Day: junho 17, 2020
RPD || Benito Salomão: Onde estará o Brasil no Novo Normal?
A pandemia causada pelo Covid-19 desafia a busca de soluções para evitar a recessão na maior parte das economias que integram o Fundo Monetário Internacional
A pandemia do corona vírus foi implacável ao inverter as prioridades das políticas macroeconômicas pelo mundo. Durante o Spring Summer do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi previsto um impacto econômico de longe superior ao da crise global de 2008. Das 190 economias pertencentes ao Fundo, previu-se recessão em 179 delas em 2020. A recessão é um fato com o qual o mundo terá que lidar, e os instrumentos de ação dos governos ainda estão sendo pensados.
Uma tendência consolidada na compreensão moderna da economia, enquanto ciência, é que problemas econômicos dependem de soluções que muitas vezes não são econômicas. A crise do Covid escancarou este desafio, de forma que a simples compreensão do funcionamento das políticas macroeconômicas será insuficiente para conduzir resposta robusta à crise. Não há solução econômica sem prévia solução sanitária. Do ponto de vista sanitário, governos ao redor do mundo atuaram em três frentes: i) implementação de medidas de isolamento social; ii) testagem em massa de suas populações; e iii) investimentos em pesquisas na busca de vacinas e remédios. Enquanto a vacina não é descoberta e disponibilizada, o sucesso das medidas sanitárias diante do vírus dependerá do sucesso de cada governo em testar sua população e manter o isolamento.
O Brasil fracassou ao lidar com a pandemia quando o Presidente se aliou ao vírus e sabotou as medidas de isolamento social, o que fatalmente levará ao fracasso da recuperação econômica. Não existe retomada sem a construção de um estado de confiança prévio, capaz de induzir agentes econômicos a consumir e investir. Sob este aspecto, a incapacidade do governo em lidar com as medidas de isolamento social criou ambiente de desconfiança, alimentado interna e externamente, que se estende também à sua capacidade de lidar com as pautas necessárias para reaquecer a economia.
Duas preocupações preponderam. A primeira diz respeito à visão equivocada do Ministério da Economia acerca da natureza da crise e dos instrumentos necessários para enfrentá-la. A mescla da visão liberal antiga com um fiscalismo exagerado pode ser perigosa neste momento; será preciso certo nível de pragmatismo para passar por este momento com danos minorados. Não é possível delegar a recuperação à simples trajetória do ciclo econômico. A dívida pública vai crescer, estimativas apontam para uma necessidade de financiamento do setor público de R$ 800 bilhões, em 2020. Ora, se este passivo é inevitável, é importante que cada real empenhado neste contexto cumpra seu papel de salvar vidas, empregos e empresas. Infelizmente, não é o que acontece. Pelo que se sabe até agora, os auxílios prometidos chegam com atraso e em magnitude aquém do necessário. Corre-se o risco de o Brasil chegar a 2021 com o passivo fiscal do Covid, em contraste com as mortes e a desestruturação dos setores produtivos, absolutamente evitáveis.
A segunda preocupação com a recuperação econômica errante é a letargia das ações. O governo não só se empenha em insistir em uma agenda que não cabe no contexto, mas também demora em implementá-la. Graças a isto, o mundo começa a se preparar para o relaxamento das medidas de isolamento social e discutir as medidas de estímulo econômico que envolvem equilíbrio macroeconômico, desenvolvimento social e humano, redução das desigualdades e deslocamento da fronteira tecnológica. Enquanto isto, o Brasil segue preso no debate acerca dos retrocessos democráticos recentes e na equalização da questão fiscal não solucionada no quadriênio 2015/19. Causa tristeza a percepção que estamos saindo de uma década perdida e entrando em outra, de forma que o país, que era a 7ª economia mundial, em 2010, ocupa hoje a 9ª posição e talvez não esteja entre as dez nos próximos quatro ou cinco anos.
É preciso sair desta armadilha, e o Brasil superar as polêmicas de natureza política, por cujo conduto sairíamos também das crises sanitária e econômica. A economia apenas recomenda, mas a política executa. Precisamos resolver o curto prazo e, ao mesmo tempo, redescobrir estratégia de longo prazo que permita ao país crescer e distribuir, mitigar pobreza, gerar oportunidades, conviver civilizadamente com o meio ambiente e desenvolver novas tecnologias, competências, oportunidades e elevar a produtividade. Há muito a ser feito, não podemos perder as esperanças.
*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia e Visiting Researcher at University of British Columbia.
RPD || Alberto Aggio: Em meio à pandemia, um espectro nos assola
A pandemia da Covid-19 está obrigando a repensarmos a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”, Avalia Alberto Aggio. O avanço do coronavírus mostrou onde a política falhou e onde acertou
Ao contrário da filosofia por vezes alucinante de Slavoj Zizek, que passou a profetizar o “novo comunismo” como resultado da superação da pandemia e da tresloucada contestação de Ernesto Araujo, que o tomou como dado de realidade a atestar a existência da ameaça comunista, não há nenhum espectro desse tipo a assombrar o mundo[1]. O que há é a realidade factual da pandemia a ditar: “decifra-me ou te devoro”.
O enfrentamento do coronavírus implicou ouvir especialistas e procurar seguir suas orientações. Contra algo desconhecido, os cientistas de todo o mundo trabalham para produzir medicamentos mais eficazes e uma vacina duradoura. Mobilizaram-se recursos, organização e informações claras à população. Mas o alarme foi dado: somos nós, os humanos, que precisamos decifrar o mundo que inventamos. Essa peste não vem dos céus, vem da natureza, e fomos nós que a disseminamos. Não haverá o nascimento da “boa sociedade” a partir de ruínas. Não é razoável supor isso. A pandemia nos obriga a repensar a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”. Força-nos a repensar a necessidade de governança em plano mundial – Daniel Innerarity construiu uma bela imagem: Pandemocracia, seu mais recente livro[2].
O avanço da pandemia mostrou onde a política falhou e onde acertou. Lideranças previdentes agiram rápido e obtiveram êxitos. Lideranças obtusas, como Jair Bolsonaro, agiram sob interesses pessoal e eleitoral, e as consequências estão sendo desastrosas.
Fernando Gabeira observou que, diferente de outros países, nosso problema é termos “o vírus e Bolsonaro”. O presidente minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, ataca a mídia e insanamente perambula, sem máscara, por Brasília e cidades próximas, promovendo aglomerações e apoiando manifestações contra a democracia.
Pensou-se que o Brasil teria um gap de vantagem frente aos países onde o vírus emergiu mais cedo. Mas essa vantagem foi perdida a partir do momento em que Bolsonaro transformou a saúde num território de guerra. Isso inviabilizou que se estabelecesse uma estratégia séria e planejada de “isolamento social”.
Enquanto a pandemia avançou, Bolsonaro martelou pela “volta ao trabalho” e também propôs, na reunião ministerial de 22 de abril, um decreto para armar a população contra as restrições adotadas por governadores e prefeitos. Mais do que politizar o combate à pandemia, Bolsonaro avançou o sinal, sugerindo uma “rebelião armada” de “resultados imprevisíveis” e seguramente deletérios para a Nação.
O resultado da política de Bolsonaro em relação à pandemia não tardou e instalou a cizânia entre autoridades, acabando com a sinergia entre os entes federativos. A conexão informativa do Ministério da Saúde com a sociedade evaporou-se. A consequência veio no aumento do número de mortos e de contaminados, que o governo só não seguiu a estratégia de sonegar informações porque a reação foi generalizada e a ameaça de impeachment seria real.
Sem Estado nem governo, indefesos, os brasileiros se socorrem nas informações da mídia e nos profissionais da saúde, vistos como verdadeiros heróis. Exauridas, as autoridades subnacionais, que continuam resistindo, empreendem, sob pressão de diversos setores, uma temerária flexibilização da quarentena em situação absolutamente desfavorável.
Entrar ou sair do confinamento foi, em vários países, determinação impingida pelo vírus e não uma opção irrefletida. O que esteve em jogo foi a vida das pessoas e o bem comum. Foram escolhas políticas a partir de orientações científicas, mas sem obediência cega, ressaltando a importância tanto da complexidade quanto da responsabilidade coletiva que tem a política em âmbito local, nacional e mundial.
Em Zizek e Araujo só há fantasmagorias advindas de uma visão mitológica do comunismo, no primeiro, e de um anticomunismo em roupagem antiglobalista, no segundo. O espectro que ameaça o país é outro. Isolá-lo e superá-lo demandará que nossa “intransigência democrática” caminhe ao lado do realismo e conte com muita articulação política. Mesmo sob ameaças reiteradas do bolsonarismo – com sugestões golpistas envolvendo as FFAA –, observam-se crescentes sinais de que os brasileiros começam a se mover para enfrentar essa insensatez que, entre nós, acompanha o vírus, na sua senda de exaurimento da democracia e da Nação.
*Alberto Aggio é historiador e professor-titular da Unesp
[1] Cf. Žižek, Slavoj. Virus. Milão, Ponte Alle Grazie, 2020; o texto de Ernesto Araujo está em https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus
[2] Innerarity, Daniel. Pandemocracia – una filosofia de la crisis del coronavirus. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2020.
Juan Arias: Primeiro alerta aos militares. Acabarão como o Sansão bíblico?
A ideia de Bolsonaro se rodear do Exército pode ser um bumerangue. Nada poderia ser mais perigoso para o Brasil
O Brasil vive uma situação política peculiar. Um presidente, o ultradireitista capitão reformado Jair Bolsonaro, que se blindou com militares em seu Governo, incluindo vários generais como ministros. A ideia de se rodear do Exército pode ser, porém, um bumerangue contra ele e contra os militares, que podem acabar como na história bíblica de Sansão.
O primeiro alarme acaba de soar. Enquanto Bolsonaro vê sua taxa de apoio popular reduzida a 30% antes dos dois anos de mandato, os militares, que eram junto com a Igreja uma das instituições com maior índice de aprovação na sociedade, começam a descer a ladeira. Segundo a recente pesquisa do Instituto da Democracia, pela primeira vez o mítico apoio popular ao Exército começa a desmoronar, perdendo 7 pontos, enquanto sua permanência no Governo não contribui para a democracia na opinião de 58%.
Começa-se a notar na opinião pública a inquietação de que essa presença maciça dos militares no Governo de Bolsonaro, com suas manias golpistas, possa resultar em um desastre para todos. O apoio à ideia de uma ruptura institucional para permitir um golpe militar em nome do combate à criminalidade passou de 55,3% em 2018 para escassos 25% hoje.
Cabe perguntar aos militares o que os leva a continuar apoiando um Governo que está murchando aos olhos da opinião pública, cada vez mais encurralado internacionalmente. O índice de aprovação a Bolsonaro no Brasil se deteriorou os últimos meses com o desprezo do presidente pela pandemia, a tentativa de ocultar as mortes e sua falta de empatia com as vítimas, que estão prestes a serem as mais numerosas do mundo.
Há quem se pergunte o que esperam os militares para abandonar essa situação de apoio a um Governo contra o qual estão crescendo as manifestações populares, as quais poderiam alcançar a eles mesmos. Como escreveu dias atrás Carla Jiménez, diretora de redação do EL PAÍS Brasil, essa ambiguidade dos militares pode fazê-los serem vistos como “cúmplices” das ações de um presidente que já é tido como um caso psiquiátrico. Será só o acúmulo de salários, como ironizou o genial colunista Elio Gaspari? Ou será o prazer da visibilidade midiática por seus cargos no Governo, que os faz aparecerem, dia sim, dia não, pontificando sobre a política, da qual deveriam ficar de fora?
De qualquer modo, a responsabilidade dos militares perante a sociedade que começa a abandoná-los é grave, já que nada poderia ser mais perigoso para o Brasil, para sua imagem dentro e fora do país, que acabar perdendo sua cota cada vez mais minguada de popularidade.
Seria triste que os militares brasileiros que deram apoio à democracia, o que acabou por redimi-los da noite escura da ditadura, possam perder hoje sua credibilidade por um prato de lentilhas. Tomara não repitam a simbologia da passagem bíblica de Sansão, para citar um exemplo tirado do Livro Sagrado que seu atual chefe, o presidente Bolsonaro, exibe junto à Constituição.
Sansão, segundo aparece no Livro dos Juízes (capítulos 13 a 16) da Bíblia hebraica, foi o último juiz de Israel antes da monarquia. Tinha sido agraciado por Deus com uma força especial. Era capaz de despedaçar um leão com suas mãos. Seus inimigos eram os filisteus. Contra eles Javé tinha dado um poder especial que residia em sua vasta cabeleira de nazareno.Sansão pediu permissão para se apoiar em uma coluna do edifício e com um simples movimento fez desabar o templo, onde morreram ele e os filisteus
Sansão, entretanto, caiu na fraqueza de se entregar às delícias de uma prostituta que lhe arrancou o segredo da sua força. Assim, enquanto dormia em seus braços, fez que lhe cortassem sua cabeleira, e começou seu declínio. Os inimigos lhe arrancaram os olhos, obrigaram-no a labutar num moinho de grãos. Só que ali o seu cabelo cresceu novamente, e ele recuperou a força. Os filisteus não sabiam, e um dia o convidaram a ir ao templo. Estava, diz a Bíblia, abarrotada com 3.000 filisteus que ocupavam até o teto do templo. Sansão pediu permissão para se apoiar em uma coluna do edifício e com um simples movimento fez desabar o templo, onde morreram ele e os filisteus.
As histórias bíblicas têm muitas leituras. A de Sansão já foi tema de todas as artes, da literatura à pintura, e de todas as interpretações religiosas e laicas. E hoje se tornou atual na complexa história de Bolsonaro e dos militares. Não sabemos de onde vem a força que Bolsonaro revelou nas últimas eleições, quando obteve 57 milhões de votos sem nunca ter sido nada antes, nem como deputado em seus 30 obscuros anos de Congresso e menos como militar, já que foi forçado a abandonar sua carreira por causa dos seus instintos terroristas.
Talvez essa força do “mito”, que como Sansão hoje ameaça derrubar as colunas da democracia, tenha sido conferida pelos milagrosos robôs e fake news usados em sua campanha, ou como desforra pela humilhação de ter ficado em simples capitão reformado, para se tornar comandante-chefe de todas as Forças Armadas do país. É algo de que hoje ele se gaba. Não se deram conta os militares de que o acolheram e estão se tornando seus cúmplices no governo?
Cuidado, porque o novo Sansão pode acabar em sua loucura preferindo que todos morram com ele, derrubando as colunas do templo da Constituição. Perderíamos todos: ele, os militares, a sociedade e o mundo, porque o Brasil acabaria reduzido a mais uma república de bananas após ter sido o coração econômico do continente e a inveja do mundo quando o país desfrutava tranquilo de sua reconquistada democracia e era visto como o país do futuro.
Como acaba de afirmar Fernando Gabeira, que conhece como poucos, palmo a palmo, os territórios mais recônditos do Brasil e não pode ser acusado de conivência com o poder, “nem todos sabem como este país é grande, diverso, solidário e magnífico em sua beleza”. E alerta: “Impedir que ele se dissolva é a grande tarefa de construir uma civilização tropical onde só querem pastos, fuzis, carros e eletrodomésticos”.
Cuidado, senhores militares! O Brasil é maior, mais importante e interessante no mapa mundial que as mesquinhas manobras de poder. E vocês são os garantes de defender este grande patrimônio para que não seja jogado na roleta da morte.
El País: 'A popularidade é irrelevante, com o tempo a verdade prevalece', diz Sérgio Moro
Ex-ministro, que teve imagem desgastada pela Vaza Jato e por sair do Governo, encara resistência em manifestos pró-democracia. Para ele, não há risco de ruptura no Brasil
Carla Jimenéz, Naiara Galarrga Cortázar e Afonso Benites, El País
Quando o ex-juiz Sergio Moro (Maringá, 1972) aceitou seguir o ultradireitista Jair Bolsonaro no Governo fez uma aposta arriscada. Entregava o seu capital político como símbolo anticorrupção a um deputado veterano e incendiário, um nostálgico da ditadura. A lua de mel acabou no fim de abril, como um divórcio ruim, não consensual e uma acusação bomba contra o mandatário: ele queria trocar o diretor-geral da Polícia Federal e interferir na corporação por interesses pessoais. O Supremo Tribunal Federal abriu uma investigação contra Bolsonaro e contra o próprio Moro.
Em uma entrevista por videoconferência desde Curitiba, onde está confinado com a família, por conta da pandemia de coronavírus, Moro critica os arroubos autoritários de Bolsonaro mas diz que não vê riscos de uma ruptura democrática. Perguntado se o vídeo podia ser exibido, negou o pedido, embora tenha feito Lives para outros veículos, e para o movimento Vem pra Rua.
Ele, que já teve bonecos infláveis gigantes com seu rosto exibidos em todo o país, diz que não se importa com sua queda de popularidade. Saiu de uma imagem positiva entre 60% dos entrevistados em maio de 2019 para 42% no mês passado, segundo o Atlas Político. A série de reportagens da Vaza Jato, que revelou bastidores da Lava Jato, e sua saída do Governo, contribuíram para essa mudança de percepção. Moro não vê relação entre a sua atuação como juiz da Lava Jato e o Estado de Direito fragilizado atualmente, como apontam seus críticos. “Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito”, defende. Também revela que depois de quase 24 anos como servidor público, sendo 22 na magistratura federal, terá de se reinventar profissionalmente, provavelmente no setor privado. Já começou a assinar uma coluna na revista Crusoé, ferrenha defensora da Lava Jato.
Pergunta. O senhor saiu do governo 16 meses após assumir o ministério com ataques ao presidente. Ele o enganou ou o senhor cometeu um erro de avaliação?
Resposta. Quando entrei no Governo foi uma decisão difícil, largar a magistratura. O que disse publicamente é a pura verdade. As pessoas às vezes tendem a acreditar em conspirações, motivações ocultas. Minha intenção era ir ao Ministério da Justiça para consolidar os avanços [contra a corrupção] dos últimos anos, além de realizar um trabalho de combate ao crime organizado e à criminalidade violenta. Progressivamente, minha percepção foi que essa agenda, principalmente anticorrupção, não estava tendo a prioridade necessária e ao final, por conta dessa interferência na Polícia Federal… Sou um ex-juiz, temos uma formação, para nós, o rule of law, o estado de direito é fundamental. Para mim foi o momento em que entendi que já não fazia mais sentido minha permanência no Governo. Saí não porque queria prejudicar o Governo em meio à pandemia. Entendi que precisava, que tinha o dever de revelar os feitos que envolviam a minha saída, inclusive para proteger a Polícia Federal.
P. Sente-se decepcionado com o presidente com o compromisso dele de lutar contra a corrupção?
R. Eu permaneci fiel aos compromissos que me levaram ao Governo. Se ele permaneceu ou não é uma questão que tem de ser feita a ele.
P. O senhor se arrepende de ter assumido o Ministério da Justiça?
R. Não. Acho que fui fiel aos meus compromissos. Quando entrei a bolsa [de valores] subiu, as pessoas gostaram. Eu recebi muito apoio. Claro que tinham críticas também, mas em geral foi algo muito positivo. Tivemos queda expressiva em 2019 dos principais indicadores criminais, inclusive de assassinatos, que caíram 19%, algo que nesse percentual não tinha esse precedente histórico. Foi implementada uma série de políticas, mas infelizmente não foi possível ir adiante.
P. A questão dos homicídios dolosos depende dos governos estaduais. O enfrentamento é feito por eles diretamente, não pelo governo federal.
R. Ao contrário. O combate ao crime envolve muito a questão do simbolismo. Boa parte dos homicídios no Brasil, nas periferias, estão relacionados ao crime organizado. Não estou dizendo que não tem o mérito dos Estados e mesmo dos municípios. Tenho certeza se tivesse tido um movimento contrário, um incremento do número de assassinatos a responsabilidade iria se recair sobre o governo federal.
P. Na segunda-feira, ativista bolsonarista Sara Winter foi presa por atos antidemocráticos. Há uma escalada nos conflitos contra o Judiciário. Como os avalia?
R. No Brasil e em algumas partes do mundo vemos uma polarização excessiva, que dificulta o bom funcionamento da democracia, o diálogo, e isso gera falta de tolerância e impede que questões de construção de políticas públicas, por exemplo, sejam tratadas de uma maneira racional. Esses radicais, em particular, representam o extremo dessa polarização. Evidentemente há que preservar a liberdade de opinião. Agora essa liberdade de opinião não abrange a prática de crimes incluindo as ameaças explícitas contra instituições ou pessoas. Foi essa a situação que surgiu e infelizmente o Supremo teve de decretar a prisão pelos excessos cometidos.
P. O senhor se viu como alvo desses extremistas?
R. O que eu vi, principalmente depois da minha saída do Governo, são ataques dessa natureza nas redes sociais. Não sei até que ponto espontâneas ou não.
P. O senhor encarnou um desejo pela ética nas relações políticas. Havia quase uma unanimidade, era um apoio pouco visto para alguém da magistratura. Mas o senhor perdeu popul
aridade . Está sendo mal compreendido ou vê que alguns pontos de sua trajetória poderiam ter sido diferentes?
R. Minhas opções foram tomadas sob a perspectiva de fazer a coisa certa. Às vezes, fazer a coisa certa envolve consequências. Nunca foi um objetivo a questão da popularidade. Se houve alguma incompreensão dos motivos de minha saída, principalmente por uma parte dos apoiadores do presidente, eu lamento, mas isso não mudaria nada. A popularidade é irrelevante, não estou em concurso de popularidade. Existe também essa rede de desinformação que muitas vezes prejudica a percepção adequada dos fatos por parte das pessoas. Sinceramente não estou preocupado com essa questão. Com o tempo, a verdade acaba sempre prevalecendo.
P. Existem três manifestos em defesa da democracia. Dois deles colocam barreiras ao seu nome. Como se posiciona diante disso?
R. Parte um pouco da incompreensão do que foi a Lava Jato. Ela foi uma grande operação que revelou casos disseminados de subornos no âmbito do Governo federal durante a gestão dos presidentes eleitos pelo PT. Algumas pessoas têm essa visão de que houve um viés político, mas o fato é que se fizeram investigações e foram condenados agentes políticos da esquerda e da direita. Existe esse rancor que vem de longe. Estamos em um momento difícil com essa pandemia, as dificuldades econômicas, não penso que deveríamos estar discutindo defesa da democracia, embora se compreenda porque esteja se fazendo isso. A democracia se tem como pressuposto, é algo que não precisaríamos estar defendendo em um contexto normal.
P. Mas o senhor reconhece que é necessária essa defesa, não?
R. Sim, absolutamente. Considero necessário, mas é lamentável que tenhamos de estar discutindo isso.
P. Aceitaria estar com o ex-presidente Lula, com o PT, se eles quisessem em uma frente pela democracia?
R. Isso é uma questão desnecessária. Eu tenho definido o governo Bolsonaro como populista com arroubos autoritários. Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo evidentemente é indesejável.
P. O presidente Bolsonaro foi deputado por 28 anos. Em várias ocasiões demonstrou esse flerte com o autoritarismo. Achava que ia ser diferente?
R. A grande maioria não pensava que isso ocorreria. Minha entrada no Governo na época foi vista por muitos que seria um elemento de moderação. Também eu teria esse papel dentro do Governo. Como tenho esse histórico de juiz também me via ali como uma espécie de um garante, em certa medida, de que não haveria esses arroubos autoritários. O mais relevante é que há uma reação forte da sociedade e temos instituições que estão reagindo. Em que pese todos os alarmes, temos um Supremo que está atuando com independência. Temos um Congresso que está funcionando normalmente. A democracia brasileira é consolidada, essas turbulências vão passar.
P. Então, não vê risco de uma ruptura constitucional?
R. Não vejo esse risco, mas isso não justifica os arroubos autoritários. Passaríamos melhor sem eles.
P. No ano passado o jurista espanhol Baltasar Garzón expressou críticas sobre sua atuação na condução do processo do ex-presidente Lula e por ter aceito ir ao Governo Bolsonaro. O que diria a ele?
R. Não quero entrar em um debate com Baltasar Garzón. Acho que existe uma certa incompreensão. No caso do ex-presidente eu o condenei em um processo e a sentença foi confirmada em outras duas instâncias. Logo foi condenado em outro processo. Tem toda uma realidade de uma prática sistemática de suborno no Governo dele. Temos a corrupção envolvendo agentes do Partido dos Trabalhadores, antes revelada no julgamento da ação penal 470 (caso Mensalão). Nunca teve nada a ver questão ideológica ou pessoal. É um álibi que foi tentado se vender no exterior em relação ao ex-presidente que ele seria vítima de uma de perseguição política e aí tenta levar para esse lado pessoal. Simplesmente cumpri meu papel como juiz.
P. The Intercept e outros meios, incluindo o EL PAÍS, cobrimos a Vaza Jato em que apareceram algumas movimentações que podem ser levadas na ação de suspeição que o envolve.
R. Essa é outra ilusão. Nada do que foi decidido nos processos, nas provas, nada é afetado por essas situações específicas. Acho que esse episódio aconteceu no passado, tem os hackers que estão respondendo aos processos. Isso não invalida nada do que foi abordado pela operação Lava Jato.
P. Na Lava Jato o senhor tinha uma comunicação estreita com os procuradores. O senhor acha que cometeu alguma falha ali?
R. Temos um modelo brasileiro em que o juiz que atua mesmo na área de investigação quanto na fase de julgamento. Tem gente que critica isso, mas é o que está previsto na legislação. Numa investigação como a operação Lava Jato, falar com o Ministério Público, com os advogados, com a polícia é algo usual. Sem querer reconhecer a autenticidade daquilo [a Vaza Jato], não existe nada que aponte alguma fraude, alguma coisa imprópria ou indevida. Sinceramente, acho que esse assunto é história antiga.Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo autoritários evidentemente é indesejável
P. Mas a questão é um julgamento do ex-presidente. Há uma corrente na comunidade jurídica que diz que a Lava Jato fragilizou o que o senhor mesmo defende, o Estado de Direito. Essas críticas não lhe...
R. Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito. Tem muita manipulação de discurso. Alguns dizem no Brasil fala que a Lava Jato representou a criminalização da política. Não, o político que comete um crime de corrupção o regular é essa conduta ser punida pelas Cortes de Justiça. Isso não tem nada de criminalização da política.
P. Como ex-juiz, como analisa os indícios, as provas, contra os filhos do presidente? Acredita que há material para levá-los a julgamento?
R. Esse tipo de avaliação entendo que não cabe a mim.
P. O senhor tem mais provas dessa suposta interferência do presidente na PF?
R. Essas questões estão sendo discutidas lá no Supremo.
P. Teme que essa investigação volte contra o senhor, de que se torne o alvo?
R. Não. Eu fiz o que era certo e o que eu disse era absolutamente verdade.
P. O senhor é visto como um nome para a eleição 2022. Onde se encaixa no espectro político?
R. Temos uma pandemia, um problema econômico muito sério com pessoas perdendo o emprego, pessoas sem renda, empresas fechando e acho que é absolutamente inconveniente qualquer debate envolvendo essas questões políticas. Existe uma agenda urgente no país a ser enfrentada e que não permite esse tipo de debate fora de hora. Não tem nenhuma discussão pertinente de esquerda ou direita ou sobre o que vai acontecer em 2022, 2026, 2030 ou eleições futuras. É muito cedo para esse tipo de conversa. Tudo seria especulativo.
P. Quais são os seus planos? Está procurando um trabalho?
R. Como consequência da saída do Governo, tem um período de quarentena jurídica para evitar conflitos de interesses. Nesses seis meses eu preciso me reinventar, provavelmente no âmbito do setor privado. Mas essas questões ainda estão em andamento. Agora, o desejo, de fato, é permanecer contribuindo para o debate público.
P. A ideia é continuar no Brasil?
R. Puxa vida! As coisas ainda estão muito prematuras. Talvez sair. Talvez ficar. Essa pandemia também complica todos os cenários. É uma situação um pouco difícil no momento.
P. Recentemente, o senhor tuitou que o governo Bolsonaro estava criando um ministério da propaganda. Esse é um termo que ficou forte entre nazistas. Crê que a gestão Bolsonaro tenha essa característica?
R. Não. Aí é exagero. Era uma crítica. Houve a transferência da Secretaria da Comunicação e me pareceu que o perfil principal era a área da propaganda. Mas propaganda que, de alguma maneira, todos os governos fazem. Isso não tem nenhum nada a ver com nazismo ou fascismo, necessariamente.
P. O senhor está de acordo com a presença de tantos militares no Governo? Não acha que isso fere um pouco a imagem das Forças Armadas? O tempo todo parece uma gestão de medo. Não vê isso como um elemento que colocou a democracia do Brasil em xeque?
R. A presença de militares no Governo não, necessariamente, é negativa. Eles têm um papel a desempenhar e isso acontece também em outros países sem que se cogite que isso envolva algum risco à democracia. Agora, essas invocações constantes das Forças Armadas e a necessidade de estar reafirmando nossos compromissos democráticos é ruim para o país. Traz instabilidade, afugenta investimento. A minha avaliação é que temos uma democracia consolidada, as instituições estão funcionando, estamos passando por momentos de turbulência.
P. Essa tensão permanente tem aumentado o número de pedidos de impeachment do presidente. O senhor apoiaria um processo de impeachment do Bolsonaro?
R. (Risos, seguidos de negativas com a cabeça). Não me cabe fazer essa avaliação. Veja, eu sou um cidadão comum hoje.
P. Mais ou menos. Uma coisa sou eu, somos nós aqui [entrevistadores] levantarmos uma bandeira. Outra coisa é o senhor. É diferente.
R. Não cabe a mim esse tipo de postura no momento. Essa é uma questão que depende do Congresso, se sim ou se não. O que eu fiz, já me trouxe bastante problemas. Saí do Governo, me expus a uma situação delicada. Perdi, não posso mais voltar para a magistratura.
P. Como o senhor avalia a gestão que Bolsonaro faz da pandemia?
R. Esse foi um dos motivos subjacentes à minha saída do Governo. Não me sentia confortável. Não é a minha área, a saúde, mas causava-me incômodo estar dentro do Governo e o presidente ter essa postura negacionista. Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a existência de uma pandemia, o que dificulta qualquer política em nível nacional de combate ao vírus. Não se enfrenta a pandemia negando a gravidade dela. Isso faz com que nós tenhamos hoje 43.000 óbitos pelo coronavírus, o que é muito grave. Talvez, parte desses óbitos teria sido evitada com uma política mais racional por parte do Governo federal.Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a existência de uma pandemia
P. Algo que está claro é que o presidente quer armar a população. O senhor era um desarmamentista no Governo?
R. Parte dos apoiadores do presidente defende uma maior flexibilização sobre o porte de armas. É uma reivindicação, em certa medida legítima, mas ela tem de ter os seus limites. Facilitar a posse de armas em casa, já que era uma promessa eleitoral do presidente, não é nenhum absurdo. Agora, tem sempre que se discutir até que ponto se vai. Em alguns momentos esse limite tem sido ultrapassado. Evidentemente, não é aceitável o discurso de armar a população para se opor às medidas sanitárias. Isso não tem como.
P. O senhor falou com o presidente desde que saiu do Governo?
R. Não.
P. Nem com a deputada bolsonarista Carla Zambelli [afilhada de casamento de Moro]?
R. [Risos constrangidos] Não.
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro intimida Poderes para impedir sua queda, diz Christian Lynch
Cientista político diz que presidente usa militares como ‘guarda pretoriana’ para evitar impeachment
Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo
RIO – Não vai ter golpe – pelo menos não uma quartelada clássica, como as do passado –, mas a ofensiva autoritária do presidente Jair Bolsonaro, tendo as Forças Armadas como guarda pretoriana, pode em tese ser vitoriosa. A possibilidade, afirma o cientista político Christian Edward Cyril Lynch, se concretizará se o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), intimidados, renunciarem às suas prerrogativas.
“Bolsonaro só colou nos militares para poder usá-los como guarda pretoriana contra o impeachment, intimidando o Congresso”, afirma Lynch, em entrevista ao Estadão. Consumado esse emparedamento das instituições, avalia, seria o início de uma escalada do autoritarismo. Mas o professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) não acredita que tenha grande chance de ocorrer. “Creio que, com seu aguçado senso de sobrevivência corporativa, os militares não cairão nesse
O pesquisador afirma que militares conservadores viram em Bolsonaro a oportunidade de implantar no Brasil um governo firme e conservador, mas moderado, para acabar com a “anarquia” trazida pela democracia. São, porém, brandidos de forma ameaçadora pelo presidente, que teme ser afastado, e têm influência limitada pelos filhos do presidente e agregados, responsáveis pelas ações na internet. Esses dois grupos têm uma relação tensa, afirma, porque os generais seguem lógica de caserna, visando a um “bom governo”, ordeiro e harmonioso, mas a família Bolsonaro se orienta pela “guerra cultural” para manter o “País em estado de permanente polarização e inquietação”.
“Daí as tensões frequentes entre o núcleo conservador reacionário, “lacrador” e radical, a quem Bolsonaro deve a sua eleição, e o núcleo dos generais palacianos, mais moderado e tradicional. A aliança com os primeiros é estratégica, e com os segundos, apenas tática”, explica ele, que espera que Bolsonaro se livre dos generais palacianos, depois de usá-los. Lynch acha que chegará um ponto em que militares, magistrados e políticos terão de sentar para discutir uma saída para a crise.
Bolsonaro é político desde 1989. Deixou o Exército após um processo que envolveu acusações de ameaçar colocar bombas em quartéis e indisciplina. O que explica que, 30 anos depois, os militares, inclusive oficiais-generais, o abracem com entusiasmo?
Eu não diria “os militares” como se se tratasse de uma entidade homogênea. O atual presidente construiu sua carreira parlamentar como defensor dos setores conservadores das Forças Armadas, que não se resignaram com o regime político progressista em 1988. Passou a vida reproduzindo a versão de que o regime militar teria impedido o comunismo e sido essencialmente um tempo de ordem e progresso nacional. Bolsonaro também passou décadas defendendo os interesses pecuniários da corporação. Isso explica a popularidade dele junto a esses setores conservadores das Forças Armadas. Na Presidência, ele continua agindo com a mesma coerência.
Quando Bolsonaro foi eleito presidente, dizia-se que os militares o enquadrariam ou conteriam seus arroubos. Por que isso, aparentemente, não aconteceu?
Não foi por falta de vontade. Bolsonaro não é propriamente um militar; ele é um político de baixo clero que, tendo sido tenente, formou sua clientela eleitoral representando os interesses de seus antigos companheiros de farda e de outras corporações armadas. Os filhos ampliaram a clientela do pai explorando um eleitorado de direita radical na base do populismo, seguindo técnicas de manipulação digital sofisticadas. Então, enquanto os generais palacianos se orientam mais conforme uma lógica de caserna, fechada, hierárquica e disciplinada, imaginando um “bom governo” ordeiro e harmonioso, a família Bolsonaro se orienta por uma lógica de “guerra cultural” que mantenha o País em estado de permanente polarização e inquietação. Daí as tensões frequentes entre o núcleo conservador reacionário, “lacrador” e radical, a quem Bolsonaro deve a sua eleição, e o núcleo dos generais palacianos, mais moderado e tradicional. A aliança com os primeiros é estratégica, e com os segundos, apenas tática.
Houve o processo inverso – em vez de os militares moderarem o presidente, foi Bolsonaro que radicalizou os militares?
Os generais palacianos acreditam poder aproveitar Bolsonaro para um governo conservador firme, mas moderado, capaz de dar o freio de arrumação que julgam necessário para o Brasil, depois de tantos anos de “anarquia” provocada pelo “progressismo” da Nova República. Mas o que se vê é o contrário. É o presidente que os explora para se aguentar no poder, jogando com sua presença no governo para impedir o livre funcionamento das instituições, com o intuito primário de se manter com sua família longe da Justiça. Para isso, insufla os militares contra os juízes, na expectativa de que, no final, morram ambos afogados para que ele possa viver sem limite e sem tutela.
Há militares que dizem que não temos um governo militar, mas um governo civil com militares. Essa definição é correta?
Tecnicamente, uma vez reformados, os militares retornam à vida civil, desligados dos antigos vínculos de obediência, hierarquia e serviço ao Estado. Podem assumir opiniões políticas, participar de partidos etc. É baseado nessa premissa que se diz que o atual governo seria um governo civil com militares aposentados. A verdade é um pouco mais complexa. Como Bolsonaro e seus filhos não dispunham de pessoal administrativo e, com sua visão sectária, não aceitavam quem tivesse servido em governos anteriores, com o fantasma da “aparelhagem petista”, precisaram recorrer aos militares reformados. Em um segundo momento, diante do fracasso do governo e a crescente chance de ele não terminar, os militares ganharam mais visibilidade. Os generais palacianos chegaram com o intuito de instaurar racionalidade e bom senso, mas o que Bolsonaro e seus filhos queriam era apenas explorar a “militarização” para intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal. Quanto mais o governo se fragilizava do ponto de vista político, mais o presidente passou a explorar politicamente a imagem das Forças Armadas, para sugerir que elas o defenderiam contra as veleidades das demais instituições de julgá-lo e eventualmente retirá-lo da Presidência. Em outras palavras, Bolsonaro “vampiriza” o prestígio dos militares para escorar seu governo cada vez mais impopular. O resultado é que não se pode mais dizer, hoje, que se trata de um governo civil com militares. É uma administração fraca que se cerca de militares para simular força e impedir sua queda por meio da intimidação dos outros poderes. Ou seja, é uma relação desigual, na qual a corporação perde e Bolsonaro ganha.
A entrada no governo dos generais Braga Netto e Luis Eduardo Ramos – que permanece na ativa – marcou a transformação do governo Bolsonaro em um governo militar ou em um governo dos militares?
A verdade é que se trata de um governo cheio de militares, mas onde os militares não mandam. Quem manda é o núcleo familiar do presidente e seus associados, que sempre dá a última palavra conforme a lógica eleitoral infalível que haverá de levar o presidente à reeleição. Os militares podem fazer tudo, desde que não contrariem os filhos do presidente e seu “núcleo estratégico”. Enquanto isso, os generais enxugam gelo, gastando sua paciência e habilidade para negociar com os líderes parlamentares, governadores e ministros do STF, no intuito impossível de “normalizar o governo”.
Dá para falar em militares como algo único no Brasil? Houve por exemplo reclamações de oficiais-generais da ativa, que pediram anonimato, contra a nota de Bolsonaro, Mourão e do ministro da Defesa, na qual os três repudiaram o que chamaram de “julgamento político” do Judiciário. Não seriam sinais de divergência entre os militares palacianos e as Forças Armadas?
É evidente que uma corporação com 400 mil indivíduos está longe de ser um todo homogêneo, e que as clivagens ideológicas que atravessam a sociedade também o atravessam. Os generais palacianos foram escolhidos por Bolsonaro por serem conservadores e representam a parte conservadora da corporação. Para o presidente, a maior utilidade dos generais palacianos é justamente essa: darem ao público a ilusão de que as Forças Armadas se tornaram sua guarda pessoal e irão golpear as instituições da República se elas ameaçarem seu mandato. Daí a preocupação demonstrada pelo Alto Comando em tentar reduzir os danos gerados pela exploração pelos Bolsonaro da imagem das Forças Armadas. Danos que os próprios generais palacianos naturalmente percebem, e tentam reduzir com suas profissões de fé democrática.
No que o projeto dos militares para o governo lembra ou diverge do passado das Forças Armadas no poder – incluídos o regime militar e os presidentes militares eleitos?
O projeto dos generais é expressivo do conservadorismo estatista brasileiro, que vê a sociedade sempre em risco de degringolar no caos ou na guerra civil e necessitando de uma tutela. Para eles, o Estado é a agência encarregada de servir de coluna em torno da qual será possível “harmonizar” os interesses sociais conflitantes e propiciar o progresso nacional em um ambiente de ordem. Daí o lema positivista inscrito na nossa bandeira. Daí porque defendem sempre o reforço do Executivo federal como instância de coordenação geral e sua intervenção no domínio socioeconômico. Esse projeto, obviamente, colide com aquele dos liberais de mercado e dos reacionários radicais que, se pudessem, liquidariam com o Estado, jogando todos os servidores públicos no fundo do mar.
O nacionalismo militar e o projeto Brasil potência foram abandonados? O que os substituiu?
Muito se diz que os militares teriam abandonado esse conservadorismo tradicional, que teriam aderido ao neoliberalismo etc. Não foi o que vi na reunião de 22 de abril, convocada originalmente pelo general Braga Netto, na qualidade de chefe da Casa Civil, para apresentar seu Plano Pró-Brasil, tipicamente intervencionista, e dobrar as resistências de Paulo Guedes. O que vi ali foi a tradição em sua expressão mais cristalina. É bom lembrar que, também em 1964, os liberais de mercado foram empregados pelos militares para debelar a crise econômica, e houve uma espécie de americanismo desvairado. Logo depois, porém, os militares se livraram dos liberais de mercado, adotaram uma política externa independente e um modelo desenvolvimentista. Não vejo por que a história não se repetiria no futuro próximo.
E a Doutrina de Segurança Nacional, do inimigo interno, da guerra revolucionária e do combate ao comunismo, ainda existe no pensamento militar brasileiro?
Certamente os generais palacianos, que fizeram sua formação há cerca de quarenta anos, ainda são bastante influenciados por ela – ou, pelo menos, da versão que ela tinha naquela época. Quando os generais Villas-Boas e Mourão deixam entrever sua visão de Brasil, em seus pronunciamentos públicos, reiteram uma visão nacionalista do papel do Estado, extraída dos clássicos do conservadorismo estatista brasileiro, como Alberto Torres e Oliveira Vianna, e de culturalistas como Gilberto Freyre, no que diz respeito às características de sua sociedade. Torres, Vianna e Freyre foram centrais para a aclimatação que a Escola Superior de Guerra fez da doutrina norte-americana de segurança nacional. Basta ler a geopolítica do general Golbery do Couto e Silva, onde todas essas influências parecem se entrecruzar.
Assumir o Ministério da Saúde em meio à pandemia é não expõe as Forças Armadas ao desgaste de uma missão que não é, originalmente, delas? Não é o tipo de iniciativa malvista entre os militares de carreira, não políticos?
Sem dúvida. O populismo reacionário de Bolsonaro, que subordinou o tratamento da pandemia às exigências de sua estratégia eleitoral, obrigou à demissão de (Luiz Henrique) Mandetta e, depois de (Nelson) Teich. Uma vez que não encontrava nenhum médico disposto a arruinar sua carreira para satisfazer aquele imperativo, a solução foi recorrer a mais um general, receita segura para administração que saiba ser técnica nos limites da obediência. Obviamente, o Alto Comando fica sempre em uma situação embaraçosa, diante da tentativa contínua do presidente em identificar sua pessoa com as Forças Armadas, erodindo propositadamente as fronteiras entre Estado e governo que eles precisam respeitar. Porque não adianta tapar o sol com a peneira. Não será a ida do general Ramos para a reserva, ou a manutenção do general Pazuello na interinidade, que o problema será resolvido.
Como o Centrão entra na equação? No que resultará a mistura de militares com deputados fisiológicos e algumas vezes processados por corrupção?
Dispor de uma base parlamentar é condição de viabilidade de qualquer governo normal, e essa discussão só parece bizarra, porque se trata do governo Bolsonaro. Ao buscarem o apoio dos conservadores do Centrão, os generais foram pragmáticos, recorrendo ao presidencialismo de coalizão, respeitando a “estratégia” de não os colocar na cabeça dos ministérios, e sob promessa da não reiteração de práticas de corrupção. É evidente que a entrada do Centrão rompe com a narrativa antissistema do radicalismo reacionário, mas os generais não pertencem a esse grupo. Afinal, os generais-presidentes também tiveram uma ARENA e um PDS para chamar de seus, não foi? Enquanto os filhos do presidente e seus amigos desprezam os generais como uns dinossauros anacrônicos, os generais presidentes os desprezam como um bando de moleques arrogantes. E assim segue o governo.
Bolsonaro, ao longo do governo, tem oscilado entre a ala militar e a ala ideológica. Agora, parece estar fechado com os ex-colegas de farda, mas já esteve assim no passado e mudou de lado. A atual posição pró-militar, na sua avaliação, é definitiva?
Claro que não. É tática. Bolsonaro só colou nos militares para poder usá-los como guarda pretoriana contra o impeachment, intimidando o Congresso. Alguns dos generais se incomodaram, o Alto Comando também, fizeram declarações moderadas, e afastaram a possibilidade de golpe com que o presidente flertava junto ao seu público de radicais. Afinal, em último caso, os generais palacianos sempre terão o general Mourão, para ser acionado em caso de emergência. Não estão amarrados ao mesmo mastro que Bolsonaro na tempestade. Se hoje parece haver maior comunhão entre eles é porque o inquérito das fake news no STF elevou a possibilidade de cassação da chapa pelo TSE, o que liquidaria a solução Mourão. Fato é que, alguma hora, os generais palacianos terão de se sentar com os congressistas e os juízes para dar uma solução mais definitiva a essa crise infindável que, começada em 2013, não termina graças ao radicalismo do “núcleo ideológico”. É impossível governar um país democrático permanentemente no extremo do espectro político, seja de direita ou de esquerda. Como dizia Joaquim Nabuco, a intransigência, mesmo do poder legítimo, não pode ser levada sem crime até o extermínio do país. Em 2017, no julgamento da chapa Dilma-Temer, já estava no ar a possibilidade de recorrer à tese das contas separadas para se cassar por fraude eleitoral no TSE apenas a cabeça da chapa, deixando intacto o vice-presidente. Por outro lado, caso o presidente sobreviva à crise, não tenho dúvidas de que ele venha a se livrar de Braga Netto, como já se livrou de Santos Cruz, de Mandetta e Moro. Para o presidente, todos os auxiliares são descartáveis, servindo apenas de instrumentos. Seu coração pertence aos reacionários e aos liberais de mercado, e sempre haverá outros militares graduados, disponíveis para ele explore indefinidamente a imagem da Exército para fins eleitorais.
Afinal, o que quer Bolsonaro, qual é o projeto dele para o País?
A “civilização judaico-cristã ocidental” defendida pelos reacionários radicais que prevalecem no Planalto nada tem a ver com o que se entende desde o século XVIII por “civilização”. Ela é, aqui, anti-iluminista e eventualmente anti-renascentista. Rechaça o politicamente moderno: pluralismo, tolerância, Estado de direito, laicidade. Seu conceito de “liberalismo” remete a uma liberdade “natural” pré-estatal, entendida como privilégio de poucos. Ele remete ao imaginário da “república cristã” medieval, época de nobres cavaleiros cristãos que, com suas milícias de servos, deixavam suas famílias nos castelos para lutar contra os mouros. No caso brasileiro, essa utopia regressiva remete ao imaginário da sociedade colonial do século XVII, chefiada por chefes de família patriarcais descendentes de europeus. Esses viris e religiosos “bandeirantes” chefiariam milícias de mestiços em expedições pelo sertão adentro, para matar e apresar índios, promovendo derrubadas e queimadas para extrair da terra o máximo de riqueza com um mínimo de esforço, sem a presença incômoda de um Estado que ainda não existia. Bolsonaro é uma reedição, no poder, de Domingos Jorge Velho – o bandeirante sertanista cujas milícias foram contratadas pelos senhores de engenho do Nordeste para arrasar o quilombo dos Palmares, no século XVII. Esse conservadorismo reacionário e miliciano, para quem a “liberdade americana” é o direito que de fazer o que bem entender contra as regras de bem viver, se choca com o conservadorismo militar, que exige a ordenação do caos socioeconômico pela agência racionalizadora do Estado. Daí a tensão latente, na coalizão governamental, entre, de um lado, o radicalismo reacionário e seus aliados neoliberais, com seu ideal colonial de liberdade como predação e destruição, e de outro, a tradição militar de unidade estatal e harmonia nacional.
Os militares têm lugar nesse projeto?
Quando não tiver sobrado nenhuma outra corporação autônoma, será a vez de atacar o próprio Exército, reduzindo-o à função de instância organizadora e coordenadora de milícias do “povo armado”. A longo prazo, está óbvio que não há lugar para o Exército nesse projeto, tal como hoje o conhecemos. O monopólio do emprego legítimo da violência pelas Forças Armadas é incompatível com o sonho bolsonarista de “povo armado”.
Invertendo o slogan que marcou o ocaso do governo Dilma: vai ter golpe?
Já não se fazem mais golpes como antigamente. Se o Congresso e o Supremo Tribunal cederem à intimidação da família Bolsonaro, renunciando ao livre exercício de suas prerrogativas constitucionais, o golpe estará consumado e será o primeiro de vários outros. Mas, sinceramente, creio que, com seu aguçado senso de sobrevivência corporativa, os militares não cairão nesse truque. Perceberão a inutilidade de seus esforços e contribuirão, no momento oportuno, para a costura da única saída constitucional aceitável para todos, que passa pela assunção da Presidência da República pelo general Hamilton Mourão.
*Christian Lynch, cientista político e professor do IESP-UERJ
Vinicius Torres Freire: Ruim para os EUA, pior para o Brasil
Economia americana teve algum alívio em maio, mas depende de gás do governo
Maio foi um mês de despiora ligeira para a economia dos Estados Unidos. Houve mais festinha nas Bolsas marombadas e nova conversa sobre a projeção mais otimista de alguns adivinhadores profissionais, minoria para quem a recessão será em forma de “V”, queda e retomada rápidas.
O aumento das vendas do varejo americano em maio mais do que compensou as perdas de abril, embora o faturamento ainda esteja uns 8% abaixo do nível pré-epidemia. Cerca de 2,5 milhões de pessoas voltaram a trabalhar, mas falta empregar outros 20 milhões que foram para a rua na epidemia. Houve crescimento da indústria, embora bem abaixo do esperado.
Parte do salto das vendas foi consumo represado, de quem manteve o emprego e ficou com dinheiro na conta, poupança forçada devido ao confinamento. Parte foi graça dos trilhões de socorro do governo, que pagou uma renda básica instantânea e aumentou para valer o valor do seguro-desemprego —tudo somado, além da renda emergencial, o pacote é quase 50% maior do que o PIB brasileiro. Esse auxílio para trabalhadores e famílias acaba em julho.
O presidente do banco central, o Fed, Jerome Powell, disse ao Senado que a coisa ruim vai longe. A OCDE estima que o PIB americano caia 7,3% neste ano e chuta que, no ainda mais nebuloso 2021, cresça 4,1%, o que não recupera o prejuízo. Para o Banco Mundial, o PIB cai 6,1% em 2020 e sobe 4% no ano que vem.
Maio foi um refresco parcial em setores localizados. Haverá desemprego prolongado, redução de salários, redução no investimento, confiança baixa ainda por causa do risco de contágio, empresas falidas ou endividadas, destruição de capital, setores danificados por muito tempo (turismo, restaurantes, entretenimento etc.), ineficiências provocadas pela reabertura sujeita às condições do vírus e pilhas de outros problemas para fazer rodar a atividade econômica real. E há o problema das rendas de emergência e outros socorros. Como se dizia, os democratas querem dobrar a conta, para mais de US$ 4 trilhões (um quinto do PIB dos EUA).
Em escala e qualidade muito diferentes, o Brasil terá os mesmos problemas. Mas o governo federal americano não paga nada para se financiar (taxa real de juros zero ou menos do que isso); em parte, na prática, é bancado pelo seu Banco Central.
Esqueça-se, para facilitar, que a economia brasileira é uma carroça de roda quebrada perto da americana. A epidemia, por aqui, ainda irá mais longe do que nos EUA; os auxílios emergenciais e outros socorros, não. Em tese não haverá investimento público para dar impulso a uma retomada. Aqui, maio ainda foi mês de afundamento, embora o número de pessoas ocupadas tenha parado de cair.
As taxas de juros de prazo mais longo estão altas. O governo se financia no curtíssimo prazo ou paga contas com dinheiro que tem no colchão de emergência, a fim de evitar por ora o custo de se financiar no mercado.
Na receita da política econômica, a despesa com a epidemia terá de cair, o que vai arrastar a atividade econômica. O peso relativo da dívida pública continuará a aumentar (por falta de crescimento do PIB e de receita de impostos), o que já era um problema notório faz anos, antes desta calamidade.
A fim de evitar ruína sem fim, terá de haver uma mistura de crescimento rápido, juros (Selic) quase tão baixos quanto os de agora e alguma alta de impostos e/ou corte de gastos. “Reformas”, por si sós, não tiram a economia do chão, reconhece até a OCDE.
Nós não temos uma receita para essa mistura.
Monica De Bolle: A bioquímica do teto
Caso o teto permaneça como está, sem modificações nas regras, haverá uma asfixia no orçamento
A glicólise é uma via metabólica pela qual se extrai energia da glicose. Trata-se de mecanismo presente na maioria dos seres vivos, sobretudo por ser processo anaeróbico, isto é, que não depende de oxigênio. Nas diversas etapas do processo, enzimas atuam para catalisar as reações que haverão de resultar na energia que a célula requer. Caso ocorram distúrbios em algumas dessas enzimas ao longo do processo, a glicólise pode não levar à necessária extração de energia, prejudicando, portanto, o funcionamento da célula. Em outras palavras, se houver interferências nesse delicado mecanismo bioquímico, um dos canais de sobrevivência e manutenção celular pode ser alterado em prejuízo do ser vivo.
Agora tomem por “glicose” a molécula da qual o processo de glicólise extrai energia, o gasto público, e por “célula” a economia. Em 2016, a equipe econômica de Michel Temer argumentou que havia uma disfunção no processo de “glicólise”, isto é, gasto público que o transformava em energia para a economia brasileira. Em particular, técnicos de então viram nas etapas de como o gasto afetava a economia “enzimas” que liberavam energia em excesso, ou seja, eram disfuncionais, prejudicando as contas públicas: elas aumentavam a razão dívida/PIB e, por conseguinte, o déficit público. Essas enzimas, diziam os técnicos do governo Temer, eram muito reativas e precisavam, portanto, ser inibidas.
O governo Temer conseguiu aprovar no final de 2016 a Emenda Constitucional 95 (EC 95), conhecida como o teto de gastos. O teto tinha por objetivo inibir as enzimas que resultavam em energia prejudicial às contas públicas. Mas, assim como as células, a economia é um conjunto de mecanismos delicados, interligados, de alta complexidade e não-linearidade. Inibir enzimas no processo de glicólise pode impedir que reações fundamentais ao longo das diversas etapas do processo deixem de ocorrer, impedindo a liberação de energia e prejudicando a célula.
O problema, apontado por mim em artigos nesse espaço e em entrevista para o programa Roda Viva em outubro de 2016, é que a inibição enzimática era, ela própria, excessiva. Em algum momento, o teto, demasiado rígido, acabaria impedindo a necessária liberação de energia para o bom funcionamento da economia. Mais do que isso, havia razões – e elas continuam a existir – para questionar se a EC 95, tal qual formulada, não estaria em desacordo com princípios constitucionais como a sustentação das redes de proteção social, a destinação de recursos para a saúde, o financiamento da educação, ligados à própria imagem de sociedade que a Constituição projeta.
O que havia sido previsto em 2016 se tornou realidade de forma imprevista. Evidentemente, ninguém acreditava que hoje estaríamos convivendo com uma pandemia e com a crise humanitária dela proveniente. Contudo, era inevitável que o intervencionismo excessivo no mecanismo de glicólise econômica se tornasse prejudicial em algum momento. Que fique claro: embora o teto de gastos, hoje, esteja neutralizado pelo decreto de calamidade pública, ele já tem influência sobre o orçamento de 2021: o projeto de lei das diretrizes orçamentárias do ano que vem, o PLDO, prevê que o teto seja o princípio norteador das prioridades para o gasto público. O PLDO tem de ser aprovado pelo Congresso até o dia 31 de agosto de 2020.
Caso permaneça como está, sem modificações às regras do teto que precisam ser discutidas, haverá uma asfixia. O gasto público só pode aumentar de acordo com a inflação de 2020. A inflação de 2020, por sua vez, será excepcionalmente baixa devido à crise econômica, podendo, inclusive, adentrar território negativo. Nessas circunstâncias, não haverá glicose suficiente para alimentar a glicólise, não haverá gasto público para destinar à saúde, à proteção social e menos ainda à educação, que apresenta imensos desafios nessa pandemia. Sem investimentos em capacitação de professores para dar aulas online e de computadores para as dezenas de milhões de alunos nas escolas públicas que não têm acesso digital, perderemos geração de alunos – alunos, diga-se, que já pertencem a domicílios em situação de desigualdade e desvantagens diversas. Ou seja, a EC 95, tal qual existe hoje, impede processos fundamentais para o funcionamento da economia no ano que vem e para a sobrevivência das pessoas em meio à desordem que estará conosco enquanto houver SARS-CoV-2, o vírus.
A bioquímica do teto de gastos não é compatível com a sobrevivência econômica. Tratemos de travar esse urgente debate o quanto antes, deixando de lado os dogmas que costumam orientar o monólogo público no Brasil.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Cristiano Romero: A história dos naufrágios mostra que a âncora é fiscal
Saída de Mansueto expõe fragilidade de Paulo Guedes
Quem conhece o economista Mansueto Almeida sabe que ele impôs apenas uma condição para continuar à frente da Secretaria do Tesouro Nacional, a que cuida do dinheiro da Viúva: ter o apoio absoluto do chefe, o ministro da Economia, Paulo Guedes. Mansueto não chegou ao ministério com Guedes, nem mesmo com os dois chefes anteriores - Henrique Meirelles (ministro da Fazenda de maio de 2016 a abril de 2018) e Eduardo Guardia (de abril a dezembro de 2018). Sua primeira passagem pela Fazenda se deu na segunda metade da década de 1990, quando, muito jovem, trabalhou na Secretaria de Política Econômica, na ocasião chefiada por José Roberto Mendonça de Barros.
Foi um privilégio para o promissor técnico do Ipea estar, na hora certa, no centro de comando da economia brasileira. Aquela era a primeira equipe econômica pós-lançamento, em julho de 1994, do real. O ministro era Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Pérsio Arida. Apesar do sucesso inicial do plano, quando a inflação caiu de 47,43% em junho daquele ano para 6,84% em julho e 1,71% em dezembro, a turma levou um susto logo após a vitória, em primeiro turno, do candidato Fernando Henrique Cardoso (PSDB), pai do Real, na corrida presidencial.
Em novembro, o México, sempre o primeiro a mostrar as falhas do receituário usado pelos países latino-americanos a jusante, enfrentou crise cambial e quebrou. Naquele momento, a maioria dos países em desenvolvimento adotou âncoras cambiais (regimes de câmbio fixo) para estabilizar os preços. Como a inflação americana, em dólar, já era muito baixa, as economias atrelavam a taxa de câmbio à moeda dos Estados Unidos. Na Europa, a referência era o marco alemão, que, depois, veio a se tornar o euro.
O câmbio fixo, de fato, nocauteia a inflação. Mas, com o tempo, se nada é feito para aumentar a produtividade e se as contas públicas não se equilibram, o regime se torna frágil como as teses dos terraplanistas. O incremento da produtividade ajuda a produzir mais com menos, o que, por sua vez, contém os custos (a inflação).
Para que a produtividade cresça, é necessário educar a população e treinar bem a mão de obra; ter um sistema tributário simplificado, menos oneroso para as empresas e que não avance tanto sobre a atividade econômica, pelo menos não enquanto o país ainda estiver se desenvolvendo; produzir tecnologia de ponta e facilitar a entrada em nosso mercado de bens de capital modernos, entre outros esforços.
Países como Brasil, México e Argentina têm, por várias razões, produtividade bem inferior à dos EUA e da Alemanha, por exemplo, em quase todos os setores - no agronegócio e em alguns segmentos da siderurgia, a produtividade brasileira supera a americana, mas são exceções à regra. Logo, manter a taxa de câmbio em linha com a flutuação do dólar não é algo sustentável por muito tempo.
No fundo, a âncora das âncoras é de natureza fiscal porque, se o governo gasta muito mais do que arrecada, diminui a poupança disponível para financiar o investimento privado e em algum momento eleva a carga tributária para pagar as contas. Essa pressão sobre a sociedade acaba por gerar baixo crescimento do PIB e inflação.
Para conter a alta dos preços, os bancos centrais aumentam os juros e, num regime de câmbio fixo, isso atrai fluxos de dólares, movimento que, por seu turno, aprecia a taxa de câmbio, isto é, valoriza a moeda nacional em relação ao dólar. Ora, isso diminui a competitividade da economia, uma vez que fica mais caro exportar e, assim, alcançar novos mercados. Por outro lado, o dólar mais fraco estimula as importações, que têm dois efeitos: ao baratear o produto importado, faz as empresas nacionais comprarem máquinas e equipamentos mais modernos, o que na prática lhes dá um ganho de capital; por outro lado, a exposição do mercado doméstico a produtos estrangeiros bem mais baratos, sem que as empresas tenham as mesmas condições de competir, desnacionaliza setores inteiros, tornando o país muito dependente de fornecedores internacionais.
Mantido esse esquema por muito tempo em economias que não conseguem realizar reformas que façam crescer a produtividade, o país começa a acumular déficits crescentes nas contas externas, o que leva o investidor estrangeiro a duvidar da capacidade daquela nação de honrar suas dívidas com o exterior. Nesse momento, os mais acautelados começam a bater em retirada, forçando o governo local a jogar os juros na lua com o objetivo de convencer os investidores a manterem seus dólares aqui.
Como a situação vai se tornando insustentável em vários flancos, embora todos relacionados ao problema da Viúva, isto é, ao déficit público, "hedge funds" (fundos que buscam retornos altíssimos para o capital investido) veem nessa enorme fragilidade a oportunidade de fazer bons lucros. Estes resultam de ataques especulativos às moedas, que, se bem-sucedidos, provocam crises cambiais num curto espaço de tempo.
Quando estudamos as crises passadas, tendemos a achar que elas são de natureza cambial porque este é o sinal visível da turbulência. Com as maxidesvalorizações da moeda, todos ficamos mais pobres da noite para o dia - não só mais pobre em relação a outros países, mas, sim, aqui mesmo, em Cabrália. A gênese de toda crise, porém, está no Tesouro, cujo chefe em Brasília, Mansueto Almeida, avisara no domingo que está de malas prontas. Um mau sinal porque, se ele só deixaria o cargo em caso de falta de apoio do chefe, não se tenha dúvida: esta é a razão da partida de Mansueto, um dos maiores especialistas do país em finanças públicas.
O México assombrou a equipe do Real porque nosso plano caminhava para ancorar-se no dólar por meio de um regime de câmbio fixo. O curioso é que, nos primeiros seis meses do plano, o câmbio flutuou. Como o Banco Central dispunha de um volume razoável de reservas cambiais para conter ataques especulativos e havia excesso de liquidez nos mercados globais, a flutuação se deu para baixo, criando a falsa sensação de que a nossa moeda era mais forte que o dólar. Mas, em março de 1995, no início do primeiro mandato, adotou-se o câmbio fixo.
O México caiu em 1994 e, em 1997, feito dominó, sucumbiram várias economias asiáticas, os antigos "tigres". Depois, vieram Rússia, Brasil e Argentina. A história continua…
Bruno Boghossian: Investigação sobre radicais chega aos pés da rampa do Planalto
Inquérito pode expor atuação de Bolsonaro e auxiliares na articulação de ataques e protestos
As investigações sobre o núcleo radical do bolsonarismo chegaram ao pé da rampa do Palácio do Planalto. As buscas autorizadas pelo Supremo contra operadores partidários e a quebra de sigilo de parlamentares governistas expõem os detalhes da máquina política que trabalha a serviço do presidente.
Os alvos principais desses inquéritos nunca foram os blogueiros e personagens pitorescos que disseminam informações falsas e lideram protestos a favor de Jair Bolsonaro. A operação desta terça-feira (16) se aproximou ainda mais de deputados e empresários que fazem a ponte entre os manifestantes e o núcleo de poder do presidente.
Ao anunciar a ação, a Procuradoria-Geral da República esboçou as conexões. "Uma linha de apuração é que os investigados teriam agido articuladamente com agentes públicos que detêm prerrogativa de foro no STF para financiar e promover atos que se enquadram em práticas tipificadas como crime pela Lei de Segurança Nacional", afirmou o órgão.
A pedido dos procuradores, 11 parlamentares tiveram o sigilo bancário quebrado. Além de integrarem a tropa de choque bolsonarista, alguns deles fazem o meio de campo das relações políticas entre o presidente e os integrantes dessa artilharia. Há menos de um mês, as deputadas Bia Kicis e Carla Zambeli, alvos da operação, levaram uma trupe de "youtubers de direita" para um encontro com Bolsonaro.
Os inquéritos também chegaram aos articuladores da Aliança pelo Brasil —legenda de extrema direita que o presidente tenta fundar desde o ano passado. Entre os alvos, está o empresário Luís Felipe Belmonte, um dos principais financiadores desse plano. A interseção sugere que a rede de fake news e o conflito com outros Poderes seriam alguns dos pilares dessa nova estrutura partidária.
Bolsonaro já endossou o funcionamento dessas engrenagens e se beneficiou delas. As investigações também poderão mostrar até que ponto o presidente e seus auxiliares participaram da articulação dos ataques.
Fernando Exman: Soa o temido alarme - O inverno está chegando
Ministério da Saúde preocupa-se com avanço do vírus no Centro-Sul
Às 18h44 do sábado, pontualmente, começa uma nova etapa da missão do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. É o horário oficial do início do inverno de 2020, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). O momento a partir do qual as atenções da pasta no combate ao novo coronavírus precisarão se voltar cada vez mais para o Centro-Sul do Brasil.
O inverno é um período aguardado com preocupação pelos antecessores do general e que se principia num momento em que as relações do presidente Jair Bolsonaro com os governadores - dos Estados destas e de outras regiões - se deterioram a cada dia.
No governo, acredita-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) exagerou na liberdade dada aos entes subnacionais para a condução das políticas de isolamento social. À natural briga por recursos e autonomia nos gastos emergenciais, somou-se uma discussão de natureza político-eleitoral entre o chefe do Executivo e governadores.
Cenário hostil para Pazuello, um militar da ativa, e também para o próximo secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, um técnico especialista no trato com os Estados e os municípios. Ambos ganharão importância na tentativa de construção de uma interlocução mais saudável na federação, sobretudo se as preocupações com os efeitos do inverno em relação ao avanço da pandemia se comprovarem corretas.
Pouco se sabe sobre qual será o comportamento da moléstia no inverno do hemisfério Sul. Historicamente, observa-se o aumento de casos de gripe e doenças respiratórias durante os meses mais frios do ano. As pessoas tossem mais, espirram e se aglomeram em ambientes fechados. Locais propícios ao contágio, os quais, aos poucos, começam a ser frequentados novamente pelos mais incautos.
O Brasil titubeou na hora de iniciar o isolamento social. Agora que no hemisfério Norte diversos países já estão podendo retomar as atividades e apresentam temperaturas mais altas, acredita-se que o mesmo movimento pode ser executado por aqui. Essa decisão pode agradar a empresários e ao governo federal, embora pareça ser precipitada e capaz de produzir consequências desastrosas.
Pelo que se viu até agora, o combate ao coronavírus se tornou um assunto sobre o qual quem diz ter certezas absolutas parece estar mal informado ou deliberadamente agindo com má fé. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) vem sendo inconstante, para regozijo dos antiglobalistas.
Representantes da OMS já alertaram que uma nova onda de contágio poderia ocorrer na Europa durante o inverno, depois afirmaram que ainda não há qualquer evidência científica sobre o impacto da covid-19 em diferentes estações, a despeito de o vírus da Influenza sempre apresentar um salto de infecções durante esta estação. O comportamento da doença no inverno do hemisfério Sul ainda é, portanto, desconhecido.
Por isso é positiva a crescente preocupação do Ministério da Saúde com o que ocorrerá nos Estados do Sul e do Sudeste de sábado até o início da primavera, na última quinzena de setembro.
Na visão da atual gestão do Ministério da Saúde, os dados de infecções e mortes refletem as especificidades do Brasil: as regiões Norte e Nordeste seriam historicamente impactadas pelas crises respiratórias relacionadas ao hemisfério Norte, enquanto os maiores efeitos das gripes nas regiões Sul e Sudeste ocorrem durante os meses de junho, julho e agosto. Ou seja, no inverno.
Os balanços da pandemia refletiriam, então, essa dinâmica. De fato, hoje a incidência da covid-19 é relativa e assustadoramente maior nas regiões Norte e Nordeste, onde a taxa de contaminação é de respectivamente 1.001,3 e 570,9 por 100 mil habitantes. A média do Brasil é 439,3. Já o índice de mortalidade também é superior nessas duas regiões, principalmente no Ceará, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Amazonas, Pará e Amapá.
As exceções a essa regra são os dois maiores centros urbanos do país - as capitais e regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Isso levou a taxa de mortalidade da região Sudeste a superar a média nacional, de 21,5 óbitos por 100 mil habitantes, com um índice de 23,5. Para se ter uma ideia, nas regiões Sul e Centro-Oeste, as taxas de mortalidade chegam a 3,2 e 5,3, respectivamente, ante 44,2 por 100 mil habitantes no Norte e 25,5 no Nordeste.
Os dados justificam o receio no Ministério da Saúde com a deterioração da situação no Centro-Sul, diante de um fator desconhecido como a chegada do inverno.
No nível técnico, as conversas de representantes do governo federal com os Estados até que vão muito bem, obrigado. Há contatos diários da pasta da Saúde com governadores, secretários estaduais e municipais, e gestores hospitalares, num monitoramento cotidiano sobre o comportamento da pandemia e as necessidades na ponta.
O problema é quando as discussões vão ao nível político. A ala ideológica do governo chegou a insinuar que as estatísticas estaduais estavam sendo manipuladas para prejudicar a imagem do governo federal. Os governadores de São Paulo e do Rio são vistos como inimigos. E o governador do Espírito Santo está na lista de oposicionistas.
Também no Sul a relação do Palácio do Planalto com os governadores não é das melhores, excluindo o caso do Paraná. O Rio Grande do Sul é governado por um tucano. Santa Catarina elegeu um candidato do PSL que se tornou alvo de bolsonaristas em pouquíssimo tempo de mandato, por querer implementar uma regra segundo a qual o ICMS poderia variar dependendo do volume de agrotóxicos usados por agricultores. Aliados próximos de Bolsonaro no meio empresarial também pressionam o governador catarinense pela reabertura das atividades.
Como diz um governador, havia três caminhos a seguir desde o início da crise: a negação, a omissão e a ação. Ele e seus colegas acreditam que o presidente já passou da fase de negação e da omissão, estando agora dedicado ao terceiro tipo citado. O problema, apontam, é que seria a uma ação voltada a colocar a população contra os gestores não alinhados. Os ventos frios do inverno podem ser propícios à disseminação da covid-19 e também do vírus do ódio na política.
Vera Magalhães: Esqueçam o artigo 142
Generais, com cargos no 1º escalão e de pijama, usam interpretação golpista da Constituição para ameaçar demais Poderes
O maior fator de instabilidade da democracia hoje vem da caserna. As Forças Armadas contribuem de forma definitiva para que paire sobre a Praça dos Três Poderes a sombra de risco de um autogolpe por parte de Jair Bolsonaro à medida que generais com cargos no primeiro escalão e os de pijama em clubes militares nas redes sociais, meio en passant, usam a interpretação golpista do artigo 142 da Constituição para ameaçar os demais Poderes.
Virou moda. O Tribunal Superior Eleitoral vai investigar a chapa Bolsonaro-Mourão? Opa aí não, olha o artigo 142 aí. Pedidos de impeachment são apresentados? Não vamos admitir, temos o artigo 142. O STF usa sua atribuição constitucional de exercer o controle jurisdicional sobre atos do presidente que ferem os princípios da administração pública? Estão exagerando e podemos puxar da manga o artigo 142.
Não, senhores militares, não podem. Diz o famigerado artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Garantia dos Poderes, e não da permanência do presidente no poder.
Não são a guarda de inverno do presidente tresloucado que quer armar a população, acha que pode fazer escambo do Ministério da Educação com a blindagem dos seus extremistas.
Governo teme que saída de Mansueto cause ‘efeito fim de feira’
Causou celeuma na esquerda a saída de Mansueto Almeida do Tesouro. Chegaram a compará-lo a burocratas do nazismo que assistiam aos horrores de Hitler calados – embora ele tenha pedido demissão e não haja comparação entre os horrores do bolsonarismo, que são atentados à democracia e à saúde pública, e os do nazismo, que são crimes contra a Humanidade. Já no governo a saída gerou pânico: na equipe econômica e nos poucos ministérios ocupados por não ideólogos a sensação é de que ficar, de agora em diante, significa ter a reputação para sempre arranhada. E o temor no entorno fiel a Bolsonaro é de que haja debandada semelhante à do fim do governo Collor.
STF vai esvaziando inquérito das fake news e transfere ações para outro
O Supremo Tribunal Federal já começou, mesmo antes da decisão do plenário da Corte, a sanear o inquérito das fake news. Primeiro, Alexandre de Moraes franqueou aos advogados dos investigados acesso às provas obtidas e aos indícios que balizaram as diligências determinadas por ele. As novas operações realizadas pela Polícia Federal e as quebras de sigilo de bolsonaristas se deram já no inquérito dos atos antidemocráticos, também relatado por Moraes, que teve trâmite padrão: foi aberto a partir de representação, e não por decisão do próprio STF, teve relator sorteado, e não designado, e o Ministério Público participa desde o início. Isso porque Moraes tem boas razões para crer que, no julgamento a ser retomado nesta quarta-feira, seus pares optem por estipular prazo, objeto e limites para o inquérito “supertrunfo” das fake news, aberto por determinação de Dias Toffoli há mais de um ano e no qual cabe tudo e mais um pouco.
Rosângela Bittar: A batalha mascarada
A cisão das Forças Armadas é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente
Coube a um ministro, general de Exército da ativa, ocupando o cargo civil e político mais importante desta gestão, abrir uma fresta de luz sobre algo muito grave que ferve no corpo a corpo do interior do governo. Há muito se falava de uma tensão latente pela cisão que o presidente Jair Bolsonaro tenta promover nas Forças Armadas, sem que nenhuma autoridade a admitisse abertamente.
Bolsonaro tem a ascendência constitucional sobre Exército, Marinha e Aeronáutica, e é, portanto, legalmente o comandante supremo. Porém, para fazer particularmente o que deseja deste arsenal, teria de passar por cima de algumas cabeças de bom senso que têm ascendência direta sobre as tropas. Entre seus objetivos não explicitados estaria o de manobrá-las politicamente na guerra pessoal que declarou à República.
Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, o ministro mencionado, deixou nas entrelinhas da sua já célebre entrevista à Veja, semana passada, que a cisão pode estar por trás do intenso trânsito na política dos generais e coronéis da reserva, das três Forças.
Uma excitação desproporcional para quem jura que não vai deflagrar um golpe, revelada na redação de notas, advertências e presença em atos que pregam ruptura. Sem cuidados com a imagem, associam-se aos grupelhos de fanáticos que perambulam pela Esplanada em estado de provocação permanente.
Ramos deu a senha que faltava. Disse que ex-alunos seus estão atualmente no comando de unidades do Exército. “Eles têm tropas nas mãos”, avisou. Ou seja, que fique clara sua ascendência (de Ramos e, portanto, de Bolsonaro) sobre eles (alunos) e elas (tropas). Pode-se inferir que quis, com isso, evidenciar o poder de vencer a resistência dos comandantes a atuar na política.
Não há dúvidas de que armas, munições, incentivo à guerra civil, compõem o mundo bélico construído à volta do presidente e seus filhos, bons alunos de clubes de tiro. Tanto melhor se nele puder contar com os amigos que integram as tropas (armadas) do Exército, os amigos das polícias (armadas) militares, que se somariam aos apoiadores (armados) dos acampamentos e às milícias digitais.
A cisão das Forças Armadas, embutida neste enredo, é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente neste ano e meio de governo.
O constrangimento de alguns comandantes revela-se também no seu silêncio diante de tudo que se tem dito em seu nome.
Jair Bolsonaro, desde sempre atuando no informal sindicalismo militar, conquistou a admiração dos quartéis, o voto das famílias militares, o apoio eleitoral de oficiais de patentes variadas. A hierarquia e a disciplina, porém, ainda são valores essenciais para as tropas. Um limite em que se equilibram os comandantes, mas o presidente busca estreitar cada vez mais a relação pessoal e direta.
Aposta na concessão de vantagens financeiras, é fato, uma vez sindicalista, sempre sindicalista. Mas também cultiva amizades, comparece a solenidades, testa seu poder de sedução. Não se vê como poderá desistir de seus planos.
Além da divisão nas estruturas verticais, fica cada vez mais claro o incentivo ao racha entre as três Forças. Da última tentativa concreta teve de recuar sem disfarces: a criação da aviação de asa fixa no Exército. A Aeronáutica, claro, não gostou de perder uma briga antiga numa mísera canetada.
As polícias militares, conquistadas também pelo bolso, onde a disciplina e a hierarquia são valores mais frouxos, integraram-se mais rapidamente ao projeto Bolsonaro. Muitas já lhe devem mais vassalagem do que devem aos governadores. Embora as Forças Armadas olhem com certa desconfiança o movimento do presidente em direção às polícias militares, nada podem fazer quando não podem se distrair e precisam se dedicar, integralmente, à disciplina dos seus. Certamente para não perderem de vez o controle e não terem de ouvir, de um subalterno, que é Bolsonaro que o representa.