Day: junho 23, 2020
RPD || Sérgio C. Buarque: Calamidade e colapso do Estado
Em crises como a da pandemia do coronavírus, o Estado deve atuar para impedir o desastre econômico e social. O problema, avalia Sergio C. Buarque, é que o país está colapsando e enfrenta um déficit primário de R$ 700 bilhões (cerca de 10% do PIB) este ano
Diante da calamidade econômica provocada pela pandemia do coronavírus, as reformas estruturais foram adiadas e o ajuste fiscal ficou suspenso enquanto o governo utiliza suas ferramentas fiscais e monetárias para aumentar a liquidez e elevar os gastos públicos na proteção da população vulnerável, na contenção do desemprego em massa e na defesa da sobrevivência das empresas. Quando o sistema econômico entra em colapso, o Estado deve atuar para impedir o desastre econômico e social. Mas o Estado brasileiro está também colapsando e não tem fôlego para manutenção e, menos ainda, para ampliação dos gastos públicos. De acordo com estimativas otimistas, o governo encerra este ano com déficit primário de R$ 700 bilhões (cerca de 10% do PIB), acompanhado de uma queda de 8% no Produto Interno Bruto, elevando a dívida pública para mais de 90% do PIB.
Com este cenário, é tão simplista quanto arriscado pretender que o Estado amplie os gastos públicos com o objetivo de tirar a economia da recessão, financiando com mais endividamento que leva ao encurtamento de prazo dos títulos e ao pagamento de juros acima da Selic. Qualquer referência ao New Deal é completamente equivocada e a-histórica (pelas diferenças da realidade e da natureza das crises), e ignora que, em 1933, a carga tributária norte-americana flutuava em torno de 6% do PIB[1], deixando o presidente Roosevelt com enorme folga tributária para aumento dos impostos que financiassem as obras públicas, todo o contrário dos governos brasileiros, que acumulam enormes déficits, apesar de uma carga tributária em torno de 35% do PIB.
Para tirar o Brasil do abismo é necessário, antes de tudo, recuperar o cambaleante Estado nacional na sua capacidade fiscal, que lhe permita exercer sua função básica de prestação de serviços públicos e de estímulo à reanimação econômica. Para recuperar a capacidade de investimento público e evitar o descontrole da dívida é necessário aumentar a receita ou reduzir as despesas. Os economistas se dividem na ênfase a uma ou outra alternativa. A elevação de impostos de forma seletiva, concentrados na renda mais alta de pessoa física, tem impacto pequeno na compressão da demanda agregada. Mesmo assim, alguns economistas preferem apostar na contração das despesas primárias, entendendo que a carga tributária no Brasil já é excessivamente elevada.
O tamanho da crise e, principalmente, o grande conflito distributivo que envolve as escolhas políticas exigem, na verdade, uma combinação dos dois. O aumento de impostos a partir de 2021 é tecnicamente mais fácil e politicamente palatável, mas será aceitável apenas se fizer parte de negociação política que inclua a repactuação das enormes distorções das despesas públicas. Os economistas Fábio Pereira dos Santos e Ursula Dias Peres[2] estimam que seria possível gerar receita adicional de R$ 140 bilhões com taxas adicionais e escalonadas sobre a renda de apenas 11% dos declarantes que detêm metade da renda total declarada. A criação de um imposto sobre distribuição de dividendos (atualmente isentos), enquanto se aguarda uma ampla reforma tributária, poderia adicionar algo em torno de R$ 60 bilhões. Toda essa receita nova deveria ser alocada em um fundo especial de recuperação do Estado, desvinculado das despesas primárias[3], liberando-o para investimento em áreas estratégicas e/ou numa renda social básica. Por outro lado, sem mexer na carga tributária, o economista Arminio Fraga propõe três medidas que permitiram reduzir as despesas primárias em condições de administrar o déficit primário de 8% a 9% do PIB: aprofundamento da reforma da Previdência (inclusão dos Estados e eliminação de várias folgas), implementação de uma reforma administrativa para redução dos privilégios e altos salários na administração pública, e diminuição da renúncia fiscal[4].
A combinação de mais receita e menos despesas é fundamental para permitir a ampliação dos investimentos públicos, que leve à reanimação da economia brasileira. Nada disso é alcançável sem um grande acordo político. Algo que, entretanto, parece inviável com um presidente despreparado, autoritário, anacrônico e delirante; e pouco provável com a carência dramática de lideranças políticas. O quadro é desolador. Mas talvez sejam situações-limites como esta que despertem a nação para um entendimento e uma negociação política em torno do futuro do Brasil.
Notas
[1] Carga tributária dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX (exceto durante as guerras) segundo Gonçalves de Godoi, Carlos Eduardo; e de Mello, Elizabete Rosa. Os sistemas tributários norte-americano e brasileiro sob a ótica da justiça tributária e da tributação justa. RDIET-Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário. Brasília, V.11, nº 2, p.172-195, Jul-Dez,2016
[2] “Por uma Contribuição Social Emergencial para enfrentar a Covid-19”. Estado de São Paulo. 11 de abril de 2020
[3] Semelhante ao conceito de Keynes de criação de um “orçamento de capital” separado do “orçamento corrente”, como comentam Bittes Terra, Fábio Henrique e Ferrari Filho, Fernando. As políticas econômicas em Keynes: reflexões para a economia brasileira no período 1995-2011.JEL: B22: E12: E63
[4] Fraga, Arminio. Uma resposta à altura da crise. www1.folha.uol.com.br.31/05/2020
Merval Pereira: Um outro lado
Flávio Dino acha que, se a eleição fosse hoje, o centro político ganharia, diferentemente do que aconteceu na eleição que Bolsonaro venceu
A visão do governador do Maranhão, Flavio Dino, de que a eleição municipal pode se transformar, pelo menos nas capitais, num plebiscito sobre o governo Bolsonaro, sem necessariamente significar com isso que a esquerda possa ser considerada vencedora, mostra bem a abertura política de seu pensamento.
Ao falar ontem na live promovida pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) em uma grande concertação das lideranças nacionais a favor da democracia, mostrou-se respeitoso em relação ao ex-presidente José Sarney, principal líder político maranhense cujo grupo derrotou nas eleições de 2014 e 2018, depois de décadas de prevalência sarneysista no Estado.
O governador Flávio Dino colocou Sarney como presença certa na mesa de negociações, juntamente com outros ex-presidentes da República, dando a seu adversário político regional a dimensão nacional que tem e a que ele, Dino, pode ser alçado como expoente da nova esquerda nacional, que se desvincula da relação carnal com o PT que marcou a trajetória do PC do B até a eleição de 2018, quando apoiou Fernando Haddad.
O petismo, no entanto, não pretende abrir mão da parceria com o PC do B, mais especificamente de Flavio Dino, a quem o líder petista José Dirceu já atribui o papel de vice-presidente “numa chapa imbatível” com o petista governador da Bahia Rui Costa na cabeça da chapa, naturalmente.
Dino não renega o PT, e atribui a uma tática momentânea de Lula a recusa de fazer parte de uma grande aliança de forças de oposição a Bolsonaro. Mas deixa claro que a coligação automática com o PT não são favas contadas na eleição de 2022. Se a eleição fosse hoje, ele acha que o centro político ganharia, diferentemente do que aconteceu na eleição que Bolsonaro venceu.
Não se refere ao Centrão parlamentar, mas a um grupo heterogêneo, que representa a maioria hoje no país, que a esquerda deveria procurar para acordos eleitorais, pelo menos nos segundos turnos das eleições municipais este ano e, quem sabe, na de 2022.
Que, aliás, Dino não tem certeza se ocorrerão no prazo certo, e se ocorrerão. Não falou explicitamente, mas estava se referindo à possibilidade de um impeachment ou até mesmo da impugnação da chapa presidencial pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ele se disse “preocupado” com a situação política, e não menosprezou a força dos bolsonaristas, lembrando que esse radicalismo de direita tem raízes fortes no país. As relações externas do Brasil no governo Bolsonaro, por exemplo, ele considera desastrosas, fugindo à tradição de multilateralismo do Itamaraty.
Criticou a submissão aos Estados Unidos, inclusive abrindo mão de relações proveitosas com a China, nossa principal parceira comercial. Chamou atenção especialmente para nossas exportações agropecuárias, que estão prejudicadas pela questão ideológica, não apenas políticas, mas também ambientais.
O governador do Maranhão considera um erro grave dos militares (não todos, ressalva) colocarem-se como parte do governo Bolsonaro, pois, na sua visão, as Forças Armadas têm que estar fora de governos, como organizações de Estado e, por isso, permanentes, longe das disputas políticas. Muito mais quando a relação dos Bolsonaro com a milícia vai ficando evidente.
No plano econômico, definiu como equívocos ideológicos considerar que o Estado tem que ser o principal responsável por tudo, e também os que defendem que os mercados, por si sós, resolverão todos os problemas.
Numa visão muito próxima da social-democracia, Flávio Dino quer o investimento privado impulsionando o crescimento econômico, mas com o Estado direcionando esses investimentos com uma visão social.
Compreende o papel da livre iniciativa no capitalismo, e a considera indispensável, mas lembrou a importância do SUS na atual pandemia para dizer que, se não fosse a estrutura pública montada a partir da Constituição de 1988, teríamos tido muito mais problemas, pois o sistema privado de saúde não pode dedicar seus esforços prioritários onde não há lucro, como no caso dos leitos de UTI para tratamento da Covid 19.
Carlos Andreazza: Anjo do anjo
Será Wassef o Queiroz do futuro?
Quem ouvir o senador Flávio Bolsonaro terá de repente a impressão de que nunca foi deputado estadual e de que o gabinete na Alerj era de Fabrício Queiroz. Não era; isto embora — justiça seja feita — fosse mesmo o ex-policial quem trabalhasse à vera ali. Nada a ver com a atividade parlamentar.
Quem ouvir, nos próximos dias, a família Bolsonaro terá de repente a impressão de que o destituído Frederik Wassef nunca foi advogado de Flávio e Jair Bolsonaro, e de que sua presença nos palácios onde mora e trabalha o presidente da República jamais houve. Houve; isto embora — justiça seja feita — nada de errado haja em cliente se reunir com defensor, tanto mais sendo este um amigo daquele.
Junta-se o útil ao agradável; assim se ergueu o patrimonialismo neste país.
O destino já uniu Queiroz e Wassef, o novo ex. Tudo a ver com o fato de este ter escondido aquele. Será Wassef o Queiroz do futuro? E quem seria, no caso, o Wassef de Wassef? Wassef deseja saber. Como Queiroz no passado, o advogado manda recados. Não quer ser abandonado. Teria até celular exclusivo para contatos com a família. Verbaliza mesmo a fé — pura mensagem — de que armariam contra ele para atingir o presidente. A acusação de armadilha é gentileza para com Bolsonaro; mas não turva a clareza da missiva: “eu sou você”.
Funcionou com Queiroz — logo lhe apareceu o anjo. Quem será o anjo de um anjo falador que — debatendo-se contra o fado — não parece ter vocação para Queiroz?
Seria mesmo Wassef o anjo de Queiroz?
Queiroz não foi descoberta de Flávio; uma aquisição sua para a gestão, em dinheiro vivo, do gabinete. Não. Queiroz, amigo de Jair desde que 01 era guri, foi designado pelo pai — que sempre dispôs dos mandatos dos filhos como extensões do seu. Queiroz é tanto Jair Bolsonaro quanto Flávio é Jair Bolsonaro.
Wassef tampouco foi descoberta de Flávio; uma revelação sua para a defesa judicial da família. Não. Wassef foi designado pelo pai para a defesa do clã — e ora reivindica ser Jair tanto quanto Queiroz é Jair. Intui que será investigado. A fotografia captura flagrante comprometedor: o então advogado de Flávio guardando em casa, homiziado, um outro investigado no inquérito, cuja detenção preventiva impôs-se por estar ele, desde o covil, movendo-se para obstruir a Justiça.
Isto mesmo: Wassef, defensor de Flávio até ontem, abrigava Queiroz — operador num esquema de corrupção no gabinete de seu cliente — enquanto o abrigado cuidava de interferir para dirigir testemunhas; nenhuma delas maior do que a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega.
A senhora Raimunda Veras Magalhães esteve — longamente, assim como a nora — na folha de pagamento do gabinete; e sua movimentação em espécie é capítulo à parte. É quando entra na equação a mulher de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar, ora foragida, talvez a principal agente no esforço para lesar as investigações, possivelmente incumbida de comandar o silêncio dos que compunham a vertente miliciana em que também se investiria o dinheiro amealhado por aquele modelo de rachadinha.
Lembremos. No único depoimento que deu ao MP, em fevereiro de 2019, Queiroz admitiu que o sistema de rachadinha era regra no escritório de Flávio. Apresentou, porém, ressalva que supunha atenuante: os recursos colhidos ali não iriam para o bolso do chefe, mas para um caixa paralelo destinado a ampliar, informalmente, o número de colaboradores do mandato. Ao serem contratados, os assessores eram informados de que teriam de dar parte da remuneração para sustentar aquela expansão. Tudo pago por fora — num exercício que chamou de “desconcentração de remuneração” e que seria desconhecida pelo deputado.
Com Queiroz preso, será natural que os investigadores lhe cobrem a lista desses auxiliares informais — e quanto ganhavam. Isto porque, em face do volume girado no esquema, ainda que gabinete estendido houvesse, seria algo marginal; e o MP tem como norte que esse programa de rachadinha alimentaria — aí, sim — uma indústria de lavagem de dinheiro por meio sobretudo de operações imobiliárias, entre as quais estariam contidos investimentos no ramo empreiteiro das milícias.
Exatamente: o dinheiro daquele caixa paralelo seria destinado também a financiar construções ilegais de prédios em localidades como a Muzema — ali onde dois edifícios irregulares caíram em 2019.
Rachadinha é recurso delinquente comum em legislativos Brasil adentro — já dizem os passapanistas para relativizar o crime. A prática, no entanto, agrava-se quando se questiona com que frequência terá servido para financiar a atividade econômica de milícias. Essa é, aliás, a razão por que sou cético acerca da possibilidade de Queiroz delatar. Para quê? Qual vantagem teria? Ou não será o delator aquele que entrega outrem em busca de se safar? E que alívio teria em liberdade aquele que delata uma organização criminosa conhecida por ter mui eficiente esquadrão da morte?
Haja anjo.
Luiz Carlos Azedo: Mortes em vão
“Bolsonaro limitará o auxílio aos “invisíveis” a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como 36 milhões poderão permanecer em casa?”
Para o sanitarista Luiz Antônio Santini, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a metáfora da guerra não é a mais adequada para abordar os desafios da saúde. Segundo ele, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Por essa razão, cabe à ciência “responder com vacinas, medicamentos e o que mais estiver ao seu alcance ou que ainda venha a desenvolver de conhecimentos e tecnologias”.
Enquanto isso não ocorre, a melhor alternativa continua sendo o isolamento social, o rastreamento dos casos e o tratamento adequado aos infectados, o que pressupõe restrições de atividades econômicas e circulação de pessoas, testes em massa e um serviço médico operacional e capacitado. É que o conceito de guerra impõe decisões estratégicas nas quais as prioridades não são necessariamente as vidas humanas, ou seja, o tratamento daqueles que precisam de assistência médica, mas outros objetivos, no caso, o retorno das atividades econômicas e/ou os interesses eleitorais, como estamos assistindo. A morte é apenas o efeito colateral. O fato de já não se restringir aos grupos de risco é mera consequência. A maior vulnerabilidade da população de baixa renda nas favelas, periferias, grotões e aldeias indígenas, reflexo de nossas desigualdades, é considerada uma contingência contra qual nada se pode fazer, quando deveria ser exatamente o contrário.
Esse é o raciocínio. O presidente Bolsonaro, por exemplo, deixou o Palácio da Alvorada, no fim de semana, para velar o corpo de um soldado cujo paraquedas não abriu, no Rio de Janeiro, gesto louvável, mas é incapaz de decretar luto oficial por atingirmos a espantosa marca de mais de 50 mil mortos e quase 1,1 milhão de casos confirmados, em respeito às suas famílias. Muito menos homenagear os médicos e demais profissionais de saúde que morreram na linha de frente das UTIs e àqueles que se arriscam todos dias, nos hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs), muitos dos quais depois de terem contraído o vírus e se recuperado. No gesto de Bolsonaro havia mais cálculo político do que humanismo.
Rebanho
Recentemente, o professor de direito Lucas de Melo Prado, no site justificando.com, citou uma passagem do livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari, sobre a síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”, comum durante as guerras. Referia-se à participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, com objetivo de recuperar os territórios de Trento e Trieste, em poder do Império Austro-Húngaro. O Exército austro-húngaro encastelou-se ao longo do Rio Isonzo e resistiu a todos os ataques. Na primeira batalha, morreram 15 mil italianos. Na segunda, 40 mil. Na terceira, 60 mil. E assim prosseguiu a guerra por dois anos. Na 12ª Batalha, em Caporeto, os austríacos passaram à ofensiva, só parando às portas de Veneza. Morreram 700 mil soldados italianos, mais de um milhão foram feridos. Inebriados pelo patriotismo, em busca das glórias romanas, “por Trento e por Trieste”, políticos e generais mandaram seus jovens para a morte. A analogia faz sentido.
Nos 40 dias à frente do Ministério da Saúde, o general de divisão Eduardo Pazuello opera uma política de “imunização de rebanho” não-declarada. Militarizou a pasta, para a qual levou duas dezenas de militares — os da ativa, em desvio de função —, a maioria neófitos em política sanitária. Quando assumiu, em 15 de maio, o Brasil contabilizava 14,8 mil mortos e 218 mil casos confirmados. Esses números quase quintuplicaram no período. Não será surpresa se duplicarmos o número de mortos até o fim de agosto, com o relaxamento da política de isolamento social, como queria Bolsonaro.
Na ativa, Pazuello cumpre ordens. Sua prioridade é uma devassa na pasta da Saúde, que subsidie investigações e denúncias contra governadores e prefeitos que adquiriram equipamentos médicos com preços acima das cotações de mercado. Como de fato houve casos de superfaturamento e desvio de recursos por parte das máfias que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS), a pandemia já virou pauta policial. Quem pagará com a vida, porém, são as vítimas da covid-19, cujo número aumenta exponencialmente, em razão da flexibilização precipitada do isolamento social. Bolsonaro já anunciou que limitará o auxílio aos chamados “invisíveis” — 36 milhões de trabalhadores informais que ficaram sem nenhuma renda — a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como poderão permanecer em casa?
José Murilo de Carvalho: O grande mudo
A doutrina da mudez política do Exército não prosperou entre nós
O jornalista Larry Rohter, que acaba de publicar excelente biografia de Rondon, citou com admiração em sua coluna na revista “Época” uma frase dita pelo marechal em 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo”. Zuenir Ventura, aprovando, repercutiu a citação em sua coluna do GLOBO. Como o assunto é atual, vou espichá-lo um pouco.
A frase chegou ao Brasil em 1920 com os componentes da Missão Militar Francesa, chefiada pelo general Gamelin, que fora contratada pelo ministro Calógeras, o único civil a comandar o Exército na República. Existia na França a expressão: L’Armée est la grande muette, referindo-se, naturalmente, a seu caráter apolítico. Antes, entre 1906 e 1912, por sugestão do barão do Rio Branco, três turmas de jovens oficiais brasileiros tinham estagiado no Exército alemão, que adotava o mesmo princípio. De volta ao Brasil, criaram a revista “Defesa Nacional”, de caráter exclusivamente profissional e que lhes valeu o apelido de jovens turcos. A revista só se referiu uma vez à primeira revolta tenentista de 1922. O autor, um oficial da Missão, insistiu em que a neutralidade política dos oficiais era a marca das democracias liberais. Rondon, então com 55 anos, estava no Rio nessa época e foi seguramente quando tomou conhecimento da expressão que transmitiu a Rohter.
A doutrina da mudez política do Exército, no entanto, não prosperou entre nós. Entre os líderes dos “turcos”, talvez o único que a manteve consistentemente por toda a vida foi o general Leitão de Carvalho. Suas ideias foram expostas no livro “Dever militar e política partidária”, publicado em 1959; sua atuação está descrita nas memórias que deixou. Ele se recusou a apoiar a Revolução de 1930 e todos os muitos movimentos militares das décadas de 1920 e 1930. Outro “turco” de destaque, o futuro general Bertoldo Klinger, fez suas adaptações. Já no primeiro número da “Defesa nacional”, dizia que o Exército deveria ter uma função “conservadora e estabilizante”. Para isso, as intervenções militares não podiam vir de baixo para cima, como em 1922 e 1924, tinham que vir de cima para baixo. Em 1930, vitoriosa a revolução, um Movimento Pacificador depôs o presidente W. Luís. Nomeado chefe do Estado-Maior, o então coronel Klinger propôs uma solução de Estado-Maior. Segundo ele, o destino do Brasil deveria ser o naquele momento entregue aos generais de terra e mar, que convocariam nova eleição.
Dos ex-alunos da Missão Francesa, quem mais se projetou foi o general Góis Monteiro. Depois de ter combatido os rebeldes de 1924, renegou toda ideia de mudez e aceitou a chefia militar da Revolução de 1930. Era, então, um tenente-coronel. Vitoriosa a revolta, foi logo promovido a general e publicou um livro intitulado “A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército”, com prefácio de José Américo de Almeida. Nele escancarou as teses de Klinger. O Exército é “um órgão essencialmente político”. Lançou mão dos ensinamentos militares da Missão Francesa para usá-los contra a doutrina da mudez. Era preciso, escreveu, “fazer a política do Exército e não a política no Exército”. Só à sombra do Exército e da Marinha se poderiam organizar as outras forças nacionais. Durante o período de 1930 a 1945, dedicou-se a aplicar a ideia de Klinger: fazer do Exército um ator político unido, eficaz, falante. Os 88 movimentos militares de protesto de 1930 a 1939 foram reduzidos a seis entre 1940 a 1945.
Entre 1937 e 1945, Góis e Dutra monopolizaram o posto de ministro e a chefia do Estado-Maior. Em 1945, as Forças Armadas, em decisão conjunta dos três Estados-Maiores, derrubaram Getúlio Vargas. Adeus Missão Francesa, adeus Exército grande mudo.
*José Murilo de Carvalho é historiador
José Casado: Entre parentes e milicianos
Vínculos a Queiroz e ao falecido capitão do Bope Adriano da Nóbrega levaram o clã Bolsonaro a introduzir o submundo das milícias na rotina do Planalto e do Congresso
Resumir o atual governo talvez não venha a ser difícil para historiadores. Há 20 meses a prioridade de Jair Bolsonaro tem sido a mesma de três décadas na política, proteger a parentela, nutrida no orçamento público. “Defendemos a família”, escreveu no domingo 7 de outubro de 2018, no epílogo da primeira etapa da campanha. “Tratamos criminosos como tais e não nos envolvemos em esquemas de corrupção.”
Lá se foram 80 semanas, e o presidente continua refém da agenda que aprisionava o candidato.
Ela começa no uso do erário para acolher parentes e amigos. Vício antigo. Nos últimos 28 anos, ele e seus filhos parlamentares abrigaram mais de uma centena de pessoas com parentesco ou relação familiar.
Somaram a afinidade com lobbies de armas e de cassinos, neste caso refletindo a disputa entre grupos americanos, como o de Sheldon Adelson, e asiáticos, como o Shun Tak. Na campanha Bolsonaro se reuniu com Adelson, financiador do Partido Republicano. Entrou no hotel pela cozinha.
Até agora, o governo só conseguiu acenar ao país sob pandemia com um futuro baseado na abertura de cassinos e no comércio de armas, com isenção de rastreamento.
A retrospectiva mostra o presidente concentrado na guarida ao filho senador e ao antigo companheiro paraquedista Fabrício Queiroz, hoje em Bangu 8. Vínculos a Queiroz e ao falecido capitão do Bope Adriano da Nóbrega levaram o clã Bolsonaro a introduzir o submundo das milícias na rotina do Planalto e do Congresso.
As iniciativas presidenciais desses 20 meses foram balizadas pela proteção à parentela e amigos. Daí o repentino silêncio sobre o fim da prisão para condenados em segunda instância, a remoção do Coaf da Justiça, os acordos para bloqueio da CPI da Lava-Toga, o rompimento com o governador Wilson Witzel e a crise da demissão do ex-ministro Sergio Moro.
Na raiz está uma peculiar visão de Estado, sintetizada pelo filho Flávio numa homenagem a milicianos: “Não podemos generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão.”
Rubens Barbosa: Relações entre civis e militares
Seria importante comandantes das FFAA se dissociarem de atos contra as instituições
As relações entre civis e militares ao logo da História republicana nunca foram bem resolvidas. O pensamento e as atitudes de cada lado se aproximam ou se distanciam por interesses comuns ou por questões ideológicas momentâneas.
Não faltam exemplos de cada uma dessas situações, a começar da Proclamação da República, passando pelo tenentismo, pelo período Vargas, pelo movimento de 64 e, agora, com a forte presença militar num governo civil eleito democraticamente. Nos últimos 35 anos, cabe ressaltar, as Forças Armadas cumpriram exemplarmente seu papel constitucional, mas não se pode negar a ocorrência de tensões, de tempos em tempos, em grande medida por desconhecimento da sociedade civil de suas atividades, prioridades e ações.
No tocante à política interna, do lado militar ainda não foi claramente resolvida a diferença da ação política entre militares da ativa e da reserva. Do lado civil, para ficar nos tempos mais contemporâneos, desde as “vivandeiras de quartéis” até hoje, com os que pedem a intervenção das Forças Armadas e o fechamento do Congresso e do STF, prevalece a tentativa de ignorar os limites do papel dos militares na política.
Do lado militar, não está explicitada claramente a separação entre o profissionalismo das Forças Armadas como instituição do Estado, sem manifestação de apoio a partidos ou grupos políticos, e a atuação política de militares que, ao passarem para a reserva, incorporam valores civis e deixam de representar a instituição.
Do lado civil, Congresso e sociedade deveriam ter maior presença nas discussões sobre questões de interesse das Forças. A Estratégia e a Política Nacional de Defesa, que deverão ser submetidas a exame do Congresso, deveriam ser discutidas em profundidade e merecer a atenção da classe política, ao contrário de até aqui.
A ideia de um centro para o estudo das relações civis e militares, de defesa e segurança, sugerida pelo ministro Raul Jungmann e apoiada pelo Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), viria a preencher uma lacuna com a criação de um fórum privado para exame e discussão de temas relacionados com a despolitização das Forças Armadas, fortalecimento do controle civil e papel dos militares no processo decisório do Estado brasileiro.
No atual governo surgiu uma situação diferente dos governos anteriores a partir de 1985. Superado o período de governos militares, nos últimos 30 anos podem ter surgido tensões esporádicas, mas recentemente elas se acentuaram pela participação de grande número de militares da reserva e da ativa em cargos públicos no governo federal (mais de 2.900) e pelo estímulo de setores governamentais a ataques a instituições democráticas. No início julgou-se que os militares no governo poderiam servir de anteparo e de fator de moderação de políticas extremadas com forte viés ideológico, em especial na política externa, com graves e potenciais repercussões para os interesses brasileiros. Com o passar do tempo cresceu a dubiedade de afirmações de militares ministros (“consequências gravíssimas”, “esticar a corda”, “não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder por outro Poder da República por conta de julgamentos políticos”, sempre ressaltando o respeito à Constituição) e a percepção de que as Forças Armadas estão associadas ao governo e o apoiam. Isso resultou no desgaste da instituição e na crescente rejeição de ideias antidemocráticas.
Diferentes interpretações sobre o papel das Forças Armadas, estimuladas tanto por setores civis como por militares, trouxeram a público a discussão sobre o poder moderador dos militares, à luz do artigo 142 da Constituição. O presidente do STF, Dias Toffoli, havia se manifestado no sentido de que “as FFAA sabem muito bem que o artigo 142 da Constituição não lhes confere o papel de poder moderador”. O voto do ministro Luiz Fux, ao fixar regras e limites de atuação das Forças Armadas, conforme a Constituição, tudo indica, deverá ser respaldado pelo plenário do STF. A nota assinada pelo presidente da República, pelo vice-presidente e pelo ministro da Defesa aceita essa interpretação, ao lembrar que “as FFAA destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A decisão da Suprema Corte poderá ser a pedra angular do novo relacionamento entre civis e militares.
Militares em funções políticas de ministros e altos funcionários do governo observam seguidamente que as atitudes políticas de militares com postos no governo são de lealdade e não podem ser confundidas com a postura isenta das Forças Armadas como instituições de Estado. É do vice-presidente, militar da reserva, a afirmação de que “precisa acabar essa história de que as FFAA estão metidas na política”.
Essas afirmações seriam corroboradas pelo silêncio dos comandantes das três Forças, militares profissionais em função no Ministério da Defesa. Para encerrar de vez esse capítulo seria importante que os comandantes das três Forças se manifestem publicamente, dissociando-as de demonstrações contra as instituições, caso venham a se repetir. Com isso ficaria claro o não envolvimento da instituição na política interna e seu total respeito à Constituição.
*Embaixador, com tese de mestrado sobre as relações entre civis e militares na London School of economics (1972)