Day: junho 11, 2020

Luiz Carlos Azedo: Os “dinossauros”

“Bolsonaro acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos”

Ninguém sabe como os dinossauros foram extintos. Entre 208 e 144 milhões de anos atrás, esses animais dominavam os ambientes de terra firme: eram herbívoros, em sua maioria, mas havia algumas espécies carnívoras que se alimentavam de anfíbios, insetos e até mesmo de outros dinossauros. No final do período Cretáceo, foram extintos juntos com diversas outras espécies de animais e plantas. Uma das teorias sobre essa extinção é a de que certos movimentos sofridos pelos continentes provocaram mudanças nas correntes marítimas e também no clima do planeta. Isso teria feito a temperatura baixar, o que causou invernos mais rigorosos. Outra, de que um asteroide colidiu com a Terra e provocou uma catástrofe, com terremotos, tsunamis e incêndios gigantes, que liquidaram a cadeia alimentar. Não existe nenhuma teoria de que tenham sido extintos por uma superbactéria ou um vírus mortal.

Já foram identificadas aproximadamente 3,6 mil espécies de vírus, que podem infectar bactérias, plantas e animais, bem como se instalar e causar doenças ao homem. Gripe, catapora ou varicela, caxumba, dengue, febre amarela, hepatite, rubéola, sarampo, varíola, herpes simples e raiva são as doenças viróticas mais conhecidas. Nenhuma delas se equipara, por exemplo, ao ebola, cuja letalidade é de 90%, ou ao HIV, que já foi de 100% e hoje está sob controle. Ambas não têm vacina reconhecida.

Uma epidemia acontece quando um determinado número de pessoas fica doente e o vírus se propaga exponencialmente. Para os epidemiologistas, o número mágico é 400 para cada 100 mil indivíduos. Esse é o rubicão natural de propagação de um vírus, a partir do qual, na linguagem dos sanitaristas, a epidemia “decola”. As gripes são as epidemias mais comuns, porque seus vírus sofrem permanentes mutações, exigindo campanhas anuais de vacinação. Os antibióticos são utilizados para combater infecções causadas por bactérias, que muitas vezes se propagam em simbiose com os vírus, mas não eliminam os vírus. Por isso, deveriam ter outro nome, talvez antibacterianos, o que facilitaria a vida dos médicos com seus pacientes, que não entendem a diferença entre uma coisa e outra e ficam querendo a medicação.

Os vírus são difíceis de combater. Como os tratamentos quimioterápicos para a infecções virais são limitados, descanso, hidratação e analgésicos são as alternativas mais comuns para reduzir os incômodos das doenças virais, exceto nas infecções respiratórias graves. A cura ocorre, entretanto, porque o sistema de defesa do organismo parasitado passa a produzir anticorpos específicos que combatem o vírus invasor das células. Os vírus são formados por proteínas diferentes daquelas no organismo parasitado, que acabam neutralizadas pelos anticorpos. Assim, caso o vírus invada o organismo novamente, a memória imunológica desencadeará rapidamente uma resposta imune específica contra o vírus, e a doença não se instalará novamente. Quando isso não ocorre, aí, sim, temos um grande problema pela frente.

Imunização

Vários membros da família Coronaviridae infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta. Alguns membros desta família que infectam animais silvestres, quando transmitidos aos humanos, causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars), como é o caso do Sars-cov-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do Sars-cov-2, responsável pela atual pandemia denominada Covid-19. O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que, ao chegarem ao mercado de Wuhan, na China, infectaram os homens. As teorias de que os chineses comeram morcegos ou fabricaram o vírus para dominar o mundo são mentirosas e racistas, disseminadas com o propósito de promover uma nova “Guerra Fria” entre o Ocidente e a China.

O mundo já teve outras pandemias, como a gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas, mas que nem de longe se propagou com a velocidade no novo coronavírus, devido à globalizaçao. No Brasil, estamos vivendo um momento dramático por causa disso, com o sistema de saúde pública em estresse, devido ao aumento rápido do número de casos, com mais de 200 mortes por dia. A situação é delicada: o presidente Jair Bolsonaro é contra a política de isolamento social adotada por governadores e prefeitos para reduzir a velocidade de propagação da doença e preparar o sistema de saúde para receber seu impacto. Substituiu o ministro Luiz Henrique Mandetta pelo oncologista Nelson Teich, no Ministério da Saúde, com o claro propósito de flexibilizar o regime de quarentena e retomar as atividades econômicas paralisadas em razão da epidemia. Acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos. Diz o samba: “quem acha vive se perdendo.”

O risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) é real. Mesmo que ocorra a tragédia anunciada, de fato, não devemos temer o fim da espécie. A maioria das pessoas está desenvolvendo seu sistema imunológico para se defender do vírus e com ele conviver, como acontece com outras doenças. O problema é que essas pessoas transmitem o vírus para as demais, inclusive os nossos “dinossauros”, ou seja, os mais idosos, que adquirem lesão pulmonar grave devido à produção de moléculas inflamatórias (citocinas) pelo sistema imune inato e têm também problemas de coagulação, devido à reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou à produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).
Enquanto não se tem uma vacina, esses sintomas estão sendo tratados com drogas utilizadas para combater outras doenças, como a polêmica cloroquina, usada contra a malária, de eficácia duvidosa, e drogas anticoagulantes, em especial a heparina. Muitos, porém, não resistem. Ou seja, é melhor os nossos “dinossauros” ficarem bem espertos, em casa.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-os-dinossauros/

Míriam Leitão: Intervenção em universidades

O governo Bolsonaro amanheceu ontem atentando contra mais um princípio constitucional: a autonomia das universidades federais. Isso é uma constante no tempo doloroso que vivemos. É certo que, a cada dia, ele tentará de alguma forma enfraquecer alguma instituição ou minar algum processo democrático. O absurdo de ontem, logo cedo, foi a Medida Provisória que dá a Abraham Weintraub o direito de nomear interventores para as universidades cujos reitores tiverem concluído seus mandatos no período do coronavírus. Bolsonaro e Weintraub estão usando a pandemia para intervir nas universidades.

O Ministério explicou que a MP está baseada na lei que estabeleceu medidas “para o enfrentamento de emergência de saúde pública”. O presidente desdenha da pandemia, sabota todos os esforços de saúde pública e defende que nenhuma medida de precaução deveria ser adotada. Porém, usa a lei que respalda o governo na tomada de decisões na área da saúde para suprimir o processo de escolha da lista tríplice para reitores universitários. Normalmente é feita uma longa consulta na comunidade acadêmica, que inclui alunos, professores e funcionários. A partir daí forma-se uma lista tríplice de eleitos que é levada ao presidente da República.

Desde o primeiro dia deste governo a educação tem sido alvo de ataques. O objetivo é destruir. E isso é feito através da escolha de néscios para o cargo de ministro. Foram dois. O primeiro era até inofensivo perto desse que chegou ao cargo achando que estava numa missão de demolição, inclusive da língua portuguesa. A educação é o assunto menos relevante para ele, como mostrou naquela reunião ministerial de 22 de abril, em que nada falou sobre as questões da sua pasta no meio da pandemia. Dedicou o seu tempo a uma confusa catarse, em que se disse perseguido, alegou que tem se “ferrado”, defendeu a destruição de Brasília, disse que odeia a definição de “povos indígenas” e pediu a prisão dos ministros do Supremo. Essa fala transtornada deveria ter sido suficiente para ele perder o cargo. Com a MP de ontem ele ganhou mais poderes.

Curiosamente a crise de saúde pública que Bolsonaro desdenha foi a justificativa dada pelo MEC para a MP que dá a Weintraub poderes de nomear “reitores temporários”. Ou “interventores”, como define, com mais precisão, o presidente da Associação dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, João Carlos Salles.

Há cerca de 20 universidades com processos pendentes até o fim do ano, em estágios diversos, entre elas a do Pará, do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Rural de Pernambuco, Lavras, São João Del Rei, Tecnológica do Paraná. Algumas já estavam com a consulta quase concluída quando as aulas foram suspensas. Há diversas soluções temporárias, como a de manter o atual reitor até que se possa escolher a nova lista tríplice ouvindo alunos, professores e funcionários, como sugere a reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho. Outra ideia que ouvi de um ex-reitor é manter o vice-reitor que tenha sido escolhido em data posterior e, portanto, ainda tenha mandato. Uma consulta informal, se houvesse diálogo entre o Ministério e a comunidade acadêmica, permitiria encontrar uma solução para preservar a autonomia administrativa das entidades. O governo, claro, preferiu uma saída ilegal e autoritária.

A comissão da Câmara dos Deputados que acompanha o MEC soltou uma nota dizendo que a MP “afronta o estabelecido pelo Artigo 207 da Constituição Federal, que dispõe sobre a autonomia das universidades para decidir sobre questões administrativas, didático-científicas, gestão financeira e patrimonial”. Segundo a comissão, a MP é “antidemocrática e inconstitucional”. Por isso, os deputados pediram a devolução imediata da Medida Provisória. Até porque outra MP sobre o mesmo assunto acaba de caducar.

Desde que assumiu o cargo, Weintraub vem ofendendo as universidades e fazendo acusações difamatórias que não consegue provar. Ele tem sido também completamente omisso em outras questões do Ministério relacionadas ao ensino básico. Exemplo foi a sua ausência no debate sobre o Fundeb. Essa nulidade terá agora o poder de nomear interventores nas universidades públicas do país.


Merval Pereira: Ponto final

Poder Moderador só existiu na Constituição de 1824 e restou superado com Constituição Republicana, diz Barroso

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso deu ontem o primeiro pronunciamento oficial da Corte negando a função de Poder Moderador das Forças Armadas. Ao não dar seguimento a mandado de injunção que pedia a regulamentação do artigo 142 da Constituição, utilizado por seguidores de Bolsonaro para justificar uma eventual intervenção militar em caso de ameaça à democracia, o ministro Barroso aproveitou para reforçar formalmente o que já havia sido dito por organizações da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e pelo Congresso.

Agindo dessa maneira, Barroso replicou a atitude do juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, o primeiro a definir, em 1803, a capacidade da Suprema Corte de fazer o controle constitucional das leis, no caso mais famoso do constitucionalismo mundial.

Em uma discussão sobre a nomeação de um juiz feita pelo presidente anterior, o juiz Marshal decidiu que a lei em que se baseava a nomeação era inconstitucional e, portanto, ele não poderia ser nomeado. Ao mesmo tempo em que afirmava o poder da Suprema Corte de determinar a constitucionalidade das leis, que até aquele momento não tinha esse papel, não criava um conflito entre Poderes.

Aqui também, ao definir que o artigo 142 não requer regulamentação, Barroso formalizou um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, encerrando a discussão. Barroso marca posição referindo-se ironicamente a um “terraplanismo constitucional” dos que interpretam a Constituição erroneamente, e afirma que qualquer tentativa de usar medidas extraordinárias sem seguir os trâmites constitucionais configura crime de responsabilidade.

“Nos quase 30 anos de democracia no Brasil, sob a Constituição de 1988, as Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar: profissionais, patrióticas e institucionais. Presta um desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política”, afirmou Barroso.

Na sua decisão, ele ressalta que “o Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores”.

Para Barroso, “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao artigo 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Interpretações que liguem as Forças Armadas “à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo chegam a ser ofensivas”, diz Barroso.

Depois de fazer um apanhado histórico sobre as diversas constituições do Brasil, desde a de 1824 que definiu o papel moderador do Imperador, até a de 1988, Barroso define que “finalmente o Brasil fez sua transição para um Estado Democrático de Direito. Nessa medida, submeteu o poder militar ao poder civil, e todos os Poderes à Constituição”.

Barroso lembra que, desde então, “passaram-se mais de 30 anos, dois impeachments presidenciais, uma intervenção federal, inúmeras investigações criminais contra altas autoridades (inclusive contra Presidentes da República), sem que se tenha cogitado jamais da utilização das Forças Armadas ou de um inexistente poder moderador”.

Todas as crises institucionais experimentadas pelo país, ao longo dos governos democráticos anteriores foram solucionadas sem rupturas constitucionais e com respeito ao papel de cada instituição – e “não se pode afirmar que foram pouco relevantes”, afirma Barroso. “Portanto, a menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas”.


Celso Ming: Mais um mês de inflação negativa

Inflação em queda e política monetária expansiva produzirão consequências para o País

Mais um mês de inflação negativa: menos 0,38% em maio, depois do menos 0,31% de abril. Os analistas esperavam queda mais acentuada (para menos 0,46%), que, no entanto, não se confirmou em razão do reajuste dos combustíveis.

No período de 12 meses terminados em maio, a inflação é de apenas 1,8%. Como o Banco Central tem de buscar em 2020 a meta de 4,0%, é provável que os juros básicos (Selic) tenham de cair para abaixo do nível de 2,15% ao ano previamente anunciado pelo Banco Central. A próxima reunião do Copom, agendada para 17 de junho, pode não ser a última do ciclo de baixa. Como exposto abaixo, tanto a inflação em queda quanto a política monetária mais expansiva produzirão consequências.

Inflação tão baixa é fato inédito por aqui. Houve meses em que o índice estava mais baixo, mas foi o resultado de pauladas de estabilização, época dos grandes planos econômicos dos anos 80 e início dos 90. A inflação de agora não leva tabelamentos nem outros artificialismos. O mergulho do custo de vida é o resultado do colapso da demanda neste período de isolamento social, pelo fechamento do comércio e pela queda do poder aquisitivo – e não do saneamento fiscal e monetário.

Nada menos que cinco entre os nove grupos de despesa que integram a cesta de consumo do IPCA registraram queda de preços em maio. Um dos efeitos negativos de um período de deflação relativamente longo é o recuo também constante da demanda. Se a percepção do consumidor é de que, dentro de alguns meses, os preços ficarão mais baixos, seja porque estão naturalmente em queda, seja porque o comércio venderá com descontos, a tendência é o adiamento do consumo. É o que já acontece nos países mais avançados.

Apesar disso, para os próximos meses, deve-se esperar por certo avanço da inflação, não só porque o comércio começa a reabrir, o que deve reativar a demanda, mas também porque os reajustes dos preços dos combustíveis devem liderar a alta. Também é de prever algum impacto do encarecimento do dólar sobre os preços dos importados.

Como já foi mencionado acima, fica reforçada a expectativa de que o Banco Central derrube os juros a níveis mais baixos do que os previstos na reunião do Copom de 6 de maio. São dois os argumentos para isso: a inflação em 12 meses cairá mais do que o previsto – o mercado projeta 1,53% e não mais o 1,76% de cinco semanas atrás; e a deterioração da economia é maior do que há um mês e exige mais irrigação monetária do que a antes estipulada.

É preciso prever mais duas consequências. Juros mais baixos empurram os devedores para renegociação dos seus passivos. Não é uma tratativa que os bancos apreciam, mas acabarão por entender como inevitável.

O outro impacto é sobre o mercado financeiro. Juros cada vez mais baixos derrubam patrimônio do aplicador. Daí a maior propensão a diversificar seus investimentos para a área de risco. O maior afluxo de pessoas físicas para a Bolsa é indicação disso.

Combustível
Reajuste nos preços dos combustíveis impediu que a deflação de maio fosse mais acentuada Foto: Tiago Queiroz/Estadão

» Abaixo estas estátuas
A Europa está derrubando estátuas de escravocratas. Mas até onde devem ir os movimentos revisionistas? Se for aplicada a mesma lógica que está atingindo os traficantes de escravos, não seria preciso banir também o Infante Dom Henrique, Colombo, Cortez e Pizarro?

» E os bandeirantes?
Aqui no Brasil tivemos grandes preadores de índios, venerados como heróis nacionais, em estátuas no Museu do Ipiranga. O bandeirante Domingos Jorge Velho foi decisivo na destruição do Quilombo dos Palmares. Existem a estátua de Borba Gato em Santo Amaro e o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera.

» Rodovias e ruas
Algumas das principais rodovias de São Paulo homenageiam escravagistas de índios: Anhanguera, Raposo Tavares, Fernão Dias e, a síntese de todos, Rodovia dos Bandeirantes. O bairro de Pinheiros tem mais de dez ruas com nomes de bandeirantes. Será preciso mudar tudo e reescrever a História?


Zeina Latif: A montanha-russa do mercado

Há muito trabalho a ser feito para melhorar as perspectivas de crescimento

Passado o pico de tensão no mercado financeiro em meados de marco, os preços de ativos tiveram importante valorização desde então. O gatilho veio de fora, como sempre ocorre. São fatores externos que preponderantemente ditam as reversões de ciclo aqui. Fatores domésticos estão mais associados à intensidade do movimento, para o bem e para o mal.

Do lado externo, as políticas de estímulo dos bancos centrais foram um fator chave para a reversão das expectativas. O grande destaque foi o Fed, que anunciou um pacote de injeção de liquidez no mercado e socorro a empresas (mesmo as mais arriscadas) ainda mais potente e amplo do que o da crise de 2008.

Nas últimas semanas, o movimento de valorização de ativos ganhou ímpeto por conta do relaxamento do isolamento social nas economias avançadas, associado à expectativa de que não haverá uma segunda onda de infectados, pois o grau de contágio da covid-19 está mais baixo.

Tudo isso combinado a dados positivos esparsos de atividade econômica (como a geração de empregos nos EUA em maio) alimenta o cenário de recuperação rápida nas economias avançadas ou no formato da letra “V”, usando o jargão dos analistas.

Certamente esse não é o quadro mais provável para o Brasil, que deverá enfrentar uma lenta e acidentada recuperação pela frente. As dificuldades financeiras de empresas e as incertezas do quadro econômico prejudicam o investimento e, assim, o crescimento de curto e longo prazos. Tampouco há razão para otimismo dos consumidores tão cedo, apesar de o impacto do auxílio emergencial gerar a percepção de que o pior já passou, ao menos no varejo.

A crise fiscal é um capítulo à parte que poderá ameaçar a estabilidade macroeconômica, alicerce do crescimento sustentado, caso o Brasil não retome tempestivamente as reformas para o ajuste fiscal. A única forma de equilibrar a significativa piora das contas públicas com juros baixos ao longo do tempo será a perspectiva de conserto adiante. Há uma agenda dura de redução de gastos obrigatórios a ser enfrentada por todas as esferas de governo.

Apesar do otimismo recente, o mercado financeiro dá sinais de que não está alheio ao cenário de grandes desafios.

A recuperação da Bovespa se dá em ritmo bem aquém do observado nas bolsas de emergentes – acumula queda na casa de 17% no ano contra 9% nos emergentes –, diferentemente do ocorrido nos anos anteriores, quando a Bolsa brasileira descolou favoravelmente das demais, embutindo um cenário excessivamente otimista de crescimento.

No dólar, ainda que o movimento de valorização da moeda americana no mundo tenha perdido ímpeto nas últimas semanas, a cotação no Brasil mantém uma boa gordura na comparação com uma cesta de moedas de emergentes ou mesmo de países vizinhos. São diferenciais comparáveis a situações de grande estresse no governo Dilma, quando o País estava sem rumo.

Quanto ao comportamento dos juros, houve importante recuo, alimentado também pela possibilidade de intervenção do Banco Central neste mercado, conforme previsto na chamada PEC do orçamento de guerra. No entanto, a inclinação da curva de juros (diferença entre os vencimentos de longo e curto prazos) mantém-se acentuada, apesar de a inflação esperada pelo mercado no longo prazo estar baixa. Fica evidente o desconforto com o elevado risco fiscal.

É possível que ainda haja espaço para valorização dos preços de ativos no curto prazo, com ventos favoráveis do exterior e porque o mercado poderá vir a julgar que a gordura em comparação aos preços em outros emergentes é excessiva. Ondas de otimismo acontecem.

No entanto, é necessário cautela diante da valorização já ocorrida. As incertezas no cenário brasileiro são elevadas e o ambiente é propenso a acidentes. Não faltam motivos para isso, dada a difícil situação atual epidemiológica, política, social e econômica.

O momento é critico. Há muito trabalho a ser feito para melhorar as perspectivas de crescimento e, assim, a confiança de investidores.

*CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP


José Serra: Política nacional de segurança sanitária

Urge uma legislação geral de combate a pandemias e desastres de calamidade nacional

A pandemia de covid-19 é uma calamidade que combina três dimensões: econômica, sanitária e social. Ela causa um choque negativo na demanda e na oferta da economia, afetando a produção, o emprego e a renda. Suas proporções de doença e mortes provocam um choque social: milhões de pessoas, sem emprego ou renda, tornam-se vulneráveis e outras tantas aprofundam sua vulnerabilidade preexistente. Paralelamente, os efeitos da pandemia sobre a população causam um choque no sistema de saúde, ameaçando-o de colapso. A existência prévia de acentuada crise política é sério agravante.

Uma pandemia de coronavírus era prevista pela comunidade científica internacional, mas ao eclodir obrigou o poder público em todos os países a atuar de improviso. A maioria das nações tem adotado medidas pontuais de enfrentamento de emergência da disseminação do vírus e de tratamento dos infectados: transferências de recursos para grupos vulneráveis ou afetados pela pandemia, garantias e subsídios para empresas e proteção ao mercado de trabalho.

A experiência internacional aponta novos rumos para enfrentar calamidades públicas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, publicou recentemente uma nota técnica que defende a ideia de “válvulas de escape” a serem acionadas em situações de calamidade. Isso permitiria que “regras contra desastres” fossem automaticamente acionadas, assim como é feito quando as regras fiscais são desobedecidas.

O desafio de desenhar políticas públicas às pressas, entretanto, é imenso e afeta mais os países onde há falhas de governo. Nesta pandemia, saíram-se melhor países como a Nova Zelândia, onde a espinha dorsal do orçamento público são políticas de bem-estar e saúde. A Austrália adotou um modelo de gestão compartilhada entre o governo federal e os entes federativos no enfrentamento da covid-19, dando transparência às iniciativas do poder público e funcionando como uma política nacional contra a pandemia.

No caso dos Estados Unidos, não foram tomadas medidas de planejamento de longo prazo, nem medidas imediatas de pronta resposta. Entretanto, desde a pandemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003, causada por coronavírus, a ocorrência de novas pandemias era tida por certa, a dúvida seria quando. Naquele ano, um Estoque Farmacêutico Nacional, criado ainda na administração Clinton (1993-2001), fora transformado em Estoque Estratégico Nacional, que, no entanto, nunca chegou a reunir insumos e equipamentos básicos, tais como máscaras ou remédios genéricos, indispensáveis para enfrentar uma pandemia. O resultado é conhecido, tendo sido agravado pelo empenho presidencial em se opor ao combate à pandemia.

O governo brasileiro, desde o início, tinha várias condições favoráveis para encarar com eficiência a pandemia. O primeiro, fortuito, foi o começo tardio da presença e disseminação do vírus em nosso território, dando aos órgãos públicos mais tempo para se prepararem, além de proporcionar exemplos, em outros países, do que fazer e do que evitar. Conta também com um sistema de saúde nacional e de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E acumulou, ao longo de décadas, uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.

Entretanto, essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico de diagnóstico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários.

Um importante obstáculo são as inevitáveis oposições internas a uma política dessa magnitude. O surgimento de uma quinta-coluna, comandada pelo próprio presidente da República, certamente não ajudou, e ficamos condenados à improvisação em todos os níveis de governo. No início da crise, regras fiscais foram usadas pelo Executivo como pretexto para não atuar energicamente, mesmo após o Congresso e o Supremo Tribunal flexibilizarem os diplomas legais em vigor. Diante dessa omissão, partiu do Congresso a iniciativa de aprovar a Emenda Constitucional 106, a fim de instituir um apropriado regime fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades de um estado de calamidade pública internacional.

Cabe destacar que o novo dispositivo constitucional não deveria restringir-se à pandemia do novo coronavírus, mas alcançar qualquer calamidade decretada pelo Congresso Nacional em razão de emergência provocada por fatores externos. O regime extraordinário instituído pela Emenda 106 alinha-se às “válvulas de escape” propostas pelo FMI. Nesse sentido, é urgente a adoção de legislação geral estabelecendo, nos três níveis de governo, a regulamentação de uma política nacional de segurança sanitária, dotada de um arranjo institucional permanente de combate a pandemias e outros desastres que provoquem estados de calamidade nacional.

SENADOR (PSDB-SP)


Contardo Calligaris: A cavalo e sem máscara, Bolsonaro avança para seu triunfo, o triunfo da morte

Não usar máscara significa não ter medo de matar

Todos vamos morrer um dia. No mundo clássico, grego e romano, esta era sabedoria básica: para aprender a viver é bom se lembrar que não será para sempre.

Os cristãos, apesar de seu ódio pela cultura greco-romana, preservaram esse elemento da sabedoria clássica, atribuindo-lhe um sentido mais pobre.

Para os filósofos clássicos, a lembrança do destino mortal era um elemento crucial da condição humana e podia fundar uma moral da alegria: aproveite o dia de hoje, pois a vida não dura para sempre.

Os cristãos fizeram dessa lembrança uma forma de chantagem moralizante: não peque, reprima-se porque você pode morrer a qualquer momento, e é melhor estar preparado, de modo a ser “recompensado” por suas renúncias.

Seja como for, nossa cultura adotou mil formas de “memento mori” (lembre-se da morte). Da Idade Média até o século 19, as caveiras pipocaram em cantos inesperados de qualquer tipo de imagem —só para lembrar. E houve duas grandes celebrações da presença constante da morte: a dança macabra e o triunfo da morte, que surgiram, ambas, a partir do século 14.

Nas danças macabras, os esqueletos levam todos, humildes e poderosos, até a tumba. O triunfo da morte mostra quer seja o desfile, quer seja a cavalgada da morte com sua comitiva, ceifando os que ela encontrar —as imagens se tornaram mais cruentas a partir do século 14 avançado, depois da grande peste.

Como disse, a mensagem cristã é sempre a mesma: prepare-se, viva em função do julgamento na hora de sua morte. Eu acho o lembrete pagão (lembre-se e aproveite, não perca seu tempo) mais saudável do que o cristão (mais saudável significa menos raivoso contra os eventuais prazeres da vida).

Também me pergunto se não seria mais sábio ainda invejar os outros mamíferos superiores, que, ao que tudo indica, sabem da morte que os espera mas não fazem disso um grande tema de reflexão —vivem por um tempo, e está bem assim.

O mais lindo exemplo de triunfo da morte é do século 15 e está no Palazzo Abatellis, em Palermo (na Sicília, Itália).

Quem teve ou terá a chance de frequentar um pouco o Instituto Warburg, na Universidade de Londres, sabe que é o lugar ideal para se pesquisar a recorrência das imagens que nossa cultura adota para significar seus grandes temas, sempre de uma maneira que é, ao mesmo tempo, recorrente e diferente.

Pois bem, daqui a um século ninguém vai se lembrar do que aconteceu no Brasil em 2020, mas há uma imagem que talvez permaneça e seja repertoriada no Instituto Warburg como mais um extraordinário exemplo do triunfo da morte. É uma fotografia de Pedro Ladeira, da Folha, que mostra Bolsonaro montado num cavalo da Polícia Militar, durante uma manifestação de apoio ao governo. Ele vem na nossa direção, com sua comitiva de cavaleiros.

É difícil não notar a imperícia de Bolsonaro: ele está com a careta de limão azedo de quem não consegue deslizar naturalmente na sela e, pior para a boca do cavalo, está com ambos os cotovelos bem abertos, como se precisasse se equilibrar. Sugestão: se ele quiser repetir a experiência, seria bom que pedisse umas aulas discretas para Mourão, que sabe montar. Seja como for, Bolsonaro parece ser sacudido na sela como um corpo totalmente desengonçado, ou seja, exatamente como um esqueleto.

A imperícia do cavaleiro é parte da composição. Na comitiva, todos sabem montar e todos usam uma máscara de proteção preta. O único que não sabe montar, Bolsonaro, não usa máscara. Alguns imaginam que não usar máscara signifique não ter medo de se contaminar e de morrer, mas não é assim: não usar máscara significa não ter medo de contaminar os outros, ou seja, não ter medo de matar.

Sacudido como um esqueleto, Bolsonaro avança para seu triunfo, o triunfo da morte. As narinas absurdamente dilatadas do cavalo que ele monta são a reação normal à dor que lhe inflige a imperícia do cavaleiro, mas, com um esforço poético, também assinalam a dor e o furor do cavalo pela morte que, com seu cavaleiro, ele vem trazer ao mundo.

O comentário de Bolsonaro diante das vítimas da Covid-19 —“todos nós iremos morrer um dia”— poderia ser sábio, como sempre foi a lembrança da morte que nos espreita. Mas o comentário pode ser só cínico e odioso quando ele vier de quem for cúmplice da morte prometida —e tanto faz que a cumplicidade se dê por ignorância, por cálculo político ou simplesmente por bravata.

*Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)


Bruno Boghossian: Bolsonaro inventa mais um truque para aparelhar universidades

Governo usa coronavírus como pretexto para interferência que faz parte do projeto bolsonarista

O governo inventou mais um truque para intervir nas universidades. Depois de tentar mudar a regra de escolha dos reitores na véspera do último Natal, agora Jair Bolsonaro aproveitou a pandemia do coronavírus para nomear interventores no comando dessas instituições.

O presidente publicou nesta quarta (10) uma medida provisória que proíbe consultas à comunidade acadêmica para a definição de reitores durante o período de emergência de saúde pública. A norma dá poder ao ministro Abraham Weintraub para definir sozinho os ocupantes temporários dos cargos que ficarem vagos.

A justificativa oficial é que a pandemia impede a realização presencial das votações que definem a lista tríplice enviada ao presidente. O governo decidiu resolver essa questão numa canetada, em vez de discutir métodos de votação digital.9

Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub entregam ônibus escolares para o estado de Goiás, em Goiânia, no estacionamento do Estádio Serra Dourada; críticos e aliados de Bolsonaro pedem saída de ministro, mas presidente diz que vai mantê-lo Pedro Ladeira-8.nov.19/FolhapressLeia Mais

Weintraub é o ministro que insistiu na realização das provas do Enem durante a crise do coronavírus, até que foi pressionado a adiar o exame. Antes disso, ele chegou a lançar uma campanha para dizer que os alunos sem aulas deveriam estudar por conta própria, pela internet.

No caso das universidades, a preocupação fajuta com a saúde se tornou pretexto para uma interferência direta, ainda que temporária. Com a alegação de que pretendem combater o que chamam de “doutrinação ideológica”, o presidente e seus auxiliares tentam ampliar o controle do governo sobre o ensino superior.

A intromissão na autonomia universitária é típica de governos que não sabem conviver com o pensamento crítico. A ditadura militar nomeou interventores para sufocar a oposição ao regime nos campi.

No Brasil de hoje, desculpas esfarrapadas tentam camuflar um aparelhamento escancarado em diversas instituições. Quando buscava um novo procurador-geral, no ano passado, Bolsonaro afirmava que nomearia alguém identificado ideologicamente com o governo e que pudesse facilitar obras de infraestruturaAugusto Aras ainda não ficou famoso por destravar nenhuma ferrovia.

Bruno Boghossian é jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).


Nelson de Sá: 'Ameaças de golpe abalam Brasil', noticia NYT

Generais falam em 'instabilidade' e enviam 'tremores de que poderiam desmantelar a maior democracia da AL'

Mais uma vez com foto do cemitério de Vila Formosa na home page (abaixo) e na capa de papel, o New York Times noticia que o "Brasil é abalado por conversa de ação militar para reforçar Bolsonaro". O jornal também disparou "push" nos celulares.

Na reportagem, o título era mais direto, "Ameaças de golpe abalam Brasil conforme aumentam as mortes por vírus", mas foi atenuado horas depois da publicação, retirando a palavra "golpe". O segundo parágrafo se mantém:

"A crise se tornou tão intensa que algumas das figuras militares mais poderosas do Brasil lançam alertas de instabilidade —enviando tremores de que poderiam assumir e desmantelar a maior democracia da América Latina."

Destaca dois generais, os ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e Fernando Azevedo e Silva, da Defesa.

'REPREENSÍVEL'

Como contraponto, o jornal ouve apenas o ex-ministro Sérgio Moro e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O primeiro diz que "isso está desestabilizando o país justamente durante uma pandemia" e "é repreensível, o país não precisa estar vivendo com esse tipo de ameaça".

O segundo diz não achar que "um golpe seja iminente" e que se preocupa com a intensificação das "táticas de intimidação de Bolsonaro", sem citar generais: "Como morrem as democracias? Você não precisa de um golpe militar. O presidente pode buscar poderes extraordinários e pode tomá-los."

'CRUZADA HIPÓCRITA'

Apenas em espanhol e sem chamada, o NYT posta também o artigo "A cruzada hipócrita de Sérgio Moro contra Jair Bolsonaro", do diretor de América Latina na Sciences Po Paris, Gaspard Estrada. "Agora que saiu", escreve o cientista político, "descobriu as bondades do Estado de Direito que ajudou a colocar sob ameaça".Nelson de Sá

*Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.


Mariliz Pereira Jorge: Vitória de Bolsonaro

Não teremos a quem confiar nossas vidas quando tudo o que conta é capital político

Prefeitos e governadores se rendem à chantagem feita por Jair Bolsonaro e começam a flexibilizar o que nunca funcionou de fato no Brasil, o isolamento para conter a crise da Covid-19. Um a um, eles passam a jogar a toalha, vencidos pelo cansaço e pela ambição. O Brasil é uma república cheia de bananas. Vaidosas e irresponsáveis.

A história da pandemia por aqui teria sido diferente em termos de números e de desgaste emocional se as medidas tivessem sido alinhadas e a população não fosse levada a uma divisão por conta do negacionismo do presidente. A flexibilização da quarentena, nesse momento precoce pela avaliação dos especialistas, é uma vitória de Bolsonaro.

De olho nas perdas políticas, prefeitos e governadores tentam amenizar a rejeição daqueles que embarcaram no discurso do presidente, que terceirizou as responsabilidades do governo federal diante da pandemia, já de olho em 2022. Não há um único dia que Bolsonaro não jogue a culpa do colapso da economia e dos mortos na conta de Dorias e Witzels. “Uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade”, não é mesmo?

Mas com a retomada de muitas atividades e a tão reivindicada volta ao “normal”, esses mesmos governantes, que até agora peitaram a postura genocida de Bolsonaro, deixam à deriva toda uma parte da população que apoia as medidas de isolamento e entende que ainda é muito cedo para qualquer reabertura.

Não sobrará um adulto na sala e não teremos a quem confiar nossas vidas quando tudo o que conta é capital político e a eleição que se avizinha. O Brasil deve ser o único país no mundo que bate recordes nos números da Covid-19, em que a curva de contaminações e de mortes ainda aponta para cima, e que seus governantes acham que já pode trabalhar, abrir igrejas, surfar e ir ao shopping. É cada um por si. Eu continuo em casa.

*Mariliz Pereira Jorge é jornalista e roteirista de TV.


William Waack: Miséria, como sempre

É a pobreza de milhões de pessoas, agravada pela crise do vírus, que condiciona as agendas

O coronavírus colocou de novo no centro do nosso vocabulário uma palavra que a gente ouve há gerações e não consegue se livrar dela: miséria. O palavreado inócuo de sucessivos governos petistas alardeando exitosa “inclusão social” e “combate à pobreza” já havia sido desmentido pelos números antes mesmo da atual tripla crise política, econômica e de saúde pública – e Lula foi beneficiado por um ciclo de bonança internacional que não se repetirá por gerações.

No meio da pior crise de nossa memória o atual governo está demorando (assim como demorou para se adaptar ao jogo político) para entender que miséria é o fator que condicionará todos os cálculos políticos e estratégicos. Miséria é o que já jogou para o alto o caminho de ação no qual Paulo Guedes insistia ainda naquela semana de março na qual as medidas de emergência foram decretadas. A saber: o de que reformas estruturantes (Previdência, tributária, administrativa, de Estado, etc) produziriam dentro de um horizonte político conveniente, o de 2022, o “destravamento” da economia e consequente combate sustentável da miséria.

Ocorre que ela aumentou antes, e inverteu prioridades. A miséria está sendo agravada por uma crise que evidenciou de forma ainda mais brutal o grau de informalidade e vulnerabilidade de vastas camadas da nossa população, especialmente nas periferias das grandes capitais. Nesse contexto de pobreza gritante e crescente pode-se chamar o conjunto de parlamentares do que se quiser, menos de bobos, e a resposta que articularam até aqui (a de escancarar os cofres públicos) é o reconhecimento político da gravidade de uma situação social que ainda deve piorar antes de talvez melhorar, e não se sabe quando.

Em outras palavras, o dilema imposto ao governo pela miséria do País é como equilibrar o altíssimo custo político de parecer produzir ajuda insuficiente para milhões de necessitados versus o altíssimo custo fiscal de manter programas de renda básica. Diante da claque com que “dialoga” entrando ou saindo todo dia do Alvorada, Jair Bolsonaro já resumiu o problema para o qual ninguém tem solução. “Não tenho dinheiro para seguir nisso muito tempo”, afirmou.

Aproveitou também para repetir que a “culpa” é de governadores, do STF, de “terroristas” manifestantes, da imprensa ou, mais recentemente, da OMS, que estaria, por motivos políticos, interessada em “quebrar o Brasil” (desalojá-lo do poder, entende-se). Bolsonaro evidentemente aprecia os benefícios político-eleitorais trazidos por programas de distribuição de dinheiro, conforme demonstram as pesquisas. Porém, reconhece que não há mais espaço fiscal para criação de despesas obrigatórias (como prestação de benefícios desse tipo) – a não ser que se arrisque levar as contas públicas à insolvência.

Na busca desenfreada por uma resposta ao “que fazer” surgem as propostas lacradoras de internet, como a de reduzir salários nos três Poderes. É um poderoso símbolo, mas no mundo dos números ainda insuficiente para combater a miséria. Ou a de colocar na frente de qualquer outra reforma a do sistema tributário, que ajudasse, pela simplificação, a diminuir a informalidade – portanto, ampliando o alcance de benefícios sociais. Como é fartamente sabido, o grande obstáculo a qualquer reforma tributária é a ausência de lideranças políticas capazes de refazer o pacto federativo, fora descascar o abacaxi de equilibrar o jogo de interesses de múltiplos grupos econômicos e corporativistas.

Todos que lidam com história de campanhas políticas lembram da célebre frase de marqueteiros americanos quando tratavam de convencer um candidato à presidência (Bill Clinton) a manter o foco. “It’s the economy, stupid.” No Brasil a miséria impõe outra prioridade. “It’s the social, stupid.” É simplesmente não deixar pessoas morrerem de fome. E a gente achava que já tinha deixado isso para trás.


Eliane Brum: Os manifestos estão brancos demais

A classe média progressista precisa compreender que, sem enfrentar o racismo estrutural do Brasil, não há “pacto civilizatório” possível nem há democracia

Há um apagão nos dois principais manifestos que moveram o Brasil nas últimas semanas. Uma ausência que revela: 1) a qualidade da democracia que conseguimos ter após o fim da ditadura militar; 2) a dificuldade das elites (majoritariamente brancas) reconhecerem o racismo estrutural como o principal problema do país; 3) a impossibilidade de enfrentar o autoritarismo representado pelo Governo de Jair Bolsonaro sem colocar no topo da lista o enfrentamento ao racismo. Sem exterminar o racismo não há democracia. Nem há projeto civilizatório possível. Essa não é uma questão para decidir depois. Este é justamente o agora.

Para esclarecer já no início. Não me alinho a Lula (PT), que fez o desserviço de não apoiar os manifestos suprapartidários porque estaria ao lado de pessoas que ou apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff (PT) ou não lamentaram a sua prisão. Assinei o “Estamos Juntos” com pessoas que admiro muito, com quem compartilho sonhos e visões políticas, e outras que considero terem feito muito mal ao país, algumas delas me atacaram pessoalmente não muito tempo atrás. Numa frente ampla, a gente engole os sapos, segura as tripas e fecha com a única parte que todos concordam, a de lutar pela democracia. Como tantos disseram e escreveram, depois, com o processo democrático já garantido, discute-se as diferenças democraticamente. E elas são enormes, posso assegurar.

O problema é que, ao observar os textos do “Estamos Juntos” e do “Basta!”, percebe-se que há algo que não está lá e que não dá para discutir mais tarde. E este algo é o racismo. Textos de manifestos são textos de consenso, e é exercício da melhor política buscar esse consenso. Chegar à formulação divulgada certamente exigiu muito esforço e trabalho dos articuladores. Que a palavra racismo não esteja bem no alto é sinal justamente da deformação da democracia que conseguimos construir após 1985. Se isso não ficar bem compreendido neste momento, seguiremos às voltas com os déspotas da ocasião.

O que deve nos assombrar, e imediatamente nos fazer despertar, é o fato de que o enfrentamento do racismo, a esta altura, ainda não seja um consenso entre aqueles que defendem a democracia. Ainda não esteja dentro do amplo guarda-chuva de uma frente ampla suprapartidária como uma obviedade do mesmo nível de dizer que defendemos a liberdade, por exemplo. Não estou aqui jogando pedras em quem está se movendo, muito pelo contrário. Minha crítica reivindica uma mudança de rota nos movimentos de resistência ao autoritarismo liderados pela classe média progressista, autoritarismo representado por Bolsonaro, pelos generais e pela miliciarização das polícias.

O racismo é o debate inadiável não só no Brasil, mas no mundo, como os protestos nos Estados Unidos têm mostrado. O Brasil, porém, tem uma tarefa maior do que a maioria dos países porque não só foi o último país das Américas a abolir a escravidão como a fez sem nenhuma política pública de inclusão dos negros na sociedade. O racismo estrutural se manteve e, hoje, mais de 130 anos depois, os negros ocupam um lugar subalterno na sociedade em todas as áreas e morrem mais e mais cedo. Que o grito contra o racismo tenha se unido ao grito pela democracia nos protestos de rua, que não tiveram o apoio nem da maioria da classe média nem da maioria dos partidos nem dos articuladores dos principais manifestos, é bastante ilustrativo.

O argumento de evitar aglomerações devido à pandemia é totalmente respeitável ― e deve ser respeitado. Deixar de ir às ruas por temer se contaminar com covid-19 e, contaminando-se, contaminar os mais frágeis, é gesto de responsabilidade e faz todo o sentido. Afinal, até semanas atrás, ocupar as ruas e aglomerar-se numa pandemia era ato exclusivo de Bolsonaro e dos extremistas de direita, os que usam símbolos neonazistas, os amantes de armas, os antidemocratas e os defensores do autoritarismo. Ficar em casa significava, no contexto, não só cumprir as normas sanitárias determinadas pela Organização Mundial da Saúde mas também um gesto político de resistência.

A questão é que a realidade é sempre muito mais desafiadora e complexa. Ficar em casa tornou-se também uma questão política, atravessada pela desigualdade racial. Como são majoritariamente os brancos, de classe média para cima, que tem o privilégio de poder ficar em casa para se proteger do novo coronavírus, e muitos deles obrigam seus empregados a trabalhar em suas casas, não há como desconectar os protestos de rua contra o fascismo representado por Bolsonaro da desigualdade racial que impede uma parte da população, a mais pobre, majoritariamente negra, de permanecer em casa.

Essa foi a fala dos jovens negros, das jovens negras que foram às ruas, e também dos brancos e brancas que participaram da manifestação. “Tenho mais medo do racismo do que da pandemia. Obviamente o coronavírus mata, mas o racismo é muito cruel”, explicou Julia, uma jovem negra da zona sul de São Paulo que aderiu ao protesto do domingo (7/6), ao EL PAÍS. “O que adianta ficar em casa se a maior parte da população negra não esta podendo ficar em quarentena?”, justificou Tânia Aquino. Uma das lideranças declarou no carro de som: “A democracia nunca existiu. O racismo faz parte do DNA do branco, vocês são criminosos [...] Agora é hora de a pretitude tomar conta”.

Reproduzo aqui parte do melhor texto que li sobre esse impasse, de autoria do cientista social negro Deivison Mendes Faustino: “Nós, aqueles a quem não foi permitido ficar em casa, seguros/as, esperando a crise passar; Nós, que seguimos em risco: amontoados nos transportes coletivos, entregando o seu delivery ou garantindo as suas futilidades básicas; aqueles que presenciaram os filhos serem mortos pela polícia, em casa ou na casa da patroa, enquanto levávamos o seu pet para passear; Nós, a quem fizeram escolher entre a morte, sem ar, pela covid-19, ou a vida sem fôlego, por medo da fome, da violência e do desamparo; Nós, os que morrem 40% mais por corona, os 70% mais assassinados pela polícia, mas cuja representação política e poder efetivo junto aos ‘70%’ que se pretendem oposição à tragédia atual, é ínfima; Nós, enfermeiras, faxineiras, seguranças, carteiros, diaristas, ubers, entregadores, estudantes, mães e pais de filhos pretos, veados, sapatões, não binários, ou os/as militantes verdadeiros que seguem nas ruas coletando e entregando mantimentos, ajudando o velório de famílias vitimadas pela conjuntura genocida; Nós, aqueles que não podem mais respirar, há 500 anos, mas que sentimos aumentar sob o nosso pescoço o joelho militarizado do poder, cada vez mais, assumidamente genocida; Nós, que assistimos há décadas, a indignação performática, da maior parte da esquerda e de uma parcela da direita, acompanhada da negligência em relação ao racismo de lá ou de cá; Nós, diante da chance real de velar a nossa própria quase-morte, em um protesto vivo, nas ruas, neste domingo… estamos com receio: de um lado, o risco do protesto físico facilitar a exposição à covid-19… do outro lado, a ameaça real de criminalização da luta por justiça… (...) Ainda assim, uma parte de Nós, marchará neste domingo, junto com outros movimentos sociais, não por estarmos dormindo no barulho, mas por entendermos ser essa a Nossa tarefa histórica. Marcharemos por estamos cansados de ficar na arquibancada de um jogo político que nos afeta diretamente. Marcharemos porque não podemos mais respirar!”. (leia o texto inteiro aqui)

Respirar tornou-se um ato político, sua negação um gesto da desigualdade racial. Aos negros lhes falta o ar ― pelos joelhos brancos no seu pescoço, pela covid-19 que os mata mais, pela precarização da vida, pela violência da morte, pelo lugar subalterno reservado à maioria racial do país pela minoria branca. A tensão dentro do campo democrático, entre aqueles que defendiam ir para a rua e aqueles que eram contra ir para a rua, foi ― e é ― atravessada pelo racismo. Porque não se escapa do racismo no Brasil (leia “No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho).

Dizem que o vírus escancarou a brutal desigualdade social do Brasil. Essa afirmação, porém, não faz sentido. A desigualdades sempre foi escancarada. O que aconteceu com o coronavírus é que os negros e os indígenas não têm permitido que ela siga normalizada neste momento. E têm apontado, muito enfaticamente, que a desigualdade no Brasil é racial.

Ao definir o social como preponderante, neste caso há um encobrimento da ferida, na medida que a maioria dos pobres é preta. Ou seja, a pobreza tem cor. Do mesmo modo, vários projetos de expropriação das terras indígenas apontam para a conversão de indígenas em pobres urbanos, o que os lançaria na falsa homogeneidade sem cor e sem história do vasto guarda-chuva dos “pobres”. Pobres, é necessário deixar explícito, é um conceito genérico usado politicamente à esquerda e à direita para promover apagões de memórias e de identidades.

O apagão dos dois principais manifestos contra o autoritarismo é resultado do racismo estrutural que foi mantido pela democracia. O Brasil não julgou os crimes da ditadura, provocando o que, na coluna anterior, eu chamei de “fetiche da farda”: fenômeno que faz o país tremer com a opinião de cada general de pantufa que arrota do seu sofá e faz com que os generais no governo sintam-se à vontade para fazer declarações antidemocráticas e ameaças às instituições. Como seus antecessores lideraram um regime que autorizava o sequestro, a tortura e a execução de opositores políticos e nunca foram responsabilizados pelos seus atos criminosos, tanto Jair Bolsonaro, o militar que planejou colocar bombas nos quartéis nos anos 1980, quanto seu círculo verde-oliva têm a certeza da impunidade. E esta é a impunidade que fez ― e faz ― mais mal à democracia brasileira.

A questão, porém, é que, durante a democracia, uma parte da classe média enfrentou a impunidade dos militares e dos agentes de Estado. Com muita dificuldade, ainda foi possível fazer uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos pelos agentes do regime de exceção. Entidades importantes, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tentaram e tentam reformar a Lei da Anistia, de 1979. Uma parte das elites lembra, com alguma frequência, que crimes contra a humanidade, casos das violações praticadas por agentes do Estado a serviço da ditadura, são imprescritíveis e não estão sujeitos a anistias.

Mas há um porém. O processo democrático e seus principais agentes, a maioria deles de classe média branca, enfrentaram muito menos os crimes e a desigualdade resultantes do racismo. O racismo seguiu normalizado na construção da Nova República. A sociedade continuou compactuando com as torturas dos que são erroneamente chamados de “presos comuns” nas delegacias de polícia e nas prisões, a maioria deles pretos; com a invasão ilegal das casas do mais pobres pela polícia, a maioria deles pretos; com as condições incompatíveis com qualquer conceito de dignidade das prisões abarrotadas, majoritariamente por pretos; com as leis que lançam pequenos traficantes de drogas nestas prisões, a maioria deles pretos, e absolve os consumidores, a maioria deles brancos; e, finalmente, com o genocídio da juventude negra nas periferias e favelas.

O processo democrático e seus principais agentes não enfrentaram o racismo estrutural com a urgência que essa abominação exige. No pouco que foi feito, como na questão das cotas raciais nas universidades, houve gritaria da classe média branca, que se sentiu insultada ao perder um privilégio que confundia com direito. Para combater uma das primeiras e atrasadas políticas públicas para a inclusão dos negros na sociedade, fortaleceu a vergonhosa tese da meritocracia, como se todos, brancos e negros, partissem de bases semelhantes para disputar espaços em igualdade de condições.

Tudo isso tem consequências, obviamente. E tem consequências para a democracia, que assim jamais se completa, fragilizando-se aos autoritários de tocaia. Uma parte significativa da população têm pouca relação com a democracia porque não consegue perceber que faça grande diferença na sua vida. Não é porque são ignorantes e porque desconhecem a história. Ao contrário, eles vivem a história no cotidiano. A Polícia Militar segue lá, derrubando portas e explodindo as cabeças das suas crianças ou abatendo-as pelas costas. Seus queridos estão em prisões descritas por um ex-ministro da Justiça como “medievais”, muitas vezes sem julgamento ou porque foram pegos com 100 gramas de maconha. E, na pandemia de covid-19, eles nem têm casas que permitem o isolamento nem têm condições de parar de trabalhar nas ruas, caso dos informais, nem seus patrões brancos permitem que façam confinamento, caso da minoria empregada.

Bolsonaro, assumidamente racista em suas declarações, disse para essa população algo que nenhum branco com responsabilidade pública tinha tido a coragem de dizer antes dele: “e daí?”. A vida cotidiana no Brasil lança um grande “e daí?” sobre os negros, cuja existência é marcada por menos tudo o que é da vida e por mais mortes por doença, bala e descaso há pelo menos quatro séculos. Se são os pretos que proporcionalmente morrem mais ao contrair a covid-19 e se são os pretos os mais expostos ao novo coronavírus, porém, o “e daí?” de Bolsonaro formalizou o racismo como política de Estado e lançou a pandemia, já totalmente atravessada pela desigualdade racial, diretamente no coração da disputa política que se dá em torno da democracia.

O movimento de rua iniciado pelas torcidas de futebol, algumas delas, como a Gaviões da Fiel (Corinthians), criadas no combate à ditadura, apontam que a denúncia do racismo é que leva à luta pela democracia com apoio popular, neste momento. E não o contrário. Se a classe média progressista não compreender isso, rapidamente, estará fora da centralidade do momento. E, mais uma vez, defenderá uma democracia que nega a si mesma, ao ignorar os negros, quase 56% da população brasileira, condenados aos porões da sociedade, em todas as áreas, depois de mais de três décadas de democracia formal.

Não por acaso, entre os manifestos lançados que encontraram ressonância, o mais contundente na posição antirracista é o do “Esporte pela democracia”, ao repudiar com veemência o racismo em pelo menos três partes do texto. “A banalização da vida negra soma historicamente milhares e milhares de mortos por violência, discriminação, práticas racistas diárias bem diante dos nossos olhos”, afirma. “Pelo nosso repúdio integral ao racismo, à violência, e nosso desejo de voltar a crer num futuro possível e igualitário, hoje nos colocamos diante de questões políticas importantes. Como representar um país em que práticas autoritárias se tornam cotidianas? Em que a diversidade cultural, uma de nossas maiores riquezas, é frontalmente atacada? Como nos comportar diante do que temos vivido nos últimos tempos, da triste imagem nacional passada para o mundo? Queremos voltar a nos sentir orgulhosos de nosso país, representando em Copas do Mundo, Olimpíadas e outras competições internacionais o legado de nossa cultura, nossa história, nosso povo”.

O crescente autoritarismo do Brasil atual ― no qual Bolsonaro pode ser o ápice mas não é de forma nenhuma a origem ― dificultou mas não conseguiu interromper o movimento de pressão dos negros por protagonismo e espaços de poder. O Brasil estava no início de um debate que previa não apenas enfrentar os crimes da ditadura, mas também enfrentar as violações normalizadas no processo democrático. Ações como a criação da Comissão da Verdade sobre os Crimes da Democracia Mães de Maio, lançada em 2015 por vários movimentos de São Paulo, marcavam essa nova fase da democracia que o conservadorismo tradicional tentou interromper. Tentou interromper e, no processo, foi parte absorvido, parte atropelado pelo bolsonarismo. Marielle Franco encarnava essa irrupção das minorias que são maiorias – e foi silenciada a tiros.

A repressão a essas forças emergentes tem sido brutal, mas até esse momento não foi capaz de interrompê-las. É isso que os movimentos de rua estão mostrando, desde as campanhas de solidariedade e combate à pandemia, na base do “nós por nós”, promovidas pelos movimentos nas comunidades periféricas, até os recentes protestos de rua iniciados pelas torcidas de futebol, com o apoio no último domingo (7/6) de setores populares importantes como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e coletivos da população negra. Talvez o que a classe média progressista branca precise entender neste momento é que precisará seguir ― e não ser seguida.

O racismo estrutural do Brasil é tão explícito que a realidade o desenha com sangue. João Pedro, de 14 anos, estava dentro da casa dos tios, em 18 de maio, quando foi morto pelas costas pela polícia que invadiu a residência em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Seria mais do que suficiente para negros ― e também brancos ― se insurgirem com tanta força quanto a demonstrada pelos afroamericanos após a morte de George Floyd, nos oito minutos e 46 segundos que durou sua asfixia por um joelho branco.

O imperativo de se insurgir contra o racismo é de todos, brancos e pretos, direita e esquerda. O racismo é limite insuperável. Não há como afirmar que o Brasil é uma democracia quando a polícia invade uma casa e mata uma criança. No Brasil, Floyd não seria exceção, João Pedro não é exceção. Essa normalização é o crime além do crime. E deste todos são cúmplices.

E então, Miguel Otávio, de cinco anos, foi assassinado num prédio de luxo no Recife, em 2 de junho. É uma cena de Casa Grande e Senzala no século 21. A mãe preta, Mirtes Renata Souza, é obrigada a trabalhar na casa da patroa branca, em plena pandemia. Leva o filho, porque as escolas estão fechadas por causa da covid-19. A patroa, Sari Corte Real, primeira-dama do município de Tamandaré, manda que ela vá passear com o cachorro. Com o cachorro. Ela então deixa seu menino de cinco anos com a patroa. Mas a criança chora porque está assustada e quer ficar com a mãe, que avista pela janela passeando com o cachorro. Com o cachorro. A patroa está ocupada com a manicure, e o menino a está perturbando. Ela então o despacha sozinho no elevador. No elevador de serviço. Ele não sabe o que fazer nem como chegar até a mãe. Então desce quando a porta abre no nono andar. Escala as grades que protegem os equipamentos de ar condicionado e cai de uma altura de 35 metros. Miguel Otávio alcança a mãe. Morto. A patroa é presa, mas paga 20 mil reais de fiança e volta para casa.

A jornalista Joana Rozowykwiat desenhou em seu Facebook:

“O horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:

A empregada que trabalha durante a pandemia;

A empregada que não tem com quem deixar o filho;

A empregada é negra;

A patroa é loura;

A patroa é casada com um prefeito;

O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;

A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;

A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora; A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;

O menino se chama Miguel, nome de anjo;

O sobrenome da patroa é Corte Real;

A empregada pegou covid com o patrão;

A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;

Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;

Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;

Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;

É muita coisa, muito símbolo”.

É mesmo muita coisa e muito símbolo.

E aí alguém diz, com genuína preocupação e muita razão, que não dá para ir para as ruas protestar numa pandemia. E esta exatamente seria a razão pela qual a mãe de Miguel Otávio não deveria estar trabalhando naquele dia. Só que este é o país da desrazão, este é o país em que uma mulher negra arrisca a sua vida para passear o cachorro da madame branca, este é o país liderado ― e representado ― pelo “e daí?” de Bolsonaro. Este é o Brasil que lidera o número de mortes pela covid-19 porque o antipresidente decidiu que é natural que uma parte da população morra mesmo. Mas os negros e os indígenas sabem que parte da população é esta, a que sempre pôde morrer na visão da parcela do Brasil que Bolsonaro representa.

Se neste momento há consenso entre os progressistas de que Bolsonaro é “uma ameaça à civilização”, é urgente compreender que, caso se trate mesmo de “civilizar” o Brasil, é imperativo exterminar o racismo. No Brasil, a barbárie tem sido a dos brancos contra os negros e contra os indígenas. Bolsonaro a exalta, mas não a inventou. Achar que dá para ter democracia com racismo é um delírio persistente de uma parcela dos brasileiros.

Por enquanto, é a juventude preta periférica politizada que está mais presente nas ruas lutando contra o fascismo/racismo. O que todos os sinais estão apontando é que, desta vez, o racismo não será silenciado na disputa política em torno da democracia. Pode até acontecer um movimento aos moldes das “Diretas Já”, que marcaram o começo do fim da ditadura militar, liderado pelos progressistas brancos de classe média, em que o racismo seja só uma nota de rodapé na luta pela destituição do maníaco do Planalto e pela restituição da democracia hoje em frangalhos. Neste caso, não será então apenas uma oportunidade histórica perdida. Será muito mais. Será uma vergonha histórica.

O novo Diretas Já (e já com outro nome), nascido nas periferias que reivindicam seu legítimo e real lugar de centros, colocado em curso por movimentos sociais e coletivos, e não mais por partidos políticos, ou será com os negros ― ou não será.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum