Day: junho 5, 2020
Pandemia expõe fortes contradições do Brasil, diz Maria Amélia Enríquez
Em artigo na revista Política Democrática Online, economista analisa o país no contexto da crise sanitária global
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A pandemia do coronavírus expõe fortemente as contradições da sociedade brasileira diante do debate sobre o que é mais importante: vida ou economia. A análise é da economista Maria Amélia Enríquez, professora da UFPA (Universidade Federal do Pará), em artigo que ela publicou na 19ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.
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“A pandemia e seus efeitos têm provocado um debate, até então pouco aprofundado, do suposto antagonismo entre a defesa da vida e a defesa da economia”, afirma Maria Amélia, que também é conselheira da FAP. Segundo ela, a crise sanitária global tem permitido escancarar as profundas contradições da sociedade brasileira, reveladas pelas péssimas condições sanitárias de 48% da população, sem esgoto e sem saneamento básico.
Além disso, na análise publicada na revista Política Democrática Online, a economista cita a precariedade do trabalho informal de 38,6 milhões de brasileiros, que corresponde a 41% da força de trabalho; os míseros R$ 420,00 com que 52 milhões de brasileiros subsistem e, seu oposto, a extrema concentração da renda, a segunda maior do mundo, em que os 1% mais ricos detém 28,3% da renda total do País.
Na avaliação de Maria Amélia, o falso dilema pressupõe que a esfera econômica está apartada da vida das pessoas e tem existência própria, manifestando-se no mercado financeiro, na bolsa de valores, câmbio, transações bancárias e em números do PIB. “A vida real dos cidadãos e suas famílias, por seu turno, se passa em outra esfera, em seus domicílios e na rotina de seu cotidiano. O desastre econômico desencadeado pela pandemia mostra quão irreal é essa percepção”, afirma.
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Aline Passos: O argumento mais relevante
Considero a pandemia o argumento mais relevante. Não é possível ir às ruas sem levar em consideração que estamos em plena curva ascendente de propagação do coronavírus. Há, no entanto, justaposta à crise sanitária, uma crise política, e é preciso também considerar que quem convocou as manifestações talvez integre a parcela da população para a qual combater o governo se tornou uma exigência incontornável, inclusive e sobretudo, por causa da crise sanitária.
Nós sabemos que, com quase 3 meses de isolamento social, permanecer isolado tem sido cada vez mais marcador de privilégio de classe. Dito isto, não sou eu que vou dizer a quem já está diariamente exposto ao contágio, porque submetido a condições precárias de existência, que não se manifeste por causa do risco de… contágio. Prefiro pensar que é hora de mobilizar redes de solidariedade. Distribuir máscaras, doar álcool em gel, providenciar isolamento para quem puder se isolar pós-manifestação, dentre outras coisas.
Todo esse debate me lembrou muito um trecho do livro "Black Blocs" de Francis Dupuis-Déri, em que se debatia por que imigrantes sem documentação e pessoas negras não costumavam participar dos blocos, pelo menos não lá, onde o autor pesquisava. A resposta sempre foi muito óbvia. Igualmente óbvia era a postura das pessoas em condições sociais privilegiadas que construíam, a partir dos seus privilégios, uma ética que os levava às ruas por entenderem que quanto menos vulnerável você é, mais obrigado a se colocar na linha de frente da batalha você está.
Isso me diz algo sobre a situação que vivemos hoje. É um recado para quem teve o privilégio do isolamento social, do acesso a equipamentos de proteção individual e não pertence, não é responsável e nem coabita com pessoas dos chamados grupos de risco. A bola está com vocês.
Sobre o argumento do perigo de agentes infiltrados que vão insuflar a polícia a agir de forma truculenta, mal consigo escrever, tamanha a bobagem. Se fosse por isso ninguém se manifestaria jamais e junho de 2013, por exemplo, nem teria existido. O que inibe P2 é mais, não menos, gente na rua.
No que concerne ao risco de golpe, sobretudo após o tocador ter tangido o gado para o curral: talvez seja mesmo uma indicação de incremento significativo da repressão. Só que esta hipótese, uma vez colocada, não resolve o problema. Afinal, diante do risco de fechamento do regime, isso é mais ou menos motivo para ir às ruas? Se, de fato, avalia-se que a boiada já passou e já houve golpe, isso é mais ou menos motivo para ir à ruas?
Em todo caso, fiquei bastante incomodada com posicionamentos públicos de intelectuais e parlamentares que, com conforto material a partir de carreiras consolidadas e estáveis, ao invés de procurarem os convocantes das manifestações de forma discreta para avaliar os riscos, correram às redes sociais e demais meios de comunicação para desautorizá-los. Se considerarmos o perfil de quem convocou as manifestações, a postura dos intelectuais e parlamentares se torna ainda mais problemática, porque vertical, paternalista, preconceituosa.
Não está dado a qualquer habitante de gabinete dizer a uma torcida organizada (TO) que não se manifeste. Muito menos ir a público orientar as pessoas a abandonarem os convocantes nas ruas numa hora dessas. No limite, se avaliaram que era melhor não ter manifestação, que chamassem as TOs para uma conversa e tentassem convencê-las a retirar, elas próprias, a convocatória.
Sr. Luiz Eduardo Soares, se existia alguém que possuía uma rede importante de contatos, capaz de fazer as preocupações com a pandemia e a repressão chegarem ao destino correto para avaliação e convencimento, sem expor os convocantes aos escrutínios mais espúrios e ao abandono iminente, este alguém era o Sr. Espero que reavalie sua postura, e diante do estrago já causado, dirija-se a manifestação mais próxima. Leve máscara e álcool em gel.
Por fim, advogados e advogadas antifascistas, preparemo-nos. Há dentre nós os que poderão e deverão estar nas ruas, independente de concordar ou não com a convocatória. Há os que deverão estar de plantão e plenamente disponíveis aos manifestantes. Haverá os necessários para, nos dias e meses seguintes, acompanharem procedimentos e processos.
Alerta geral: não fica ninguém para trás.
Cláudio Gonçalves Couto: Um governo militar
O grande número de militares no governo, em ministérios ou noutros cargos, compromete as Forças Armadas com seu destino
Já se tornou praticamente um lugar comum chamar a atenção para a imensa presença militar no governo de Jair Bolsonaro. São cerca de três mil militares alocados nos mais diversos cargos da administração federal, seja em nível ministerial, seja no alto e médio escalões, como mostrou um recente levantamento feito pelo site “Poder 360’. Isso representou um aumento de 43% em relação ao que havia em 2018, com cerca de 1,6 mil cedidos pelo Exército, quase 700 pela Marinha e mais de 600 pela Aeronáutica.
Esses números não incluem reservistas, como é o caso, por exemplo, do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Se forem contabilizados os reservistas, bem como os oriundos das Polícias Militares estaduais, os números são ainda maiores.
Se em governos anteriores muito se falou em “aparelhamento” partidário da máquina governamental, sem, porém, que os números demonstrassem algo de efetivamente diferente do usual - como o demonstraram os estudos a respeito feitos pelo cientista político Sérgio Praça - agora há realmente uma novidade. Postos de livre nomeação, normalmente ocupados por civis, pois se constituem em atividades de natureza civil, são distribuídos para militares, com suas correspondentes bonificações remuneratórias. Ou seja, ao convocar para postos civis gente fardada, o governo Bolsonaro lhes assegura ganhos econômicos imediatos e palpáveis.
Mas não se trata apenas de cooptação dos quartéis com base em prêmios salariais decorrentes do comissionamento - que, aliás, se fazem acompanhar daqueles gerados pelas recentes reestruturações da carreira, camufladas (embora sem muito sucesso, apesar da expertise militar com camuflagens) nas reformas previdenciárias. Trata-se também do empoderamento político de militares em posições que pouco ou nada têm a ver com sua formação e experiência profissionais, ao ponto de o Brasil ter hoje mais gente da caserna aboletado no governo do que a ditadura chavista na Venezuela ou a (saudosa para alguns) ditadura militar no Brasil.
Há casos em que isso produz até mesmo oximoros (contradições nos termos) - como a alocação de um general de Exército na Casa Civil - ou contradições de finalidade - como o emprego de outro general de Exército no Ministério da Defesa - criado, justamente, para desmilitarizar o governo e assegurar comando paisano sobre as Forças Armadas. Se o chefe da Casa Civil, ao menos, é reformado, o chefe dos militares, entre um voo de helicóptero e outro, segue na ativa. Ou seja, os militares comandam a si próprios, assim como a “Revolução Vitoriosa” de 1964 se legitimava a si mesa, segundo o Ato Institucional nº 1.
Mas a coisa não para por aí. Há militares noutros oito ministérios (número com que inicialmente contaram, quando começou o mandato do outrora defenestrado capitão insubordinado): o já mencionado GSI, Minas e Energia, Secretaria de Governo, Ciência e Tecnologia, Infraestrutura, Controladoria Geral da União, Secretaria Geral (a cargo de um PM) e, pasme-se, a Saúde.
Se nenhum ministro médico agrada ao presidente em sua luta inglória pela cloroquina e contra o isolamento social, coloque-se um obediente general para apetecer ao capitão; faça-se o protocolo da cloroquina; nomeie-se mais uma penca de militares para cargos responsáveis por medidas sanitárias. Pau para toda obra, os militares, mais do que nunca, podem ter creditados na (ou debitados da) sua conta reputacional os resultados da política de saúde desse governo. A tomar pela condução que dá ao assunto o capitão, os fardados brasileiros correm o risco de colher, em tempos de democracia, o desprestígio que seus colegas argentinos colheram na malfadada aventura das Malvinas, em tempos de ditadura - foi um fim de feira vexatório.
Mas há mais. Se, retomadas as atividades políticas presenciais, o ritmo alucinado de condução política de Bolsonaro, bem como seus enroscos com a Polícia Federal e as milícias cariocas favorecerem movimentos em prol de seu impeachment, cabe apreciar como atuaria quem puder lhe substituir. Como bem observou em sua coluna Maria Cristina Fernandes, o general Hamilton Mourão faz questão, em repetidos artigos, de mostrar que (apesar de dominar melhor o idioma e ter menos complicações familiares) não têm uma visão da política fundamentalmente distinta daquela de seu cabeça de chapa.
A forma como mais este militar do governo enxerga opositores, movimentos de rua não-alinhados, demais poderes do Estado, governos subnacionais e imprensa, deixa claro que no lugar de Bolsonaro ele não teria motivação para conferir ao governo um colorido distinto, quiçá um tom mais moderado. E, considerando como os fardados e seus colegas de pijama têm cerrado fileiras na defesa dos pares no governo, é pouco provável que um eventual presidente Mourão fosse desmilitarizar a condução da administração federal. Talvez lhe falte o carisma do “mito”, mas também a Maduro falta o carisma de Chávez.
Sob tal aspecto, é inegável o engenho do ardil confesso de Bolsonaro e sua prole, indicando o loquaz general para a Vice-Presidência. Como apontou à época da escolha o filho 03, Eduardo, Mourão é “faca na caveira” e por isso funciona como um hedge contra eventuais tentativas de impeachment. Resta saber se funciona como um esteio também contra a possível cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral, a depender do que revelar o inquérito das “fake news” e suas conexões com o financiamento do empresariado simpático à difusão das narrativas bolsonaristas desde a campanha eleitoral.
Nesse caso, a proteção pode vir menos da falta de alternativa gerada pelo radicalismo do vice e mais dos interesses fardados aboletados no governo, bem como dos beneficiários das generosas reformulações de carreira promovidas pela atual administração. E, lembre-se, disso não ficam de fora Polícias Militares estaduais, menos leais a seus governadores do que ao bolsonarismo, como demonstraram os motins do Ceará e as PMs de São Paulo e Rio no fim de semana.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Merval Pereira: Nas ruas
Partidários dos movimentos contra o governo acham que não é o momento de protestos nas ruas, por causa do coronavírus
Em tempos de pandemia, a pulsão individual tem que ser controlada pela realidade, o que é difícil de acontecer. Nos deparamos, então, com situações excêntricas que definem quem está ao lado de quem.
Partidos políticos de oposição pedindo para o povo não ir às ruas protestar contra o governo de Bolsonaro? O próprio presidente incentivando manifestações populares, quebrando o distanciamento social e abraçando seus seguidores?
Partidários dos movimentos da sociedade contra o governo acham que não é o momento de fazer protestos nas ruas, por causa do coronavírus. E, ainda por cima, há o perigo de pessoas se infiltrarem para fazer baderna e dar razão a Bolsonaro.
Mesmo assim, várias manifestações estão programadas para o próximo domingo, e deve haver confronto, apesar de o presidente Bolsonaro ter pedido aos seus seguidores para não se manifestarem no mesmo dia que os opositores. Tentou parecer magnânimo: “Deixem as ruas para eles”.
Está sendo apenas realista, já viu que as ruas não são suas, como chegaram a comemorar seus seguidores em frente ao Palácio do Planalto numa daquelas domingueiras a cada dia mais esvaziadas.
Novamente o “nós contra eles” incensado pelo ex-presidente Lula, que levou três semanas para aderir ao movimento pelo impeachment de Bolsonaro, e agora renega a frente ampla que se tenta construir contra o governo porque não aceita estar junto de pessoas que não o consideravam um preso político, mas um político preso, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ou o ex-ministro Ciro Gomes.
Parece que não aprendeu com a derrota de 2018, ou quer repetir a dose em 2022, achando que fazendo a coisa errada seguidamente acaba dando certo no final. Não dá. Einstein já ensinou: “A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.
Petistas menos inflexíveis aderiram a diversos movimentos, mas barraram a assinatura de Sérgio Moro. Essa é apenas uma das grandes diferenças que separam Mandela de Lula, apesar da tentativa de igualá-los: Mandela juntou-se a Frederik de Klerk, presidente do governo sul-africano que o manteve na cadeia por 30 anos, para assinar o fim o apartheid. Na Espanha pós-franquista, o líder conservador Adolfo Suarez e o socialista Felipe Gonzalez não deixaram de ser adversários para assinar os Pactos de Moncloa.
Claro que não estamos nem perto desses marcos históricos, mas pela instransigência demonstrada por uma parte petista da esquerda, não chegaremos lá. Bolsonaro criticou – com razão – a baderna que aconteceu em Curitiba, em protesto contra o racismo e o fascismo, mas, sem razão, chamou os manifestantes de “terroristas”.
Ontem, um deputado governista quis propor uma lei que criminalizasse quem queimar a bandeira nacional, como aconteceu em Curitiba. O presidente da Câmara Rodrigo Maia perguntou: “E quem leva cartazes e faixas defendendo o fechamento do Congresso vai ser criminalizado também?”.
Essa é a questão central do “nós contra eles” tão ao gosto de Bolsonaro e Lula, ambos com popularidade decadente. Classificar de “terroristas” os manifestantes contrários, mas incentivar que seus apoiadores a se armarem para “defender a democracia”, é uma “bolsonarice” típica.
O melhor exemplo é o acampamento dos 300 em Brasília, comandado pela militante Sara Winter, que posa armada com revolver e metralhadora e está sendo investigada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news.
Em meio a esse pandemônio político, Bolsonaro anunciou que vai flexibilizar a posse e o porte de armas. São demonstrações de agressividade perigosas num momento como o que estamos vivendo, em que o presidente perde a capacidade de ser intermediário, um negociador entre as partes, porque está envolvido com um lado da questão, e o incentiva a se manifestar e a se armar.
Eliane Cantanhêde: Desigualdade de armas
Resistir e unir é preciso, mas sem criar pretextos e ambiente favorável a golpistas
A ida às ruas de torcidas organizadas e de grupos pela democracia no Rio, São Paulo e Curitiba serviu como aperitivo. E não foi aprovada. A intenção é boa, o temor com a audácia dos atos golpistas existe e resistir à escalada contra as instituições é preciso. Mas há que se considerar a questão da oportunidade e da forma: quem, como, quando, onde e por que, tal como no jornalismo.
Há que se investigar a possibilidade de infiltrados, de “black blocs”, no movimento pela democracia para promover vandalismos e confrontos com as polícias. Se você dá um espirro hoje, tem sempre uma câmera ou um celular por perto, mas não há um só registro do momento em que o ato pacífico descambou na Avenida Paulista. Com pedrada de manifestante? Ou com bombas de efeito moral da polícia? A única imagem de infiltração é daquela bolsonarista com um taco de beisebol (beisebol?!)…
Assim, a união de corintianos e palmeirenses pela democracia, que merece aplausos, produziu comparações incômodas com atos bolsonaristas. De um lado, as torcidas com gente parruda e agressiva, vestida de preto e em ritmo de guerra. Do outro, famílias até com crianças usando os símbolos e cores nacionais (da maioria…), como se estivessem passeando.
Imagem é tudo e, nesse confronto, inverteram-se objetivos e percepções. Afinal, os parrudos de preto defendem a democracia, os princípios, as boas causas, enquanto as aparentemente inocentes famílias usam a bandeira nacional contra a democracia, o Supremo e o Congresso.
No dia seguinte aos choques dos novos manifestantes com as polícias dos governadores João Doria e Wilson Witzel, de oposição, o presidente Jair Bolsonaro, que confraterniza alegremente e até a cavalo com golpistas em plena pandemia, chamou de “marginais” e “terroristas” os que passaram a dividir as ruas com seus apoiadores. Já o vice Hamilton Mourão acusou a novidade paulista de “baderna” e indagou em artigo no Estadão: “Aonde querem chegar? A incendiar as ruas do País, como em 2013?”
Quem defende a democracia é “terrorista” e faz “baderna”. Quem prega golpe contra a democracia é e faz o quê? E, enquanto Bolsonaro e Mourão condenavam os manifestantes pró-democracia, setores bolsonaristas faziam uma leitura enviesada do artigo 142 da Constituição para defender o uso das Forças Armadas contra os Poderes. São movimentos isolados?
Líderes da saudável resistência de instituições, partidos, entidades e cidadãos pró-democracia vêm-se declarando contra atos de rua fora por causa da pandemia. Se os bolsonaristas fazem aglomeração, problema deles, os pró-democracia são também pró-ciência, isolamento social, vida. Mas esse não é o argumento principal.
O pedido para não disputar as ruas agora tem base mais complexa: a desigualdade, literalmente, de armas. De um lado, juristas, artistas, intelectuais e cidadãos se armam com as palavras e manifestos. De outro, Bolsonaro amplia a munição disponível para a sociedade, enquanto reduz a fiscalização das armas de civis e milícias; atiça o bolsonarismo contra governadores, enquanto adula as polícias estaduais – ou seja, deles.
Convém, assim, avaliar o risco de atos contra Bolsonaro provocarem confrontos desiguais com milícias e polícias e até justificativa para convocação das Forças Armadas. Vira e mexe, militares e o entorno do presidente se referem a um cenário de caos social que não interessa a ninguém, a não ser a golpistas.
Líderes responsáveis e do bem têm de desprezar o egocentrismo do ex-presidente Lula e mobilizar o centro, unir as esquerdas, buscar alianças com a direita democrática e resistir. Mas sem criar pretextos e ambiente favorável para golpes defendidos à luz do dia, com estímulo e empurrão de… vocês sabem de quem.
Guilherme Amado: Esquerda e direita democráticas têm de acordar
Bolsonaro não vai sair nem abrandar o modo autoritário como governa enquanto Lula não estiver ao lado de Janainas, Renans ou Amoêdos
Quem conheceu a trajetória de Jair Bolsonaro até o Planalto sabia que chegaria o momento em que, uma vez eleito, ele deixaria de lado o falso respeito que, candidato, parecia ter adquirido pelas instituições e voltaria a flertar com uma ruptura institucional, como fazia sem constrangimento na Câmara dos Deputados. A dúvida era somente quando. Bolsonaro despreza a democracia, como mostrou em sua vida pública e agora comprova no exercício da Presidência. Perto de completar um ano e meio no terceiro andar do Planalto, o presidente felizmente não tem força para realizar o que parece ser seu plano: governar sozinho, sem instituições que lhe apontem os erros ou lhe criem obstáculos, mas isso não o impede de, domingo após domingo, seguir tentando.
Por isso, Congresso, Supremo Tribunal Federal (STF), imprensa, sociedade civil e diferentes segmentos organizados, como advogados, médicos, artistas, atletas, professores e operários, entre dezenas de outros, vêm fazendo a contraposição à escalada autoritária do presidente, impondo-lhe os freios próprios da democracia. Em abril, a conduta de Bolsonaro contra a pandemia fez a oposição ser ampliada, reunindo governadores de direita. Na última semana, um novo passo foi dado, com movimentos suprapartidários reunindo um espectro ainda mais diverso de opositores. Parecia ganhar corpo a sonhada frente ampla, de pessoas que podem ter discordâncias políticas, mas convergem sobre a democracia. Eis que Lula, em uma reunião virtual do PT, disse não topar estar ao lado de quem apoiou o impeachment de Dilma Rousseff ou defendeu a reforma trabalhista. À direita, a rechaça ao suprapartidarismo foi acompanhada por Janaina Paschoal, deputada estadual em São Paulo e ex-aliada de Bolsonaro; Renan Santos, coordenador nacional do MBL; João Amoêdo, presidente do Novo; e outros. Os três, a exemplo de Lula, dizem querer a saída do presidente, mas também não topam estar ao lado de quem diverge deles em outros temas. Dizem desconfiar do real interesse por trás desses manifestos.
Os três mais expressivos movimentos que pregam a união entre diferentes são o Estamos Juntos, o Basta! e o Somos 70 por Cento. Inspirado nas Diretas Já, o Estamos Juntos prega a defesa da vida, da liberdade e da democracia. Seu manifesto foi assinado inicialmente por artistas, intelectuais e políticos de campos ideológicos diversos, de Marcelo Freixo, do PSOL do Rio de Janeiro, a Pedro Cunha Lima, do PSDB da Paraíba. É um dos mais diversos: agregou na semana passada até Alexandre Frota, do PSDB de São Paulo, e abriu para adesões na internet. Com isso, já beira 300 mil assinaturas.
O Basta! é organizado por juristas e advogados, majoritariamente progressistas, mas também alguns conservadores. Reúne ex-ministros da Justiça, como José Eduardo Cardozo e José Carlos Dias, o ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo, e juristas como Dalmo Dallari, Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Junior. Também abriu para assinaturas na internet, e alcançou 50 mil apoios. Cobra respeito à Constituição e às instituições.
O Somos 70 por Cento foi criado pelo economista Eduardo Moreira, e começou como uma hashtag, que se refere ao apoio de cerca de 30% que Bolsonaro apresenta nas pesquisas (embora algumas já indiquem há algumas semanas um “ótimo e bom” mais perto dos 25%). Reúne políticos de variados partidos e celebridades geralmente distantes de debates políticos dessa natureza, a exemplo de Xuxa.
A diversidade de nomes é intrínseca ao propósito desses movimentos. Ninguém espera que Luciano Huck e Marcelo Freixo, ambos signatários do Estamos Juntos, concordem sobre autonomia do Banco Central ou se o empresário brasileiro sofre ou não com o excesso de tributos. Mas os dois certamente concordam que não há previsão constitucional de uma intervenção militar. Concordam que não pode haver agressão de nenhuma natureza a jornalistas. Concordam que é inadmissível um ministro da Educação que pregue a prisão de ministros do STF. Concordam que há uma máquina de destruição de reputações que serve ao método do presidente de governar pelo ódio.
Escrevi faz algumas semanas aqui que a oposição havia ganhado força, com João Doria, Ronaldo Caiado, Wilson Witzel e outros governadores rompendo com Bolsonaro. Naquela semana, Doria e Lula haviam trocado no Twitter palavras que, pela primeira vez em anos, não eram de ofensas mútuas. Foi um escarcéu. Muitos tucanos, petistas e até analistas políticos viram naquilo um erro estratégico das duas partes, defendendo que eles deveriam manter o clima de nós contra eles que, durante duas décadas, como disse Fernando Henrique, lhes tornou a vanguarda do atraso. E que, de certa maneira, contribuiu para a ascensão de Bolsonaro.
Eleitoralmente, de fato, qualquer união é impossível, ao menos por enquanto. Aloizio Mercadante, hoje presidente do braço de estudos do PT, a Fundação Perseu Abramo, disse em entrevista para a coluna, no site de ÉPOCA, que o PT só toparia conversar num segundo turno sobre união com a direita em 2022. No primeiro, admitiu que nem a esquerda estará junto.
“Mas neste momento uma aliança contra Bolsonaro não é sobre eleição”
O presidente não vai sair nem abrandar o modo autoritário como governa enquanto Lula não estiver ao lado de Janainas, Renans ou Amoêdos. Direita e esquerda terão de se unir, tal qual feito em 1992.
O PT hoje é um dos que mais cria obstáculos para essa união. Lula, que em outros momentos, 1992 inclusive, soube fazer pontes, tem insistido no sectarismo e vem colocando sua tropa de choque para alimentar a discórdia com Ciro Gomes, com quem rompeu em 2018. A postura tem recebido críticas entre cabeças coroadas do partido. José Dirceu contrariou-o, em entrevista na semana passada ao UOL, e defendeu o óbvio: se não houver uma aliança sequer na esquerda, com Lula e Ciro voltando a conversar, qualquer avanço será bem mais difícil. Jaques Wagner também foi na mesma linha no Twitter, ao compartilhar uma fala de Ciro e mostrar concordância.
Na direita, também há quem esteja disposto a mudar posturas de décadas em nome de enfrentar Bolsonaro. O tucano Arthur Virgílio, prefeito de Manaus e um dos mais ferrenhos opositores que Lula enfrentou no Senado, decidiu entrar de maneira mais ativa na trincheira pela saída do presidente. “Bolsonaro quer dar um golpe. Não acho que teria apoio das Forças Armadas, até porque os militares não apoiariam alguém tão despreparado para governar como ele. Mas é a hora de procurar quem são os democratas. Mesmo que você seja um ferrenho adversário daquela pessoa, mas ele é um democrata, você deve procurá-lo”, afirmou, admitindo que topa caminhar ao lado do PT, ainda que não eleitoralmente: “Não olhe para 2022. Você tem de olhar neste momento para aliados contra uma tentativa ditatorial. Estou falando de alianças em votações de plenário, manifestações junto à sociedade civil, manifestações para a imprensa. Em política econômica, concordo mais com o Paulo Guedes do que com o PT, mas concordo com o PT em não deixar arranhar a Constituição, em não haver nenhuma mudança que permita a perpetuação deste governo que está aí”.
Por sorte, do outro lado do balcão também há fissuras. As Forças Armadas, embora concordem com Bolsonaro sobre as críticas que ele faz ao STF, não mostram disposição para embarcar numa aventura golpista. Edson Pujol, comandante do Exército, a Força em cujos quartéis a política entrou com mais força, tem exercido um silêncio público estratégico e, internamente, continua preferindo cumprimentar Bolsonaro com o cotovelo. Também parece controlado o risco de que as patentes mais baixas ou as polícias estaduais sejam a mão armada de que Bolsonaro precisaria.
Bolsonaro hoje não tem força para a ruptura institucional que seu filho Eduardo já disse ser só uma questão de “quando”. Enquanto não houver um entendimento mínimo que faça existir uma esmagadora maioria contra o presidente e a forma como ele até agora governou, nada mudará. Não só ele não sairá, como, bem a seu estilo, tensionará mais e mais os limites da democracia. E aí, no momento em que chegar o “quando” de Bolsonaro, poderá ser tarde para os democratas se unirem.
Armando Castelar Pinheiro: A pandemia, a economia e o Judiciário
Quanto da conta será paga aumentando a carga tributária e quanto cortando gastos públicos?
Nas últimas semanas, o Brasil virou o segundo país com mais casos de covid-19 e o quarto com mais mortes. É desolador. Felizmente, o vírus agora se propaga a taxas decrescentes. O número de mortes, indicador mais preciso, cresceu 3,5% ao dia na última semana, contra 4,7% ao dia uma semana antes. Mantido esse ritmo, fecharemos junho com um quadro parecido ao atual nos EUA.
A pandemia trouxe enormes perdas na economia. Mundo afora, os contribuintes estão assumindo grande parte dessas perdas, via transferências de renda, financiamentos e garantias dadas pelo setor público etc. Porém, em que pese o tamanho desse apoio estatal, sem precedente histórico, parte significativa da perda terá de ser absorvida por empresários, trabalhadores e consumidores.
No primeiro trimestre de 2020, o PIB já encolheu 1,5%. Os analistas de mercado projetam que no segundo trimestre o PIB caia 13,9%, com altas de 9,9% e 3,5% no terceiro e quarto trimestres. No ano, prevê-se que PIB contraia 6,25%, com recuperação apenas parcial em 2021, quando subiria 3,5%.
A crise afetará alguns setores mais do que outros. Empresas de mineração, agropecuária, telecomunicações, supermercados e farmácias, por exemplo, serão menos afetadas. Por outro lado, o impacto será grande em turismo, entretenimento, transporte de passageiros, comércio varejista (ex-supermercados e farmácias), assim como seus fornecedores, de fabricantes industriais a proprietários de imóveis comerciais e concessionárias de aeroportos.
Os setores mais afetados são mais intensivos em mão de obra. Isso aponta para uma forte retração do emprego este ano. Em abril, o número de pessoas ocupadas já foi 3,4% menor do que um ano antes.
Nesse contexto, a sociedade terá de administrar vários tipos de conflitos. O primeiro virá de como pagar a enorme conta deixada pelo apoio ora dado pelo setor público, que virá na forma de uma dívida pública bem mais alta e na necessidade de reduzir o déficit público em 2021, quando a ociosidade na economia ainda será grande. Quanto dessa conta será paga aumentando a carga tributária e quanto cortando gastos públicos? Essa é uma questão política, mas em geral os que perdem a disputa política depois recorrem à Justiça.
O segundo tipo de conflito girará em torno de contratos que ficaram mais difíceis de cumprir. O governo vem facilitando esse processo, como via MP 936, que permitiu a redução proporcional de salários e carga de trabalho. Porém, muito mais ainda restará por ser resolvido via negociação direta - ou o recurso à Justiça. Aqui incluo, por exemplo, a discussão sobre a necessidade, ou não, de reequilibrar os contratos de concessão.
Também se prevê que milhares de empresas entrarão em recuperação judicial. O trabalho será árduo e difícil: como decidir se uma empresa pode se recuperar, ou se a situação mudou de tal forma que a falência é o único caminho? E como fazer isso com rapidez, de forma que as empresas viáveis possam se reestruturar e normalizar suas atividades o quanto antes, facilitando a recuperação da economia? O Congresso Nacional vem discutindo nova lei que obriga a negociação entre as partes antes da ida à Justiça, o que parece sensato, mas, por outro lado, pode atrasar a resolução do problema e manter vivas empresas inviáveis.
Pode haver, também, um imbróglio não trivial de conflitos para responsabilização pelas mortes ocorridas com a covid-19: trabalhadores no setor de saúde, idosos em casas de repouso, consumidores etc. No Reino Unido, o governo se adiantou estabelecendo uma compensação padrão na área de saúde.
Por fim, é preciso nos prepararmos para os novos tipos de litígios que podem surgir no pós-pandemia. Na área trabalhista, há o risco de contaminação no local de trabalho, especialmente depois que o STF derrubou o artigo 29 da MP 927, abrindo a porta para a covid-19 ser considerada doença ocupacional (glo.bo/2BvPvRy). Nos EUA, as empresas estão pedindo proteção do governo contra esses processos ao chamarem seus funcionários de volta ao trabalho (on.ft.com/3bYtwiJ). O receio é que esse tipo de proteção legal leve as empresas a relaxarem na proteção de seus funcionários contra o contágio pela covid-19.
Novos conflitos trabalhistas também podem resultar da dificuldade de aferir horas extras e acidentes de trabalho no ambiente doméstico, ao transferir os escritórios para as residências (glo.bo/2MoBOGc). Também há potencial de novos conflitos consumeristas por contaminação pela covid-19.
O termômetro do STF aponta que já chegaram à Corte mais de 2.800 processos ligados à covid-19 (bit.ly/3dyAHzI), refletindo como a sociedade brasileira cada vez mais judicializa seus conflitos. Se isso se generalizar com os casos gerados pela pandemia, será mais difícil o país virar essa página da nossa história. A negociação, mediada ou arbitrada, pode ajudar. Mas para isso será fundamental estabelecer parâmetros, o que os três Poderes poderiam fazer desde já.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Míriam Leitão: Economia e o meio ambiente
Mercados fechados, investidores retraídos e perda de patrimônio, esse é resultado da política ambiental do governo Bolsonaro
O meio ambiente e a economia andam tão juntos que hoje deveria ser também o dia da economia. A reconstrução que se viverá pós-pandemia seria mais eficiente, mais pujante, mais atualizada se o objetivo fosse o de fazer a transição para uma outra forma de se produzir com baixa emissão. Nos últimos dias, para mostrar como os dois temas estão juntos, o parlamento holandês decidiu rejeitar o acordo União Europeia-Mercosul e um grupo de deputados americanos mandou uma carta para o USTR, escritório comercial da Casa Branca, avisando que não é possível sequer começar a negociar um acordo comercial com o Brasil porque a imagem do país, no governo Bolsonaro, está ligada à destruição ambiental e ao desmonte das leis de proteção.
Ricardo Salles faz um papel totalmente avesso ao que deveria fazer como ministro do Meio Ambiente. Foi nomeado como se fosse um cavalo de troia. Sua função é desmontar por dentro o Ministério e ele tem se aplicado em executá-la. Nunca tinha ido à Amazônia quando virou ministro e hoje, um ano e seis meses depois de nomeado, sua maior preocupação é com o seu carro blindado. Ontem, teve que dar marcha à ré e revogar o despacho com o qual ele pretendeu revogar a Lei da Mata Atlântica.
Ele sabia que sua canetada era tão grosseira que acabaria perdendo na ação civil pública que estava na Justiça impetrada pela SOS Mata Atlântica, Associação dos Procuradores do Meio Ambiente e pelo MPF. Por isso, revogou o despacho no qual orientava o Ibama a não seguir a Lei da Mata Atlântica e aplicar no bioma as regras do Código Florestal. A Lei é mais protetiva que o Código, entre outras razões porque esse é um bioma muito ameaçado e o ordenamento foi resultado de duas décadas de negociação no Congresso. Com uma canetada ele tentou desmontar esse arcabouço legal. Exatamente como contou na reunião ministerial que era a oportunidade do momento. Argumenta, em sua defesa, que sempre foi a favor da “desburocratização”. Ora, isso não é desburocratizar, é infringir a lei. Disse que irá agora ao STF para saber se o que vale é o Código ou a Lei. A SOS Mata Atlântica avisou ontem que irá até o Supremo também para defender a integridade da Lei.
A carta dos deputados americanos que integram o Committee on Ways and Means, uma espécie de comissão de revisão orçamentária e tributária, foi dirigida a Robert Lighthizer, do USTR, que, recentemente, após uma conversa telefônica com Ernesto Araújo, falou em “intensificar a parceria econômica” entre os Estados Unidos e o Brasil. Os deputados dizem que fazem “fortes objeções a esse acordo”. Nos parágrafos seguintes eles explicam, em resumo, que o governo Bolsonaro tem feito um desmonte da legislação ambiental no país. Que na campanha disse que faria isso, e após eleito está indo da retórica aos atos. Disseram que não é crível que o Brasil adote os padrões de proteção ambiental e trabalhista exigidos por acordos comerciais, como o que os Estados Unidos têm com o México e o Canadá.
É um comitê dirigido por um democrata, mas isso não atenua o fato de que até nos Estados Unidos, país ao qual a diplomacia brasileira escolheu para ser caudatário, não é possível fazer acordo, diante do imenso retrocesso que o Brasil vive na área ambiental. O único passo que havia sido dado na diplomacia comercial de Bolsonaro, o acordo União Europeia-Mercosul, pode dar para trás exatamente pelo aumento do desmatamento.
Salles criticou, em entrevista ontem, os que, segundo ele, “jogam pedra no Brasil”. Ou seja, ele faz aquela confusão comum em mentes autoritárias entre os atos de uma administração e os interesses do país. Um governo que tem o projeto de reduzir proteção ambiental, que estimula o aumento do desmatamento, provocará prejuízos à nação que vão além do comércio. Vai destruir patrimônio natural, com o impacto em perda de solo e água. Vai provocar o fechamento de mercados, e o país deixará de ser visto como um bom local para investimentos. Hoje, todos os grandes fundos têm regras de compliance com exigências ambientais.
Neste Dia do Meio Ambiente o que há a comemorar é a persistência da sociedade civil em conter as investidas do governo Bolsonaro. O recuo de ontem foi em relação à medida que Salles baixou quando pensava que estava todo mundo distraído —“porque a imprensa só fala de Covid” — para tentar passar a boiada. Não passou.
DW: 'Militares não mudaram modo de pensar depois da ditadura', diz João Roberto Martins Filho
Estudioso das Forças Armadas afirma que militares ainda estão presos na lógica da Guerra Fria e creem na ameaça de um "marxismo cultural". Mourão, porta-voz desse conservadorismo, é "lobo em pele de cordeiro", diz
"Quanto mais baixa a hierarquia militar, mais apoio a Bolsonaro", afirma pesquisador
A maioria dos militares brasileiros, de alta e baixa patentes, está hoje engajada numa versão renovada da luta contra o comunismo que guiava a ditadura militar (1964-1985). Em vez de defender o país da influência da União Soviética, extinta em 1991, caberia agora às Forças Armadas proteger a nação do marxismo cultural, que seria uma nova forma de ação do comunismo, expressa em movimentos por direito de minorias, contra o racismo e em defesa das mulheres. É o que aponta o sociólogo João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) que pesquisa as Forças Armadas há quatro décadas.
Essa ideologia começou a fazer a cabeça de militares nos anos 1990, mas eles se mantiveram relativamente silenciosos até o governo Dilma Rousseff, enquanto aparentavam se adaptar aos novos limites da democracia. Quando veio a crise de 2015, porém, "começou a brotar aquilo que estava recalcado", e em 2018 os militares aproveitaram a vitória de Jair Bolsonaro para voltar ao poder e implementar seu projeto, afirma Martins Filho em entrevista à DW Brasil.
O sociólogo aponta que um dos maiores porta-vozes desse novo conservadorismo militar é o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que, na visão do pesquisador é "um lobo em pele de cordeiro" e não representa garantia de que, se vier a ocupar a Presidência da República, fará um governo diferente do de Bolsonaro.
Martin Filho cita um artigo do vice-presidente publicado nesta quarta-feira (03/06) no jornal O Estado de S. Paulo, no qual Mourão afirma que as manifestações do último fim de semana contra o governo não eram democráticas, mas compostas por "deliquentes" ligados ao "extremismo internacional" que deveriam ser reprimidos pelas polícias.
A tese bolsonarista de que o Supremo Tribunal Federal (STF) estaria realizando uma intervenção indevida no Poder Executivo tem apoio "quase unânime" nas Forças Armadas, diz Martins Filho. E há entre os militares simpatia à interpretação do presidente sobre o artigo 142 da Constituição, que o autorizaria a usar as Forças Armadas para "restabelecer a ordem" no país, inclusive contra o Poder Judiciário – tese rechaçada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e em um manifesto assinado por cerca de 700 juristas e advogados.
Com cerca de 3 mil militares cedidos ao governo federal e generais ocupando cinco cargos de primeiro escalão da gestão Bolsonaro (Secretaria de Governo, Gabinete de Segurança Institucional e ministérios da Casa Civil, Defesa e Saúde), os integrantes das Forças Armadas costumam dizer que foram convocados para uma missão e, por sua formação militar, devem obediência ao seu chefe, o presidente da República. Esse argumento é falacioso, e oculta uma identidade de propósito entre a caserna e Bolsonaro, diz Martins Filho.
Ele lembra que, no governo Dilma, houve casos de insubordinação à presidente, como do próprio Mourão – que na época era comandante militar do Sul e fez críticas ao governo e convocou oficiais da reserva a um "despertar de uma luta patriótica", sendo em seguida punido com a transferência para um cargo burocrático.
Questionado sobre os protestos de rua contrários ao governo convocados para o próximo final de semana, o professor da Ufscar diz ver risco de que as polícias militares – consideradas forças auxiliares das Forças Armadas, mas com um maior efetivo e ainda mais bolsonaristas – ajam com violência desproporcional contra os manifestantes.
DW Brasil: O que aconteceu com as Forças Armadas brasileiras após o regime militar?
João Roberto Martins Filho: Eu compararia com o que aconteceu na Argentina. Lá, a ditadura desmoronou dada a escala da repressão, que atingiu 30 mil mortos e desaparecidos, enquanto no Brasil foram menos de 500. As Forças Armadas da Argentina saíram do governo repudiadas pela opinião pública e com seus principais chefes julgados e condenados. No Brasil, houve um processo de dez anos de retirada controlada dos militares, que saíram do governo praticamente ilesos e até com certo prestígio.
A partir dali, houve um processo lento de avanço do controle democrático sobre as Forças Armadas. O [Fernando] Collor extingue o Serviço Nacional de Informações, em 1999 é criado o Ministério da Defesa, e em 1996 sai a primeira Política de Defesa Nacional, depois uma Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa, que foram elaborados com a participação de civis.
Aparentemente, os militares tinham se adaptado aos limites da democracia, todos os ministros da Defesa eram civis. Mas não houve mudança no modo de pensar deles – eles só não estavam expressando sua forma de pensar. Com a crise política, começou a brotar aquilo que estava recalcado. E, de repente, nos surpreendemos com esse afã de voltar a participar da política, e com ideias muito ultrapassadas. Isso numa sociedade que não tinha incorporado a crítica à ditadura, como se fez, por exemplo, na Alemanha com relação ao nazismo. Não houve aqui uma política de construção de uma memória crítica em relação à ditadura.
Quais são as ideias hoje predominantes entre os militares?
Eles ainda consideram que existe um comunismo disfarçado, como na época da Doutrina de Segurança Nacional. A marca da Guerra Fria era o anticomunismo, e isso não mudou. Se você ler hoje [03/06] o artigo do vice-presidente no jornal O Estado de S. Paulo, você fica horrorizado. Como é que, depois de duas manifestações de oposição, ele já está falando em polícia, prisão, conspiração internacional? Esse tipo de coisa não mudou.
O que mudou foi que os militares conservadores, na época da ditadura, eram portadores de um nacionalismo autoritário e estatista. Nos últimos cerca de 20 anos, os militares começaram a ter cursos oferecidos pela Fundação Getúlio Vargas e pela Fundação Dom Cabral, MBAs nos quais eles se preparavam para o que poderiam fazer depois que fossem para a reserva – quando eles não se tornam general, vão para a reserva cedo, com 48, 50 anos. Esses cursos fizeram surgir algo que nunca existiu na mentalidade militar brasileira, uma visão liberal e ultraliberal da economia, e eles se afastaram daquele nacionalismo estatista e desenvolvimentista.
Como os militares puderam manter essa ideologia anticomunista se não existe mais a "ameaça" do comunismo no mundo?
Não existe mais o comunismo, mas há mais de 20 anos os militares passaram a acreditar que há uma ideologia do marxismo cultural, sobre a qual se fala muito hoje no Brasil. A ideologia do marxismo cultural seria a nova forma de atuação do comunismo, que teria se disfarçado em uma série de novas frentes, como no movimento pelas minorias, contra o racismo, pelos direitos da mulher e assim por diante. Essa seria uma forma nova do insidioso comunista atuar no mundo. Por isso, quando o [então] comandante do Exército [general Eduardo Villas Bôas] passou o comando [ao general Edson Leal Pujol] no começo do governo, em janeiro do ano passado, ele saudou o Bolsonaro por encerrar a era do politicamente correto, onde todos pensam igual. E falou que, de acordo com Walter Lippmann, onde todos pensam igual, ninguém pensa. Para ele, foi uma vitória o bolsonarismo, porque acabou com uma época supostamente de pensamento único. E esse pensamento único é a esquerda, é uma uma alusão a um comunismo disfarçado, apesar de ser algo inexistente na realidade. É um pouco absurdo, mas é o que eles pensam.
Não há nas Forças Armadas uma ala moderada, com um pensamento mais moderno?
Estamos procurando essa ala hoje, mas ainda não a encontramos. No caso do confronto artificial criado entre o governo e o Supremo, vários generais se manifestaram dando lição de direito constitucional ao Supremo. Imagine isso na Alemanha, um general falando para um membro da Alta Corte alemã como ele deve interpretar a Constituição alemã. Isso gerou um apoio, quase unânime, nas Forças Armadas à ideia de que está havendo uma intervenção do Poder Judiciário na liberdade do Poder Executivo. Complementada com a leitura de que o artigo 142 da Constituição permitiria que o Executivo chamasse as Forças Armadas para atuar como Poder Moderador, o que foi já recusado por um manifesto de 650 juristas. Me parece que esse caráter conservador, neoliberal e a defesa do governo Bolsonaro são mais ou menos unânimes, independente da Força ou de ser da reserva ou da ativa.
E o general Santos Cruz, que foi ministro da Secretaria de Governo e saiu em junho de 2019, após virar alvo de ataques virtuais de apoiadores de Bolsonaro, e vem fazendo críticas ao governo? Ele também é alinhado a esse pensamento?
Tem dois generais, o general [Sérgio] Etchegoyen, que foi chefe do Gabinete de Segurança Institucional no governo Temer, e o general Santos Cruz, que têm dado entrevistas. Se você analisar as entrevistas, vai perceber que o que unifica o discurso deles é o antiesquerdismo, mesmo considerando que a centro-esquerda ficou no poder por 13 anos e não representou nenhuma ameaça concreta à democracia. O Santos Cruz tem uma mágoa profunda do entorno do governo, dos filhos do presidente, e você encontra críticas dele ao governo, mas não uma recusa ao governo em si e ao Bolsonaro. O presidente é poupado, porque no fundo para eles é um governo de direita e conservador que tem que ser apoiado, apesar dos seus problemas. Tanto o Etchegoyen quanto Santos Cruz falaram quase a mesma frase: o governo tem alguns erros, mas o tem mais acertos. É como se falassem: esse governo é ruim, mas é o nosso governo.
Como o senhor interpreta o vice-presidente Hamilton Mourão, que também tem publicado artigos e dado entrevistas com frequência?
O general Mourão foi um dos generais mais insubordinados durante a democracia. Inclusive pelas manifestações que fez, e que não poderia ter feito porque estava na ativa. Ele até prejudicou sua carreira por causa disso e foi sutilmente punido com perda de comando no Exército [em 2015, Mourão fez críticas à classe política e ao governo e convocou oficiais da reserva a um "despertar de uma luta patriótica", e em seguida perdeu o comando Militar do Sul e foi transferido a um cargo burocrático].
Não existe diferença nenhuma entre o que pensa o bolsonarismo e o que pensa o general Mourão. O Mourão é um lobo em pele de cordeiro. Ele não representa nenhuma garantia de que, se vier a ocupar a Presidência, o governo será diferente. Ele é um dos porta-vozes desse conservadorismo militar que venho definindo.
"Lobo em pele de cordeiro": para pesquisador, não há garantia de que vice-presidente faria um governo diferente do de Bolsonaro
Existe diferença de orientação política entre o Alto Comando e os oficiais de baixa patente?
Conforme vai baixando na hierarquia militar, há ainda mais apoio e identificação com Bolsonaro. Não por acaso, porque ele tem o ethos de capitão, e não o de general. O Alto Comando, muito sutilmente, já expressou uma insatisfação com a demissão do general Santos Cruz e com o fato de que há um general da ativa na Secretaria de Governo, o general Ramos. Há uma certa sensibilidade com atitudes do general Ramos, que está negociando com o Centrão cargos em troca de apoio para impedir o impeachment. Também pegou mal uma fala do Bolsonaro de que se ele mandasse os generais irem com ele a uma manifestação, eles teriam que ir. Mas foi isso mesmo que aconteceu, na manifestação do último domingo (02/06) ele exibiu, dentro do helicóptero em que estava, o ministro da Defesa [general Fernando Azevedo]. Filmaram a presença dele e usaram como propaganda.
O ministro da Defesa estava no helicóptero por um dever de obediência ao seu chefe ou por comungar da pauta da manifestação?
Os militares têm usado esse argumento de que, uma vez no governo, são obedientes, têm o dever de obedecer. Mas isso é falacioso, porque durante o governo da Dilma eles realizaram uma série de atos de insubordinação, inclusive do Mourão, mas também do general [Augusto] Heleno. Se o ministro da Defesa tivesse outra posição, ele poderia ter dito ao presidente que não ficaria bem para ele ir a uma manifestação dessas. Aí o Bolsonaro poderia demiti-lo, mas ele teria que arriscar.
O atual comandante do Exército, general Pujol, tem sinalizado algum distanciamento do presidente. Ele se diferencia dos demais generais do governo?
O general Pujol é um general profissional, é considerado um general não político. Isso até espanta, porque hoje em dia passou a ser uma exceção o general não político. Ele tem procurado manter uma certa distância. O Bolsonaro ameaçou tirar o Pujol e colocar o Ramos em seu lugar, mas pegou tão mal dentro da Força que ele continua lá. O Pujol representa talvez a mais leve esperança de profissionalismo diante de uma situação como essa.
O senhor vê alguma chance de Bolsonaro dar um autogolpe enquanto é presidente?
Sim, vejo. Não vejo chance de os militares tirarem o Bolsonaro dando um golpe clássico, mas, se seguir com o apoio dos militares, ele continuará com sua estratégia de corroer as instituições lentamente por dentro, agora trazendo esse debate sobre o artigo 142 da Constituição, o papel das Forças Armadas e as críticas ao Supremo. Quais são as instituições principais em uma democracia? O Congresso, o Poder Judiciário, a imprensa livre, os sindicatos e os partidos políticos. Nenhum dessas deixou de ser alvo de ataques violentos do presidente. Estamos correndo o risco de ter uma espécie de meia democracia, o que seria já um caminho para o autoritarismo.
O que seria um autogolpe? Invocar o artigo 142 da Constituição e as Forças Amadas encamparem a interpretação do presidente sobre esse artigo?
Uma vez que ele acertou a situação com o Congresso, fazendo o que se chama de "toma lá, dá cá", o Congresso está tranquilo. Agora o único poder que está se opondo é o Supremo. Se o Supremo ceder, já teremos uma espécie de regime híbrido. Mas atualmente o Supremo não está mostrando disposição para ceder, está enfrentando. O Supremo virou uma espécie de último reduto de defesa da democracia.
Se ocorrer um recrudescimento dos protestos de rua, como as Forças Armadas e as polícias tendem a agir?
A polícia militar é uma base perigosa do bolsonarismo, é muito mais numerosa, em termos de efetivo, do que as Forças Armadas, e mais bolsonarista. As polícias têm uma tradição de desobedecer os governadores, e na lei brasileira elas são consideradas forças auxiliares das Forças Armadas. O que está se esboçando agora é um crescimento dos protestos, que ficaram muito tempo contidos, e uma ação descontrolada das polícias militares. Pelo artigo que o general Mourão publicou hoje [03/06], ele já está anunciando que essas manifestações de oposição são ilegítimas e que não se pode comparar essas manifestações, que mal começaram, com as manifestações legítimas dos bolsonaristas, que seriam um pouco exageradas, mas democráticas.
Ignácio de Loyola Brandão: Chega, presidente. Abra o jogo
O senhor vem procurando corroer nossos espíritos, buscando nos destruir
Desperto a cada dia pensando: o que ele vai dizer hoje para nos afligir? Quando digo desperto, deveria dizer despertamos, porque somos, no mínimo, dois terços da população brasileira sofrendo do mesmo mal: a espera da palavra presidencial no puxadinho do ódio frente ao Alvorada. Esse é um pensamento que oprime. A cada dia, são vergastadas vindas de um iletrado, ofensas a todos e à língua portuguesa, recorrências ao palavrão, ao mesmo tempo que em nossas mentes aumenta a angústia da espera: quando ele virá? Ele. Todos sabem o quê? Ele promete, sonha, gostaria que se concretizasse.
Está próximo o dia em que ele vai cumprir a palavra? O filho anunciou, agora é a ruptura. Vai intervir em tudo e em todos em nome da democracia? A democracia dele tem outra etimologia. Aqui, o demo é de demônio. Sartre disse: o inferno são os outros. Estava errado. O inferno é o Brasil hoje com esse presidente.
Decidi. Chega. Chega, presidente.
Não aguento mais. Não aguentamos mais. O senhor vem procurando corroer nossos espíritos, tentando nos aniquilar moralmente, buscando nos destruir, minando nossas forças. Resisto. Não sou apenas eu, não estou sozinho. Somos milhões.
Presidente, decida logo! Tire o paletó e nos encontre ali na porta, anunciando: é agora. Pegue seus filhos e coloque-os à frente das forças armadas.
Junte os milicianos a que estão ligados. Acrescente seus empresários aliados e coloque-os no ministério da Economia. Arrebanhe seus seguidores na redes sociais e deixe-os no comando do combate à pandemia. Chame o Aras e coloque-o logo no Supremo. Peça ao 02 que apanhe logo um cabo e um soldado e feche o que ele acha que tem de fechar. Jogo limpo. Às claras. Mas não nos deixe nessa agonia, nessa ansiedade que corrói, aguilhoa. Estão esgotados na farmácias os estoques de ansiolíticos. Os laboratórios não dão conta de produzir às toneladas. Terapeutas, psiquiatras, psicanalistas, psicoterapeutas estão exaustos. O senhor, cientista, nos diga que medicamento vai curar esta esquizofrenia pior do que o vírus da covid-19.
Estamos vivendo o suplício chinês da água pingando numa chapa de metal, plim plim, plim, até ficarmos loucos, surtarmos. Se é possível surtar mais do que estamos. Assim, decida logo. Saia para rua com seus tanques, uma vez que foi dito na porta do Alvorada: “não dá mais, hoje é o último dia.” Último dia do quê?
Não me deixe – não nos deixe – em suspenso a cada momento, cada minuto, segundo. É essa sua intenção? Nos dissolver?
Presidente.
Defina a situação. Não fique prometendo. A espera alucina. Como diz o ditado popular, transe ou saia de cima. Desocupe a moita. O Brasil está esgotado, avariado, demolido, arrasado, enfraquecido. Diga logo o que quer. Não adianta ficar esbravejando na porta do Palácio. Chega de nos tratar como moleques na escola, que gritam “te espero lá fora”. Resolva.
Jogo aberto. Quem tiver de ser preso, será. Quem tiver de ser condenado, será. Quem tiver de perder os direitos, perderá. Quem o senhor decidir que deve ser torturado, será. Quem tiver de ser exilado, será. Mas abra o jogo. Basta de sadomasoquismo. Seja claro, não hesite um minuto, não fique nessa indecisão que nos mata, não nos deixa dormir, provoca urticária, nos come pelas beiradas, e pode nos deixar doentes, neuróticos, deprimidos, em pandarecos, abilolados, com úlcera no estômago, câncer. Assim é a espera, a cada dia na expectativa, olhando o relógio, o calendário. Venha com seu desejo mais íntimo desde que se elegeu. Estamos aqui, desarmados. Mas não estamos escravizados.
Será agora? Daqui uma hora? Duas, uma semana, um mês, em 2021 ou 2022? Súbito me lembrei que o Reich de Mil Anos durou apenas doze e o líder dele se matou num subterrâneo. Será agora, quando será, vai ser, quando? Está próximo? Demora? Quando, quando, quando, quando, e este quando não está chegando.
Saia do chiqueirinho da porta Alvorada e venha para campo aberto com seus tanques, navios, canhões, armamentos, bombas nucleares, napalm, armas químicas, pó de mico, o que tiver e acabe com essa história.
Saia do armário.
Escancare.
Só precisamos saber quantos vão sobrar, depois da fome, das prisões, mortes, das epidemias, do corona. Quantos estarão vivos para o senhor governá-los? Bye Bye Brasil, como disse Cacá Diegues. Pelo amor desse Deus que o senhor diz que está acima de tudo: quando será esse momento?
Elena Landau: O Joelho Juvenal
'Escalavrada' é o adjetivo que define a democracia que vivemos no País hoje
A escatológica reunião ministerial já foi dissecada por muita gente, mas, mesmo assim, volto a ela. Não se pode banalizar a gravidade do que foi dito ali. Não é um novo normal. É anormal e perigoso. O que se viu foi um coro, quase unânime, em defesa de um golpe institucional. Ainda bem que veio a público.
Além do conteúdo, a forma de expressão das ideias foi chocante. Nem nas arquibancadas do Maracanã, que sempre frequentei, eu vi algo parecido. A ministra Damares, tão preocupada com obras do diabo, não enxergou o capeta sentado bem à sua frente.
Muita coisa foi escancarada nesse encontro. Ficou patente a urgência da aprovação da autonomia do Banco Central. A presença do presidente do BC, tanto no ato de desagravo a Moro, como nessa reunião, na qual fez coro com os descontentes com a mídia, é inaceitável. A independência que Roberto Campos Neto tem demonstrado na condução da política monetária pode ser questionada pela sua participação na vida política. Não é bom.
O show dos liberais de pau oco não passou despercebido. Guedes revelou o que pensa de empresas estatais e privatização. Se não puder servir a meus propósitos políticos, tem de vender essa droga logo, disse ele sobre Banco do Brasil. Se não me serve, vende. Nenhum liberal advoga em favor da desestatização em causa própria. Deve ser por isso que não se viu nenhuma reação sua à entrega do Banco do Nordeste ao Centrão. Foi, enfim, privatizado por Valdemar da Costa Neto.
A inveja do poder de Pedro Guimarães era evidente. Onyx deu de presente à Caixa o monopólio na distribuição dos R$ 600. Sendo de capital fechado, acionistas minoritários não atrapalham, é o que pensam os liberais deste governo. Governança, cuidado com a coisa pública e transparência só servem para atrapalhar. Qualquer semelhança com os governos intervencionistas não é mera coincidência.
Com essa proteção legal, a Caixa aproveitou para expandir sua atuação no segmento digital. Recusou a ajuda de instituições financeiras, mesmo diante das filas nas suas agências. Povo passando necessidade é apenas um pequeno sacrifício para que o banco avance na área das fintechs. De quebra, esse monopólio vinculou o auxílio ao governo. Já vimos esse filme antes. O populismo não tem ideologia.
Para liberais do Bolsonaro, competição só é boa no terreno alheio. Esse governo desmoraliza a desestatização. Não querem nem sabem fazer. E quando a defendem, é pelo motivo errado.
Temos um ministro Nem Nem: nem abertura comercial, nem reforma tributária, nem reforma administrativa, nem privatizações. Nem humanidade.
Em nenhum momento da reunião houve referência aos milhares de mortos ou aos milhões de desempregados, que sofrem com uma total falta de perspectiva, enquanto o governo amplia os estragos sobre a economia e saúde com seu combate terraplanista à quarentena. Em ato falho, o ministro da Economia se refere ao banco de desenvolvimento como “BNDE”, sem a letra S, de social. E, sem enrubescer, apoia os desatinos autoritários de seu colega da Educação. “Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu … Nós tamos aqui por esses valores.”
É a eterna cantilena dos golpistas incompetentes; sempre precisam de mais tempo e liberdade para implantar seu projeto. A culpa é sempre dos outros.
Após a divulgação da queda do PIB no 1.º trimestre, Guedes pediu solidariedade e cooperação, palavras que soam falsas em sua boca. Pede a união da sociedade, não para obedecer ao que recomendam médicos e cientistas, mas para tentar salvar sua biografia, já marcada por promessas e devaneios não cumpridos. Mas podemos ficar tranquilos, porque a recuperação será em V, ainda que um V meio torto, como disse o ministro.
Ninguém está no governo Bolsonaro por acaso. Não surpreende que Salles, Weintraub e Damares não tenham sido demitidos. Surpreende que os demais presentes não tenham pedido demissão. Todos se tornaram coniventes com um protótipo de ditador que estimula a desobediência civil de uma população armada.
Tenho pensado em adjetivos para qualificar o que se passa neste momento no País. O “inacreditável” não dá mais conta.
Lia muito com meu filho quando ele era criança. Sua coleção preferida era uma série de Ziraldo, Corpim, que conta histórias de partes do corpo de forma divertida. O favorito dele era o Joelho Juvenal. A razão era menos a anatomia e mais o adjetivo usado para ilustrar as artimanhas do menino que deixava o joelho todo escalavrado. Meu filho adorava a palavra. Líamos a história repetidas vezes e ele gargalhando com o “escalavrado”.
Hoje, lendo com o neto, lembrei de Juvenal. E, imediatamente, me veio a imagem de uma democracia escalavrada. No dicionário é “o mesmo que: arranhada, golpeada, machucada”. Encontrei meu adjetivo.
*Economista e advogada
Reinaldo Azevedo: Os diferentes estamos juntos para atravessar a Terra dos Mortos
Para superar esse momento, basta que o parceiro de trajetória defenda a democracia
Nestor Forster, que responde pela embaixada do Brasil em Washington, expressa em telegrama reservado a leitura que faz o Brasil da crise deflagrada nos EUA com o assassinato de George Floyd. O texto, revelado nesta Folha pela sempre competente Patrícia Campos Mello, é uma espécie de boletim do hospício em que nos transformamos. A análise pouco ou nada diz sobre aquele país, mas entrará para a história como um dos emblemas do desastre que vivemos por aqui.
Pesquisas indicam que a maioria dos americanos considera que Donald Trump se comporta mal na resposta à onda de protestos. O republicano George W. Bush e o democrata Barack Obama se solidarizam com o movimento contra o racismo. James Mattis, ex-secretário de Defesa de Trump, diz: "É o primeiro presidente em toda a minha vida que não tenta unir o povo americano nem finge tentar. Em vez disso, ele tenta nos dividir".
Esqueçam. Essas personalidades nada sabem sobre o próprio país. Há alguém que vê um Trump irrepreensível na crise: Forster! Sua análise pode não credenciá-lo como observador competente dos fatos, mas faz dele um exemplar prosélito de uma causa. A mídia, segundo o diplomata, acusaria um inexistente racismo sistêmico naquele país, em associação com a "cultura da queixa", promovida pelo Partido Democrata. Ele presta solidariedade a Trump, que enfrentaria uma "obsessiva campanha de mídia contra o chefe do Executivo".
O "Antifa", diz, busca a "abolição do capitalismo e o esmagamento do fascismo", mas seu "'modus operandi' é caracterizado justamente por atitudes associadas aos movimentos fascistas europeus dos anos 1930 e à selvageria dos movimentos revolucionários em geral, como agressão física, depredações, incêndios e saques".
Forster põe ainda em dúvida se os negros são mesmo alvos preferencias da polícia e dá destaque a analistas que veem nos protestos uma "onda de ódio" que, "sob o pretexto racial, volta-se, na verdade, contra os valores fundamentais da democracia americana".
O telegrama não fala sobre os EUA, mas sobre o Brasil. Forster não sai em defesa de Trump, mas de Jair Bolsonaro. Não se trata de uma peça de análise, ancorada nos fatos, na realidade, nos seus possíveis desdobramentos. O que se lê é proselitismo de resistência reacionária ao suposto "mal", que ou extermina ou é exterminado.
Dizer o quê? Nenhum de nós, creio, contou chegar a esta altura da vida e dos acontecimentos tendo de sobrepor uma clivagem a todas as outras: aquela que distingue a sanidade da insanidade. Por isso se veem tantos desiguais assinando uma mesma petição.
Integro a primeira leva de signatários do manifesto Estamos Juntos, em defesa da democracia e contra a fascistização do poder. Lula, por exemplo, não quis se misturar com alguns ou com muitos de nós e deixou isso claro sem nem indagar, ao nos passar um sabão, se alguns ou muitos gostaríamos de nos misturar com ele. Que seja bem-sucedido ao cultivar o seu jardim. Não é hora de alargar pinimbas.
O telegrama de Forster nos diz uma vez mais que é preciso operar, agora, no "Modo Básico de Defesa da Sobrevivência". Basta, para atravessar a terra dos mortos, que o parceiro de trajetória defenda a democracia como valor universal e que esteja comprometido com os direitos humanos. Se o futuro se fará com mais Estado ou com menos, eis um tema para quando recuperarmos a autonomia sobre o que nos divide.
Forster não deve ter reportado ao governo brasileiro que os comandantes militares dos EUA, em carta inequívoca, datada do dia 2, lembram que seu papel é defender a Constituição e seus valores. Mais: destacam que a Guarda Nacional -- com a qual Trump ameaçou os manifestantes -- está sob o comando dos governadores.
Enquanto alguns dos nossos generais ameaçam o país com golpe e outro sobrevoa a Praça dos Três Poderes com óculos escuros, à moda Pinochet, os que respondem pela maior máquina de guerra da Terra dizem a seu tresloucado presidente, guia genial de Forster e dos insanos de Banânia: é a Constituição que manda nos canhões, não os canhões na Constituição.