Day: junho 10, 2020
O imortal, de Maurício Lyrio, é opção para esquecer agruras da quarentena
Em artigo na revista Política Democrática Online, André Amado recomenda obra de embaixador do Brasil no México
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online, André Amado, recomenda leitura de alto nível, que, segundo ele, fará esquecer as agruras da quarentena. Ele conta aos internautas uma análise sobre o livro O Imortal (Companhia das Letras), a mais nova obra do embaixador brasileiro no México, Mauricio Lyrio, em artigo que publicou na 19ª edição da revista, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).
Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online!
O Imortal é o segundo livro de Lyrio e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2019 e do Prêmio Oceanos – Itaú Cultural, no mesmo ano. A seguir, leia trechos do artigo de André Amado:
O imortal tem como personagem central Cassio Haddames, um embaixador lotado em Brasília sem maior brilho profissional, mas que é eleito pela Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro brasileiro a ser contemplado com o cobiçado galardão. Sua candidatura fora proposta pelo ministro das Relações Exteriores, em exposição de motivos, dirigida ao presidente da República, iniciativa que incluía – na verdade, tinha como objetivo maior – vender uma segunda candidatura, a de Sua Excelência ao Prêmio Nobel da Paz. O texto desse expediente, cuja leitura já vale a do livro, reproduz na ficção um exemplo comum na Esplanada dos Ministérios, de como altos membros da burocracia tentam chaleirar o ego de seus superiores. No caso, do mais alto mandatário do pais, na aposta de que ninguém vira o rosto para o horizonte faiscante de tamanho mimo?
Acontece que os suecos aceitaram conceder o Nobel de Literatura ao embaixador, mas passaram solenemente ao largo do pleito presidencial.
De sua parte, Haddames estava até certo ponto constrangido pela concessão do Prêmio. Tal como não se cansava de repetir um despeitado jornalista da terrinha, o próprio Cassio Haddames também tinha dúvidas quanto à justiça da honraria recebida. Ele apenas escrevera três romances, que somavam, juntos, 954 páginas. Daria para justificar a homenagem maiúscula da Academia Sueca? Tanto mais na comparação com a produção literária de um Bandeira, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, entre tantos outros, jamais considerados por Estocolmo.
Em meio a essa crise de consciência, duas surpresas aguardariam o agora ilustrérrimo embaixador em seu retorno ao Brasil. Primeira, ainda no aeroporto, um comitê de recepção desfraldava faixa monumental com o nome do premiado e dizeres em letras garrafais: O NOBEL É NOSSO! E a segunda foi de início uma sondagem, que rápido ganhou foros de irrecusável gestão, orquestrada por raposas da cena política brasileira, para que Cassio Haddames aceitasse disputar as próximas eleições para presidente da República.
Leia mais:
Coronavírus: Grandes produtoras despencam e pequenas decretam falência
Pandemia expõe fortes contradições do Brasil, diz Maria Amélia Enríquez
» Coronavírus: ‘Pandemia deve produzir maior queda da economia do capitalismo’
» ‘Gabinete do ódio está no coração do governo Bolsonaro’, diz Política Democrática
» Nova Política Democrática analisa crise do governo Bolsonaro e legião de invisíveis
» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática Online
Merval Pereira: Provas compartilhadas
Na frente do prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em Brasília, onde se desenrolam os processos para impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão sob diversas alegações, dois grupos se manifestavam ontem. De um lado, a turma do Bolsonaro, comandada pela ativista Sara Winter. De outro, o grupo da oposição, aparentemente liderado pelo PT.
Ambos com pouca gente, diga-se de passagem, o da oposição menor. Gilberto Carvalho, ex-ministro de Lula e seu braço direito, pegou o megafone e começou a esbravejar contra o “golpe” sofrido pela ex-presidente Dilma, e a defender ao mesmo tempo a cassação do mandato de Bolsonaro e Mourão.
Foi tiro e queda, esvaziou-se a manifestação oposicionista. Esse fato fortuito é exemplar de uma situação política apodrecida, que levou à irrelevância de Lula na atual quadra brasileira. Como Bolsonaro, Lula só pensa naquilo, a eleição de 2022. Mas quer que os partidos continuem a girar em torno dele, o sol oposicionista.
Um desejo irrealizável pelas leis em vigor, pois foi condenado em segunda instância e é inelegível. A presidente do PT, Gleisi Hoffman, já lançou a candidatura de Lula, e José Dirceu, mais pragmático, mas igualmente fora da realidade, defende o que chama de “chapa imbatível”, com o governador petista da Bahia Rui Costa para presidente e Flavio Dino, governador do Maranhão do PCdoB, como vice. Uma tentativa de manter o PCdoB como satélite do PT.
No domingo, num programa especial da Globonews de Miriam Leitão, ficaram frente a frente três líderes da oposição a Bolsonaro: Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, Marina Silva, do Rede e Ciro Gomes do PDT. Debateu-se uma aliança oposicionista que unisse vários partidos, aliança essa que o PT já se recusou a aderir, alegando que não poderia conviver com quem trabalhou pelo “golpe” contra Dilma, nem assinar um mesmo documento que o ex-ministro Sérgio Moro.
No programa da Globonews, Ciro Gomes tomou a iniciativa de se reaproximar do ex-presidente Fernando Henrique, a quem criticou regularmente nos últimos anos, depois de terem sido companheiros de partido e de governo. Num momento como o que enfrentamos, com crises para todos os lados, é indispensável que os líderes políticos se unam em tono do que os agrega, como a oposição de Bolsonaro.
Mas os dois populistas, Bolsonaro e Lula, se retroalimentam, e precisam um do outro. Não creio, porém, que depois dessa experiência com o governo Bolsonaro, e com a debilidade política do PT, tenham chance novamente de dividir o eleitorado.
O julgamento da chapa Bolsonaro -Mourão, ontem no TSE, foi o primeiro dos muitos que vão acontecer e deve ser arquivado, porque a questão é frágil. Trata-se de um site “Mulheres contra Bolsonaro” que foi invadido por hackers e teve o nome mudado para “Mulheres a favor de Bolsonaro”.
É muito subjetivo determinar se foi o candidato quem mandou invadir o site, e o relator do caso, ministro Og Fernandes, votou pelo arquivamento. O ministro Facchin quer continuar a investigação. Assim como esse, outros processos também são frágeis.
O fundamental para o TSE é definir se essas ações mudaram o resultado das eleições. Nesse sentido, o único processo que vai dar discussão é o de impulsionamento de mensagens no WattsApps, mentirosas ou favoráveis a Bolsonaro. Impulsionamento na campanha eleitoral é ilegal - não se pode mandar a mesma mensagem para milhares pessoas porque é caro e caracteriza abuso de poder econômico.
Além disso, quando impulsiona mensagens mentirosas, outro candidato está sendo prejudicado. O compartilhamento de provas encontradas no inquérito do Supremo que já investiga fake news há um ano, se autorizado, pode robustecer esse processo no TSE, e a quebra de sigilo dos empresários envolvidos no apoio ao governo Bolsonaro nas redes sociais pode levar à criminalização desse apoio, comprovando o abuso do poder econômico.
O presidente do TSE, ministro Luis Roberto Barroso, já avisou que a esperança de grupos de que o TSE possa resolver uma questão politica que está posta, com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão, é infundada. O Tribunal não agirá politicamente, garante. O julgamento deve acontecer ainda este ano, o que, no caso de impugnação da chapa, obrigaria a uma nova eleição direta para presidente da República. Se acontecer depois do segundo ano de mandato presidencial, a eleição seria indireta. O TSE pode também impugnar apenas a candidatura de Bolsonaro, e nesse caso assumiria o restante do mandato o vice Hamilton Mourão.
Mas é preciso levar em conta que é muito difícil anular uma chapa presidencial eleita por 60 milhões de votos. A não ser que o excesso de provas torne inevitável a decisão.
Bernardo Mello Franco: Vem aí o Bolsa Capitão
Antes de sonhar com o Planalto, Jair Bolsonaro era um crítico feroz do Bolsa Família. Em 2011, ele disse que o programa serviria para transformar “pobres coitados” e “ignorantes” em “eleitores de cabresto”. “Não interessa ao PT fazer com que o povo tenha cultura, emprego, trabalho, porque vai perder esse curral eleitoral”, pontificou.
Segundo o então deputado, transferir renda aos mais pobres significava empurrar o país para o comunismo. Seria preciso “colocar um fim” ao programa antes que o Brasil virasse uma “ditadura do proletariado”. Os microfones da Câmara aceitam tudo, mas o Muro de Berlim já estava no chão desde 1989.
Ao subir a rampa, o capitão mudou o discurso. Passou a se dizer um defensor do Bolsa Família, embora seu governo tenha recriado a fila do benefício. Agora ele pretende rebatizar o programa. O novo nome será Renda Brasil, confirmou ontem o ministro Paulo Guedes.
A mudança tem um objetivo claro: Bolsonaro quer se apropriar de uma vitrine associada à oposição. Ele poderia fazer isso se melhorasse o programa e ampliasse o número de beneficiários. Preferiu o caminho fácil da maquiagem eleitoreira.
Os últimos meses ensinaram ao governo que socorrer os pobres não é só uma ação humanitária. Graças ao auxílio emergencial de R$ 600, Bolsonaro recuperou popularidade na base da pirâmide social. Isso compensou parte de sua queda na classe média, irritada com o descaso federal pela pandemia.
Guedes revelou que o coronavírus teve outra utilidade. “Aprendemos que havia 38 milhões de brasileiros invisíveis”, disse, referindo-se às pessoas que se cadastraram para receber o auxílio. Aos 70 anos, o economista parece ter descoberto a existência dos pobres. Mesmo assim, o governo ainda é traído por seus instintos.
Na quinta passada, o Ministério da Economia transferiu R$ 83,9 milhões do Bolsa Família para a Secretaria de Comunicação. A verba social seria torrada em propaganda. Ontem a pasta foi obrigada a voltar atrás. Não pelo absurdo da ideia, mas para evitar problemas com o Ministério Público e o TCU.
Míriam Leitão: Bolsonaro divulga falsa interpretação de decisão do STF sobre a pandemia
É falsa a versão de que o STF afastou o presidente do combate à pandemia. Jair Bolsonaro tem repetido essa interpretação distorcida sobre a decisão do Supremo, que definiu o papel de cada ente federativo. O presidente tem responsabilidade no combate à crise sanitária, mas não está cumprindo.
O Supremo, consultado por estados e municípios, esclareceu que a Constituição diz com todas as letras que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.
Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu esta semana: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.” Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: “só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos.” Foi tão imediata a transmissão dessa mensagem que confirmou como funciona a comunicação do presidente nas redes, impulsionada pelo gabinete do ódio.
O conteúdo também é falso. O STF não afastou o presidente do combate à pandemia. O Supremo estabeleceu os limites da responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, porque assim estabelece a Constituição.
Toda a preocupação do presidente, desde o início da crise sanitária, é saber como a atuação dele vai ser interpretada durante a campanha de 2022. Jair Bolsonaro fala isso abertamente. Na segunda-feira ele tratou como o maior problema do país nesse momento as manifestações contra o seu governo.
A situação é muito grave para ser tratada assim. É evidente que o maior problema atual é a pandemia, que já matou mais de 38 mil pessoas até aqui.
O esforço inicial do presidente foi para jogar o custo da crise econômica em cima de governadores e prefeitos. Agora o foco é distorcer a decisão do STF. A realidade é que a situação seria muito pior sem as medidas de restrição tomadas por governadores e prefeitos.
O STF não afastou o presidente das responsabilidades na Saúde, mas ele continua se omitindo o tempo todo. Bolsonaro é o presidente de uma nação que enfrenta uma crise grave, com esse grau de letalidade. Ele foge das suas obrigações de presidente. Passa o tempo todo administrando a versão dos fatos, para que possa usá-la eleitoralmente em 2022. É só com isso que se preocupa Jair Bolsonaro. Isso é impressionante. A situação é grave demais para ser tratada com essa leviandade.
Na terça-feira, o presidente chegou a dizer algo extremamente estapafúrdio. Bolsonaro falou que ninguém no Brasil morreu por falta de respirador ou de leito de UTI, e que no futuro se descobrirá que alguns morreram por não receberem hidroxicloroquina. Ele continua obcecado, incapaz de ver a realidade. É evidente que pessoas morreram por falta de UTI e de respiradores, como mostram os veículos de comunicação. Todos vimos. De novo, o presidente constrói uma versão falsa dos fatos.
Vera Magalhães: Bafo do impeachment
Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment
Jair Bolsonaro conduziu uma reunião do conselho de ministros nesta terça-feira no Palácio da Alvorada em que quase parecia um estadista. Comedido, falou sobre as declarações da véspera da especialista da Organização Mundial da Saúde (OMS) que minimizou os riscos de contágio da covid-19 por pessoas assintomáticas. Não tripudiou, não comemorou, não desancou a OMS. Não falou palavrões.
No domingo anterior, não fez sua tradicional aparição cercado de apoiadores na rampa do Palácio do Planalto.
Depois de esticar a corda ao máximo, ao determinar que o Ministério da Saúde revisasse e escamoteasse os dados de contágio e óbitos da pandemia, recuou diante de mais uma invertida do Supremo Tribunal Federal (STF), numa semana plena de potenciais encrencas para o governo no Judiciário.
Todos esses recuos são do conhecido comportamento ciclotímico de Bolsonaro, mas agora foram ditados por avisos muito claros que auxiliares fizeram ao presidente: o apagão de dados da covid-19 era o que de mais cristalino em termos de crime de responsabilidade o “capitão” cometeu até aqui, e não passaria incólume só com notas de repúdio.
Tanto que a reação da sociedade, da imprensa, dos Poderes, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, da CNBB, do papa, da OMS, da universidade John Hopkins não deixou margem para dúvida.
Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment, e, pela primeira vez, ela estava viva.
ARMAS
Ideia de zerar alíquota é novo
Se o discurso de Bolsonaro está no modo de contenção desde segunda-feira, as ações do presidente continuam mostrando a propensão de ampliar a influência política do bolsonarismo sobre as Forças Armadas e as polícias. Diante de tanta coisa que o presidente fala, passou quase batida sua declaração de que vai zerar a alíquota de importação de armas para “ajudar o pessoal do artigo 142 e 144 da Constituição”. Mais uma vez Bolsonaro investe na leitura golpista dos dois artigos para associá-los à possibilidade de usar os militares e as polícias como forças de “defesa” de um governo ameaçado por riscos reais ou imaginários.
PT EM TRANSE
Novos líderes já não escondem incômodo com ‘lulocentrismo’
As recentes bolas foras de Lula na tentativa de mostrar que é uma liderança de peso na pior crise política, econômica, de saúde e social que o Brasil enfrenta em anos já levam boa parte da nova geração não só de líderes petistas, mas de toda a esquerda, a demonstrar em público o incômodo com a forma autocentrada com que o condenado na Lava Jato conduz a sigla. No Roda Viva na segunda-feira, o governador do Ceará, Camilo Santana, fez algo que seria sacrilégio no partido até outro dia: disse com todas as letras que Lula está “equivocado” ao negar fazer parte de uma frente ampla pela democracia, e disse que o PT tem de fazer aliança em Fortaleza sem estar na cabeça da chapa, outra heresia. Não demorou a que Gleisi Hoffmann lançasse a candidatura de Lula em 2022, para mostrar que o establishment petista segue alheio à irrelevância da sigla também na oposição a Bolsonaro, depois de ser apeada do poder com Dilma Rousseff.
Rosângela Bittar: O processo
Opositores ao governo já iniciaram a caminhada, mas ainda não há um líder
O desfecho das manifestações nas ruas, dos manifestos dos movimentos organizados, das reuniões privadas e debates públicos ainda não está totalmente visível. Os opositores ao lamentável governo Jair Bolsonaro já iniciaram a caminhada, mas seu horizonte ainda não tem o nome de um líder ou uma definição clara sobre o cenário político que procuram. O propósito é levar adiante um processo, organizado e consequente.
A partir de agora, estão decididos a selecionar os fatos, dia a dia, até que fiquem instaladas as condições para providências concretas. No debate do domingo, na GloboNews, em que formalizaram sua união contra o mal, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros Ciro Gomes e Marina Silva apontaram estágios diferentes da reação política ao escárnio do governo Jair Bolsonaro com a opinião pública dos brasileiros.
Ciro, por exemplo, fixou-se no impeachment, opção do grupo de partidos de esquerda e centro com quem tem conversado. Não agora, imediatamente, mas com previsão para agosto ou setembro. Fernando Henrique demonstrou cautela com relação a isto e seu raciocínio sobre os desdobramentos da nova frente ampla aponta em direção à travessia até as eleições de 2022.
Por sinal, o impeachment nunca foi a primeira opção do ex-presidente. Na deposição do ex-presidente Fernando Collor, FHC dizia que “impedimento é bomba atômica, existe para não ser usada”. Uma semana depois desta caracterização extrema, estava ele, pessoalmente, colhendo a assinatura de Marcelo Lavenère, então presidente da OAB, à petição. Entre a frase e a ação o impeachment se impusera.
No caso atual, o ex-presidente ainda se guia pela fase inicial, a prudência. É preciso observar como, nesses próximos dois a três meses, os fatores das crises produzidas e alimentadas por Bolsonaro se refletirão sobre o destino do governo.
Podem surgir elementos que acelerem o processo de impedimento ou que retardem a saída para a disputa eleitoral. Por exemplo: o inquérito das fake news vai evidenciar a participação de algum filho nas atividades do gabinete do ódio? Algum dos processos que restaram no TSE poderia afastar a chapa Bolsonaro-Mourão? O inquérito da interferência do presidente na ação da Polícia Federal comprovará as suspeitas de ligação do seu grupo político com milicianos?
São questões a terem respostas nos próximos meses. Definirão a ação da frente de oposição.
As eleições municipais que ocorrerão neste meio tempo não são obrigatoriamente pontes para um grande consenso, mas podem funcionar como mata-burro.
Muito há para ser definido. No diálogo das forças que agora se unem contra o esfacelamento político, econômico, humano e ético do Brasil, não apareceram nomes de líderes que poderão galvanizar essas forças políticas. É o que mais se procura, hoje. Os nomes. O nome.
É preciso, antes, avaliar convergências, incompatibilidades, esquemas que podem sustentar a mudança. O que colocar no lugar? Que partidos vão se aliar para formar uma chapa? Quem com quem, em torno do quê? São questões urgentes na agenda deste período que se segue ao primeiro passo, o da união.
O fato político que servirá de denominador comum ainda não amadureceu, mas a iniciativa de aliança já foi suficiente para evidenciar que Jair Bolsonaro está absolutamente isolado. O Centrão, grupo parlamentar que divide o governo Bolsonaro com os militares, tem votos para evitar o impeachment, mas não tem consistência para garantir estabilidade política que o presidente precisa. Os partidos tradicionais, de centro e centro-esquerda, que poderiam assumir o papel, são dominados pelos líderes ora em oposição. E não poderá contar com os arranjos espontâneos do eleitorado de 2018.
Paulo Delgado: O homem da coragem errada
A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda
A qualidade de governante não se adquire sem fundamento, especialmente se o rolo compressor que brota de individualidade exacerbada é safra diária de disparates absurdos.
A combinação de coragem errada com circunstância ruim é um desastre. Abrir a boca para berrar só piora se a educação é nota de rodapé e o texto principal, palavrão. A agressividade nele é um método cujas ameaças são um ardil.
Sempre foi admitido no círculo das instituições mesmo quando as criticava sem pudor. Sua lógica é parecer fora dos costumes desde que foi inocentado no STM por desonra de conduta e nunca punido pelas injúrias e pelos desacatos como deputado. Duas escolas que tiraram dele a noção de castigo. Percebeu que a verdade é diminuída em valor quando a autoridade, civil e militar, de direita ou esquerda, está bem confortável em seu cargo e disposta a acreditar no que for.
Obtendo sucesso como um fora da ordem se envolveu em ações inimagináveis, bem abaixo do padrão de um país que fala tanto em Estado Democrático de Direito. E constatou que os fatos, vindos dele, não valem como prova. Bingo. Beneficiado pela simbiose dos radicais – um pacto entre espalha-brasas cujos extremos se alimentam –, livrou-se do confronto adulto e informado, o único que pode realmente detê-lo. Pôs em prática a ideia de que o medo ativa o inimigo. E decidiu que amigo é quem embarca na aventura destrutiva em que vive.
Uma boa maneira de conhecer a vida dos homens é observar o tom de voz e a frequência das palavras que usa. A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda. Escorre e arrasta a culpa para longe da consciência que a utiliza. Deposita no outro a responsabilidade que não assume.
Ele está levando uma surra dos estereótipos que cultiva. Esqueceu-se de que na última eleição para presidir a Câmara teve quatro votos. Nem o filho votou. Mas como caiu para cima, sem nenhum atributo de liderança, mantém a astúcia: ser hostil à divergência de opinião é a principal característica do sucesso político há mais de 30 anos.
A reunião não seria jocosa mesmo se a veneziana continuasse fechada e o creia-em-mim não fosse tão paranoico. Já são 16 as vezes que a palavra-espetáculo que mais o excita é a referência ao sêmen usada como ponto final da frase. Um verdadeiro doping vocabular: não haverá outro dia igual a ontem; eu sou a Constituição; não respondo a ninguém que queira me julgar; não cedo ao Estado meu poder. Somado a essa mania de distorcer tudo, fazer gato-sapato da história dos judeus e misturar Confúcio com ignorância.
O sujeito cindido e espaçoso é assombrado. Meios-tons na economia, strip-tease na política, desprezo por doentes, apartheid social-ambiental rebaixando o perfil internacional do País. Jogador treinado no ringue parlamentar, usa o baralho sem conhecer todas as cartas e ameaça com recursos de poder que não possui.
Mas joga a isca. Anunciar, sem ser contestado, que tem seus tontons macoutes voluntários e ativos é de rir sem alegria. Ai de ti, SNI. A ameaça sem dubiedade às instituições Supremo, Congresso, mídia lembra “acorda, amor. É a dura, numa muito escura viatura”.
Os serviços de inteligência estão totalmente atomizados e acabam operando uns contra os outros. Não servem nem para antecipação de decisão, nem para contrainformação. Ao invés de o Estado organizar sua sinergia para proteger o País, o presidente usa os buracos na doutrina de segurança e defesa para fazê-la mais vulnerável.
Interessante é saber de onde vem esse desejo de desobedecer. Com as críticas do ministro da Justiça soubemos como se concilia o sistema de Justiça com a ideia de que “lei errada não se cumpre”. O crime organizado gosta da confusão criada por presidente que prega não ter medo da ameaça legal.
Refém do temperamento bilioso, coloca, cuidadosamente, a mão suja na mão de quem lhe estende a mão, assinando a culpabilidade de um Estado que zomba da doença e da morte. Quanto ao resto, quem quiser ver algo melhor que veja. Na eleição desanca o Parlamento, no governo confirma o ditado: quem não tem cão caça como gato.
Domingos imorais. Quando a pata do animal escavou o asfalto em busca de um ponto de apoio o arreio afrouxou e ele caiu do cavalo dias depois ao escorregar em outro Estado. Foram cinco voltas inúteis num Super Puma, porta aberta, pondo todos em risco. Se fosse bombeiro não se exibia, nem pisava na mangueira.
A combustão alimenta o paradoxo. A cada hora finge ir ao máximo nas palavras por imaginar que no grito tira a vantagem de quem o ameaça. As aversões ocultas, as dificuldades de apego, a falta de altruísmo e empatia não caracterizam nosso Estado. Governante que induz a população, durante pandemia, a desprezar os riscos de adoecer e morrer pode terminar em tribunal de reparação.
Mantida ativa a sementeira o grão se multiplica em cem, desatarraxa a sociedade e atrela a democracia a um alfinete. Destravar a granada é enquadrar seu impulso de guerra na sabedoria de buscar a paz obrigatória, dever de quem governa.
- PAULO DELGADO É SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR
Samuel Mac Dowell e Marco Antônio Rodrigues Barbosa: Adeus às armas
Se obtiver o registro de advogado, Moro poderá entrar no lado claro da cena
Há quem não entenda por que muitos não querem partilhar manifestos pela democracia com Sergio Moro. Propomo-nos a explicar.
Enquanto juiz, o ex-ministro comprometeu parte dos processos da Lava Jato com ilegalidades que os reduziram ao arbítrio e à perseguição política: selecionar alvos, grampear advogados, abusar das prisões temporárias, usá-las para arrancar confissões, articular acusações e provas em conluio com procuradores, acusar e julgar, proferir sentenças sem conectar fundamentos lógicos, manipular a imprensa e a opinião pública e influenciar a eleição presidencial em benefício do grupo ao qual se integrou. É o que mostram os registros dos processos, da imprensa, do site The Intercept e de recursos em andamento no Supremo.
Cabe ao juiz julgar e valer-se do poder coercitivo do Estado para garantir a execução do que decide. Esse poder é exercido pela força física e uso das armas, um monopólio oficial que está na base da organização da sociedade. Por sua gravidade, à coerção se contrapõe ao sistema de garantias constitucionais que configuram o devido processo legal. Ao desrespeitar esse sistema, na sua dimensão política e funcional o juiz corrompe a ordem jurídica; como indivíduo, é um algoz que age com covardia frente a quem não possui as mesmas armas. Um não juiz, que impõe condenações baseadas em fraudes processuais, imputações falsas e atos tão socialmente danosos quanto os crimes que declara combater.
Se atendeu a claras exigências da sociedade, a Lava Jato, como uma “deep web”, mergulhou em um lado escuro onde as deformações do processo, o comércio de delações e as ações ocultas de autoridades criaram um espaço sem controles e conhecimento público. Isso não é outra coisa que não um ataque às bases essenciais da organização social.
A experiência dos advogados com o processo judicial mostra o quanto é necessário para o equilíbrio das instituições e o quanto depende da conduta do juiz. Nos processos em que a União foi condenada por crimes da repressão do regime de 1964, nos casos Herzog e Fiel Filho, juízes federais operaram de modo correto esse sistema frente a um Estado onipotente, com o objetivo de garantir a ordem constitucional. Seria extraordinário que os processos de combate à corrupção correspondessem a esse ideal e não contivessem aquelas máculas —e a Lava Jato não deixasse como legado a ilusão de que, frente à corrupção, só há eficácia no despotismo de juízes e procuradores em processos sem regras.
Em confronto com o governo ao qual se associou, Moro exige respeito a princípios que, como juiz, ocultou no lado escuro do arbítrio e da prepotência. Esse respeito é devido, mas na defesa da democracia não há espaço a compartilhar com quem a devasta. Ainda assim, o ex-juiz, se desejar obter seu registro legal como advogado, será protegido pelas garantias constitucionais que negou a quem antes julgou. Poderá entrar no lado claro da cena, mas deixando na porta e esquecendo no passado as armas que não poderá usar mais.Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa
* Advogados, são fundadores do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian – Advogados
Igor Gielow: Saúde, aviões e armas desgastam Bolsonaro na ativa das Forças Armadas
Episódios envolvendo diretamente militares da ativa geram incômodo em alguns setores
O desgaste do governo Jair Bolsonaro entre setores do serviço ativo das Forças Armadas cresceu na última semana.
Três fatores principais, além de questionamentos já existentes sobre a identificação dos militares com o governo, concorreram para isso.
O principal foi a confusão acerca da divulgação dos números da Covid-19 no país pelo Ministério da Saúde, controlado pelos militares.
Foi visto com reserva o desempenho do interino, o general da ativa Eduardo Pazuello, por alguns de seus colegas de farda.
A decisão dos militares da pasta de seguir a ordem de Jair Bolsonaro e alterar parâmetro de contagem de mortos e de reduzir a transparência de dados foi vista como danosa às Forças.
Ao longo dos anos pós-redemocratização, pesquisas apontaram os militares como titulares da instituição mais bem vista do país, e esse patrimônio está, para muitos, sob risco.
Pazuello é visto como um oficial cumpridor expedito de ordens. Assim, talvez por corporativismo, as críticas são mais centradas ao Planalto.
Outro fator de atrito foi o decreto, do Ministério da Defesa, permitindo ao Exército operar aviões de asa fixa, e não só helicópteros. O caso, divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo, provocou uma forte reação na Força Aérea, e o texto foi revogado na segunda (8).
Parece uma discussão bizantina, mas não é. A interoperabilidade entre Forças é chave de qualquer poder armado moderno: quanto mais sobreposições de funções, pior. A Aeronáutica viu no gesto um agrado a mais ao Exército, Força de origem do capitão reformado Bolsonaro.
Os aviadores são politicamente mais distantes do governo. Têm apenas com um ministro nominal, Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), que saiu da cota pessoal do presidente. O Exército tem 7 dos 9 ministros militares, e a Marinha tem 1, mas possui assento na Secretaria de Assuntos Estratégicos no Planalto.
Há ecos históricos aqui: Juscelino Kubitschek quase enfrentou uma revolta ao tentar acomodar aviadores e marinheiros quando comprou o porta-aviões Minas Gerais, em 1956.
O navio foi encomendado para tentar apaziguar os ânimos das duas Forças contra o governo, mas só fez piorar a situação. A disputa sobre quem operaria aeronaves na embarcação só foi resolvida no ano 2000, com a reativação da operação de aviões pela Marinha.
O imbróglio atinge novamente a posição do ministro da Defesa, general da reserva Fernando Azevedo, cujo papel tem sido questionado nos meios políticos e militares.
No sábado (6), ele novamente embarcou em um helicóptero militar com Bolsonaro.
Desta vez não foi sobrevoar ato golpista como no domingo anterior (31), mas sim para acompanhar o chefe em mais uma visita simbólica a uma unidade militar —o Comando de Artilharia do Exército.
Azevedo foi questionado por ministros do Supremo acerca de sua conduta, e as respostas que deu foram consideradas evasivas.
Políticos de oposição dizem que essas demonstrações de suposto apoio da ativa feitas por Bolsonaro só agravam a crise política, já coalhada de rumores golpistas.
Na visita a Formosa (GO), por outro lado, o presidente estava acompanhado pelo comandante do Exército, general Edson Leal Pujol.
Ele e Bolsonaro estão afastados, e o presidente cogitou removê-lo do cargo, por divergências acerca da condução da crise do coronavírus. Nas últimas visitas relâmpago do presidente a unidades do Exército, o general não estava presente.
Também participaram outros integrantes da ala militar do governo, como os generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), além do capitão Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).
O terceiro item no cardápio de problemas, intensamente comentado em grupos de militares nesta terça (9), foi a revelação pela Folha de que o Exército está perto de fechar um acordo com a fabricante americana de pistolas SIG Sauer.
A empresa é objeto de lobby pessoal do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Para alguns oficiais, o esforço do filho presidencial prejudica o projeto, que vinha sendo discutido desde 2018, e o contamina com suspeita de ingerência política.
A área de armas e munições, obsessão da família do presidente e objeto da promessa de Bolsonaro de armar a população, é foco de ruídos. Cabe ao Exército regular a área, mas o presidente derrubou duas portarias de controle recentemente.
Com tudo isso, a ativa mantém o alto grau de ansiedade imposto pela dinâmica política de Bolsonaro e de seus ministros egressos da caserna.
Há apoio ao presidente, em especial no seu embate com decisões do Supremo, mas ele vem decrescendo à medida que aumenta a graduação do militar.
Há uma preocupação, compartilhada com os integrantes da ala militar, com as crescentes manifestações de rua contra Bolsonaro. Por um lado, uns temem que o presidente busque usar eventuais conflitos para justificar a convocação das Forças Armadas contra protestos.
O tema chegou a um paroxismo na semana passada, mas Bolsonaro foi aconselhado pela ala militar a baixar a fervura, apesar de aqui e ali dizer acusar ativistas contra seu governo de radicalismo.
Para os generais do governo, a prioridade é estabilizar o quadro político, uma vez que por ora o apoio do centrão está sendo angariado com cargos. Isso remove uma ameaça mais imediata de abertura de processo de impeachment, neste momento.
Há também entre os fardados o temor da radicalização em si, já que faz parte da mentalidade militar a preocupação constante com cenários de contingência.
Isso tem sido minimizado por governadores, segundo os quais os atos por ora estão sob controle e suas polícias, em que pese a decantada simpatia da categoria pelo bolsonarismo, trabalhando normalmente.
O teste do domingo passado (7) transcorreu com atos limitados e sem complicações.
Isso animou por sua vez oposicionistas, que esperam que uma onda maior contra o presidente se forme se houver um arrefecimento na pandemia do novo coronavírus nos próximos meses.
ENTENDA OS CASOS
Dados do coronavírus Desde a última semana, o governo federal vinha atrasando a divulgação dos números da pandemia no país. Além disso, o portal no qual o Ministério da Saúde divulga o número de mortos e contaminados foi retirado do ar na noite da última quinta-feira (4).
Quando retornou, depois de mais de 19 horas, passou a apresentar apenas informações sobre os casos "novos", ou seja, registrados no próprio dia. Desapareceram os números consolidados e o histórico da doença desde o começo da pandemia no Brasil. Nesta segunda (8), Alexandre de Moraes, do STF, mandou o governo retomar a divulgação na íntegra dos dados acumulados de mortes e casos confirmados.
Acordo com fabricante de armas
Após intenso lobby de Eduardo Bolsonaro, o Exército está prestes a fechar uma parceria para a fabricação de pistolas da marca americana SIG Sauer no Brasil. O filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é entusiasta de armas, e é visto no mercado como uma espécie de garoto-propaganda da SIG.
Decreto da Defesa
O ministério havia permitido ao Exército operar aviões de asa fixa, e não só helicópteros. Após forte reação na Força Aérea, o decreto foi revogado na segunda.
Elio Gaspari: Com Bolsonaro, país corre risco de virar Venezuela
Presidente, como Chávez e Maduro, produz uma crise por semana
Quando os professores José Arthur Giannotti, Denis Lerrer Rosenfield e a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) dizem uma mesma coisa, é bom que se preste atenção. Afinal, cada um com suas qualificações, eles têm pouco em comum.
Giannotti disse: "Bolsonaro dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela".
Rosenfield: "No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos. No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado".
Joice Hasselmann, ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso: "Antes que o Brasil caia num chavismo de verdade com o sinal trocado, eu propus o processo de impeachment".
Antes da eleição presidencial de 2018 havia gente assustada com a possibilidade de o Brasil virar uma Venezuela na mão do PT. Deu-se o imprevisível e surgiu o risco de uma venezuelização com Bolsonaro.
Ele foi um capitão indisciplinado, Hugo Chávez foi um coronel golpista. Ambos foram eleitos e ambos eram paraquedistas. Uma vez no poder, Chávez aparelhou-o com militares e, nas palavras do vice-presidente Hamilton Mourão, "existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país".
Bolsonaro nomeou centenas de militares da reserva e da ativa para cargos na sua administração. No Ministério da Saúde há ao menos 21. Seu governo mostrou-se tolerante com policiais militares amotinados, mas não mexeu com a disciplina dos quartéis. O chavismo firmou uma base numa milícia popular, enquanto a milícia bolsonarista é sobretudo eletrônica. As militâncias de Bolsonaro e do chavismo assemelham-se na hostilidade aos meios de comunicação, ao Congresso e ao Judiciário.
Bolsonaro repete que respeita a Constituição e nunca falou em referendos, enquanto Chávez atropelou as instituições durante seu primeiro mandato. Bolsonaro, como Chávez e Nicolás Maduro, produz uma crise por semana. A seu modo, tornou-se um excêntrico na comunidade internacional.
A grande diferença entre os dois países está nas suas economias. A brasileira é seis maior que a venezuelana. Além disso, Pindorama tem empreendedores no andar de cima, enquanto a elite da Venezuela vivia nas tetas da riqueza do petróleo. A sociedade brasileira tem uma complexidade que a venezuelana nunca teve.
Essas ressalvas valem pouco. Se o passado explicasse tudo, o nazismo teria surgido na Grécia, não na Alemanha, e Cuba nunca teria virado um país comunista.
Assim como Paris encheu-se de nobres russos nos anos 20 do século passado, Miami está cheia de cubanos e venezuelanos que não acreditavam que seus países virassem o que viraram. Eles não deram atenção ao que diziam pessoas como Giannotti, Rosenfield e Hasselmann.
*Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Marcelo Coelho: Medo do impeachment entorpece a oposição
Por incrível que pareça, muitos brasileiros se sentem fracos diante de um pateta
Fora algum incidente mínimo, as manifestações pela democracia e contra o racismo no domingo passado foram expressivas, bem organizadas e incapazes de dar pretexto a infiltrados e aproveitadores.
Talvez a movimentação contra Bolsonaro ganhe mais força a partir de agora.
Não é nenhum bicho de sete cabeças, afinal, sair às ruas com a devida máscara cirúrgica e todas as precauções de praxe.
Se o presidente e seus seguidores descreem do coronavírus, nem por isso precisam ter exclusividade nos atos de protesto.
E as ruas vinham fazendo falta na luta pela democracia.
Nunca vi tantos abaixo-assinados. Nunca cliquei tantos apoios a documentos na internet. O problema é que o mundo virtual, por mais que tenha lá suas estatísticas, não dá ideia da dimensão real das coisas.
Mil fanáticos de amarelo, com um presidente no meio, acabam projetando uma imagem superdimensionada de seu peso político.
Não minimizo a ameaça que representam. Muito ao contrário: estão se armando e naturalmente tendem a crescer, porque se julgam mais fortes do que são.
Colagem com fundo azul claro, mostra uma caixa a manivela com desenho do vírus do covid-19 desenhado, dele salta o palhaço Bozo numa mola.
André Stefanini
Como não havia manifestantes do outro lado, iam até acreditando que eram, de fato, a maioria da população.
Um pouco de gente real, protestando contra o fascismo, era indispensável. Se não houver vandalismo e violência (algo que lamentavelmente seduz parcelas dos manifestantes), é possível que a coisa cresça.
Agora começa a cair a ficha. A oposição anda intimidada, entorpecida e confusa, enquanto o bolsonarismo não para de avançar.
Não há sinal mais claro disso do que a quantidade de argumentos invocados contra o impeachment.
A saber: 1) não há maioria no Congresso; 2) se Bolsonaro sair, entra Mourão, o que não é vantagem; 3) se Bolsonaro não sair, ficará mais fortalecido ainda; 4) ele ainda tem apoio de um terço do eleitorado; 5) o momento agora é de unir forças contra a Covid-19, sem uma crise política por cima.
Este último argumento saiu um pouco de moda. Todos sabemos que Bolsonaro é o maior obstáculo ao enfrentamento do coronavírus. A tentativa de esconder os dados de letalidade é sua última proeza. Ele faz tudo o possível para espalhar a doença. Deseja o vírus com a mesma intensidade com que deseja as armas de fogo e as queimadas da Amazônia.
Passo aos outros argumentos.
Não há maioria no Congresso. Sim, pode ser verdade. Mas Bolsonaro tem se isolado cada vez mais. Quem poderia imaginar, há poucos meses, que Lobão, Moro, Joice e Janaina estariam na oposição?
No Brasil, o improvável acontece todo dia. Talvez o Congresso precise de mais alguns empurrõezinhos. Na eventualidade de novas mobilizações de rua, ou de novas barbaridades presidenciais, pode ser que se mexa. Só não vai se mexer se, mesmo entre opositores convictos de Bolsonaro, o medo do impeachment predominar.
E será estranho se o Congresso continuar apoiando as forças que pretendem fechá-lo.
Segundo argumento. Ah, de que adianta tirar um capitão para dar posse a um general? Poucos argumentos me parecem tão acovardados como este.
Na hipótese de uma vitória do impeachment, o clima político do país seria totalmente diverso. Estaríamos vendo um fortalecimento entusiasmante da democracia e uma recomposição radical do equilíbrio de forças. Mourão teria de se adaptar a esse esquema ou negociar uma transição.
Também pode acontecer de Bolsonaro vencer a batalha do impeachment, e sair ainda mais fortalecido. Mas não é bem assim. Trump não ficou melhor nem pior depois de confirmado no cargo.
Você pode dizer que o Brasil é diferente; mesmo antes de ser votado, o impeachment poderia dar pretexto para Bolsonaro dar o seu desejado golpe.
Discordo. Quanto mais forte a bandeira do impeachment, menor a sua ousadia. Ele é evidentemente um burro e um descontrolado. Lembro de 1992. Posto contra a parede, Fernando Collor se perdia em caretas, acessos e pronunciamentos desesperados. Foi seu próprio coveiro.
O rebanho bolsonarista só se mantém em um terço porque não está confrontado com a existência fatual dos outros 70%. Vive numa bolha. A loucura se transmite, como um vírus. Mas a razão também tem seus poderes: estaríamos na idade da pedra se não fosse assim. Com imensos esforços, o nazismo e o stalinismo foram derrotados. É incrível que tantos brasileiros se sintam fracos diante de um pateta.
*Marcelo Coelho é membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.
Monica De Bolle: O que não custa?
Estamos falando de famílias cujas crianças seriam contempladas por um benefício de meio salário mínimo
“Quanto custa?”, perguntou o colega Samuel Pessôa sobre as propostas de renda mínima, ou renda básica permanente, em sua coluna do último domingo para a Folha de S. Paulo. Antes mesmo de a pergunta ser expressamente formulada, cheguei a dar uma primeira resposta ao que me pareceu ser uma inquietação sua em meu artigo do dia 3 de junho para o Estadão. Com base nos estudos do Ipea, da USP, do Cedeplar, centro sediado na UFMG, além de outros, havia explicado que um programa de renda básica infantil focalizado nas crianças na faixa de 0 a 6 anos poderia custar entre 1% e 1,5% do PIB brasileiro. Peço aos leitores que guardem na memória essas duas cifras, pois retornarei a elas para responder novamente aos questionamentos levantados por Samuel.
Antes disso, sublinho: muito me alegra que o tema da renda básica tenha entrado no debate nacional de forma inteligente e enriquecedora. Vários economistas têm tratado do assunto em suas colunas semanais ou periódicas de forma engajada, sem ataques pessoais, com respeito aos interlocutores. Com Samuel Pessôa sempre tive o prazer de travar discussões construtivas, o que é raro no ambiente atual, de hostilidades, escaramuças e “lacrações”. Não está sendo diferente dessa vez. Sugiro, portanto, que vocês, caros leitores e leitoras, leiam os artigos publicados por mim e por ele nas últimas três semanas.
Bolsa família
Seu artigo na Folha de domingo suscitou duas questões principais. A primeira é se a renda básica provocaria pressões inflacionárias; a segunda, se a renda básica pressionaria a dívida pública brasileira. A primeira questão se assenta na premissa de que, no Brasil, a demanda agregada – isto é, a soma do que se consome, do que o governo gasta, do que se investe, do que se exporta, subtraídas as importações – é estruturalmente superior à oferta. É verdade que a economia brasileira havia perdido dinamismo muito antes de a pandemia nos atingir. Também é verdade que a produtividade no Brasil é baixa, sobretudo a da mão de obra, de modo geral pouco qualificada. Essas características afetam a nossa capacidade de oferta. Contudo, é difícil sustentar que a demanda é estruturalmente inferior à oferta. Em primeiro lugar porque a capacidade de consumo das famílias brasileiras é extremamente limitada. Cerca de metade da população brasileira ganha um salário mínimo ou menos, ou seja, o montante total do que gastam é muito pouco. Isso se traduz em um nível de consumo relativamente baixo, resultando em demanda mais deprimida do que se poderia supor: o consumo responde por cerca de dois terços da demanda.
Em segundo lugar, nossa capacidade de investimento é notoriamente baixa. A taxa de investimento brasileira nos últimos anos – e o quadro não muda quando olhamos a média dos últimos 30 anos – é de míseros 15% a 16% do PIB. Em comparação, México e Chile, antes da pandemia, investiam mais de 20% do PIB. Eis, portanto, outro componente de nossa demanda deprimida. O governo gasta, mas as séries históricas das contas nacionais não sugerem qualquer gasto do governo que gere a situação de demanda estruturalmente elevada, salvo durante o primeiro mandato de Dilma, possivelmente. Não há, assim, elementos para sustentar a tese de que, frente à demanda, nossa oferta é insuficiente. Como é nessa premissa que se assenta a ideia de renda básica inflacionária, ela não se sustenta. Para completar, relembrando as cifras citadas anteriormente, uma renda básica cujo custo seja entre 1% e 1,5% do PIB não é alta o suficiente para ser inflacionária. Estamos falando, afinal, de famílias cujas crianças entre 0 a 6 anos seriam contempladas por um benefício de, no máximo, meio salário mínimo.
As cifras de 1% a 1,5% do PIB também não seriam a palha nas costas do camelo da dívida pública brasileira. O programa ao qual me referi no artigo da semana passada é praticamente neutro do ponto de vista fiscal: parte é autofinanciável, parte de seu financiamento depende de tributação de dividendos, outra parte vem da remoção do desconto para dependentes do imposto de renda. As contas foram feitas, e, no caso dessa proposta de renda mínima, a responsabilidade fiscal está em perfeita sintonia com a responsabilidade social. Insisto que o programa de renda mínima infantil complementaria nossa rede de proteção social. Não eliminaríamos o Bolsa Família, fundamental para a redução da pobreza. O que faríamos seria preencher as lacunas para as crianças em situação de precariedade cujas famílias não são elegíveis ao Bolsa Família e a outros programas sociais.
Trata-se, portanto, de proteger as crianças – todas as crianças – a um custo baixo e sem a necessidade de financiar o programa produzindo imensa distorção e regressividade pela adoção de uma alíquota única de imposto de renda, conforme sugerem os autores do estudo privilegiado por Samuel. Que tal?
*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY