Day: junho 23, 2020

‘Decisão de organização internacional tem, em geral, caráter recomendatório’

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, Gilberto Saboia cita casos de adoção de regulamentos para prevenir ocorrência e propagação internacional de doenças

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Diplomata aposentado e membro da Comissão de Direito Internacional da ONU (Organização das Nações Unidas), Gilberto Saboia diz que as decisões e resoluções de uma organização internacional têm em geral caráter recomendatório, não estritamente obrigatório, visando a persuadir os Estados a adotarem certo tipo de comportamento. O artigo dele foi publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online

Em sua análise, Saboia observa que as organizações internacionais podem, também, de acordo com seu instrumento constitutivo, adotar decisões com caráter obrigatório. No caso da OMS (organização Mundial da Saúde), o artigo 21 autoriza a Assembleia a adotar regulamentos para prevenir a ocorrência e a propagação internacional de doenças, e dispor sobre vários outros aspectos relativos à saúde pública.

Pelo artigo 22, conforme explica o diplomata aposentado, estas regras, que constituem o Regulamento Sanitário Internacional, entram em vigor para todos os Estados membros após um prazo determinado, exceto para os países que notificarem sua não aceitação dentro deste prazo. “Tornam-se regras internas dos Estados”, enfatiza.

Ele lembra que a Constituição da OMS, por exemplo, contém um preâmbulo que enumera os princípios básicos acordados entre os membros sobre cooperação internacional em matéria de saúde. Seguem-se 82 artigos que estipulam concretamente os objetivos, funções e a forma de operação dos diferentes órgãos.

O diplomata também ressalta que o caráter normativo dos atos das organizações internacionais e as obrigações deles decorrentes para com os Estados membros têm sua fonte primária no acordo constitutivo, tratado internacional ao qual o Estado deu seu consentimento, e cujas normas devem ser cumpridas de boa-fé. “Seu descumprimento gera consequências”, destaca o autor. “Assim, a falta de pagamento das quotas anuais devidas para financiar o orçamento pode ocasionar a perda do direito de voto”, continua.

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Aulas regulares da Jornada da Vitória começam nesta quarta-feira (24)

Curso prático de formação política é realizado pela FAP e destinado a filiados ao Cidadania

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

As aulas regulares da Jornada da Vitória, curso prático de formação política exclusivo a filiados ao Cidadania, começam nesta quarta-feira (24), por meio de uma plataforma de educação a distância totalmente online, interativa e com acesso gratuito para matriculados. “Vamos juntos para ganhar e vencer com muita força as eleições municipais de 2020 e fazer a diferença para esse país que tanto precisa de bons políticos”, convida o coordenador pedagógico do curso, o advogado Marco Marrafon.

O curso é realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Em vídeo divulgado nas redes sociais, Marrafon explica que a Jornada da Vitória é um curso para quem deseja “alcançar sucesso nas eleições municipais de 2020”. Login e senha serão fornecidos somente aos filiados que tiverem suas pré-inscrições confirmadas pelos organizadores.

No total, serão 14 videoaulas de aproximadamente 15 minutos, inéditas, e 42 miniaulas de 3 minutos – muitas delas aproveitadas da Jornada da Cidadania. Um novo pacote de conteúdo, que terá uma videoaula e três miniaulas, será disponibilizado na plataforma a cada semana. Não haverá provas escritas, e a participação de cada aluno será monitorada conforme avançar nas etapas do curso.

O conteúdo programático do curso vai focar na campanha eleitoral, atualidade e formação política avançada e comunicação política. Serão abordados grandes temas de interesse de vereadores e prefeitos, como estratégia política, boas práticas administrativas, propostas renovadoras e causas cívicas. Além disso, as aulas vão discutir marketing político, legislação eleitoral, arrecadação de recursos de campanha e redes sociais.

Todos os conteúdos devem fortalecer a importância da transparência, sustentabilidade, solidariedade, reformismo, ética, equidade, democracia e cosmopolitismo. O intuito, segundo os organizadores, é capacitar ainda mais as forças democráticas liberais e progressistas, em defesa das liberdades civis, dos direitos humanos e da igualdade de oportunidades na sociedade.

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IHU Online: 'Brasil precisa de um político que seja senhor da arte de tecer algo comum', diz Werneck Vianna

Por Patricia Fachin , IHU On-Line

Para compreender o momento presente e as crises políticas e sociais que o Brasil enfrenta, o sociólogo Luiz Werneck Vianna costuma dar um passo atrás em busca das causas. O abismo político e social diante do qual o país se encontra hoje, assegura, é consequência da política praticada nos últimos anos. A eleição do presidente Bolsonaro e os sucessivos atos antidemocráticos que reivindicam o fechamento do Supremo Tribunal Federal - STF e do Congresso Nacional em defesa de um governo autoritário, são indicativos de que a sociedade brasileira adoeceu porque a política praticada nas últimas décadas não favoreceu a organização da cidadania. “Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia”, afirma.

As consequências de uma política “desamparada de sustentação cidadã” podem ser vistas nas diferentes tentativas do governo atual de levar adiante a expansão irrestrita do capitalismo, removendo todas as barreiras sociais, e tentando remover as instituições democráticas, como o STF e o Congresso. Entretanto, adverte, remover as “trincheiras democráticas”, “nas circunstâncias do mundo atual, não é fácil, ainda mais sem a reeleição de Trump”.

Enquanto a sociedade brasileira agoniza diante da crise pandêmica, do aumento do desemprego e da falta de perspectivas para o futuro, no meio político busca-se um "replantio", ou seja, restabelecer "caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças". A questão, contudo, é ver se a iniciativa "frutifica".

Segundo ele, apesar de não ter surgido uma liderança política que possa fazer frente ao fascismo tabajara do governo Bolsonaro, iniciativas populares de auto-organização se fortaleceram durante a pandemia nas periferias carioca e paulista. “As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Werneck Vianna analisa os últimos acontecimentos da conjuntura nacional, como a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, preso na última quinta-feira. Queiroz, comenta, “faz parte do tipo de gente que veio com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular”.

Apesar do contexto atual, o sociólogo acredita que a crise pandêmica poderá gerar mudanças significativas no Brasil e no mundo. “A ideia de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência”, conclui.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O seu diagnóstico é o de que a democracia está em risco não somente por causa do governo, mas porque a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma. Desde quando estamos doentes política e socialmente?

Luiz Werneck Vianna – Tudo que acontece hoje só foi possível porque a sociedade adoeceu antes e permitiu a vitória dos que estão aí. Eles não chegaram ao poder pelo golpe, mas pelo voto. Como os anos dos governos petistas não favoreceram a organização da vida popular, não favoreceram a organização da cidadania, a política ficou desamparada de sustentação cidadã. Se acumulou, na sociedade, por força disso, um tipo de comportamento em setores sociais bem determinados – que chamo de ralé de camadas médias -, dirigido inteiramente ao consumo, ao culto idiota às personalidades midiáticas independentemente dos seus valores. Criou-se uma personalidade em torno da Sara Giromini, que usa o codinome Sara Winter, nome de uma espiã inglesa em favor do nazismo. Não importa, para eles, a história; importa a exibição, o espetáculo e eles tiveram uma votação impressionante nas últimas eleições. Quantos deles estão nas casas parlamentares? Pessoas que vieram de lugares inexpressivos da vida social conquistaram posições e estão aí hoje, emperrando a resistência democrática no Congresso.

A criação de um abismo

Nada do que nos ocorreu foi fruto de um acaso; não havia nenhuma fatalidade que nos empurrasse para essa situação. Nós criamos este abismo diante dos nossos pés com o tipo de política que praticamos nos últimos tempos. Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia.

Um caso exemplar disso foi a não subscrição por parte do PT da Constituição de 88. A distância que o partido toma – o partido representava naquele momento a questão social na sua forma mais visível no Brasil – e o fato de não ter assinado a Carta é muito sintomático deste posicionamento de que ele iria procurar avançar na agenda social por fora das instituições, e isso foi debilitando a democracia entre nós. Inclusive, porque – eu tenho prurido em falar assim e no artigo eu falo em “blasfêmia” – foi um partido de esquerda com representação no mundo sindical, que é o coração pulsante da esquerda. O PT fez isso por falta de orientação e, quando acabou conquistando o governo, quis fazer dele um instrumento do seu programa da questão social com independência das instituições, sem organizar, sem atentar para a distância que a cidadania tomava das instituições, do Estado, porque tudo vinha de cima para baixo. Isso foi tornando a democracia debilitada.

Ralé de novo tipo

A derrota que tivemos é eleitoral e não um golpe como em 64. E mais: não foi só a eleição presidencial, foi um tsunami de votos de uma ralé de novo tipo que surgiu na política brasileira sem que nos déssemos conta disso.

Nós perdemos, mas não perdemos tudo. Uma parte da nossa herança democrática conquistada em 88 ficou e algumas instituições também. Essas instituições ainda têm a memória do que se conquistou naquele tempo. Como o governo que aí está é um governo que vem realizar um programa há muito tempo ansiado e esperado pela alta burguesia brasileira, de reformar a sociedade de uma forma tal que ela se tornasse mais compatível, propensa e favorável à penetração do capitalismo em todas as suas instâncias, as instituições aparecem como um obstáculo a ser removido. A marca neoliberal da política econômica foi anunciada e atraiu setores muito poderosos da elite econômica, especialmente do capitalismo agrário, do agronegócio e do setor financeiro do capitalismo brasileiro, para que agora não se tenha obstáculos para avançar: sem legislação trabalhista, sem legislação social, sem a social-democracia que trava e obriga a certas concessões.

É por isso que se quer entrar em terras indígenas e fazer delas mineração, trazer os cassinos para as grandes cidades, fazer com que o capital na sua forma pura venha a prevalecer em todas as instâncias da vida social. Este foi o projeto. Este projeto, contudo, não quer nenhum obstáculo pela frente, como as instituições herdadas da democracia anterior. A luta, então, se estabeleceu: remova-se o Supremo Tribunal Federal - STF, remova-se o Congresso, para fazer da sociedade brasileira um território limpo e acessível para a extensão do capital onde for possível. O capital quer tornar a sociedade totalmente domesticada e as instituições têm recusado isso com energia, criatividade, coragem, mas elas não têm instrumentos de defesa poderosos, salvo os da ordem moral. Então, elas foram sitiadas e pretende-se ou maculá-las ou erradicá-las, e estamos nesta disputa em que o governo avança contra as instituições e as instituições se defendem. Por ora, graças a Deus, a defesa tem sido efetiva. A sociedade está em crise, não há um desenlace para isso e não podemos acumular forças nas ruas por causa da pandemia; nós temos que defender nossas vidas. E com esta circunstância, o apoio externo que poderia vir às instituições fica fraco. Até agora a linha de resistência tem sido efetiva. Mas até quando?

IHU On-Line – Quais instituições reagem e lideram a resistência?

Luiz Werneck Vianna – O Judiciário tem posto uma linha de resistência segura e tem sido uma trincheira importante das conquistas de 88. Até quando, não sabemos. Estamos numa guerra de posições, mas a essa altura, este governo tenta transformar essa guerra de posição em guerra de movimento, isto é, avançar sobre o nosso sistema defensivo a fim de destruí-lo.
O que se diz, como ficou claro na reunião ministerial de 22 de abril, é que se quer aproveitar desta pandemia para avançar com garimpo, com distribuição de terras, com a expansão do agronegócio para colocar vaca no lugar da mata.

IHU On-Line – Está claro como as Forças Armadas estão se posicionando nesta crise ou por que não se posicionam?

Luiz Werneck Vianna – Não tenho informações confiáveis do que se passa na cabeça da oficialidade que está nos quartéis. A que está nos palácios, sabemos, porque eles demonstram as iniciativas que o governo está tomando. Agora, irão eles abandonar as instituições e ir para uma ditadura aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também. Tendo a achar que não. Há um sentimento de autodefesa da corporação diante desses riscos, das circunstâncias em que o mundo se encontra. O STF encontrou uma linha de resistência sóbria, firme e segura. No limite, que removam o STF e corram esse risco. O mundo não está favorável para isto e Trump não deve ganhar as eleições.

Irão eles [militares] abandonar as instituições e ir para uma ditadura aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também. Tendo a achar que não - Luiz Werneck Vianna

IHU On-Line – Por que a democracia não é um valor incondicional na sociedade brasileira?

Luiz Werneck Vianna – Porque a nossa sociedade formou-se à margem da vida democrática. Como nós nos criamos enquanto Estado, nação e sociedade independente? Foi por uma revolução social libertadora? Não, foi por um movimento de cúpulas: o herdeiro da monarquia se torna imperador no Brasil. Como chegamos à República? Foi por um movimento popular visando à participação? Não, foi por um golpe militar. Como chegamos à abolição? Bom, com um certo movimento popular; o movimento abolicionista foi importante, mas foi por um ato imperial da princesa Isabel. Não houve um embate que fizesse com que setores mais reacionários fossem deslocados. O que havia de mais reacionário na sociedade imperial, com a abolição, não foi muito afetado. Portanto, a nossa tradição de formação histórica é uma tradição conservadora, quando não reacionária. Como fizemos a nossa revolução burguesa? Por cima, com Vargas, no Estado Novo. Como se deu todo o processo da modernização? Se deu com alguns institutos liberais funcionando, mas com a Lei de Segurança Nacional do Estado Novo ainda vigendo, com a concepção reacionária de ordem social, de repressão à vida popular nos anos 1950 e 1960.

Nos anos 60, o cenário começa a mudar – aí deu pânico na direita brasileira – no terreno mais sensível, que é o campo, a vida agrária, de onde nós saímos, de onde começamos a nossa história, com as Ligas camponesas. A organização da vida popular no campo se tornou uma ameaça e foi preciso interrompê-la para manter o padrão conservador, reacionário, que é a nossa tradição. O golpe de 64 vem nessa linha. Temos uma história pesada de autoritarismo, de domínio burguês autoritário. Não conhecemos uma revolução democrática burguesa; a nossa revolução foi por cima, pelo Estado. Quer dizer, os heróis empresários brasileiros tiveram um destino muito triste: Monteiro Lobato chegou a ser preso pelo Estado Novo por suas lutas em torno do petróleo e do aço; o projeto dele era se tornar um Henry Ford do Brasil. Não tivemos um Henry Ford vindo da sociedade, como nos EUA. As mudanças ocorreram via Estado e isso deixou marcas de autoritarismo muito profundas; enfrentá-las demandava uma inteligência que não tivemos, não soubemos ter. Cavamos um abismo aos nossos pés, como diz a música do Cartola. E agora, como sair disso? Estamos tentando, restabelecendo caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças. Tudo isso é um replantio. Vamos ver se frutifica.

IHU On-Line - Direita, centro e esquerda vão conseguir vencer as diferenças em prol de um pacto para deter a extrema direita, como alguns sugerem?

Luiz Werneck Vianna – Diante da ameaça do fascismo – porque é disso que se trata – devemos procurar uma unidade de todos. Agora, isso é difícil, porque a nossa sociedade não é muito sábia, não tem história de sabedoria. Mas estamos tentando.

Isso vai depender da política, que depende da ciência e da arte também. Vai depender do artista, de um político que seja senhor da arte de fazer esta composição difícil. No momento, este artista não está disponível, não temos um Ulysses Guimarães, um Tancredo Neves, que eram artistas desta arte de fazer política, de tecer, a partir das ideias das pessoas, uma coisa comum. Pode ser que esteja aparecendo aí e ainda não vimos. Tem muita movimentação importante na nossa sociedade, inclusive nos setores subalternos, com novos intelectuais vivendo no mundo subalterno, como o Emicida, que é músico, um intelectual finíssimo, um jovem. O conheço apenas da televisão, de entrevistas, e me impressiona muito. Como ele, há muitos e muitos outros que estão se apresentando agora.

Vida popular

Na vida popular há instituições, como a da organização popular de Paraisópolis, em São Paulo, que conseguiu estabelecer estratégias de defesa contra a pandemia. Ela é muito interessante como auto-organização. Está havendo movimentos positivos na crise atual que estamos vivendo. Além de Paraisópolis, há uma série de outros casos. Na Rocinha, que é uma favela importante no Rio de Janeiro, há um movimento de auto-organização muito interessante. As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens.

IHU On-Line - O senhor tem chamado o governo de “fascismo tabajara”. Mesmo sendo tabajara, ele representa ameaças à democracia? Há algo comparável a este momento na história do Brasil?

Luiz Werneck Vianna – Que é fascista, não tenho dúvidas. É tabajara porque as circunstâncias são as nossas, brasileiras, daqui deste pedaço escondido do mundo, que é o Brasil. O fascismo aparece como um projeto bem mais sofisticado. Não dá para esquecer que no nazismo alemão, [Martin] Heidegger aderiu, Carl Schmitt aderiu; não foi um fenômeno com a ausência do grande pensamento, de grandes intelectuais. Aqui temos quadros de pobres personagens e, por isso, tabajara. Mas é fascismo.

O próprio integralismo no Brasil era um movimento de grandes intelectuais. Para mencionar alguns que me ocorrem agora: Santiago Dantas e Helder Câmara. Eles são homens que se aproximaram do liberalismo depois, mas que tiveram este momento de adesão ao fascismo. Miguel Reale, cujo filho está aí e é um liberal importante, também se tornou um liberal no final da vida. Afora a penetração do integralismo nos círculos militares, especialmente na Marinha. Portanto, é inteiramente distinto do que está ocorrendo aqui. É um movimento de pessoas muito rudes, toscas, despreparadas. Algumas, pouco alfabetizadas e dependentes do trumpismo. Essa armação de política externa desamparada, com Trump à frente, está sob ameaça. Trump, a esta altura, dificilmente vencerá as eleições e, sem Trump, o que será deles?

Eles precisam remover as trincheiras, mas removê-las nas circunstâncias do mundo atual não é fácil. Como o Brasil vai reagir à opinião pública internacional em relação a isso? Ainda mais que vivemos de vender mercadorias para fora. E se nossos compradores começarem a enjoar de nós e não quiserem mais comprar as nossas mercadorias? E se a China resolve diversificar os seus vendedores, diminuindo ou rebaixando a presença brasileira no fluxo comercial? Como vai ficar se a União Europeia fizer a mesma coisa? São ideias muito anacrônicas, em um momento em que a sociedade humana enfrenta a pandemia.

A pandemia trouxe o tema da ciência como um dos mais relevantes da cena contemporânea, porque esta pandemia põe no horizonte outras que poderão vir. A sociedade humana precisa se defender e só pode se defender com a ciência, e ciência só se faz com liberdade.

IHU On-Line – A prisão de Fabrício Queiroz poderá reorganizar a cena política? Qual é o significado político dessa prisão para o governo, especialmente para o presidente Bolsonaro?

Luiz Werneck Vianna – Faz parte do tipo de gente que veio com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular. Qual é a presença real da Igreja Católica na vida popular, nas favelas cariocas, que eu conheço relativamente bem? Muito pequena. Qual foi a presença do PT na vida periférica e das favelas? Muito pequena. Deixamos espaço para que esses aventureiros armados ocupassem essas posições e se tornassem presentes nos processos eleitorais, com candidatos, apoio, financiamento. Eles controlam setores das classes periféricas. Isso tem que ser combatido e a sociedade começou a acordar para isso.

A sociedade está muito doente. Está doente com a pandemia e socialmente doente; precisa se curar. Ela está em processo de cura, vamos ver se dá tempo. O mundo está curando suas feridas numa direção muito boa: da paz, da ciência, da defesa do meio ambiente. Basta ver o que houve na juventude americana há duas semanas. Isso é de uma importância fundamental.

Queiroz é um homem das milícias. O que pode fazer o Queiroz? A partir da prisão dele, pode-se puxar um fio que irá expor as vísceras das milícias, se ele quiser falar.

IHU On-Line – Uma delação premiada seria um caminho?

Luiz Werneck Vianna – Ele pode inventar isso e aí vai tudo embora… sei lá.

IHU On-Line – Qual é o significado da aproximação do governo com o Centrão?

Luiz Werneck Vianna – É uma tentativa de sair das dificuldades em que ele se encontra pela política, evitando o caminho do golpe, que é um caminho arriscadíssimo para eles. O Centrão é a tentativa de encontrar um caminho na política, o que qualquer estrategista diria que é o mais aconselhável para eles porque, inclusive, no horizonte está a derrota de Trump. Se há alguma lucidez entre eles, o caminho é a política, é encontrar um caminho para levar este governo até o seu término. A saída de [Abraham] Weintraub, que é um destrambelhado, fortalece essa possibilidade. Vamos ver se esse governo aprende a fazer política.

Na opinião pública, Bolsonaro já perdeu. Não dá para saber ainda em que medida perdeu, porque a sociedade está assustada em suas casas, com medo da pandemia, com razão.

IHU On-Line – As recentes manifestações que ocorreram contra o presidente indicam alguma novidade?

Luiz Werneck Vianna – Aqui as manifestações foram pouquinhas; na América [EUA] foi todo mundo. Elas foram positivas, apesar de darem apenas uma parte do que poderiam ser se não tivesse a pandemia. As manifestações de São Paulo foram expressivas, algumas no Rio de Janeiro também. A sociedade adoeceu, mas não toda ela; uma parte continua resistindo, continua com valores. Uma parte da Igreja Católica adoeceu, aquela que foi fazer acordos com o governo para ter recursos para televisão. Mas há setores dentro da Igreja que não estão doentes, lutam e resistem.

Foram anos de uma sociedade formada a partir da dominação autoritária, da escravidão. Queríamos ter o que como resultado? Essa milícia que está aí. Estão tentando fazer milagres de cauterizar as feridas, de encontrar um caminho.

IHU On-Line – Como será o Brasil depois da pandemia?

Luiz Werneck Vianna – Depois da pandemia, vai ser um mundo bom (risos). Não gosto de pensar nisso; é um futuro tão desejado que é melhor deixar ele se impor, se ele se impuser. Esperamos que isso termine para que possamos encontrar os amigos, os filhos, os netos. A sociedade que vai sair disso será melhor.

IHU On-Line – Mesmo com o aumento da pobreza, da crise econômica?

Luiz Werneck Vianna – A economia sempre se resolve.

IHU On-Line - Os intelectuais estão refletindo sobre o momento que estamos vivendo e fazendo projeções de como será o futuro pós-pandemia. Como o senhor tem pensado sobre este momento, sobre os impactos deste período para a sociedade? Que pensamentos a pandemia de covid-19 tem lhe suscitado?

Luiz Werneck Vianna – O planeta está também sob ameaça na questão ambiental, das pandemias, então, a ideia de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência. O nosso planeta é muito pequeno e não pode mais ser depredado pela ação dos homens como foi e vem sendo feito.

Há um sentimento de autodefesa da espécie que vem se manifestando a partir de seus intelectuais, da sociedade, das grandes organizações, dos países democráticos, da igreja, na ação do papa Francisco, muito especialmente, que é o horizonte com o qual vamos nos defrontar – aqueles que conseguirem sair desta pandemia vivos. Espero ser um deles; mas, enfim, eu sou do grupo de risco.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo PUC-Rio


Pedro Fernando Nery: Décadas de vírus

Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa

A cadeirinha no carro. O estado de alerta perto de piscinas. A vigilância com objetos miúdos na boca. O medo da posição errada no sono. Preocupações normais de pais de crianças pequenas. Mas o leitor pode se surpreender ao saber que no Brasil há uma causa de morte prevenível muito mais comum nas crianças de até 5 anos. Oito vezes mais frequente que a síndrome de morte súbita, quatro vezes mais que as mortes por afogamento, o dobro das mortes no trânsito ou por aspiração de objetos. É a morte por diarreia, que só em 2015 vitimou cerca de 2 mil crianças brasileiras na primeira infância.

Uma das fotos mais tristes da atual pandemia é a do fotógrafo Michael Dantas, mostrando um garoto beneficiado por uma campanha de distribuição de máscaras em um bairro pobre de Manaus. A máscara amarela se destaca: além dela o menino veste apenas uma bermuda, cercado por uma água imunda tomada pelo lixo. É de uma ironia melancólica: a máscara para protegê-lo do coronavírus, enquanto segue exposto aos rotavírus, adenovírus, enterovírus, norovírus, sapovírus, astrovírus, calicivírus ou o da hepatite A – além das bactérias e vermes da água escura que cerca seu corpo.

Os dados que abrem esta coluna são de estudo da professora Elisabeth França e outros pesquisadores brasileiros, publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates. Ele mostra também que houve enorme progresso quanto à morte de crianças por doenças diarreicas desde 1988, apesar desta ainda ser uma das dez principais causas de morte até os 5 anos. Para além do índice de mortalidade, outros estudos mostram o impacto devastador que a falta de água limpa tem nessas vidas.

Como os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento do cérebro, ele é prejudicado pelas doenças da água suja, que afetam a absorção de nutrientes. A ausência de saneamento afetará no futuro desde a altura até as capacidades cognitivas desse cidadão. Pesquisadores chegam a estimar a perda de pontos no QI ou de anos de escolaridade em função das diarreias nos primeiros anos de vida. Para piorar, alguns protozoários e bactérias de água suja podem afetar o desenvolvimento ainda que não causem diarreia. O total do potencial humano perdido não se estima.

No Brasil, quase metade da população não tem serviços de coleta de esgoto e cerca de 35 milhões vivem sem acesso a água tratada. A situação é pior para a população negra e no Norte e Nordeste. A realidade também é dramática nas escolas: 15% nem chega sequer ter banheiro em suas dependências.

Os adultos, evidentemente, também são afetados. A OMS calcula que cada real investido no saneamento economiza quatro reais na saúde. Já o Instituto Trata Brasil projeta bilhões de reais de ganhos no PIB com a universalização do saneamento, decorrentes de aumento da produtividade do trabalho, menos afastamentos, melhora no aprendizado nas escolas – além dos ganhos com valorização imobiliária e turismo. Mas para o instituto, no ritmo atual de investimentos a universalização pode demorar 120 anos.

O marco do saneamento, que passa por idas e vindas desde 2018, pode ir à votação final esta semana. Ele estabelece a universalização até 2033 (ou em determinadas condições até 2040), com competição com o setor privado.

Parte da controvérsia sobre o projeto pode ser visualizada na manifestação de uma deputada que votou contra ele: “Chega a ser um escárnio. Porque o projeto propõe metas para as companhias públicas”. Metas de universalização e quebras de monopólios mobilizam os interesses das corporações dessas companhias públicas, o que explica parcela da dificuldade que a pauta teve em avançar nos últimos anos. O especialista em infraestrutura Claudio Frischtak mostra que de 2014 a 2017, 3 de cada 4 companhias estaduais priorizaram gastos com folha em relação aos investimentos.

Convidado por Bill Gates para contribuir a resolver “o problema do saneamento”, o engenheiro Peter Janicki, bem-sucedido dono de uma empresa que fabrica componentes aeroespaciais, se surpreendeu: “Que problema do saneamento?”. Para parte da sociedade, é difícil conceber que as famílias mais pobres vivam de forma tão diferente da sua. Mesmo entre os ambientalistas parece haver interesse muito maior por pautas mais “instagramáveis”, como a questão da Amazônia.

Se na pandemia debatemos temas do século 21, como a renda básica universal, ainda não superamos um tema dos séculos passados: o saneamento básico universal. Quando o coronavírus passar, milhões de brasileiros pobres continuarão convivendo com doenças infecciosas na rotina de suas famílias. Não há isolamento que resolva vírus que contamina em casa.

*DOUTOR EM ECONOMIA


Ana Carla Abrão: Paciência

Na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas

O mundo parou, o Brasil parou. A atividade econômica foi desligada pela pandemia e agora começa a ser religada – de forma mais ou menos organizada, a depender da existência ou não de um plano estruturado de gestão das medidas de isolamento.

Nesse processo de volta, várias pesquisas estão sendo feitas com o objetivo de se entender o que mudou no comportamento das pessoas e qual será a intensidade da retomada econômica. Há algo de boa notícia em boa parte delas. Assim como há uma clara alteração nos padrões de comportamento das pessoas. Essas alterações deverão afetar de forma relevante as decisões econômicas dos agentes.

Pelo lado da boa notícia, há alguns sinais de recuperação da confiança. Eles estão presentes, por exemplo, no Observatório da Febraban, um tracking nacional realizado entre 1.º e 3 de junho, com uma amostra de 1.000 entrevistados que visa a representar a população adulta brasileira bancarizada. Os resultados não deixam de surpreender positivamente ao sugerirem que 49% dos entrevistados acreditam que suas finanças voltarão ao que eram antes da pandemia no prazo de até 1 ano. Desses, 21% acham que isso acontecerá ainda este ano. Quando a pergunta se volta para o Brasil, percebe-se um otimismo menor, mas algo positivo se considerarmos que 24% acreditam numa recuperação da economia brasileira em até 1 ano e outros 43% em 2 anos, ou seja, até 2022. Homens e jovens se mostram mais otimistas nas duas dimensões. Certamente porque também foram menos impactados pela crise que reforçou as desigualdades sociais, em particular as de gênero.

O Observatório segue com outras informações onde também surgem sinais de que há uma demanda que os meses de isolamento não fez sumir. Dentre os entrevistados, 14% afirmam que seu volume de compras vai crescer e 15% pretendem buscar financiamento para adquirir um imóvel residencial. Outros 14% declararam intenção de comprar um carro ou uma moto financiados. O crédito consignado aparece como a linha de desejo para 15% dos entrevistados. Desejo que certamente deixará de ser atendido se prosperar o Projeto de Lei 1.328/2020 de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA) e aprovado no Senado Federal na última semana. Assim como serão afetados todos os demais que indicaram a intenção de buscar linhas de financiamento e os outros 16% que demonstram intenção de recorrer a empréstimos bancários. Sim, o populismo sai muito caro e prejudica a população.

Na dimensão comportamental, segue o Observatório, 46% da população bancarizada tende a priorizar as soluções digitais, ante apenas 14% que vão se manter fiéis ao atendimento presencial. No consumo, as respostas apontam na direção de manutenção ou aumento de hábitos, como as idas ao supermercado (78%), a salões de beleza (66%) ou a comércios de rua (55%). O resultado é contudo ambíguo quando a pergunta se volta a bares e restaurantes ou shoppings, com parcelas quase iguais das pessoas entrevistadas afirmando que vão manter/aumentar ou diminuir sua frequência nesses serviços.

Há outras pesquisas circulando, todas com algum grau de otimismo e sinalizando mudanças comportamentais relevantes. A pesquisa feita pela revista Fortune, com presidentes das 500 maiores empresas mostra uma expectativa de recuperação um pouco mais lenta, iniciando-se em 2021, mas se concentrando no início de 2022. Ali também, há claras indicações de mudanças comportamentais, em particular no que tange a volta ao local de trabalho, à retomada das viagens a trabalho e à aceleração digital, todos fatores que continuarão impondo desafios às companhias do mundo todo e com grandes impactos em alguns setores econômicos.

Os desafios são muitos aqui e lá fora. Mas na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas daqui e ficar aquém da realidade de lá. A mesma paciência que tem nos mantido em isolamento social e tantas vidas já salvou deveria se reverter em impaciência com a ausência de uma coordenação, pelo Executivo, das agendas nos diversos níveis federativos e entre os três Poderes constituídos.

Uma crise dessa magnitude exige que o Executivo defina e apresente à sociedade com clareza quais são suas prioridades no Parlamento e quais serão as ações nas áreas social, econômica e de crédito para tirar o País da crise. No campo federativo, há que se discutir como Estados e municípios poderão sair da crise fiscal que já os assolava e que agora se agravou. Não há como contar só com o otimismo do mercado e as expectativas positivas da população como motores de recuperação. À economia que já vinha frágil, juntou-se o agravamento das condições sociais e o tombo que jogou produtividade e crescimento para o campo negativo. A continuar esse quadro, nem as expectativas terão paciência.


Andrea Jubé: Começam as baixas na caserna

Prisão de Queiroz amplia desconforto no Exército

Apesar de esforços de vários atores em várias frentes para arejar a cena política, a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), aumentou a tensão em todos os ambientes, inclusive em uma das bases mais caras de Jair Bolsonaro: as esposas dos oficiais militares.

Uma evidência do derretimento da popularidade do presidente é a progressiva perda de apoio nesse segmento, refletida nos vários grupos de WhatsApp em que as mulheres dos oficiais da ativa e da reserva trocam impressões sobre os fatos políticos. A prisão de Queiroz e as circunstâncias que a envolveram provocaram uma debandada nesse grupo, inclusive de defensoras obstinadas do presidente.

Nem a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo nem a postura negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia - e a indiferença diante das mais de 50 mil vítimas fatais da covid-19 - haviam espantado essas apoiadoras.

Mas o esconderijo no escritório do advogado Frederick Wassef, que não saía dos dois palácios, Planalto e Alvorada, é visto como um detalhe estarrecedor. Ainda que Wassef tenha deixado a defesa do senador, até ontem suas digitais estavam lá, próximas da família, e suas declarações para tentar blindar o presidente são consideradas artificiais.

Outra convicção do grupo de mensagens das esposas é de que mais do que um auxiliar, Queiroz era um personagem do entorno do presidente, frequentador de churrascos e pescarias da família. Em um dos primeiros episódios em que se viu obrigado a esclarecer esses laços, Bolsonaro teve de responder por que Queiroz depositou um cheque de R$ 24 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Um general que viu algumas das mensagens trocadas entre elas assegura que até “o grupo mais radical sumiu”. Os grupos de mensagens das esposas dos oficiais antecipam tendências, diz este general.

É uma análise sem dúvida empírica. Mas em 2018, antes dos institutos de pesquisas e dos analistas políticos, as trocas de mensagens nesses grupos já indicavam a vitória de Bolsonaro.

Se o presidente amarga as primeiras baixas no estrato feminino da caserna, generais da ativa afirmam que a prisão de Queiroz acentuou o desconforto da cúpula com a persistente vinculação do governo ao Exército.

A imagem mais clara desse vínculo para o grupo do comandante Edson Leal Pujol é a permanência de dois generais da ativa no primeiro escalão: os ministros Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Eduardo Pazuello, da Saúde.

É com esse pano de fundo que a cúpula militar espera que nesta semana, em que o Alto Comando do Exército está reunido para definir promoções e analisar a conjuntura, o ministro Ramos finalmente anuncie a sua transferência para a reserva.

Há 15 dias, Ramos anunciou a aposentadoria, mas não falou em data. Na próxima semana ele completará um ano como general da ativa em um cargo civil, para desassossego de Pujol.

Quanto o general Braga Netto, ainda na ativa, tomou posse como ministro-chefe da Casa Civil, para assumir a gerência do governo, em menos de um mês formalizou sua transferência para a reserva.

Aposentando a farda, entretanto, Ramos perde a oportunidade de ser indicado para a próxima vaga para o Superior Tribunal Militar (STM), que será aberta no segundo semestre de 2022, com a aposentadoria compulsória do ministro Luís Carlos Gomes Mattos.

A cúpula da caserna, entretanto, distingue a situação de Ramos e Pazuello. Ambos ainda têm um ano e meio na ativa para galgar outros postos na carreira. Mas há uma leitura de que como general de Exército, Ramos atingiu o topo da carreira - acima, só o posto de Pujol.

Enquanto Pazuello, oficial de intendência (especializado em tarefas administrativas ou logísticas), teria a prerrogativa de buscar outras colocações porque como ministro interino da Saúde estaria cumprindo missão das mais espinhosas, sem chance de deserção.

Mas se há o desconforto com o vínculo direto do governo Bolsonaro com o Exército, a cúpula militar também não está satisfeita com as recorrentes insinuações de que tentariam um golpe militar, tampouco com o que classificam como excessos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Foi por esse motivo que o ministro do STF Gilmar Mendes pediu a audiência com o comandante do Exército na semana passada. A reunião foi salutar, mas a conversa nem de longe foi conclusiva.

Os generais reconhecem os excessos de Bolsonaro, mas da mesma forma enumeram episódios em que a seu ver, os ministros do STF teriam extrapolado.

O episódio mais recente que irritou os generais foi a declaração do ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, de que a nomeação de militares para vários cargos era a “chavização” do governo. “Ele praticamente nos chamou de bandidos”, indignou-se um general da ativa.

Outro gesto considerado desrespeitoso é atribuído ao decano do STF, Celso de Mello. ele incluiu no mandado para ouvir Ramos e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, a advertência de que se não comparecessem na data agendada para a oitiva, estariam sujeitos “como qualquer cidadão à condução coercitiva ou debaixo de vara”. Eles seriam ouvidos sobre a acusação de Moro da suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal.

“Bolsonaro tem excessos, mas o Supremo está fora da casinha, o tribunal está politizado há muito mais tempo”, ressaltou um general.
A cúpula do Exército avalizou a declaração de Ramos à revista “Veja” de que os militares não cogitam nenhum golpe, mas a oposição não pode esticar a corda. O entendimento na cúpula da caserna é de que as instituições devem ser preservadas: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

Investigações e processos que mirem o presidente e algum de seus familiares devem seguir o curso normal, sem açodamentos nem ardis. A reiteração do que a cúpula classifica como excessos será compreendida como cutucar a onça com vara curta. E a onça está dormindo com um olho aberto.


Eliane Cantanhêde: Medo e barbeiragem

De erro em erro, Bolsonaros embolam Queiroz, Adriano, Wassef e demonstram medo

Nesse oceano de pessoas e fatos inacreditáveis, destacam-se as barbeiragens da família Bolsonaro ao tratar do amigão Fabrício Queiroz e de todas as questões nebulosas, e sob investigação do Ministério Público, que envolvem o agora senador Flávio Bolsonaro e resvalam perigosamente para o próprio presidente Jair Bolsonaro.

Tudo começa com a rachadinha operada por Queiroz no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, chega a funcionários fantasmas ali e também no gabinete de Jair na Câmara em Brasília, evolui para suspeita de lavagem de dinheiro e traz à tona as ligações de Jair, Flávio e Queiroz com um líder da milícia fluminense, o capitão Adriano, morto pela polícia. Engrossa esse novelo Frederick Wassef, falastrão, exibicionista e longe de ser um criminalista com dimensão para representar um senador, quanto mais o presidente.

Não bastasse a barbeiragem de abrir as portas dos palácios da Alvorada e do Planalto a Wassef, que tal permitir (ou pedir?) que ele escondesse Queiroz na sua casa de Atibaia? Não foi Queiroz que se meteu lá. Logo, meteram o Queiroz justamente na casa do advogado do presidente da República e do seu filho senador. Equivale a jogar Queiroz definitivamente no colo de Bolsonaro e Flávio. Coisa de gênio.

A barbeiragem seguinte vem com as reações de ambos. Numa live para tentar dizer que não tem nada com Queiroz, Jair põe-se a defendê-lo. A prisão foi “espetaculosa”, o amigo não estava foragido e não havia mandado de prisão contra ele, mas “pareciam estar prendendo o maior bandido do mundo”. Bolsonaro está solidário com o amigo que quebrava os maiores galhos do filho? Ou não pode atirá-lo às feras porque Queiroz tem muito revelar?

Segundo depoimentos, Queiroz chegou chorando e muito abalado à prisão no Rio, o que é uma péssima notícia para Jair e Flávio Bolsonaro. Nada pior do que um potencial homem bomba imprevisível e desestruturado emocionalmente, inclusive porque sua mulher, Márcia, fugiu e pode entrar para a lista de procurados da Interpol. Aliás, ela própria tem muito o que contar, se contar.

Outra barbeiragem é o advogado de Queiroz. Nada contra ele, mas contra a simbologia. Paulo Emílio Catta Preta era advogado do miliciano Adriano. Aprofundar os elos entre Queiroz, Adriano, Flávio e Jair Bolsonaro? Depois de Flávio condecorar o líder da milícia, Jair elogiá-lo publicamente e a família empregar a mãe e a mulher dele em seus gabinetes?

A primeira família tem de se preocupar também com Wassef, que está em evidência – e adorando. Se usufruía da intimidade dos Bolsonaro a ponto de abrigar Queiroz em casa, ele sabe de muita coisa. E não tem cara de guardar segredos, nem de dar a vida por alguém. Daí porque enxotaram Wassef dos casos de Flávio, mas o senador fez rasgados elogios ao enxotado em redes sociais: “A lealdade e competência do advogado Frederick Wassef são ímpares e insubstituíveis”. A cobrança de “lealdade” e o adjetivo “insubstituível” para quem está sendo substituído têm um sinônimo: medo.

E aí vem a última barbeiragem - até agora. O substituto do insubstituível Wassef é respeitável, mas foi advogado de Sérgio Cabral e de militares acusados de “excessos” na ditadura. Cabral é um dos maiores símbolos de corrupção. E a sensação de que generais sugeriram advogado para o caso Flávio-Queiroz vai na contramão do desejável: que eles fiquem (ficassem) a léguas dessa lambança toda.

É hora de todos desconfiarem de todos e de todos quererem se livrar de todos – presidente, Flávio, militares, Queiroz, Márcia, Wassef, advogados, a mãe e a mulher de Adriano -, mas quanto mais barbeiragens vão fazendo, mais eles se embolam perigosamente. O clima é de medo. E isso tudo ainda vai muito longe.


Hélio Schwartsman: 50 mil mortos

Demos enorme realce a números que sabemos estarem errados

Todos os jornais deram com destaque que o Brasil ultrapassou a funesta marca de 50 mil mortos e 1 milhão de infectados.

Entendo perfeitamente a necessidade de transmitir para o público a dimensão da tragédia, especialmente quando as autoridades federais se empenham em diminuí-la, mas a iniciativa esconde uma contradição, que, penso, vale a pena explorar nesta coluna.

O problema básico é que demos enorme realce a números que sabemos estar errados, o que vai contra o ideal de precisão perseguido pela imprensa. Com efeito, dia sim, dia também, jornais publicam reportagens sobre o fenômeno subnotificação, que afeta tanto o total de infectados como o de óbitos.

No que diz respeito ao número de pessoas que já entraram em contato com o vírus, uma das melhores formas de estimá-lo são os inquéritos sorológicos, em que se testam os anticorpos de amostras representativas da população.

O estudo Epicovid-19 pretende fazer isso em nível nacional. Os resultados de sua segunda fase, com campo entre os dias 4 e 7 de junho, davam que 2,6% da população pesquisada em 83 municípios já haviam sido infectados. Extrapolando isso para o país, no início do mês corrente, o Brasil já tinha mais de 5,4 milhões de contaminados. Para as mortes, um bom jeito de calcular a subnotificação é a partir do excesso de óbitos verificados em certas categorias em relação a uma média de anos anteriores.

Marcelo Soares, num levantamento para O Globo, acaba de mostrar que podemos atribuir à Covid-19 mais 21 mil dos óbitos por SRAG (síndrome respiratória aguda grave) que foram registrados sem identificação do agente etiológico. E as mortes por SRAG são só parte da história.

Quadros respiratórios são a principal apresentação grave da Covid-19, mas não a única. Uma fatia dos óbitos por vasculopatias, que incluem infartos, AVCs, TEPs e insuficiências renais, também pode ser creditada ao vírus. A moral da história é que, a crer na própria imprensa, tanto a baliza de 50 mil mortos como a de 1 milhão de infectados foram atingidas um bom tempo atrás, ainda que não saibamos precisar quando. Por que, então, tanto destaque agora?

Minha hipótese é que fomos vítimas de um duplo viés humano. Nossa espécie tem fascinação tanto por contagens como por números redondos. O sinal mais eloquente de que uma criança se assenhorou da lógica que preside o sistema numérico surge quando ela se propõe a contar até cifras cada vez maiores: cem, mil… Não perdemos esse hábito na maturidade.

Sempre que um evento importante como uma Olimpíada está para ocorrer, uma das primeiras providências das autoridades é instalar em praça pública uma espécie de relógio que faz a contagem regressiva de quantos dias faltam para o início dos jogos. Nosso encanto com números redondos é ainda mais forte.

Apesar de todas as passagens de ano serem iguais e não significarem objetivamente nada, costumamos celebrar as mudanças de século com muito mais festividades do que as de anos regulares. E, como também somos uma espécie que adora batalhas em torno de símbolos, conseguimos transformar irrelevâncias em disputas.

Leitores com mais de 35 anos se lembrarão da celeuma em torno da comemoração do milênio, se deveria ser em 2000, como queriam os redondistas, ou em 2001, como cobravam os puristas. Essa veia polêmica nem sempre é divertida. Ela está na base da polarização que tanto nos atrapalha agora, quando precisaríamos dar uma resposta coordenada e firme à pandemia.


Cristina Serra: Uma retumbante banana ao STF e ao Brasil

Esse foi o último ato de Abraham Weintraub ao escafeder-se na calada da noite

Em um ano e quatro meses na cadeira de ministro da Educação, o que fez Abraham Weintraub? Boneco de ventríloquo de um astrólogo de araque, dedicou-se a atacar os pilares da universidade genuinamente democrática: a inclusão, a diversidade e a autonomia de gestão. Cortou verbas, programas, bolsas de pesquisa. Tentou nomear interventores, iniciativa felizmente anulada.

Antes de escafeder-se na calada da noite, revogou portaria que reservava cotas para negros, índios e portadores de deficiência em cursos de pós-graduação. E deixou no Congresso o mal formulado projeto de lei “Future-se”, que muda a forma de financiamento do ensino superior. Por vício de origem, tal “legado” merece apenas um destino: a lata do lixo.

Weintraub semeou desvarios ideológicos e distorções históricas, como a infame referência à “noite dos cristais”, na Alemanha nazista. De sua boca suja porejaram ofensas, conforme registrado no vídeo da indecorosa reunião do dia 22 de abril: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. Como é próprio dos covardes, fugiu para não ter que responder a dois inquéritos na corte.

Weintraub e educação não combinam na mesma frase. Que isso tenha acontecido, nesse desvão da história em que estamos atolados, é uma desonra à memória de gente como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire, pensadores da educação como forma de emancipação civilizatória.

Em janeiro de 1989, o Brasil parou para assistir ao último capítulo da novela Vale Tudo. Na última cena, um executivo mau caráter fugia do Brasil num jatinho, dando uma banana para o país. A cena me ocorreu quando soube da fuga de Abraham Weintraub para Miami, usando indevidamente a condição de ainda ministro para burlar a proibição da entrada de brasileiros nos EUA. Ao que tudo indica, Weintraub cometeu mais um crime, segundo ele mesmo, com a ajuda de “dezenas” de pessoas. Seus cúmplices. Em seu último ato, Abraham Weintraub deu uma retumbante banana ao STF e ao Brasil.

*Cristina Serra é jornalista.


Pablo Ortellado: Confusão legislativa sobre mídias sociais

Falta de coordenação entre Câmara e Senado prejudica tramitação e debate de PL que quer regulá-las

Deve ser votada no Senado, ainda nesta semana, uma nova versão do projeto de lei que regulamenta as mídias sociais e os aplicativos de mensagens privadas (um pouco equivocadamente apelidado de 'PL das Fake News').

No momento em que escrevo (tarde da segunda-feira), não conhecemos ainda o texto definitivo que vai para votação na quinta-feira e que já passou por mais de cinco versões diferentes entre as formais e as informais.

A tramitação acelerada do projeto se deve à urgência de enfrentar as campanhas de desinformação nas mídias sociais e no WhatsApp, sejam aquelas relativas a temas políticos, sejam as relativas à crise da Covid-19.

O texto inicial do projeto foi apresentado em conjunto por Tábata Amaral e Felipe Rigoni na Câmara e por Alessandro Vieira no Senado. Na Câmara, o texto foi colocado em consulta pública, passou por análise minuciosa e recebeu propostas da universidade, da sociedade civil e do meio empresarial.

Enquanto o texto recebia colaborações na Câmara, começou a tramitar em paralelo no Senado, com o senador Alessandro Vieira incorporando em múltiplas versões do texto críticas e sugestões. No debate, formou-se um consenso parcial de que o texto não deveria definir desinformação e não deveria regular as agências de verificação e que deveria adotar medidas amplas para promover a transparência das plataformas com respeito a moderação e impulsionamento de conteúdos. Menos consensuais foram as medidas de ampliação dos tipos penais e a introdução da rastreabilidade de conteúdos virais em aplicativos de mensagens.

Quando o texto foi encaminhado para o relator, senador Angelo Coronel, ele foi completamente transformado no começo de junho e apresentado em uma minuta informal com novas propostas que despertaram novas controvérsias (como a exigência de apresentação de documentos para a criação de contas nas mídias sociais e a entrega de dados cadastrais à autoridade policial). O relator acolheu críticas e considerações e apresentou uma nova minuta informal no último fim de semana que apenas começa a ser analisada e discutida.

O texto definitivo, porém, ainda está para ser apresentado e, ou será votado sem tempo suficiente para exame, ou terá sua tramitação mais uma vez suspensa, inclusive com possibilidade de outra versão passar a tramitar na Câmara.

Câmera e Senado precisam urgentemente chegar a um acordo sobre qual vai ser o texto base, dar tempo para que seja devidamente analisado e aperfeiçoado e apresentar uma perspectiva de tramitação que, ainda que acelerada, aconteça sem mudanças bruscas e sem atropelo.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Míriam Leitão: Direito em tempo da pandemia

O ministro Luiz Fux negou que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha tirado do governo federal a responsabilidade pelas políticas de combate à pandemia. “Não o eximimos de responsabilidade, pelo contrário, reforçamos a competência dos executivos”, disse. “O Supremo não exonerou o executivo federal de suas incumbências.” Isso derruba a tese do presidente Jair Bolsonaro de que o STF entregou o assunto a estados e municípios. Ele tem dito isso tantas vezes que não pode ser apenas confusão de interpretação, mas sim estratégia para fixar uma versão.

Num evento feito por este jornal, o ministro Fux explicou que, quando a Constituição diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, ela o faz de forma genérica. O que o STF fez foi fortalecer “os executivos” num estado federativo como o brasileiro, ou seja, os três níveis administrativos. O tribunal reconheceu o direito de os estados e os municípios estabelecerem as medidas protetivas, até porque ouviu os especialistas que dizem que distanciamento social e isolamento, em alguns casos, são necessários, mas isso não tirou poderes nem deveres do governo federal:

— A União continuará com as suas obrigações, mas o STF tem o dever nesses momentos de pandemia de evitar que aquelas pessoas que são anticiência possam violar um dos direitos fundamentais que é o da saúde. O que não é razoável, o STF intervém.

O debate de ontem reuniu também, além do ministro Fux, os desembargadores Cláudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e José da Fonseca Martins, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, sob o instigante tema do papel do judiciário na retomada depois da pandemia. Cláudio Tavares lembrou que o Judiciário fez uma transformação digital rápida e a Justiça não parou. Está agora diante de inúmeras questões que sabem que desembarcarão nos tribunais:

— Com a nova realidade, teremos também uma nova demanda. Em relação à recuperação judicial das empresas, de despejo por falta de pagamento, de pedidos de revisão dos valores de aluguéis, ações sobre mensalidades escolares e de valor a pagar em planos de saúde.

Fux sugere que o melhor a fazer é estimular a saída extrajudicial. O ministro acha que este é o momento em que tem que haver o diálogo entre o Direito e a Economia. Defendeu a análise econômica do Direito que parte do pressuposto de que se houve uma mudança drástica nos termos dos contratos que ele seja mudado.

— O melhor que podemos oferecer é segurança jurídica. Há uma enorme previsão de judicialização. Nós recebemos, no STF, 1800 ações constitucionais para debater a pandemia. Então é preciso que a jurisprudência ocupe esse espaço. Quando houver surpresa jurídica, onerosidade excessiva, os juízes podem se sentar com as partes para mudar a orientação do contrato. Esse é o tempo do online dispute resolution. O Brasil consagra uma solução teórica belíssima, a teoria da imprevisão. Os pactos foram feitos para serem cumpridos, desde que as coisas se mantenham tal como eram.

O juiz José Martins lembrou que no TRT transitam 25 mil pessoas, por isso a reabertura será muito cuidadosa e com protocolos que foram estabelecidos depois de ouvir a Fiocruz:

— Ainda estamos em plena pandemia, há uma quantidade absurda de contaminações e com subnotificação. Mais de 50 mil óbitos, isso tudo com uma crise de natureza política.

Ao mesmo tempo, haverá um volume impressionante de trabalho novo, após a pandemia, porque as MPs que reduziram salário, jornada ou suspenderam contrato têm prazo para terminar. Martins acha também que no pós-pandemia permanecerá muito do que houve de migração forte para o home office e a Justiça do Trabalho terá que lidar com isso.

Perguntei ao ministro Fux sobre a forma de superar a crise institucional. Ele acha que ela é artificial:

— A Constituição foi sábia em estabelecer a ordem dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário. O Poder Judiciário é o único com aptidão para rever os atos dos demais poderes. O fato de o Poder Judiciário submeter ao seu escrutínio atos de outros poderes não é crise institucional. Os juízes têm que ser independentes e podar atos inconstitucionais que venham de qualquer poder. Fazer disso uma crise institucional é criar algo artificial a pretexto de outros objetivos, que não a obediência às leis.


Bernardo Mello Franco: 'Anjo' ameaça arrastar Bolsonaro para o purgatório

Até outro dia, a família Bolsonaro se preocupava em esconder Fabrício Queiroz. Agora também precisa sumir com Frederick Wassef, o advogado que albergava o ex-PM em Atibaia.

Wassef é um personagem peculiar da corte bolsonarista. Falastrão, gostava de frequentar palácios e ostentar influência no governo. Virou porta-voz do presidente para rolos diversos, da facada na campanha à rachadinha na Alerj. De tanto vender proteção ao clã, ganhou o apelido de Anjo. Agora seus métodos pouco ortodoxos podem arrastar o chefe para o purgatório.

Na quinta passada, o advogado desfilava entre autoridades no salão nobre do Planalto. Na manhã seguinte, acordou com a notícia da captura de Queiroz. Wassef falou muito, mas não conseguiu explicar o inexplicável. De escritório de advocacia, sua chácara só tinha a placa na porta. Parecia um cativeiro, definiu um investigador.

As entrevistas do doutor só pioraram a situação dos Bolsonaro. Sem corar, Wassef disse que o presidente “jamais soube” do esconderijo de Queiroz. Caiu em contradição com o próprio, que deu a desculpa esfarrapada do tratamento em São Paulo.

Num momento de humor involuntário, o causídico tentou se descolar até do nome da operação policial. “Nunca na vida eu tive imagem ou apelido de Anjo”, disse à TV Globo. Da imagem, ninguém havia suspeitado.

De tudo o que Wassef falou, só uma declaração importa de fato. “Se bater no Fred, atinge o presidente. Eu e o presidente viramos uma pessoa só”, afirmou. A família acusou o golpe. “A lealdade e a competência do advogado Frederick Wassef são ímpares e insubstituíveis”, tuitou o senador Flávio Bolsonaro. Só faltou implorar publicamente pelo silêncio do doutor.

A OAB deve instaurar um processo disciplinar contra Wassef. Será o menor de seus problemas. No domingo, o UOL revelou que uma empresa de Cristina Boner, sócia e ex-mulher do advogado, recebeu R$ 41,6 milhões do governo Bolsonaro. A senhora já foi condenada por improbidade administrativa no escândalo do mensalão do DEM. Agora ela e o Anjo representam mais uma ameaça ao mandato do capitão.