Day: junho 17, 2020

Live de aula inaugural Jornada da Vitória discute eleições 2020

Inscrições seguem até a meia-noite de hoje; aulas regulares começam no dia 24

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O contexto político brasileiro e as eleições municipais de 2020 serão discutidos, nesta quarta-feira (17), a partir das 19h30, em live de aula inaugural da Jornada da Vitória, novo curso prático e online de formação política oferecido pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), responsável também pela transmissão em sua página no Facebook e em seu site. Participam do debate online o diretor-geral da entidade, Luiz Carlos Azedo, o coordenador pedagógico da jornada, Marco Marrafon, e o vice-presidente do Cidadania e coordenador da Comissão Eleitoral, deputado federal Rubens Bueno.

Assista ao vivo!



Durante a live de aula inaugural, os debatedores deverão discutir o contexto político brasileiro com possíveis mudanças no calendário eleitoral, além de outros assuntos relacionados ao tema. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, defendeu nesta terça-feira (16) que o Congresso inicie a análise, em no máximo duas semanas, proposta de adiamento das eleições municipais deste ano em razão da pandemia do coronavírus. Ele sugere que o primeiro turno seja transferido de 4 de outubro para 15 de novembro, e o segundo, para 6 de dezembro.

A Jornada da Vitória é destinada a filiados ao Cidadania, principalmente aos que desejam disputar as eleições deste ano. O curso será realizado em uma plataforma de educação a distância totalmente online, multimídia e com acesso gratuito aos que tiverem inscrição aprovada e confirmada por e-mail. Login e senha são necessários para acessar a plataforma e serão fornecidos até a semana que vem, após o cadastro de todos os inscritos nela. Inscrições seguem até a meia-noite desta quarta-feira, no site da Jornada da Cidadania. Aulas regulares começam na próxima quarta (24).


Polêmica da intervenção das Forças Armadas é destaque da Política Democrática Online

Em sua 20ª edição, publicação da FAP analisa mobilizações contra racismo e reflexos da pandemia na política

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Ex-ministro da Defesa em partes dos governos Lula e Dilma, Nelson Jobim é enfático ao afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos Poderes da República, em entrevista especial da nova edição da revista mensal Política Democrática Online. Lançada nesta quarta-feira (17), a publicação também destaca avanço da luta contra racismo no mundo, erros e acertos da política com avanço do coronavírus e análise que aponta “comportamento inefável” do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online

Produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, a revista disponibiliza todos os seus conteúdos no site da entidade. No editorial, a publicação critica o que chama de “clara a responsabilidade” do presidente Jair Bolsonaro no avanço da pandemia do coronavírus no Brasil. “A julgar por suas declarações, a batalha sanitária foi dada por perdida, o quanto antes, melhor, a qualquer custo em termos de vidas, para reforçar o combate na frente, ilusória, da economia”, diz um trecho.

Na entrevista exclusiva, Jobim diz ainda que os militares da ativa enfrentam dois problemas. “O primeiro surgiu com aquela manifestação do presidente Bolsonaro na frente do QG [quartel geral] do Exército, em Brasília. O segundo, com a retirada do controle e do monitoramento das armas”, observa. “Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o próprio Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar uma ruptura do processo", afirma, em outro trecho.

A reportagem especial desta edição mostra diversas faces do racismo e os reflexos desse crime na sociedade, como a mobilização mundial após o assassinato do norte-americano George Floyd, negro, que foi sufocado até a morte por policial militar branco nos Estados Unidos. “Negros são os que mais morrem em ações policiais e também lideram o ranking das vítimas de coronavírus. Têm menos acesso à saúde, grau de escolaridade e oportunidade de emprego, em comparação com pessoas brancas”, afirma o texto.

Em uma das análises da revista Política Democrática Online, o historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que também é diretor-executivo da FAP, observa que pandemia da Covid-19 está obrigando a sociedade a repensar a economia, a cultura, a política e a “filosofia de vida”. O avanço do coronavírus mostrou onde a política falhou e onde acertou.

A situação do governo do Rio de Janeiro, o papel de Gramsci no pensamento de Olavo de Carvalho, a natureza normativa dos atos das organizações internacionais e o novo normal estão entre assuntos abordados em outros artigos da revista. O conselho editorial dela é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Leia também:

Veja todas as edições anteriores da revista Política Democrática Online


RPD || Reportagem especial: 132 anos após abolição da escravatura, sociedade grita contra racismo

Casos de assassinatos de brasileiro e norte-americano negros reacendem alerta contra crime, que impõe diversos obstáculos para essa parcela da população

Cleomar Almeida

Uma semana é o intervalo entre os assassinatos do adolescente brasileiro João Pedro Mattos (14 anos), baleado no Rio de Janeiro, e o do norte-americano George Floyd (46 anos), sufocado, em Minneapolis, nos Estados Unidos. Negros assassinados por policiais, eles também não conseguiram resistir à perversidade do crime que tem dizimado essa população diariamente e que se manifesta de diversas formas: o racismo.

No Brasil e nos Estados Unidos, a violência é uma das faces desse crime, que se propaga em vários outros. Negros são os que mais morrem em ações policiais e também lideram o ranking das vítimas de coronavírus. Têm menos acesso à saúde, grau de escolaridade e oportunidade de emprego, em comparação com pessoas brancas.

No total, no Brasil, negros são 56% da população e 75% dos mortos por policiais. Nos Estados Unidos, representam 13% das pessoas e 24% das vítimas assassinadas pela polícia. Livres da escravidão, abolida há 132 anos no território nacional, pessoas negras e toda a sociedade precisam se mobilizar contra o racismo, que, na avaliação de especialistas, tem se institucionalizado cada vez mais e de forma acelerada na força estatal.

 “Há um enorme viés racial na violência policial no Brasil. Da mesma forma que educação, renda e trabalho são indicadores de desigualdades raciais, a violência também se constitui como um indicador potente, pois ela atinge de forma desigual os negros do país”, afirma a professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Lima.

A professora, que também é coordenadora do Afro, o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), diz que não são mortes provocadas. São assassinatos. É um modus operandi. “O racismo é um elemento constituinte da violência do país. As estatísticas comprovam isso”, afirma ela.

Nos Estados Unidos, negros têm 2,9 vezes mais risco de serem mortos por policiais do que brancos. No Brasil, o risco é 2,3 vezes maior para os negros. Os dados são de análises do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2018 – o mais recente com recorte racial – e do instituto americano Mapping Police Violence, de 2019.

Foto: AP Photo/Silvia Izquierdo

O número de mortos pela polícia americana tem se mantido no mesmo patamar desde 2013. Com quase 18 mil departamentos de polícia nos EUA, não há uniformidade nos números oficiais sobre abordagens policiais com uso da força no país. No Brasil, o problema se repete.

De acordo com o Atlas da Violência, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o crescimento nos registros de assassinatos no Brasil, que alcançaram patamar recorde em 2017, atinge principalmente negros, para os quais a taxa de mortes chega a 43,1 por 100 mil habitantes. Para não negros, a taxa é de 16.

“É estarrecedor notar que a terra de Zumbi dos Palmares é um dos locais mais perigosos do país para indivíduos negros, ao mesmo tempo que ostenta o título do estado mais seguro para indivíduos não negros (em termos das chances de letalidade violenta intencional)”, afirmam os pesquisadores do Ipea em um trecho da pesquisa. “Em termos de vulnerabilidade à violência, é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos”, completam.

Autor do livro Racismo Estrutural e professor convidado da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), Silvio Almeida destaca que a polícia brasileira é muito mais violenta. “Mas também existe um nível de violência racial que constitui o Brasil em outras esferas, que naturalizou e incorporou no cotidiano a morte de pessoas negras”, afirma. “No país, quando se mostra a morte de um negro, a luta é para provar que aquela pessoa não era um bandido, como se o fato de a pessoa ter cometido algum crime justificasse também a violência policial".

Na avaliação do sociólogo e policial militar Eduardo Santos, a corporação brasileira reproduz o preconceito e a discriminação, e ainda não teve a preocupação de repensar as práticas de abordagem, de forma eficaz. “A polícia é a força de repressão que mata quem é igual a eles", afirma, destacando que negros representam 37% do quadro de policiais no Brasil. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A informação é autodeclarada e pode haver subnotificação.

A urgência do combate ao racismo tem mobilizado ainda mais grupos organizados para reivindicação e reconhecimento de direitos na busca por uma sociedade menos injusta, menos desigual e menos excludente. Mais de 100 entidades do movimento negro de todo o país reforçam o manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. A campanha é promovida pela Coalizão Negra por Direitos, em parceria com os coletivos Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro.

O objetivo é coletar assinaturas para promover uma frente ampla em torno de ações de combate ao racismo e a cobrança junto ao Poder Público, de direitos como educação, emprego e segurança. O movimento entende que a luta antirracista precisa ganhar centralidade nas discussões em defesa da democracia.

“Tem se falado muito em repactuar, criar um novo pacto democrático no Brasil. Mas não existe possibilidade nenhuma de pensar a democracia real no país se o racismo não for um ponto central”, afirma Eugênio Lima, fundador do Legítima Defesa e Frente 3 de Fevereiro e um dos articuladores da iniciativa, em entrevista ao jornal El Pais.

De acordo com Lima, a frente ampla deve considerar o apoio de pessoas brancas e indígenas de diferentes setores da população. Segundo ele, a adesão é importante porque a questão racial é parte do sistema e só será vencida quando toda a sociedade passar da comoção em relação à crueldade praticada contra negros para mudanças concretas que promovam igualdade, por parte de quem está no poder — em sua maioria, brancos.

Certamente, outros negros morreram na semana que separou as mortes de João Pedro e George Floyd, cujos casos tiveram maior repercussão. O combate ao racismo deve ser uma prática diária, constante e de resistência, como sugeriu a professora e filósofa estadunidense Angela Yvonne Davis. "Numa sociedade racista, não basta não ser racista; é preciso ser antirracista", escreveu ela.


Desigualdade perversa reflete discriminação

Além de morrerem três vezes mais do que brancos por Covid-19 nos Estados Unidos e de serem mais de metade das vítimas da doença no Brasil, negros enfrentam abismos de desigualdade no acesso à educação, a oportunidades de emprego, à cultura e a cargos eletivos. No labirinto da discriminação, precisam encontrar o caminho da sobrevivência.

Reflexo da falta de acesso a serviços de saúde e alimentação que garanta boa qualidade de vida, mais da metade dos negros que se internaram no Brasil no período da pandemia morreu por contaminação de coronavírus em hospitais no país. Pesquisadores do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro analisaram 29.933 casos encerrados de Covid-19 (com óbito ou recuperação). Dos 8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%.

Em relação à educação, no Brasil, a taxa de analfabetismo entre os negros de 15 anos ou mais (9,1%) é superior ao dobro da taxa de analfabetismo entre os brancos da mesma faixa de idade (3,9%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2018, 6,8% da população brasileira era considerada analfabeta. Nos Estados Unidos, a taxa de analfabetismo é menor que a do Brasil (1%), mas a desigualdade entre brancos e negros também existe.

De acordo com o IBGE, também há diferença na área financeira. Pretos e pardos tinham rendimento domiciliar por pessoa de R$ 934 em 2018, conforme pesquisa mais recente. No mesmo ano, os brancos ganhavam, em média, R$ 1.846. Nos Estados Unidos, por sua vez, negros têm renda domiciliar média de US$ 41,3 mil por ano, pouco mais do que a metade da dos brancos (US$ 70,6 mil).

O Congresso Nacional é outro campo de desigualdade entre brancos e negros no Brasil. Dos 594 deputados e senadores, apenas 17,8% são negros. No total, somente 106 declararam ser da cor preta ou parda. O cenário não muda se as duas Casas forem analisadas separadamente. Na Câmara, dos 513 deputados em exercício, 89 são pretos. Em contrapartida, 344 são brancos. Os dados são da própria Câmara Federal.

Em texto publicado no início de junho, o ex-presidente americano Barack Obama discorda das pessoas que afirmam que o recorrente viés racial no sistema de justiça criminal prova que apenas protestos e ações diretas podem levar a mudanças, e que votações e participações na política eleitoral são perda de tempo.

"Eu não poderia discordar mais. A essência de protestos é aumentar a conscientização da sociedade, colocar holofotes sobre a injustiça e fazer com que os Poderes fiquem desconfortáveis”, afirma ele, em um trecho.

O texto de Obama diz, ainda, que, ao longo da história americana, é comum que seja apenas uma reação a protestos e desobediência civil a atenção que o sistema político dá a comunidades marginalizadas. “Mas, no fim, anseios têm sido traduzidos em leis específicas e práticas institucionais. E, numa democracia, isso só acontece quando nós elegemos autoridades que respondem às nossas demandas”, destaca ele.

Importante instrumento na reparação de direitos de negros no Brasil, a Lei de Cotas deverá ser revista em 2022, no último ano do mandato de Jair Bolsonaro. Como pretende disputar a reeleição e tem um governo de extrema direita marcado por polêmicas nas áreas de direitos humanos e educação, ele deve enfrentar grandes resistências do movimento negro, que tem se fortalecido no combate à desigualdade no país.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo Nascimento, confirmou que haverá uma revisão no sistema de cotas no último ano do governo Bolsonaro. “O sistema de cotas será revisado em 2022. Cotas devem ser sociais, não raciais. Para que esta mudança ocorra, será fundamental o apoio dos negros. Cotas para pobres, de qualquer tom de pele. Não somos incapazes. Queremos justiça, não racialismo”, diz Camargo, que nega haver racismo no Brasil.

Na avaliação da professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Márcia Lima, que coordena núcleo de pesquisa sobre raça, gênero e justiça racial, há uma percepção equivocada de como a Lei de Cotas funciona. Segundo a Lei 12.711, conforme ressalta, a cota racial também é uma cota social.

“Muitos que se opõem às cotas raciais falam que elas apresentam privilégios e que não podemos distingui-las das sociais. Não faz sentido, porque elas não estão separadas”, explica a professora.

 A lei reserva 50% das vagas primeiro para estudantes de escolas públicas, que, em seguida, são divididos pela renda, o segundo critério social. Só depois se aplica o critério racial (a proporção da população negra e indígena de cada unidade da Federação).

Em comentários nas redes sociais, Camargo diz que as cotas raciais fazem parte de “reparação história”, mas, segundo ele, “não existe culpa coletiva”, ignorando a segregação a que os negros foram submetidos desde que foi abolida a escravatura no país, em 1888. “Reparação histórica. Mas dívida não é transmitida de geração para geração e não existe culpa coletiva. Querem vingança, não solução”, tuitou.

A pesquisadora da USP explica o porquê de defender a cota social e racial.“Quando enfrentamos a desigualdade social, a situação dos negros é sempre mais difícil, mesmo entre os mais pobres. As políticas de recorte social funcionam de forma tímida para incluir a população negra. Por isso, as cotas raciais são importantes”, afirma Márcia.


RPD || Paulo Baía: O destino do tiro na cabecinha

Comportamento inefável de Wilson Witzel (PSC) como governador contaminou todos os níveis da administração pública do Rio de Janeiro, avalia Paulo Baía

O governo Wilson Witzel (PSC) tomou posse sob o signo da instabilidade, a partir da onda antissistema das eleições de 2018. Preso às amarras do Regime de Recuperação Fiscal, negociado entre o ex-governador L. F. Pezão e o governo federal, e após as governanças criminosas de Sérgio Cabral/Pezão (MDB). O ex-juiz federal apostou na grave crise de violência, expondo o abismo da segregação que os moradores das favelas vivenciam, ao implantar uma política de extermínio do "tiro na cabecinha". Ou seja, incentivou ações ilícitas de agentes públicos das forças policiais e, para completar, acabou com a Corregedoria externa e a Ouvidoria das polícias. Uma de suas medidas centrais foi desfazer a Secretaria de Segurança Pública, recriando as fracassadas Secretarias de PM e de PC, que funcionaram de 1983 até 1994.

As demais secretarias foram assumidas, com raras exceções, por pessoas sem lastro administrativo, escolar e acadêmico, evidenciando a ausência de pessoas com expertise em governança pública. Desde que tomou posse, em janeiro de 2019, o governador passou a ser protagonista de uma "ópera bufa", com atitudes e falas capazes de demonstrar o quanto ter poder era seu maior objetivo, com atitudes espalhafatosas e comportamento de líder que pretendia fazer história com bravatas e mortes.

A Assembleia Legislativa do Estado Rio de Janeiro (Alerj), apesar de ter tido uma renovação significativa após a eleição, continuou sob o comando de deputados herdeiros do bloco parlamentar Sérgio Cabral/J. Picciani. O próprio líder do governo é o deputado Márcio Pacheco (PSC), experiente e bem conectado com André Ceciliano (PT), presidente da Alerj. O fato é que o Parlamento nunca considerou a autoridade de W. Witzel, sempre apostou numa pauta própria para aprovar, rejeitar ou derrubar vetos do Executivo. Não é à toa que a abertura do processo de impeachment foi aprovada por unanimidade (69 votos a favor e uma abstenção). Até mesmo parlamentares ligados ao governador, como Bruno Dauaire (PSC), Rodrigo Amorim (PSL), Alexandre Knoploch (PSL) e o ex-líder do governo Márcio Pacheco (PSC), votaram pela abertura do processo. Apenas o deputado Rosenverg Reis (MDB) se absteve.

O comportamento inefável do governador contaminou todos os níveis da administração pública. Com seu deslumbramento, deixou às claras um clima de "liberou geral", sem que houvesse nítida separação entre o lícito e o ilícito nas políticas públicas. Dessa forma, não houve surpresa nas suspeitas levantadas pela PGR, PF, MPE, TCU e TCE, em relação à corrupção. Inclusive, a PF prendeu, a pedido do MPF, toda a cúpula da Secretaria de Estado da Saúde, por desvio de verbas nos hospitais de campanha e na compra sem licitação de equipamentos, insumos e medicamentos durante o Estado de Emergência.

A crise sanitária da Covid-19 escancarou o descalabro das violências policiais e milicianas contra jovens pretos, pobres, favelados e moradores das periferias. De tal forma que o Ministro Edson Fachin, em ato judicial inédito, concedeu liminar proibindo as ações policiais em favelas, sem justificativa prévia informada ao MPE e ao Poder Judiciário.

Apesar de o ex-juiz querer ser o representante de uma renovação política, com as vistas postas no Planalto, cometeu erros crassos por não fiscalizar medidas fundamentais, como a contratação milionária com empresas sem tradição e de baixíssimo capital social. Além de o deslumbramento ter subestimado de forma primária as relações com o Parlamento. Típico de pessoas autoritárias e centralizadoras, nada afeitas ao diálogo e à negociação. Como, por exemplo, a prática de ameaçar deputados com dossiês, a exemplo daqueles montados sobre pessoas ligadas ao grupo de Lucas Tristão, seu ex-Secretário de Desenvolvimento Econômico.

O ex-juiz federal poderá ser o primeiro governador do Rio a sofrer impeachment. E o segundo do Brasil, após a perda do mandato de Muniz Falcão (PSP), governador de Alagoas, em 1957. No entanto, o Rio de Janeiro de 2020 certamente não é as Alagoas de 1957. Os tempos, particularmente no Rio, não andam férteis para o surgimento de novas lideranças em termos nacionais. Contamos sair desta crise que se abateu sobre nós e parece estar longe de nos abandonar para vivermos melhores dias. A única certeza é de que a crise política permanecerá e não de que há alguma luz no fim do túnel. Não consigo vislumbrá-la. Somente o tempo dirá. Espero apenas estarmos livres dos bufões com seus arroubos delirantes.
 

* Paulo Baía é sociólogo e cientista político, professor da UFRJ.


RPD || Marcos Sorrilha Pinheiro: O papel de Gramsci no pensamento de Olavo de Carvalho

Olavo de Carvalho recorre ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci para interpretar o mundo e a construção da Nova Era, apropriando-se do paradigma gramsciano da política-hegemonia, avalia Marcos Sorrilha em seu artigo

O termo Nova Era foi bastante difundido entre os círculos católicos da Renovação Carismática na década de 1990, bem como entre os evangélicos “neopentecostais”. A premissa era a seguinte: existiria um plano global para retirar as pessoas do caminho de Deus e implementar uma Era capaz de colocar um fim no cristianismo. A execução desse plano se daria por várias frentes, com destaque à Indústria Cultural, seus produtos e produtores: filmes, artistas, músicas etc. Por meio de tais obras, seriam transmitidas mensagens capazes de influenciar a humanidade para a adoração de um outro senhor que não Cristo. 

 Esta ideia ganhava contornos maiores quando entrava na seara da autoridade política. Pois, fruto de um conluio multinacional, acreditava-se que empresas e nações imporiam, num futuro breve, o registro de pessoas com um código de barras no punho ou na testa: a temível marca da Besta.

 Evidentemente, trata-se de uma teoria da conspiração e, para que haja engajamento, se deve concordar com algumas premissas que não possuem validação científica, como o poder sobrenatural e a existência de entidades celestes. Existe, portanto, certo nicho ou campo de abrangência até onde a ideia pode atingir: setores do cristianismo.

Por que isso é importante? A lógica por trás disso se assemelha à forma pela qual Olavo de Carvalho interpreta o mundo. Porém, no lugar do demônio, está o Comunismo e, para além dos artistas, aparecem os intelectuais, os responsáveis pela elaboração desse plano sombrio. No lugar da atuação do demônio, ele transfere aos mecanismos de transmissão de cultura a responsabilidade pela difusão planetária de tais mensagens. Por fim, o equivalente ao inferno seria um futuro composto pela submissão dos incautos à elite global. Tudo isso ocorreria quando as pessoas fossem apartadas dos “verdadeiros” valores ocidentais (o judaico-cristianismo, o conservadorismo político e o nacionalismo), aderindo a um novo conjunto de regras e morais globalistas hegemônicas.

 A palavra hegemônica é fundamental para entendermos como se daria a construção da Nova Era na versão de Olavo de Carvalho. Na verdade, não se trata apenas de uma palavra, mas de um conceito elaborado por Antonio Gramsci no início do século XX. Segundo Gramsci, o conceito de hegemonia retirava o socialismo do plano revolucionário e o trazia para o paradigma político/democrático. Em Gramsci, a construção de uma sociedade igualitária, principalmente no Ocidente, não se daria mais pela revolução, mas pela articulação do campo político, por meio da difusão de valores, tradições e ideias junto ao sistema nervoso das sociedades: a cultura.

 Para tanto, os partidos e seus intelectuais deveriam atuar como sujeitos articuladores dessa cultura, lançando mão dos aparatos próprios para sua mobilização: a mídia, a escola, as artes etc. À medida que tais ideias fossem ganhando maior abrangência e concordância entre os cidadãos, seria aberta a possibilidade de que líderes comunistas fossem eleitos pelo voto e, uma vez no comando do Estado, lançariam mão das ferramentas do poder para organizar a sociedade em torno de seus ideais, convertendo-os em uma hegemonia. 

 Assim, Olavo de Carvalho recorre ao conceito de hegemonia gramsciano, pois entende que, com o ocaso da União Soviética, Gramsci se converteu no grande paradigma de atuação da esquerda global. Por meio de seus métodos (a contaminação da cultura com valores marxistas), foi possível aos intelectuais gramscistas o predomínio junto às principais instituições internacionais responsáveis pela elaboração de estratégias de desenvolvimento global, como a ONU, a OMS, ONGs etc., transformando pautas da esquerda em pautas da própria humanidade.

 Diante do exposto, é inevitável constatar: a teoria de Olavo de Carvalho se sustenta na apropriação que faz do paradigma gramsciano da política-hegemonia. Ironicamente, é a noção de hegemonia em Gramsci que torna possível a existência de uma Nova Era enquanto um plano global aos moldes propostos por Olavo. Ao mesmo tempo, é ela quem dá à sua teoria da conspiração um caráter supostamente científico, capaz de retirá-la do nicho religioso-cristão e torná-la palatável a amplos setores da sociedade, ajudando a desvelar as tramas do conluio global por meio de uma lógica aparentemente acadêmica e fazendo com que aqueles que professem sua teoria se sintam mais inteligentes que os demais, ao invés de conspiracionistas, o que de fato são.

* Marcos Sorrilha é professor Assistente Doutor do Departamento de História da Unesp/Franca.


RPD || Luiz Paulo Vellozo Lucas: Encontro marcado

Eleições municipais, apesar da pandemia do coronavírus e da crise política que o país atravessa, mostram que, enquanto tivermos um calendário eleitoral a cumprir, é porque a democracia ainda está viva e pode fazer ressurgir sua força transformadora

Epicentro mundial da pandemia do Covid 19, o Brasil vive meses estressados pela crise sanitária e econômica em meio à luta política radicalizada e judicializada, que se reflete no dia a dia das pessoas. O mundo virtual, turbinado pelo isolamento da quarentena, fervilha intensamente de militância espontânea e profissionalizada, com apoio de robôs nas redes sociais e em grupos de discussão como num “reality show” eletrizante e interminável. Tudo parece convergir e depender de um desfecho para esta novela.

“Deixa o governo governar”, dizem aqueles que enxergam Bolsonaro como um cavaleiro andante da virtude e do patriotismo, enfrentando instituições carcomidas pela velhacaria e pela corrupção. “Somos 70% da população contra o fascismo”, dizem os que se opõem ao governo e abraçam a defesa das instituições e o “fora Bolsonaro”. Como pensar em eleições municipais nessa situação?

Enquanto houver um calendário eleitoral a cumprir é porque a democracia ainda está viva e pode fazer ressurgir sua força transformadora. Em 1974, a limitada liberdade remanescente no Brasil sobrevivia respirando por aparelhos numa estreita fresta institucional. A vitória eleitoral do MDB naquele ano foi o ponto de apoio que alavancou a luta política e a agenda democrática do pais por dez anos, acumulando forças até o fim da ditadura militar. O impulso transformador das eleições derrotou o regime e também aqueles que, descrentes da democracia, sonhavam com luta armada para impor seu projeto de país.

Na eleição, a população tem um encontro marcado com as instituições e com seu destino histórico. Não haverá desfecho da crise nacional antes do pleito municipal de 2020. Os eleitores serão chamados a escolher prefeitos e vereadores num cenário nacional dividido e conturbado, onde estarão juntas e misturadas todas as frustrações, indignação e revolta com as desigualdades e injustiças acumuladas. A vida nas cidades estará no centro das atenções junto com ideias sobre o que deveremos fazer a partir de janeiro de 2021.

O voto é sempre um ato de confiança e enfrentar os desafios colocados pela crise urbana em cada cidade neste momento é o caminho que a democracia brasileira oferece a todos os cidadãos, militantes virtuais ou não, cansados ou descrentes de um desfecho para a crise nacional, que se mobilizarem para participar das eleições municipais.

O poder local precisa conquistar a confiança das pessoas e passar a ser compreendido como elemento-chave para a solução dos problemas e angústias do dia a dia da população. O primeiro passo é valorizar a solução local, como fizeram os primeiros brasileiros desde a Independência em, 1822, com as Câmaras Municipais, como nos relata Jorge Caldeira em A História da Riqueza no Brasil. As instituições do Estado e a vida econômica e social do país precisam de reformas que permitam e desobstruam o protagonismo do poder local, e não podemos ficar esperando que as soluções venham de Brasília. Elas não virão!

Os prefeitos e vereadores eleitos em 2020 serão desafiados a conquistar e acumular confiança pública e capital cívico, para dar conta de governar seus municípios nesta crise. A renovação das lideranças locais em eleições livres pode inaugurar uma agenda democrática e reformista, visando a corrigir e fazer avançar as instituições que estruturam o Estado brasileiro em um processo de baixo para cima. Começa no processo eleitoral deste ano debatendo, sem as muletas do populismo e do pensamento mágico, soluções viáveis de enfrentamento pactuado do déficit de vida urbana civilizada e da exclusão social, tanto nas metrópoles, com suas favelas, como nos distritos e vilas do interior, distantes do dinamismo industrial.

A agenda reformista precisa sair das caixinhas setoriais para adotar o ponto de vista das cidades, que é o ponto de vista das pessoas. O desafio das reformas é um só, Inter setorial e holístico. A cidade integra todas as dimensões: fiscal e tributária, política e federativa, social e econômica, tecnológica, ambiental e humana. O desafio das eleições municipais é abrir caminho para esta agenda em cada cidade e para o Brasil.

Joan Clos, ex-prefeito de Barcelona e ex-diretor da ONU-Habitat, dizia que o único caminho para se construir um país desenvolvido é construir boas cidades.

* Luiz Paulo Vellozo Lucas é engenheiro. Ex-prefeito de Vitória-ES. Mestrando em Desenvolvimento Sustentável na UFES. 


RPD || Lilia Lustosa: Eu, historiadora de cinema branca

Lilia Lustosa, em seu artigo, questiona como podemos mudar a situação de racismo que contamina a indústria cinematográfica do Brasil e do mundo

No mês passado, depois de entregar o artigo aqui para a Revista, ficou mais ou menos acertado que o próximo tema abordado seria o retorno dos Drive-ins, tendo ficado de fora do meu texto anterior, por não conseguir me manter dentro dos limites dos caracteres estipulados. Acabou sendo um bom acidente de percurso, porque, logo depois, impactada pelas notícias da morte do adolescente João Pedro por uma bala perdida no Complexo do Salgueiro e as imagens do sufocamento de George Floyd em Mineápolis, me veio um pensamento à cabeça: e se eu acordasse negra? Encararia a vida da mesma maneira? Teria a mesma segurança para desbravar territórios desconhecidos como venho fazendo nesses últimos doze anos em que vivo fora da minha terra? Teria entrado neste prédio, em pleno coração da branca Recoleta, em Buenos Aires, com a mesma cabeça erguida com que entrei? E do alto do privilégio da minha branquitude, minha resposta, imediata e honesta, foi não. 

Recordei as imagens que havia visto dias antes no documentário Minha História (2020), de Nadia Hallgreen, sobre a turnê de Michelle Obama pelos EUA, para o lançamento de seu livro homônimo. Lembro de ter ficado arrepiada ao ver aquela mulher negra lotando estádios nos Estados Unidos de Trump, oferecendo inspiração e esperança a tantas pessoas daquele país. Fiquei, então, imaginando todas as dificuldades enfrentadas para chegar àquele palco. Será que Michelle sempre entrava nos prédios de cabeça erguida? Sentia-se inferior ou invisível aos olhos de alguém? Mas a ex-primeira dama, que já sentou em tantas mesas importantes (palácios, castelos, salas de aula de Princeton e Harvard), afirmou nunca se ter sentido invisível. A razão, segundo ela, teria sido a liberdade que vivenciou naquela mesa simples da sua sala de jantar, no sul de Chicago. Um lugar onde aprendeu o valor de sua voz e se muniu de forças para enfrentar a batalha que a vida lhe iria exigir. Um exemplo extraordinário para tantas meninas negras que se veem ali representadas, mas que não necessariamente têm a mesma sorte. Ao mesmo tempo, uma prova de que a invisibilidade é algo construído. E que, por isso mesmo, também pode ser desconstruído.

O tema foi me inquietando cada vez mais, e o webinar “Imaginários para um audiovisual antirracista”, organizado pelo SPCine, no fim de maio, deixou ainda mais claro o papel que nós, brancos, podemos e devemos ter. Naquele palco virtual, “frente à frente”, para um debate mais que urgente, estavam duas cineastas negras – Renata Martins (Aquém das Nuvens, 2010; Sem Asas, 2019) e Day Rodrigues (Mulheres Negras, 2016) –, e duas cineastas brancas – Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças, 2000; Como Nossos Pais, 2017) e Petra Costa (Helena, 2012; Democracia em Vertigem, 2019). A branquitude foi colocada contra a parede. Eu fui colocada contra parede! Muitos nomes de negros que atuam no universo cinematográfico brasileiro foram citados. Mas quantos conhecemos? Quantos nomes podemos citar de cabeça? E de mulheres negras então? Só para se ter uma ideia, segundo a ANCINE, dos 142 longas lançados, em 2018, somente 19,7% foram dirigidos por mulheres, e desses, nenhum teve qualquer negra na direção, nem no roteiro. E o que nós, brancos, temos feito para mudar essa situação de racismo que contamina a indústria cinematográfica do Brasil e do mundo? 

Laís Bodanzky, que hoje ocupa a presidência do SPCine, falou da política afirmativa que a instituição vem adotando nos últimos anos, que dá pontos extras aos projetos que trazem pessoas negras em suas equipes. Ou seja, na corrida por um financiamento de produção audiovisual, sai na frente quem contar com talentos negros em seu time. Mas quantas são as instituições que adotam esse tipo de política? Quantos não são os que viram a cara para o sistema de cotas?

Laís chegou a acender uma luz de esperança dentro de mim, mas eis que as imagens da morte do menino Miguel, de 5 anos, deixado aos cuidados da patroa, enquanto sua mãe passeava os cachorros da família branca, relembrou-me que ainda estava muito longe o dia em que poderíamos falar de igualdade neste país. Senti-me sufocada, impotente, apequenada… E entendi o que a negritude chama de “genocídio da população negra”. Não é exagero. É fato. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. E o que nós, branquitude brasileira, temos feito para mudar esta situação? Como eu - historiadora de cinema branca - posso contribuir para virar esse jogo?

 Day Rodrigues me deu a pista, ao afirmar que “pesquisa é política”. Ela tem razão. É preciso, então, redefinir nossos temas de estudo, incluir personalidades negras no currículo básico das escolas e universidades brasileiras, já que aquelas foram apagadas de nossos livros de história. É preciso falar de Adélia Sampaio, primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem. É preciso assistir a filmes feitos e escritos por negros. É preciso conhecer Viviane Ferreira (O dia de Jerusa, 2019), Camila de Moraes  (Caso do Homem Errado, 2019), Jeferson De (Bróder, 2010), Ava DuVernay (Selma, 2014; A 13a Emenda, 2016; Olhos que condenam, 2019), Ryan Coogler (Fruitvale Station, 2013; Pantera Negra, 2018) e tantos outros. É preciso contratar profissionais negros. É preciso seguir pessoas negras no Instagram, divulgar o que elas fazem, ler os livros que elas escrevem. Tudo o que, até outro dia, me soava como um exagero… Finalmente, entendi que, ao trazer pessoas negras para a cena, estamos viabilizando a criação de um círculo virtuoso, quiçá capaz de se converter em ferramenta de desconstrução da invisibilidade da negritude. 

A minissérie “Hollywood”, atualmente em cartaz na Netflix, que conta com produtores e diretores negros, permite-nos, de alguma maneira, sonhar com essa mudança. Ambientada no período pós II Guerra Mundial e baseando-se em alguns fatos e personagens reais – Hattie MacDaniel, Rock Hudson, Vivien Leigh, Scotty Bowers, Henry Willson, Anna May Wong –, o que vemos ali é um grande estúdio, sendo comandado por uma mulher branca, ousada o suficiente para aceitar o desafio de lançar um filme cujo roteirista é negro e homossexual, o diretor é filipino-americano, e a atriz principal, negra. Ao apresentar esse twist na realidade da época de ouro da meca do cinema, “Hollywood” lança a possibilidade de um outro curso para a história. E se tivéssemos tomado esse caminho, teríamos hoje mais igualdade na indústria cinematográfica?

Talvez. Mas como, por enquanto, isso não passa de ficção, resta-nos pensar sobre o que é possível ser feito hoje. Assim, ao invés de decorrer sobre o retorno dos Drive-ins, decidi usar este meu lugar de privilégio, para convidá-los a refletir sobre o racismo estrutural que, mais do que qualquer corona vírus, contagia nossa sociedade há séculos. Uma pandemia para a qual nunca se criaram vacinas, nem remédios, o único caminho sendo a conscientização e a reeducação da nossa gente. E o primeiro passo, reconhecer o racismo que habita cada um de nós.

*Lilia Lustosa é crítica de cinema


RPD || Gilberto Saboia: A natureza normativa dos atos das organizações internacionais

Membro da Comissão de Direito Internacional da ONU, o diplomata aposentado Gilberto Saboia nos mostra, em seu artigo, as diversas categorias de organizações internacionais. As mais comuns são as criadas por Estados 

Hugo Grócio (1583-1645), um dos pais do direito internacional moderno, privilegiou a sociabilidade e os interesses recíprocos entre as nações como uma das bases de um direito internacional que não se limitasse a regular as situações conflitivas, mas servisse também para fazer prosperar as relações de mútuo interesse. 

A Paz de Vestfália (1648) pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, sucessão de conflitos religiosos, e criou o Estado moderno fundado no exercício da soberania sobre um território e o reconhecimento recíproco, sem conotação religiosa, dos demais estados. Nasceu daí um sistema de equilíbrio de poder que permitiu limitar as guerras, favorecendo a visão de Grócio para o direito internacional.

Após as guerras napoleônicas, que subverteram a ordem criada na Paz de Vestfália, o Congresso de Viena (1815) refez o mapa de Europa sobre bases que, mal ou bem, permitiram paz e progresso durante boa parte do século XIX. As potências reunidas no Congresso de Viena se concertaram para defender a legitimidade das monarquias frente a reivindicações libertárias. 

Surgem também as primeiras iniciativas de cooperação através de entidades compostas por Estados e com personalidade jurídica própria. São as Comissões Internacionais do Rio Reno e do Rio Danúbio, para regular a navegação destes cursos d’água. O avanço da tecnologia e dos contatos internacionais levou à criação de organizações de caráter técnico, social ou humanitário e mecanismos para a solução de disputas por arbitragem. 

Ao fim da I Guerra Mundial, na Paz de Versalhes (1919), surge a Liga das Nações, primeira organização internacional com vocação universal e mandato para plasmar uma ordem internacional em que o recurso à guerra fosse limitado através de um sistema de segurança coletiva, capaz de aplicar sanções a Estados agressores. Apesar de alguns avanços, a Liga falhou em virtude da fraqueza dos membros diante das agressões totalitárias e da ausência dos Estados Unidos. A Organização Internacional do Trabalho e a Corte Permanente de Justiça Internacional surgiram na mesma ocasião e se mantiveram, a segunda incorporada pela ONU como Corte Internacional de Justiça.

Ao fim da II Guerra Mundial, uma nova organização mundial foi criada. A Carta das Nações Unidas, aprovada pela Conferência de São Francisco (1945), proclama a proibição do uso da força salvo em legitima defesa, reconhece os direitos humanos, e estabelece mecanismos para seu aprofundamento e promove cooperação em áreas como agricultura, saúde, ciência e cultura, o que ensejou a criação dos organismos especializados. O Conselho de Segurança, encarregado da defesa da paz e da segurança internacionais, foi dotado de poderes mais robustos do que o Conselho da Liga, podendo empreender operações militares para a defesa da paz, mediante resoluções, mandatórias para todos os Estados. Essas resoluções devem contar com a anuência dos cinco membros permanentes (Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França) 

Há diversas categorias de organizações internacionais. As mais comuns são as criadas por Estados, cujas características são as seguintes: 

1. São sujeitos de direito internacional, capazes de assumir obrigações e exercer direitos. Podem celebrar tratados internacionais, dentro dos limites do ato constitutivo da organização ou por deliberações dos órgãos competentes. Gozam de imunidades no limite necessário ao exercício de suas funções.

2. Não são soberanas, e sim dotadas de competência conforme o mandato estabelecido no ato constitutivo da organização, geralmente um tratado entre Estados ou decisões tomadas pelos seus órgãos deliberativos.

3. São geralmente dotadas de uma secretaria administrativa. Os órgãos deliberativos costumam ser uma assembleia ou conferência, de frequência anual com participação de todos os membros, e um conselho executivo, de composição mais restrita e eleito pela conferência, que se reúne com mais frequência e gere os assuntos e programas aprovados pela conferência no interregno entre as sessões desta última.

O caráter normativo dos atos das organizações internacionais e as obrigações deles decorrentes para com os Estados membros têm sua fonte primária no acordo constitutivo, tratado internacional ao qual o Estado deu seu consentimento, e cujas normas devem ser cumpridas de boa fé. Seu descumprimento gera consequências. Assim, a falta de pagamento das quotas anuais devidas para financiar o orçamento pode ocasionar a perda do direito de voto. 

 A Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, contém um preâmbulo que enumera os princípios básicos acordados entre os membros sobre cooperação internacional em matéria de saúde. Seguem-se 82 artigos que estipulam concretamente os objetivos, funções e a forma de operação dos diferentes órgãos. 

As decisões e resoluções de uma organização têm em geral um caráter recomendatório, não estritamente obrigatório, visando a persuadir os Estados a adotarem certo tipo de comportamento. Em certos casos, resoluções da Assembleia Geral da ONU, ainda que vazadas em linguagem recomendatória, assumiram, pelo modo de sua votação ou pela reiteração de sua importância, o caráter de fonte de obrigações. É o caso da Resolução sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). 

As organizações internacionais podem, também, de acordo com seu instrumento constitutivo, adotar decisões com caráter obrigatório. No caso da OMS, o art. 21 autoriza a Assembleia a adotar regulamentos para prevenir a ocorrência e a propagação internacional de doenças, e dispor sobre vários outros aspectos relativos à saúde pública. Pelo art. 22, estas regras, que constituem o Regulamento Sanitário Internacional, entram em vigor para todos os Estados membros após um prazo determinado, exceto para os países que notificarem sua não aceitação dentro deste prazo. Tornam-se regras internas dos Estados.

 * Diplomata aposentado. Membro da Comissão de Direito Internacional da ONU. 


RPD || Entrevista especial: Constituição não permite Forças Armadas intervirem contra um dos poderes, diz Nelson Jobim

Ex-ministro da Defesa durante o segundo mandato de Lula e no primeiro ano do Governo Dilma, Nelson Jobim é enfático em afirmar que o artigo 142 da Constituição de 1988 não dá o direito de as Forças Armadas intervirem contra um dos poderes da República

Por Caetano Araujo, Alberto Aggio e Arlindo Fernandes de Oliveira

"O texto constitucional de 1988, em seu artigo 142, diz que as Forças Armadas deverão garantir os poderes condicionais contra pressões de terceiros, mas não eventuais conflitos entre eles, dentro da lógica de que os militares não podem tomar partido em questão interna. Não são um poder, são uma instituição", avalia o entrevistado especial desta 20ª edição da Revista Política Democrática Online, Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa durante o segundo mandato do ex-presidente Lula (2007-2011) e no primeiro ano do governo da ex-presidente Dilma Roussef (2011). O artigo 142 da Constituição Federal é, hoje, o centro da mais nova polêmica envolvendo o Governo Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF). 

Dessa forma, avalia Jobim, "é equivocada a tese, verbalizada por Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores". Até 1988, os militares tinham a faculdade, pela Constituição, de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação alguma. "Trata-se de uma prática tão comum como nociva no sistema legal, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo", completa.

Deputado federal por dois mandatos, ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1997) e presidente do STF (2004-2006), Nelson Jobim é defensor da teoria de que, na história do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto. Jobim avalia que o horizonte de solução da crise política que o país vive atualmente passa pelo processo eleitoral de 2022. Em sua avaliação, nenhum processo como os decorrentes das declarações do ex-ministro Sérgio Moro, envolvendo a reunião ministerial de 22 de abril; a ação em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que analisa o processo eleitoral que deu a vitória a Bolsonaro ou o afastamento do presidente da República por conta do acolhimento de alguma denúncia de crime impetrada pelo Ministério Público Federal tem possibilidades concretas de andamento. 

Na entrevista especial que concedeu à Revista Política Democrática Online, Nelson Jobim também trata de temas como a influência do bolsonarismo nas polícias militares dos estados e questões judiciais envolvendo o combate à pandemia de coronavírus no país. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

"Os militares da ativa enfrentam dois problemas. O primeiro surgiu com aquela manifestação do Presidente Bolsonaro na frente do QG do Exército, em Brasília. O segundo, com a retirada do controle e do monitoramento das armas"

 Revista Política Democrática Online (RPD). Em sua opinião, nossa democracia está em risco? E, em caso afirmativo, quais seriam as tarefas dos democratas? 

Nelson Jobim (NJ): Não creio que esteja em risco, porque isso teria de envolver as Forças Armadas (FFAA), o que não é o caso. Refiro-me aos militares que comandam tropa, não os que comandam escrivaninha. E os militares da ativa tiveram duas preocupações. A primeira foi a manifestação do presidente Bolsonaro na frente do QG do Exército, em Brasília. A segunda, com a retirada do controle e do monitoramento das armas. Mas os militares estão tranquilos em relação a isso.

 Há uma retórica do conflito, porque Bolsonaro resolveu substituir o presidencialismo de coalizão pelo de colisão, ou seja, de conflito. Talvez isso se tenha consolidado, pois era uma característica anterior do presidente, com a mão que o então juiz Moro deu, ao divulgar diálogo entre a Presidente Dilma e o ex-Presidente Lula. É assim que o Presidente Bolsonaro prefere operar e isso leva a certa instabilidade. Só que tem havido ampla mobilização pública no sentido de preservar o processo democrático, incluindo todos os setores de oposição, à exceção do Presidente Lula, que já se declarou contrário à iniciativa de uma frente comum. 

Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o Presidente Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar a uma ruptura do processo. 

RPD: Qual é a sua interpretação do artigo 142 da Constituição? Os militares podem desempenhar papel de poder moderador?

NJ: Em 1987, quando discutimos esse tema na Constituinte, houve uma tentativa de entendimento do relator, o deputado Bernardo Cabral, com os militares, concretamente, com o General Leônidas, então ministro do Exército. À época, não existia o Ministério da Defesa. Cogitou-se de manter o modelo que vinha desde 1991. Até 1988, os militares tinham a faculdade constitucional de intervir para preservar a lei e a ordem, sem limitação. Eles eram, digamos, os árbitros de quando deveriam intervir, embora nominalmente o Presidente da República fosse o comandante supremo das FFAA. Alguns militares queriam reproduzir essa normativa, em sintonia com a teoria desenvolvida pela Escola Superior de Guerra, ainda durante o regime militar,  segundo a qual as FFAA poderiam intervir no interior do país, se julgassem necessário. Chamava-se a teoria de guerra revolucionária interna. Discutimos isso na Constituição de 88, que decidiu restringir a intervenção das FFAA, subordinando-as à convocação por um dos poderes da República, para a manutenção da lei e da ordem. Não só não existe mais, portanto, a possibilidade dessa intervenção, ao não ser a pedido de um dos três poderes, mas também dispõe o texto constitucional que as FFAA deverão garantir os poderes condicionais contra pressões de terceiros, mas não eventuais conflitos entre eles, dentro da lógica de que os militares não podem tomar partido em questão interna. Não são um poder, são uma instituição.

É, assim, equivocada a tese, verbalizada pelo Doutor Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustar a legislação nova com pressupostos anteriores. Trata-se de uma prática tão comum como nociva, essa de tentar, por via de exegese, fazer sobreviver o modelo anterior por dentro do modelo novo. À época, lembro-me que alguns militares protestaram quanto à redação. Fernando Henrique e José Richa, entre outros, intervieram para superar o impasse e, finalmente, logrou-se apaziguar o conflito, de maneira que hoje temos uma redação solidamente inequívoca do artigo 142. 

"Sempre haverá discursos políticos, mas não creio que o próprio Bolsonaro terá condições de produzir algum conflito que possa levar uma ruptura do processo"

RPD: No contexto da discussão sobre a separação dos poderes, alega-se possível judicialização da política, certa extrapolação de competências do Judiciário, em geral, e do Supremo, em particular. Qual é sua visão?

NJ: Esse fenômeno é recorrente em todo o mundo, mas me concentro no caso brasileiro. Registro, de início, uma disfuncionalidade no processo político. As regras de solução de conflitos pela política acabaram sendo substituídas pela tentativa de introdução do Poder Judiciário. O Poder Judiciário – o Supremo, no caso específico –, não tem iniciativa de ofício, depende de provocação de parte dos partidos políticos ou de outras entidades. Pelos idos de 1990, um senador, líder de um partido político, dizia em alto e bom som que tinha mais visibilidade quando interpunha perante o Supremo uma ação direta de inconstitucionalidade do que quando votava no Senado. 

A composição do Supremo, às vezes, também é um problema. Todos os ministros, sem exceção alguma, são, desde 1891, indicados pelo presidente da República e, depois, submetidos a sabatina no Senado. Muitos tinham relações diretas ou indiretas com o presidente da época, como o meu caso, por exemplo, com o Fernando Henrique; o do José Paulo Sepúlveda Pertence, com o Sarney; o do Moreira Alves, com o Geisel. Muitos já detêm biografia, lato sensu, antes mesmo de entrar no Supremo. Outros precisam do Supremo para completar suas biografias e, entre esses, há os que escolhem temáticas mais agudas para se sobressair, exibindo independência em relação ao governo, ou votando sistematicamente contra as propostas do Planalto.

 Há ainda aqueles ministros que se dispõem a romper a jurisprudência do Supremo, na expectativa de criar um leading case e se celebrizarem como os pais da pretensa “inovação”. 

E, no caso específico da questão política, tínhamos uma contenção muito grande quando se falava em intervenção na atividade interna de outros poderes. Por exemplo: o  Ministro Fux deu uma decisão em que sustentou ser equivocada a tese antiga do Supremo, de autocontenção quanto às matérias do Congresso. Para ele,  essa distinção não fazia sentido. Sua origem fora um embate entre a Câmara e o Senado, e o ministro entrou na análise do regimento interno de ambas as Casas, quando nunca foi de nossa prática, no Supremo, decidir questões relativas a matérias interna corporis, ou seja, matérias regimentais. Esse é um dos problemas.

Outro problema é, digamos, a pulverização do processo decisório, mais na Câmara que no Senado. Diante da existência de número elevado de partidos – que deve ser reduzido em breve, depois da reforma recém-concluída –, a composição de maiorias resulta mais difícil, em prejuízo da nitidez de posições e da autoridade dos líderes partidários. O momento de inflexão ocorreu com a eleição do Severino Cavalcanti. Antes, os deputados dependiam dos líderes para ter acesso à Mesa da Câmara e ao governo. Com a chegada do Severino, que não era um candidato das lideranças partidárias da época, a intermediação passou a ser feita pelo presidente da Câmara, e os líderes perderam importância. Hoje, não é fácil nomear os líderes partidários; logo, a formação da vontade majoritária não tem passado pela capacidade eventual dos líderes, de comandar suas bancadas. O preço a pagar por isso é a ambiguidade. Para se votar uma matéria, fazer a redação de um texto legal, quanto mais ambíguo, melhor, para poder abrigar quatro ou cinco interpretações. Daí a transferência, para o Poder Judiciário, da interpretação das leis, como se fosse uma espécie de Poder Legislativo supletivo, o que gera tantos conflitos. 

Existe, pois, uma série de elementos para a chamada judicialização da política, que se está agravando. Eu acho péssimo, porque sentença judicial não compõe o futuro: sentença judicial examina uma situação passada e verifica se as condutas de ontem se podem ajustar à legislação vigente. Decide-se, assim, sobre o passado e aplica-se uma solução para os personagens envolvidos no passado. 

Nas ações abstratas, a mesma coisa: examina-se se uma legislação está conforme à Constituição, mas tem um problema nas ações diretas. Vivemos, hoje, uma diarreia de princípios. Todo mundo inventa um, tem princípio para tudo. Atualmente, na discussão entre a norma jurídica, a proposição jurídica e o princípio privilegia-se a sobreposição do princípio sobre a norma jurídica, ao disposto legal, e gera-se uma interpretação principiológica, interpretação que é uma espécie de traveller-check, um salvo conduto para o que se concebeu. E aí é a hora de inventar um princípio. Essa é outra disfuncionalidade dentro do Poder Judiciário. 

Essas decisões, agora, sobre a abertura ou fechamento das atividades na pandemia: que capacidade tem um juiz de direito para entender de abertura ou não do comércio? Acho isso muito ruim, vamos ter problemas, mas temos que passar por isso, estamos hoje, eu diria, na travessia do deserto, mas vamos chegar lá. 

RPD. Há, em relação à pandemia, claramente, senão uma cizânia, no mínimo um dissenso, entre a Presidência, o Poder Executivo Federal e os governadores. Do ponto de vista constitucional, as FFAA são subordinadas ao Poder Executivo. Ao mesmo tempo, as Polícias Militares, que parecem hoje mais ligadas não à Presidência, mas ao bolsonarismo, são subordinadas aos governadores. Isso pode constituir-se em uma ameaça de conflito entre a União e os Estados? 

NJ: Este é um ponto importante, relevante para a análise da situação atual e definidora para as condutas que se devam tomar. Consideremos, primeiro, o problema, digamos, evolutivo das Polícias Militares. Antes da Revolução de 30, antes de Getúlio Vargas, as Polícias Militares eram o braço armado dos presidentes dos Estados. Exemplo mais claro disso ocorreu na presidência de Flores da Cunha, no Governo do Rio Grande do Sul. Quando Getúlio assumiu, ele cortou esse braço armado dos governadores, além de ter reduzido, digamos, a qualificação dos presidentes de Estado para governadores, uma espécie de descenso semântico nominal. Ele submeteu, naquele momento, o efetivo e o armamento das forças públicas ao escrutínio do Exército, que controlava o efetivo e o armamento. 

"É equivocada a tese, verbalizada pelo Doutor Ives Gandra, que teima em trazer o passado por cima da legislação nova, ou seja, ajustando a legislação nova aos pressupostos anteriores"

Na Constituição de 34, passou-se a considerar as Polícias Militares como reservas do Exército, para eventual conflito. Isso foi mantido até o golpe de 64. Em 64, houve uma maior aproximação das Polícias Militares com o Exército. Por quê? Porque, no início, imediatamente após o golpe, os chefes, os comandantes da Polícias Militares estaduais eram normalmente coronéis do Exército. E os secretários de Segurança dos governadores, indicação da Presidência da República, inicialmente militares. Não estava na lei, mas era o que se praticava. Os coronéis passaram a ser secretários de Segurança dos Estados e comandantes da polícia. Com a Constituição de 67, ampliou-se a participação do Exército no controle da Polícia Militar, porque se submeteu também ao Exército a instrução das Policias Militares, nas escolas do Exército, como se fossem soltados de infantaria. Para isso, influenciou aquela doutrina da guerra revolucionária interna. Urgia aparelhar as Polícias Militares, que tinham mais capilaridade que o próprio Exército, espalhadas por todo o país, um apoio imprescindível na eventualidade de perturbações internas. 

Em 1988, reservamos grande atenção a esse ponto. O Deputado José Genoíno foi um dos que estudaram o tema, e ocorreu longa e ampla discussão com os militares. Ao final, retirou-se a instrução das Polícias Militares pelo Exército, voltando à regra anterior. 

RPD: Seu relato dá a impressão de que tudo ocorreu naturalmente. Que antecedentes terão pesado em favor dessa transição?

NJ: Muitos. De início, o afastamento dos militares das academias das Polícias Militares. Pouco a pouco, também, os secretários de Segurança passaram a ser indicados pelos governadores, podendo ser civis. E o presidente Castelo Branco tomou, dentro das FFAA, decisão de grande impacto.  Ele mexeu na carreira militar. Antes de 67, os generais poderiam ficar o tempo que fosse no generalato. Cordeiro de Farias, por exemplo, permaneceu vinte e tantos anos como general. Castelo decidiu acabar com os “generais chineses”, como chamava, os donos do Exército. Estabeleceu o limite para a permanência no generalato, hoje de 12 anos. Como general de brigada, general de divisão e general do exército, o oficial só poderia ficar 12 anos, sendo quatro em cada escalão. Se não fosse promovido ao final de quatro anos de um escalão a outro, passaria automaticamente para a reserva, com o que se introduzia, também, uma expulsória adicional àquele limite de 12 anos, sob a forma de uma renovação de um quarto dos efetivos de cada escalão. A legislação de Castelo contribuiu para acabar com os militares líderes políticos. Durante os quatro anos e meio em que ocupei o Ministério da Defesa, não convivi, por exemplo, com os mesmos oficiais superiores, à luz da mencionada rotação promovida por Castelo.

Castelo tentou também alterar a legislação que regia a atividade política dos militares. Pretendia, pelos registros que conhecemos, que os militares, para entrarem em atividade política, se afiliarem a partidos, devessem ter a mesma conduta que os juízes de direito: deixar a carreira. Mas não conseguiu. Conseguiu, porém, outra coisa. Quando o militar se filiasse a um partido político, ficaria logo agregado à força. Se fosse eleito, continuaria agregado à força. Assim, se, lá adiante, não fosse reeleito, não retornaria para a força, como no passado. Castelo criou, ainda, o domicílio eleitoral, que tinha destinação especifica: impedir que generais fossem candidatos a governos nas eleições indiretas. 

RPD: Voltando às Polícias Militares.

NJ: Voltando ao tema, antecipo alguns problemas. O que está fazendo o Presidente Bolsonaro? Percebendo que a posição legalista e constitucionalista das FFAA é ineludível, vem tentando fazer carinho nas Polícias Militares. O primeiro carinho foi a sinalização que deu quando ele, antes da vedação legal, aceitou o aumento dos soldos da Polícia Militar do DF. Essa sinalização foi financeira. O carinho político veio quando daquela "rebelião" no Ceará. O ex-ministro Moro elogiou líderes do movimento. 

Outra sinalização, para mim mais preocupante, é uma emenda constitucional que já foi aprovada na Câmara, monitorada pelos policiais e oficiais militares que são deputados, permitindo o retorno à força se não forem reeleitos. Procuram ressuscitar a regra anterior a Castelo. A PEC está parada no Senado, mas a intenção é, em seu momento, tentar mobilizar as Polícias Militares. Mas, a meu ver, tudo depende da habilidade dos governadores, para manter o controle de suas polícias e, claro, das próprias lideranças policiais. 

"O carinho foi a sinalização que Bolsonaro deu quando ele, antes da vedação legal, aceitou o aumento dos soldos da Polícia Militar do DF. Essa sinalização foi financeira. O carinho político foi em relação àquela ‘rebelião’ no Ceará"

Lembrem-se, ainda, que os militares da ativa estranharam a posição de Bolsonaro quando ele alterou aquelas portarias do Exército sobre o controle de armas, até agora de competência do Exército. O que fez a revogação das quatro portarias? Primeiro, aumentaria o número de aquisições de munições; segundo, e mais importante, o Exército perderia o rastreamento das armas. E a quem interessa a ausência de controle sobre a compra e o rastreamento das armas? Às milícias. 

Temos, assim, dois eixos: as milícias (fala-se, inclusive, em alguma ação judicial para impedir esse “namoro”) e o aceno às Polícias Militares, o que é ruim. Mas eu não creio que as Polícias Militares rompam seu princípio de hierarquia e disciplina, que é muito forte. Mas, como disse, tudo depende da habilidade que possam ter os governadores. Recordo que quem trouxe os policiais militares para a política foram os partidos, porque os votos neles se somariam aos dos outros candidatos, para formar o coeficiente partidário. No início, esses policiais militares atraídos para a política não eram, em geral, os comandantes da força, mas os presidentes dos clubes de subtenentes e sargentos, que se candidatavam a vereadores e deputados estaduais; depois, a coisa cresceu. Temos que estar atentos, imaginem um oficial desses militares eleitos podendo voltar à força. 

RPD: O senhor defendia a teoria de que, na História do Brasil, os conflitos mais emblemáticos tiveram suas soluções encaminhadas pela conciliação e não pelo confronto. Mantém essa visão?

NJ: Mantenho e acrescento que o horizonte de solução da crise corrente passa pelo processo eleitoral de 2022. Fala-se em impeachment agora, mas não tem rua ainda para isso. Os riscos de contágio na pandemia podem não estar permitindo a mobilização. Então, deixemos o problema da pandemia passar.

O afastamento do presidente da República pode dar-se pelo impeachment, que é o remédio mais doloroso, envolve somente a Câmara e o Senado, um para receber, e outro para julgar, ou pelo afastamento do presidente por seis meses, por conta de uma denúncia de um crime impetrada pelo Ministério Público, e a Câmara dos Deputados aceitando o prosseguimento da ação penal perante o Supremo. 

Essa segunda hipótese ocorreria com um processo que resulta do inquérito decorrente daquelas declarações do ex-ministro Sérgio Moro. A prova afirmada por ele estaria no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. Do meu ponto de vista, falando como advogado, entendo que aquilo não ajudou muito. Pelo contrário, o vídeo, embora terrível para nós, foi avaliado como positivo pela ala bolsonarista: um presidente forte e destemido, bem ao gosto desses setores. O inquérito está lá no Supremo e já foi prorrogado, inclusive, por mais 30 dias, pelo Ministro Celso de Melo. A meu juízo, pelo menos com base naquele vídeo, não dá condenação, salvo se houver outras provas

E a terceira hipótese – esta mais preocupante, pelo menos para o governo – é a ação em curso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Lembre-se que começou como uma grande campanha contra os movimentos, contra as fake news etc., mas, se chegar a envolver o processo eleitoral, pode levar à cassação da chapa, vale dizer, a nova eleição. Se ocorrer até o segundo ano do mandato do Presidente Bolsonaro, teríamos uma eleição direta, para um novo presidente completar o mandato.

Por enquanto, nenhum desses três mecanismos parece caminhar. Creio que agora não é o momento estratégico para se abrir um conflito concreto. Mas é preciso juntar o povo, juntar as pessoas e não o ódio, motivação preferida pelos bolsonaristas. 

Volto ao tema da conciliação, em que continuo acreditando. Durante o Governo Collor, estava no Palácio do Itamaraty e passeava os olhos, distraído, por um quadro tendo como motivo D. Pedro I. Diga-se de passagem, que não é só o Palácio do Planalto que tem obras do Império. No Itamaraty não se vê sequer uma fotografia republicana. É o Barão de Rio Branco e o resto, só imperador, princesa, rainha etc. Acontece o mesmo nos salões da Marinha, aliás. Admirava o quadro, como ia dizendo, quando o Darcy Ribeiro comentou: "Jobim, está estranhando esse quadro?... Esse aí não é o Dom Pedro I, esse é o Dom Pedro IV, olhe para as comendas no peito dele, são de Portugal, não do Brasil. Esse aí é o Dom Pedro IV. Vê como é que é o Brasil? Nós botamos um quadro na parede, do Dom Pedro IV, pensando que é o Dom Pedro I, e aí fica tudo igual". 

O que bem ilustra o processo de conciliação. A República foi um processo que decorreu de um conflito do Exército com o gabinete liberal do Visconde de Ouro Preto, onde havia um problema, falando a linguagem moderna, de contingenciamento. O Marechal Deodoro protestou e o que inicialmente um golpe contra o gabinete imperial do Visconde de Ouro Preto se transformou em derrubada do Império. 

O espírito de conciliação se estampa na sobrevivência de personagens de um regime no outro. Rui Barbosa, por exemplo, era imperial e resolveu aderir à República, com a retórica de que entrava na República porque ela iria impor a Federação. Na transição de Getúlio, 1945/46, o que é que nós tivemos? Grande parte dos interventores dos Estados, nomeados por Getúlio, virando governadores, e o presidente da República, Dutra, tendo sido o ministro da Guerra anterior. Foram transposições, mesma coisa agora: o regime militar participou da negociação da transição, cujo eixo central foi a concessão da Anistia, que querem derrubar hoje, aliás. Mas a Anistia foi base da transição. 

Outra contribuição muito importante foi a posição do Presidente Sarney. Escolhido com vice-presidente na chapa do Tancredo Neves, no lugar do Deputado Nelson Marchezan, o preferido inicial pelo político mineiro. Sarney assumiu a Presidência em momento muito delicado. Ainda fervilhavam os efeitos da campanha liderada pelo Dante de Oliveira, em favor das “Diretas Já”, e a nação mal se recuperava do trauma da morte do presidente eleito. O Presidente Sarney soube conduzir a transição de regime militar em civil com muita habilidade e criatividade. Para devolver os militares aos quartéis, deu-lhes claro sentido de missão, ao atribuir-lhes a incumbência de liderar, por exemplo, o projeto Calha Norte, estratégico para a supervisão da soberania nacional em toda a imensa área de fronteira do Brasil na Amazônia.

 A esquerda mais radical não queria isso. À exceção do Partido Comunista, o partidão, os outros partidos de esquerda haviam pregado a guerra armada clandestina. Questões como a guerrilha no Araguaia, por exemplo, retardaram o avanço da transição, acirrando o conflito com os falcões das FFAA, vistos como heróis na luta contra os guerrilheiros, um equívoco político de ambas as partes que retardou por muito tempo a transição. 

Acho, portanto, procedente a visão de que foi o processo de conciliação, de negociação, apadrinhado pela transição, que permitiu o apaziguamento. Não vejo, hoje, possibilidade de um conflito porque não existem mais, digamos, generais políticos. Os oficiais superiores das FFAA estão tranquilos, isto é, estão tranquilos, embora preocupados com os movimentos que possam ocorrer. Mas penso que não querem mais, digamos, aceitar vivandeiras, como diria o Castelo, circulando os quartéis.

*Nelson Jobim é jurista, político e empresário brasileiro. Exerceu os cargos de deputado federal, ministro da Justiça, ministro da Defesa e ministro do Supremo Tribunal Federal.


RPD || Editorial: Informação e Desinformação

A pandemia prossegue seu avanço no país. Em poucos meses, passamos de uma situação de segurança relativa, na qual nossas deficiências estruturais eram compensadas pela atuação do SUS e pela clareza das autoridades sanitárias, para epicentro da doença no mundo, no caminho célere em direção ao caos.

É clara a responsabilidade do presidente da República nessa guinada. A julgar por suas declarações, a batalha sanitária foi dada por perdida, o quanto antes, melhor, a qualquer custo em termos de vidas, para reforçar o combate na frente, ilusória, da economia.

Ilusória porque não haverá recuperação econômica enquanto perdurar a pandemia. Mas, para jogar o peso do governo na estratégia suicida da temeridade, a arma utilizada é a desinformação. Primeiro, na subestimação das consequências, ainda pouco conhecidas, de uma nova enfermidade.

Segundo, na demolição de toda tentativa de estabelecer barreiras sociais para retardar a contaminação. Terceiro, na apologia dos falsos remédios milagrosos, com o intuito de tranquilizar a população. Finalmente, na tentativa, imediatamente baldada, de amenizar as estatísticas sanitárias. No mínimo, como se não houvesse consequências graves, uma atitude infantil, como a reação das crianças, que fecham os olhos ao enfrentar uma injeção.

A essa estratégia é preciso contrapor a política da informação e do esclarecimento. Lembrar a todos o pouco que conhecemos acerca da doença e a urgência da cautela como única reação racional. Sem vacina e sem remédio, aqueles que provocam aglomerações ou que delas participam, que recusam o uso de máscaras e outros acessórios de segurança, não arriscam apenas as próprias vidas, mas a saúde e a vida de todos aqueles que cairão na extensa rede de contatos que se forma a partir de cada um.

Há uma segunda frente de combate no Brasil e nela também campeia a desinformação: a defesa do Estado Democrático de Direito. Também aqui, verdades simples precisam ser ensinadas dia a dia, pelas pedagogias da palavra e do funcionamento das instituições. A Constituição está acima de todos; a disciplina e a hierarquia subordinam as forças estaduais aos governadores eleitos; apologia da ditadura é crime; a Federação não é hierárquica; e, no dia em que o presidente tiver o poder de determinar o que o Judiciário pode investigar, a democracia terá cedido lugar ao império da ditadura e da corrupção.

Mobilizemo-nos em defesa da vida e da democracia, em favor da informação e do esclarecimento, contra a desinformação e o obscurantismo.