Day: junho 13, 2020

Ricardo Noblat: Um governo campeão de afrontas ao Supremo Tribunal Federal

A normalização da insanidade

Se concordassem com o que disse o ministro Luiz Fux, o próximo presidente do Supremo Tribunal Federal, a respeito do papel das Forças Armadas, o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo estariam dispensados de se manifestar. Não foi o que fizeram.

Em nota divulgada ontem à noite, os três disseram que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas” como a tomada de poder, mas que também não aceitam julgamentos políticos que levem à tomada de poder “por outro poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”.

Bolsonaro voltou a afirmar que lembra “à Nação Brasileira que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República” e que “as mesmas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Horas antes, Fux expediu liminar para disciplinar regras de atuação das Forças Armadas à luz da Constituição. Disse que o poder de “chefia das Forças Armadas é limitado” e que não há margem para interpretações que permitam sua utilização para “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros Poderes.

Segundo o ministro, em linha com seus demais colegas de tribunal, “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”.

No início da semana, o ministro Dias Toffoli afirmou: “As Forças Armadas sabem muito bem que o Art. 142 da Constituição não lhes dá o papel de poder moderador”. E Gilmar Mendes, que cabe a elas “proteger os poderes constitucionais e atuar na defesa da lei e da ordem”. Interpretar a Constituição é tarefa do Supremo Tribunal.

E assim terminou a semana onde Bolsonaro, aos olhos de alguns observadores da política, parecia disposto a não confrontar mais os demais Poderes e nem a desatar mais crises que só tencionam o país. Bolsonaro jamais deixará de ser o que sempre foi – um militar anarquista com vocação de ditador. É da sua natureza.

E pelo jeito, não só da dele. O general Mourão, quando na ativa, chegou a ser punido por declarações políticas consideradas incorretas. Na campanha eleitoral de 2018, admitiu que o governo pudesse aplicar um “autogolpe” para se fortalecer. Como vice, fantasiou-se de cordeiro. Recentemente, despiu a fantasia.

A falsa mansidão de Bolsonaro não o impediu em menos de uma semana de assinar uma Medida Provisória para permitir que o ministro da Educação nomeasse interventores de universidades durante o período da pandemia. Por ferir a Constituição, o presidente do Senado devolveu a medida e Bolsonaro a revogou.

Também não o impediu de estimular seus devotos a invadirem hospitais a pretexto de filmá-los e conferir se estavam vazios. Missão dada, missão cumprida. Um grupo de cinco invadiu o Hospital Ronaldo Gazolla, unidade de referência no tratamento da Covid-19, no Rio, chutou portas e derrubou computadores.

Por ordem de Bolsonaro, o Ministério da Saúde tentou esconder o número de mortos pela doença, recuando em seguida graças a uma mais uma decisão do Supremo Tribunal Federal. O Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos não fez diferente: em relatório, omitiu os dados sobre a violência policial no país.

Porque hoje é sábado e ainda restam horas para que a semana termine, não se pode descartar a produção de novos fatos por um governo empenhado em normalizar a insanidade. A propósito: o ministro da Defesa de Bolsonaro será outra vez obrigado a explicar em nota o que quis dizer na nota anterior? Já fez isso duas vezes.


El País: Brasil salta de quinto a segundo país com mais mortos por coronavírus no mundo em duas semanas

Com 41.828 óbitos, país ultrapassa Reino Unido. Pesquisadores veem aceleração da doença com reabertura do comércio. Projeção calcula 60.000 mortos até o fim do mês

Bastaram duas semanas para o Brasil saltar da quinta para a segunda posição no ranking de países com maior número de mortes pela covid-19. Nesta sexta-feira, o país ultrapassou o Reino Unido (que tem 41.481 mortes) ao registrar 41.828 vítimas fatais do novo coronavírus. De acordo com os dados do Ministério da Saúde, o país soma 828.810 infecções —com 909 novos óbitos e 25.982 casos notificados em 24 horas— e ainda investiga 4.033 mortes.

Há um mês, autoridades de saúde e cientistas alertam sobre a tendência de que o Brasil se torne o próximo epicentro global da pandemia, posto atualmente ocupado pelos Estados Unidos, com 2.083.548 de casos confirmados e 116.130 mortes. No ranking de óbitos por milhão de habitantes, o Brasil ocupa a 11ª posição global, com 180 mortes por milhão de pessoas. A Bélgica lidera a contagem, com 831 óbitos por milhão, seguida pela Espanha, com 580 mortes por milhão, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No início de maio, quando o Ministério da Saúde sequer registrava 8.000 óbitos pelo novo coronavírus, estudos da Universidade Johns Hopkings e um levantamento do Observatório Covid-19 BR indicavam que o país superaria 1,6 milhão de infecções. Na mesma época, especificamente no dia 8 de maio, a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto publicou um estudo que apontava que o Brasil já teria dois milhões de casos de covid-19. Considerando essa estimativa, teríamos, hoje, quatro milhões de casos.

Em 20 de maio, o EL PAÍS estimou que apenas um em cada 20 casos é notificado pelo Governo e que o número de infectados no Brasil pode chegar a 3,7 milhões de pessoas. Esse é o número obtido quando se aplica o método de um grupo de matemáticos e epidemiologistas da London School of Hygiene and Tropical para calcular a subnotificação.

Vitor Engrácia Valenti, doutor em Ciências e professor da UNIFESP, que também trabalha com projeções feitas pela Oxford University de Londres, aponta que o Brasil já pode ser o epicentro global da pandemia. “Era esperado que, com uma estimativa de comportamento da doença, o pico de contágios chegasse em dois ou três meses depois do primeiro caso, mas a covid-19 ainda está em avanço no Brasil”, diz o pesquisador.

Valenti aponta que, com o recente relaxamento das medidas protetivas —comércio e outros serviços reabriram esta semana em São Paulo, a principal cidade do país— o Brasil pode registrar mais de duas mil mortes diárias no começo de julho. Já o professor de medicina Domingos Alves, responsável pelo Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, esse registro pode ser ainda maior. “Nós somos o único país no mundo que depois do dia 50 estava acelerando no número de casos e de óbitos. Temos projeções que indicam que podemos chegar a 5.000 óbitos por dia em julho”, afirma.

“Como não podemos prever o comportamento das pessoas, se vão respeitar o isolamento social ou não, é possível que tenhamos 3.000 ou 4.000 mortes por dia no próximo mês”, pondera Valeti. Um estudo do qual ele fez parte demonstra que o isolamento salvou pelo menos 10.000 vidas no país. Para o cientista, o que é certeza é que já não existe a possibilidade de se falar em um “cenário otimista” para o Brasil. “Em nossa projeção realista, o país teria 41 mil óbitos por covid-19 no dia 9 de junho, uma cifra muito próxima da registrada oficialmente na data [38.406], considerando a polêmica sobre a transparência nos números divulgados pelo Ministério. De acordo com a projeção pessimista, podemos chegar a 60 mil mortes até o final deste mês”.


‘Nova epidemia é só uma questão de tempo’, afirma Pedro Scuro Neto

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, sociólogo destaca necessidade de focar nas desigualdades que fazem as crises serem mais devastadoras

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“No mundo real, enquanto os países se mobilizam para conter o coronavírus e suas nefastas consequências, não se pode perder de vista quadro bem mais assustador: uma nova pandemia é só uma questão de tempo”. A afirmação é do sociólogo e jurista Pedro Scuro Neto, diretor da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris), em artigo que publicou na 19ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.

Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online

Pedro Scuro, que também é autor de Sociologia Geral e Jurídica, cuja 8ª edição (A Era do Direito Cativo) é publicada pela Saraiva, diz que o surto global de Covid-19 não foi uma anomalia. “Doenças infecciosas emergem e reemergem em velocidade nunca vista ao longo da história. De 1980 a 2013, o número de epidemias anuais oscilou de 1.000 a mais de 3.000”, alerta.

Segundo o artigo de Scuro publicado na Política Democrática Online, doenças infeciosas, como Zika, MERS-CoV, SARS, cólera, tuberculose, HIV, influenza e ebola, matam milhões todos os anos e, no seu rastro, destroem economias, causam pânico e, como no Brasil, crises institucionais. “Situação que expõe a fragilidade das economias, a insuficiência das redes de segurança social e permanente subinvestimento em sistemas de saúde pública”, critica ele.

Em sua análise, Pedro Scuro Neto sugere que, primeiro, é preciso reforçar a capacidade do sistema de saúde na detecção e contenção de doenças com organismos centralizados de vigilância de dados que articulem informações de laboratório com dados populacionais e medidas clínicas.

Em segundo lugar, conforme ele aponta, é necessário desenvolver comunicação e coordenação, articulando centros de controle e prevenção com organismos da sociedade civil capazes de guiar respostas durante as crises e preparar protocolos baseados em evidências e boas práticas de saúde mesmo em tempos em paz. “Finalmente, focar nas desigualdades que fazem as crises tão devastadoras, atentando para pequenas empresas, trabalhadores e pessoas mais vulneráveis”, pondera.

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Alon Feuerwerker: Truque renovado

O exercício do poder recomenda instalar fusíveis que possam ser descartados quando alguma coisa dá errado. Para preservar o comando central, e o próprio comandante. Na pandemia da Covid-19 Jair Bolsonaro ficou sem fusível para queimar. Não seria melhor para ele se hoje um ainda ministro Luiz Henrique Mandetta tivesse de responder pelos trágicos números?

Exercer e exibir poder pode ser prazeroso, mas traz custo. Aliás os maiores obstáculos e armadilhas enfrentados pelo presidente têm resultado quase sempre das decisões dele mesmo. Foi Bolsonaro quem decidiu chamar Sergio Moro para o ministério. Tivesse ficado em Curitiba, o ainda juiz estaria dando dor de cabeça só aos adversários do ocupante do Planalto.

Foi também Bolsonaro quem na formação do governo resolveu dar ouvidos ao canto de sereia da dita nova política. Fazer média com o eleitor-torcedor intoxicado pela antipolítica. Agora tem de consertar o avião em voo, trazendo de forma meio atabalhoada uma base capaz de evitar na Câmara dos Deputados o impeachment, ou a autorização para o processo no Supremo Tribunal Federal.

Mas Bolsonaro também foi prudente, pelo menos num caso. Quando decidiu ignorar a eleição interna da corporação e nomeou um de fora da lista tríplice para procurador-geral da República. Como estaria o morador do Alvorada se o comando da PGR estivesse, como inaugurado pelo PT, sob controle da guilda dos procuradores? O risco persiste, claro, mas menor.

Outra coisa arriscada: montar governo excessivamente com base em afinidade ideológica. O senso comum diz que os ideologicamente alinhados serão aliados mais fiéis. Quando o amor acaba, costuma ser o contrário. Os mais próximos no critério ideológico revelam-se os adversários mais ferozes. Desde Caim e Abel sabe-se: ódio entre irmãos é letal.

Eis minha engenharia da obra feita.

Mas talvez o principal problema do presidente resulte de um equívoco analítico: o erro na análise da conjuntura, da disposição das forças. Na identificação do inimigo mais perigoso. Enquanto Bolsonaro se dedica a infernizar a esquerda, quem lidera a operação de cerco e (tentativa de) aniquilamento contra ele são a direita e o dito centro atropelados na eleição presidencial de 2018.

A esquerda está fora da linha de sucessão. E o objetivo das diversas frações dela é ganhar a eleição de 2022 surfando no desgaste do bolsonarismo. A alternativa seria confiar na tempestade perfeita em que 1) o Tribunal Superior Eleitoral cassa a chapa Bolsonaro-Mourão, 2) o STF referenda e 3) no processo de liquidação do atual governo forma-se uma maioria eleitoral de esquerda.

Para a turma que pende à direita o caminho parece menos pedregoso. Poderiam por exemplo trabalhar mais firmemente o impeachment e a proposta de um governo de “união nacional” em torno do vice. Uma dificuldade dessa saída é Hamilton Mourão não parecer disposto a conspirar contra o chefe.

Diferente de recentes situações.

E tem sempre a alternativa do TSE, seguida do renovado truque de tentar a união em torno de um bolsonarismo sem Bolsonaro.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado originalmente na revista Veja 2.691, de 17 de junho de 2020