Federal por escrito. Essa não deveria ser nem mesmo uma questão, pois o próprio ministro Celso de Mello já deixou claro que, no seu entendimento, essa prerrogativa se aplica somente quando essas autoridades ( presidente, vice-presidente, deputados e senadores) estiverem na condição de vítimas ou testemunhas, o que não é o caso de Bolsonaro.
O presidente da República é formalmente investigado no inquérito. “Com efeito, aqueles que figuram como investigados (inquérito) ou como réus (processo penal), em procedimentos instaurados ou em curso perante o Supremo Tribunal Federal, como perante qualquer outro Juízo, não dispõem da prerrogativa instituída pelo art. 221 do CPP, eis que essa norma legal – insista-se – somente se aplica às autoridades que ostentem a condição formal de testemunha ou de vítima”.
Nessa condição, deveria depor na sede da Policia Federal, como fez o ex-ministro Sergio Moro, outro investigado no inquérito. Provavelmente, para não criar atritos entre o Judiciário e o Executivo, a decisão deve ser um depoimento pessoal no local e hora em que o presidente escolher. Um detalhe insignificante aparentemente, mas é assim que as determinações legais e as instituições vão se apequenando diante do autoritarismo do líder temporário do Executivo. Bolsonaro já disse: Eu sou a Constituição”
Míriam Leitão: Pacote de ruído assusta o capital
O Brasil tem sido visto como um pacote de problemas pelos investidores. Há baixa perspectiva de crescimento, alta acelerada da dívida, ruídos institucionais e má condução da pandemia. É o que explica Alberto Ramos, economista-chefe para América Latina do banco americano Goldman Sachs. Ele também avalia como tímidas as reformas aprovadas nos últimos quatro anos, como a da Previdência, porque ela não incluiu estados e municípios e manteve privilégios para algumas categorias.
Ramos é português de nascimento e está na Goldman Sachs desde 2003. Antes disso, foi economista sênior do FMI. É PhD em Chicago, onde foi professor. Tinha tudo para achar que um governo que chegou ao poder defendendo um programa liberal estaria no caminho certo. Ele é defensor de um programa forte de reformas e acha que elas serão mais necessárias depois da pandemia, porque a projeção do FMI, divulgada ontem, é de que a dívida brasileira chegará a 100% do PIB.
— O Brasil está sofrendo o que todo mundo está sofrendo na pandemia, mas, além disso, tem ruídos políticos e institucionais que persistem e podem levar à perda de governabilidade. São coisas que não ajudam, com risco fiscal elevado, e a economia sem crescimento e com desemprego alto — alerta.
O economista faz uma lista do que considera como ruídos provocados pelo governo, que, em sua visão, trabalha com uma “polarização muito grande”, o que não ajuda na recuperação da crise.
— Tem ruído entre governo e Congresso, entre governo e STF, entre governo e imprensa, entre o governo e o próprio governo, da equipe econômica do Paulo Guedes com assessores do presidente e outros ministros. Houve as saídas dos ministros da Educação, da Justiça, de dois ministros da Saúde em plena pandemia. Há fricção entre o governo federal e governadores — afirmou.
Este ano, os investidores estrangeiros já tiraram R$ 73 bilhões da bolsa brasileira e o risco-país subiu acima da média de outros países emergentes. A recuperação do índice Ibovespa, que saltou da casa dos 65 mil para os 95 mil pontos, aconteceu principalmente pela entrada do investidor pessoa física brasileiro, que tem fugido da baixa rentabilidade da renda fixa. Muitos são pequenos investidores tendo a primeira experiência. A grande dúvida, para quem faz projeções de longo prazo no país, é se o Banco Central vai conseguir manter a taxa Selic em patamares baixos, caso o governo e o Congresso não consigam transmitir confiança de que vão conter a escalada da dívida.
— O Brasil é como uma família que já estava no cheque especial e sofreu um acidente de carro. Vai ter que se endividar mais para consertar o veículo. E com isso pode ter que pagar juros mais caros no cartão. No pior cenário, pode até ficar sem o cartão — disse.
A imagem do cartão serve para explicar a situação fiscal do Brasil. Já não era boa antes da pandemia. Agora, como em todos os países, o gasto está dando um salto pela crise da saúde. Na visão de Alberto Ramos, o aumento da “fricção” institucional diminui a chance de se obter consensos políticos para a futura aprovação de reformas.
De Nova Iorque, onde mora e trabalha, o economista não acredita em risco de ruptura institucional no Brasil. Entende que há “excessos de linguagem” por parte de alguns atores políticos, mas faz um alerta. Continuar com esses ruídos não seria bom para a economia, porque haveria forte aumento do risco, disparada do dólar e fuga de capitais. Em outras palavras, isso aprofundaria a recessão:
— Seria um ambiente que poderia levar à retração do investimento, e com isso à destruição do potencial de crescimento da economia, pela instabilidade e aumento do risco. Isso confunde a cabeça do investidor. É ruído desnecessário e de custo econômico elevado.
Embora haja o temor de uma segunda onda do coronavírus nos Estados Unidos, a recuperação da economia americana tem sido melhor do que o esperado, na visão de Ramos. Na América Latina, o cenário é pitoresco: há dois líderes conservadores, Bolsonaro e Piñera, promovendo aumento de gastos, um populista de esquerda no México cortando despesas, e o FMI na Argentina aplaudindo quebras de contratos e permitindo reestruturação da dívida.
Fernando Schüler: A democracia não deve conviver com a violência e o medo
O STF, assim como o governo, erra ao tomar opinião como delito
Talvez não devesse, mas me surpreendo que o tema da liberdade de expressão tenha se tornado central em nosso debate. Joel da Fonseca definiu bem a questão: devemos punir ideias agressivas e violentas? Sua resposta é negativa e veio com uma provocação: “me preocupo mais com a ‘justiça’ das redes do que com as falas violentas que ela busca punir”.
Minha resposta também é negativa. Ela vem na trilha da primeira emenda americana. Me parece também a linha de Hélio Schwartsman dizendo que a democracia aceita “quaisquer críticas, em quaisquer termos, mas não admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la”.
O debate me fez voltar ao inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo. Muita gente que respeito me diz não ver ali nenhum problema e que o ponto é simplesmente dar um basta a este “bando de fascistas”. Há quem pense diferente. No mínimo a falta de clareza sobre o que exatamente se está pretendendo punir.
Resolvi conferir com um pouco mais de detalhe. Voltei ao documento em que o ministro relator do inquérito apresenta sua lista de “mensagens ilícitas” exemplificando como atua a “associação criminosa” que se investiga.
São 25 mensagens. Três delas trazem referência a intervenção militar ou coisa do gênero (“passou a hora de contarmos com as forças armadas!”, me pareceu a mais dura); seis delas usam termos de baixo calão e xingamentos (“canalhas”, “vagabundos”, “crápulas) e 16 não passam de opinião política mais ou menos contundente.
Metade dirige-se não apenas ao Supremo, mas a outros Poderes e lideranças, ou simplesmente às instituições.
A que conclusão devemos chegar? O primeiro ponto é não julgar essas coisas a partir do gosto pró ou contra o governo. Se alguém quer fazer isso, boa sorte. De minha parte, não faço.
Se o STF erra ao punir opinião, erra também o governo ao tentar enquadrar na Lei de Segurança Nacional uma charge associando o presidente à suástica nazista. A pergunta é sobre direitos. Sobre nossa capacidade de separar o que é um crime e o que é retórica odiosa ou ideias que julgamos politicamente insuportáveis.
Vamos repetir: dois terços das “mensagens ilícitas” citadas no inquérito não passam de opiniões (dessas que a internet anda abarrotada) sobre o STF e as instituições.
Podemos fazer de conta que não, mas é evidente que há um problema aí. Não acho que isto expresse os limites que desejamos para a liberdade de expressão em nossa democracia. Não me refiro a ameaças de “estuprar” ou “enforcar” quem quer que seja. A lei brasileira é bastante clara sobre como lidar com essas coisas.
Me refiro exclusivamente ao tema da opinião. Individual ou organizada, não importa. Opinião de grupos mais ou menos articulados, visto que é um direito que pessoas de esquerda ou de direita se organizem, combinem “levantar” hashtags para defender as ideias (corretas ou não) que julgarem conveniente defender.
Penso que o Brasil tem uma Suprema Corte da qual deve se orgulhar, por muitas razões. Mas talvez lhe esteja faltando um exercício de autocontenção. Considerar que ministros cumprem uma função pública e estão sujeitos à crítica pública. Da mesmíssima forma que as demais autoridades da República.
E mais: no contexto de uma sociedade que tende sistematicamente a abusar da palavra. Pelo excesso, pelo grotesco, pela irresponsabilidade. E para tudo isso encontra um antídoto: a irrelevância.
A democracia não pode conviver com a ameaça direta e objetiva de violência. Mas igualmente não deve conviver com o medo. O medo de exercer a crítica, por ácida e contundente que seja.
Não deveríamos deixar que a paixão política, que por vezes parece a única variável orientando o debate público, obstrua nossa defesa dos direitos mais elementares. Direitos dos quais, tenho certeza, a maioria de nós não gostaria de abrir mão.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.