Day: junho 2, 2020

Andrea Jubé: Os dois gigantes que movem a política

Autoridades veem risco de confrontos e até black blocs

Se estivesse vivo, o professor Emilio Mira y López identificaria na realidade nacional pelo menos dois dos “quatro gigantes da alma”, que ele radiografou no clássico da psicologia universal: o medo e a ira. O Brasil é hoje um país dominado pelo temor do coronavírus, da ruína econômica, da ruptura democrática, e tudo isso embalado pelo ódio político, que amplia a turbulência e gera insegurança.

Num momento em que o amor e o respeito à pátria são invocados para legitimar despautérios, como discursos autoritários e ataques às instituições democráticas, vem à tona a atualidade da obra de Mira y López escrita em 1947, depois que o autor, filho de um médico militar, vivenciou duas grandes guerras mundiais e lutou contra o franquismo na Espanha.

“O ódio político é extremamente devastador porque pode invocar para satisfazer-se, a cada momento, o sagrado prestigio da pátria. Assim, basta acusar o vizinho odiado de ser “traidor da pátria” para que sobre ele caiam os anátemas dos que são incapazes de dar a essa palavra um valor variável, em função do marco em que é empregada”.

Professor de psicologia e psiquiatria da Universidade de Barcelona, Mira y López, publicou um estudo cientifico pioneiro das três emoções primárias do homem: o medo, a ira e o amor. Ele as classifica como as três grandes reações neuropsicológicas, que somadas à força repressiva do meio social - o dever - formam os “quatro gigantes da alma”, título da obra, uma referência intelectual nos anos 50 e 60.

É nesse cenário em que o medo e a ira movem a política nacional que as convocações nas redes sociais para a realização de novos atos em defesa da democracia no próximo fim de semana, inclusive na Esplanada dos Ministérios, acenderam o alerta entre as forças de segurança da Presidência da República e do Distrito Federal.

Autoridades do alto escalão receiam confrontos entre apoiadores e opositores do governo. Numa análise ampliada, o temor é de que a tensão política, num cenário de crise sanitária e alto desemprego, desemboque em convulsão social, com saques e depredação de patrimônio.

Alvo de ameaças - ele e seus pares do Supremo Tribunal Federal - o ministro Gilmar Mendes alertou que é preciso “combater o discurso do ódio” para evitar que o pior se concretize. “Tememos que essa violência verbal se convole em violência física, isso não é bom para o país, independentemente de quem seja o alvo”, alertou em entrevista à GloboNews.

É nesse contexto que não foi ao acaso o conselho do presidente Jair Bolsonaro ontem aos seus apoiadores para que não repetissem os atos no fim de semana. “Estão marcando no domingo um movimento né, deixem [os opositores] sozinhos”.

O acirramento da radicalização política nos últimos anos, agravado num cenário de pandemia e crise econômica, transformou o Brasil em uma panela de pressão prestes a explodir. De um lado, o país ultrapassou a marca de meio milhão de infectados pelo coronavírus, com quase 30 mil vítimas, segundo dados oficiais. Em paralelo, a pobreza parece avançar na mesma velocidade da pandemia. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) diz que os desempregados somam 12,8 milhões de brasileiros - o mesmo que a população inteira da cidade de São Paulo.

Esse somatório de perdas - de vidas humanas, de emprego, de esperança -, tendo como pano de fundo a ameaça democrática, torna-se um campo fértil para a revolta popular.

Por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop), que reúne 29 órgãos do Distrito Federal, a Secretaria de Segurança Pública vem monitorando as manifestações de apoiadores de Bolsonaro aos domingos, há mais de um mês, na Praça dos Três Poderes. Sem oposição, os atos têm sido pacíficos, embora questionáveis pela violação ao decreto que proíbe aglomerações.

Fontes da secretaria ressalvam que há um impasse legal, que autorizaria os protestos, seja de que lado forem, porque a Constituição Federal assegura o direito de manifestação. É essa prerrogativa constitucional que estará em debate caso a Justiça seja acionada para proibir os protestos do próximo fim de semana para evitar confrontos.

Vários cenários estão sendo analisados pelas forças de segurança federal e dos Estados para evitar atos de violência no próximo fim de semana. Um dos temores é o ressurgimento de grupos radicais como os “black blocs”, responsáveis por ações violentas nas manifestações de 2013.

Outro receio envolve a eventual prisão da ativista Sara Winter, apoiadora do presidente, que fez ameaças públicas ao ministro do STF Alexandre de Moraes e é investigada pela Polícia Federal. Há dúvidas se a sua detenção teria o efeito de advertência para conter os excessos dos demais ativistas, ou acirraria os ânimos dos bolsonaristas.

Outro temor é de que os protestos antirracistas que ocorrem há uma semana nos Estados Unidos - e ganharam ampla cobertura da imprensa brasileira -, contra o assassinato de George Floyd, estimulem os protestos nacionais.

No limite, há quem arrisque que restará ao governador Ibaneis Rocha (MDB) imitar o seu antecessor, Rodrigo Rollemberg (PSB), que ergueu um muro de dois quilômetros de extensão nos gramados da Esplanada para dividir os grupos adversários no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e evitar as vias de fatos entre os dois grupos.

Mira y López ficou conhecido como o “teórico da liberdade”: exilado após a luta contra o regime de Franco, ele viveu nos Estados Unidos, Argentina e Uruguai, até radicar-se no Brasil, onde faleceu em 1964, em plena ruptura democrática.

Ele não se conformava com a radicalização política, porque para ele esse ódio esbarrava na essência da atividade política, que deveria ser “modelo de tato, compreensão e respeito ao ser humano”. Sua conclusão foi de que o ódio político remonta à tendência do homem, “desde sua mais remota ancestralidade”, a ambicionar o poder, “não para servir, mas para dele se servir”.


Ana Carla Abrão: Rastro e risco

Milhares de vidas foram poupadas graças às medidas de isolamento social

O governo do Estado de São Paulo divulgou, na última quarta-feira, o plano de modulação da quarentena no Estado. O Plano São Paulo, anunciado pelo governador João Doria, estabelece cinco faixas de risco nas quais estarão classificadas todas as regiões do Estado. Dado que o vírus não respeita fronteiras municipais ou de regiões administrativas, aqui região equivale a “região de saúde”. Busca-se assim compatibilizar a flexibilização das medidas de isolamento – e o consequente impacto delas – com a capacidade de distribuição de recursos e infraestrutura instalada de saúde administradas pelo governo estadual.

O plano se assenta em cinco pilares. O primeiro deles se baseia em indicadores que medem as duas preocupações fundamentais nessa pandemia: a capacidade de oferecer atendimento à população que chega às enfermarias e, principalmente, às UTIs disponíveis no Estado, e o ritmo de evolução da contaminação. A ideia é equilibrar, em cada região, os recursos hospitalares disponíveis com o estágio da epidemia. A visão regional é, portanto, o segundo pilar, refletindo a heterogeneidade da epidemia no Estado.

Capacidade ociosa e contaminação descontrolada significam que a região não pode evoluir na direção da flexibilização e pode também significar volta das restrições ao funcionamento de setores previamente liberados. Vale também o vice-versa: contaminação controlada com sistema de saúde pressionado também indica que a flexibilização precisa de mais tempo para acontecer, ou será necessário retornar aos níveis anteriores (elevados) de isolamento social.

A partir daí, as regiões são classificadas em diferentes faixas de risco e avança-se nas duas dimensões seguintes: (i) definição dos setores a serem reabertos em cada faixa e (ii) protocolos a serem seguidos. Aqui foram usados critérios de impacto setorial da epidemia, baseados em produto e emprego e também em risco ocupacional de cada atividade a ser reaberta.

Tudo isso baseado em trabalho exemplar elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), liderada pelo economista Eduardo Haddad, e cujas análises permitiram que pudéssemos agregar a visão econômica às restrições de saúde. Protocolos gerais e específicos levam em conta essas dimensões e visam a controlar o risco de contágio e a permitir uma reabertura mais segura. Mas terão de ser seguidos à risca. Gradualismo e controle são as palavras de ordem. Se ausentes, o caminho de volta às restrições está pavimentado, é parte do plano e será usado, conforme afirmaram o governador João Doria e o prefeito da capital, Bruno Covas, no anúncio do plano.

Mas, finalmente – e não menos importante –, há o pilar de testagem. Esse, sim, o farol de monitoramento da epidemia. A identificação e o isolamento de casos assintomáticos são o que permitem uma resposta rápida e eficaz em qualquer uma das duas direções possíveis: de continuidade no processo de flexibilização ou de volta às restrições. A ampliação na testagem – e, consequentemente, uma maior precisão nas estimativas da taxa de transmissão (Rt) – levará à melhora nas previsões da curva epidêmica e à maior capacidade de rastrear e tratar eventuais novos focos de contaminação.

Aqui, como foi no início com respiradores, máscaras e cestas básicas, o setor privado e a sociedade civil poderão fazer toda a diferença. Com grandes empresas abraçando essa causa, aderindo aos protocolos de testagem e colocando em prática uma ampla ação visando à identificação e ao isolamento de pessoas infectadas dentre os seus funcionários, poderemos avançar mais rápido e de forma mais segura.

Se, além disso, também adotarem pequenos fornecedores e empresas parceiras, inserindo-os nos seus programas de testagem, muito melhor. Se, adicionalmente, garantirmos a ampliação de programas de testagem gratuita em comunidades carentes e de trabalhadores informais, poderemos atingir volumes impensáveis de testes comparativamente à situação em que o setor público atua sozinho, com todas as limitações conhecidas.

Estamos, após quase 70 dias de quarentena no Estado de São Paulo, nos movendo na direção de uma flexibilização consciente e gradual. Ela será mais segura e numa só direção quanto maior for a nossa capacidade de administrar os riscos envolvidos numa abertura, mesmo que gradual. Houve grandes conquistas até aqui. Milhares de vidas foram poupadas graças ao sucesso das medidas de isolamento social e à ampliação e maior eficiência no atendimento de saúde no Estado e na capital.

O Plano São Paulo tem como objetivo fazer essa transição entre a fase de resposta aguda e emergencial para a fase da administração e do controle desses riscos sem botar a perder essas conquistas. Daí seus cinco pilares. Eles se refletem na identificação dos riscos, no gradualismo da abertura, na adoção dos protocolos de higiene, na heterogeneidade da epidemia e na testagem e rastreamento. Este último, que deve agora ganhar ainda mais foco, surge do entendimento de que seguir o rastro e controlar o risco sempre andaram juntos. Aqui e hoje, mais do que nunca.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.


Paulo Hartung: Democracia, valor universal

Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão institucionalizada

Em meio a uma trágica pandemia, a maior catástrofe vivida pelas atuais gerações, devastadora para vidas humanas e avassaladora para o sistema produtivo, o Brasil se obriga a enfrentar outra frente desafiante: a defesa da democracia como um valor essencial para organizar a nossa sociedade. Espantosa missão, seja porque há pouco mais de três décadas saímos de uma ditadura, seja porque já temos problemas demais a superar, seja porque “estamos em pleno século 21 sendo afrontados com discursos, ameaças e situações medievais”. Inacreditável, mas terrivelmente real.

A partir de 1964, foram 21 anos de arbítrio, com censura à imprensa e às artes, exílio forçado de concidadãos, cassação de direitos políticos, desaparecidos e presos políticos, torturas e mortes nos porões da opressão, supressão de eleições, interdições a liberdades civis e políticas (opinião, reunião, organização, etc.), entre tantas tragédias urdidas nos “anos de chumbo”. Ao fim, o poder civil recebeu o País com um endividamento externo irresponsável e a economia em frangalhos.

Nos anos 1970, na universidade, entrei nos movimentos sociais em busca da retomada das liberdades em nosso país. Nesse tempo de embates e formação política, tive um aprendizado fundamental: a democracia é um valor universal a nortear as formas de conquista e exercício do poder em toda e qualquer sociedade que se queira civilizada e humanística.

Sob a Constituição de 1988, reconstruímos a democracia. Não foi um tempo perfeito, como nenhum foi ou será, até porque a política não é feita por deuses, mas por seres humanos, suscetíveis de erros e imperfeições. Mas é inegável que percorremos um período de avanços socioeconômicos, com o funcionamento do Estado Democrático de Direito e as devidas correções de rumos e penalizações de desvios, por exemplo.

Entre as conquistas, podemos citar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a universalização do acesso à educação básica, a derrocada do flagelo da inflação e a criação do Real, a ocorrência de eleições periódicas e transparentes, com alternância de poder, os avanços nas agendas dos direitos humanos, do meio ambiente e da sustentabilidade, e uma abrangente rede de proteção social (Bolsa Família e outros).

Enfim, ainda que lidando com desafios gigantescos e mal administrando uma impositiva agenda de reformas estruturantes, mas incrementando nossa incipiente experiência democrática, o Brasil tornava-se pouco a pouco um país que jamais tinha sido, em seus mais de 500 anos de História.

Há uma agenda de ajustes? Sim! Pelo nível de suas entregas, temos uma estrutura governamental cara e ineficiente, além de atravessada por vícios de corrupção e assaltada por corporações cercadas de privilégios. Temos um País inaceitavelmente injusto, inseguro e desigual. A educação precisa se qualificar e se tornar contemporânea. A produção deve incrementar a sustentabilidade de seus processos, além de ampliar sua produtividade e competitividade. As instituições precisam se digitalizar, promovendo o reencontro do modus operandi governativo com o modus vivendi da sociedade.

É patente que, em função dessa realidade, agravada por ampliações de privilégios de grupo nas áreas pública e privada, recessão econômica e escândalos de corrupção, há uma insatisfação crescente da sociedade. Mas não há atalho para superarmos os desafios, especialmente atalhos à via democrática. O conserto disso tudo não é substituir a democracia pelo autoritarismo. Até porque os diversos períodos ditatoriais por que passamos não resolveram problemas históricos e quase sempre os agravaram.

A democracia não é um regime pronto e acabado, nem perfeito, mas é o melhor já produzido pela humanidade para organizar o exercício do poder em sociedades livres, igualitárias e fraternas. Como bem resumiu Winston Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas”.

Fora das luzes democráticas, o que temos é a escuridão institucionalizada, abrindo espaço a toda sorte de violências, perversões e injustiças que se alastram no submundo da ação política articulada em torno do obscurantismo e da deslegitimação da vontade e do poder do povo.

Como disse recentemente o ministro Luís Roberto Barroso, a “democracia não é o regime político do consenso, mas aquele em que o dissenso é legítimo, civilizado e absorvido institucionalmente”. E, neste tempo em que tanto necessitamos de lucidez, recomendou: “Precisamos de denominadores comuns e patrióticos. Pontes, e não muros. Diálogo, em vez de confronto. Razão pública no lugar das paixões extremadas. (…) Precisamos armar o povo com educação, cultura e ciência”.

Que a sociedade, a partir do entendimento e mobilização de todas as suas forças vivas, sustente a democracia como um valor central ao Brasil. Que sejamos capazes de superar este tempo excepcionalmente difícil como uma nação livre e plural e, assim, apta a transformar em plena realidade as nossas potencialidades de justiça social e prosperidade compartilhada.

*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos Pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)


Coronavírus: ‘Pandemia deve produzir maior queda da economia do capitalismo’

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, José Luis Oreiro analisa perspectiva econômica do Brasil e guerra no governo

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O governo do presidente Jair Bolsonaro criou mais uma disputa interna entre a equipe econômica do governo e a ala militar, encabeçada por Braga Neto, originada no fato de que a agenda de privatização, reformas estruturais e abertura comercial não tem apresentado os resultados prometidos. A avaliação é do pesquisador e professor associado do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília) José Luis Oreiro, em artigo que ele produziu para a 19ª edição da revista Política Democrática Online.

Acesse aqui a 19ª edição da revista Política Democrática Online!

A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da entidade. Em sua análise, Oreiro observa que, entre os economistas das mais diversas tendências de pensamento, formou-se um consenso: “a pandemia em curso deverá produzir a maior queda do nível de atividade econômica na história do capitalismo, superando em intensidade a Grande Depressão de 1929”.

De acordo com o autor, uma vez contida a pandemia e suspensas as medidas de distanciamento social, a recuperação econômica será extremamente lenta e dependerá, tal como na década de 1930, de uma forte atuação do Estado na forma de vultosos investimentos em infraestrutura. “No caso dos países europeus, abre-se uma janela de oportunidade para realizar mudança estrutural importante, qual seja: a descarbonização da economia, com vistas à redução da emissão de CO2 na atmosfera de maneira a conter o fenômeno do aquecimento global, ameaça de longo-prazo a sobrevivência da própria humanidade”.

O volume de investimentos necessários para essa mudança estrutural é gigantesco, constituindo-se, portanto, no vetor de demanda necessário para a recuperação das economias europeias no pós-pandemia, de acordo com o artigo da revista Política Democrática Online. “O Brasil também terá que recorrer ao investimento público, para se recuperar dos efeitos da crise atual”, afirma o professor da UnB.

O ritmo anêmico de crescimento da economia brasileira anterior à pandemia, segundo o pesquisador, já era prova cabal de que, sem aumento significativo do investimento público em infraestrutura, não é possível obter aceleração consistente do crescimento. “A história brasileira mostra de forma muito clara que, no período de crescimento acelerado, entre as décadas de 1930 a 1980, o investimento público, direto ou por intermédio de empresas estatais, teve papel fundamental”, analisa.

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Eliane Cantanhêde: Inteligência? Que nada!

Ao exigir relatórios, Bolsonaro não visa dados estratégicos, mas sim de aliados e adversários

O presidente Jair Bolsonaro recebeu um relatório do Exército e outro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) mostrando com gráficos, curvas epidemiológicas e estudos científicos que o isolamento social era, como é, a forma mais eficaz de conter a disseminação e as mortes pela covid-19. O que ele fez? Deixou para lá, se é que não jogou no lixo, junto com as orientações da OMS e as pesquisas sérias sobre a cloroquina.

Isso confirma que, ao contrário do que disse na reunião de 22 de abril, o presidente não está preocupado com a qualidade dos relatórios de inteligência da Polícia Federal, dos órgãos de informações de Exército, Marinha e Aeronáutica e da própria Abin. Na verdade, ele não dá a menor bola para eles.

O importante, para Bolsonaro, não é ter relatórios de inteligência, e de técnicos inteligentes, para refletir, tomar decisões e governar. Ele só quer informes que confirmem o que ele acha – como no caso do isolamento social – e que avisem direitinho se alguém está se metendo com sua família, amigos e aliados. Não é questão de inteligência, é de interesse.

Para que Bolsonaro precisaria da Abin (órgão de assessoramento direto da Presidência), se ele tem todas as certezas? Quando os relatórios da Abin e das Forças Armadas chegam, ele já foi emprenhado pelos ouvidos por filhos, gurus, empresários que financiam fake news contra instituições e por puxa-sacos variados que pululam à sua volta – como de qualquer presidente.

“Se os fatos não correspondem à versão, danem-se os fatos.” Se os dados não correspondem à vontade do presidente, danem-se também. E assim vai-se vivendo, e morrendo, com Bolsonaro jogando relatórios fora, indo a aglomerações golpistas, exibindo-se em helicópteros, jet skis e cavalos, com meio milhão de infectados, 30 mil mortos e uns malucos replicando a macabra Ku Klux Klan na porta do STF.

É chocante, mas não é novidade a guerra de Bolsonaro com ciência, estatística, pesquisas, estudos internacionais e racionalidade, para prestigiar achismos, teorias e maluquices em nome de uma ideologia que ninguém entende direito, mas em torno de 30% de brasileiros seguem obtusamente. O passado condena. E se repete o tempo todo. Desde a campanha, por exemplo, o presidente desconfiava de pesquisas e das urnas eletrônicas e depois até já acusou, sem mostrar qualquer prova, que a própria eleição foi fraudada. É inédito que seja o vencedor a denunciar fraude.

O cientista Ricardo Galvão foi demitido do Inpe porque os dados sobre desmatamento da Amazônia (como os da Abin sobre isolamento) diferiam do que o presidente exigia. Novos estudos confirmaram os de Galvão, o desmatamento em abril foi o maior em dez anos e a destruição da Mata Atlântica também só aumenta. Aliás, com o ministro Ricardo Salles aproveitando a “distração” com a pandemia para passar boiadas, as coisas podem piorar muito.

Assim, dados científicos de Saúde, Ambiente e Educação não valem. Bolsonaro não quer, nem tem paciência, para estudos sobre temas nacionais e estratégia. Ao acusá-lo de querer interferência política na PF e acesso direto aos relatórios de inteligência, o ex-ministro Sérgio Moro se refere a dados que possam ter uso político contra familiares e aliados, como “10 a 12 deputados do PSL”, ou de espionagem contra adversários. (Na mesma cesta, podem estar o Coaf e a Receita.)

Ah! Na segunda, o presidente criticou as posições de Moro contra o aumento de posse e porte de armas e a favor de medidas duras contra contaminados pela covid-19 que pusessem pessoas em risco deliberadamente. Nos dois casos, Moro se pautou em dados científicos e estatísticas. Mas errou. Não era inteligência que o chefe esperava dele, da PF, da Abin…


Folha de S. Paulo: 'É preciso seguir o caminho do dinheiro', diz o autor de projeto sobre fake News

Texto de Alessandro Vieira quer enquadrar financiadores de redes de robôs nas leis de organização criminosa e de lavagem de dinheiro

Patrícia Campos Mello | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Se o projeto de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) virar lei, pessoas que financiam redes de robôs ou contas falsas que cometem crimes como difamação em redes sociais serão enquadradas nas leis de organização criminosa (12.850/2013) e de lavagem de dinheiro (9.613/1998), que preveem penas entre 3 e 10 anos de prisão.
“É preciso seguir o caminho do dinheiro para fazer cessar a atividade das organizações criminosas que atuam nessa seara”, diz Vieira.

A versão do projeto que deve ser votado no Senado nesta terça-feira (2), também de autoria dos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), acolheu recomendações da sociedade civil e retirou uma das partes mais polêmicas do texto: a responsabilidade das plataformas, com auxílio de checadores de fatos, de identificar e rotular desinformação.
Segundo especialistas, o conceito era vago e poderia levar as plataformas, para não correr riscos, a rotular também conteúdos legítimos como fake news.

Esse tema será analisado por uma comissão coordenada pelo Comitê Gestor da Internet. Em contrapartida, os legisladores reforçaram a parte do texto que prevê responsabilização de integrantes e financiadores de redes de robôs.
“É importante entender que esse projeto de lei não vai atingir fatos passados, ele não vai retroagir para o que aconteceu em 2018, ou mesmo o que está acontecendo hoje com o 'gabinete do ódio'. Mas, daqui para frente, pessoas serão responsabilizadas”, diz Vieira.

O projeto prevê que o financiamento de rede de robôs e contas inautênticas que cometem crimes seja enquadrado nas leis de organizações terroristas e de lavagem de dinheiro. Por quê?

Foi uma sugestão de várias fontes, mas principalmente do Ronaldo Lemos [do Instituto de Tecnologia e Sociedade]. É preciso seguir o caminho do dinheiro para fazer cessar as atividades das organizações criminosas que atuam nessa seara.
Então ali a gente faz a inclusão dessa atividade na modalidade de organização criminosa e a gente amplia o tipo da lavagem de dinheiro, para também abraçar a ocultação de recursos utilizada para disseminação ou criação de conteúdo falso ou desinformativo.
O trabalho de identificação dessas pessoas fica facilitado, porque a lei de organização criminosa abre algumas ferramentas de investigação a mais, pode ter delação premiada, o que seria muito oportuno. A gente consegue identificar essas organizações e puni-las nas duas pontas.
É importante entender que esse projeto de lei não vai atingir fatos passados, ele não vai retroagir para o que aconteceu em 2018, ou mesmo o que está acontecendo hoje com o "gabinete do ódio". Mas, daqui para frente, pessoas serão responsabilizadas. Há uma grande gama de possibilidades de crimes, desde periclitar saúde pública até crimes contra honra e eleitorais.

Vocês acolheram recomendações da Coalizão Direitos na Rede e retiraram toda a parte que conceituava desinformação e determinava que as plataformas ficavam responsáveis por identificar e rotular desinformação, com ajuda dos checadores de fato. Havia um risco de perda de liberdade de expressão?
A gente tem convicção de que o caminho que estávamos sugerindo era de proteção à liberdade de expressão, porque na realidade a mediação de conteúdo já é feita pelas empresas. A gente trazia isso mais para esfera pública. Mas a gente tinha resistência não só da coalizão, mas também de grupos de direita. Todos se viam como perseguidos, se colocam como potenciais vítimas.
Conservadores acham que não vão mais poder veicular suas mensagens, e as minorias também. Então optamos por jogar esse debate mais pra frente, para ter mais amplitude e deixar amadurecer, e conseguir aproveitar a força política do momento para conseguir aprovar coisas que são importantíssimas.
Se eu consigo tirar contas inautênticas e falsas e redes de robôs não declaradas, eu já enfraqueço muito as estratégias de divulgação de mentiras. As alterações que sugerimos para o WhatsApp vão permitir a identificação da origem de conteúdo de vídeos, mensagens ofensivas, sem ferir criptografia.

Mas isso já não faz parte do Marco Civil da Internet? Eles têm que guardar por seis meses os metadados e fornecer em caso de ordem judicial.
Os dados não mostram a origem com clareza, tentamos deixar isso mais esmiuçado, para podermos recompor toda a cadeia. O cara pode continuar fazendo a bobagem dele, mas agora fica muito mais viável identificá-lo e puni-lo se estiver cometendo um crime. É preciso ter condições de fazer a reconstituição dessa cadeia, para rastrear de onde veio, é possível fazer isso sem nenhum risco para criptografia ou privacidade.

Dá para fazer? Algumas empresas alegam que tecnicamente é impossível.
O Telegram já faz. A cada vez que repassar algo, acrescenta uma linha na assinatura daquele arquivo, são metadados, não é conteúdo.

As plataformas terão que remover as contas inautênticas, em que pessoas tentam se passar por terceiros?
Sim, a plataforma tem que remover. Hoje participei de um webinar em que havia uma representante do Facebook. Ela contou que eles derrubaram só neste ano 1,2 bilhão de contas falsas e inautênticas. Eles já têm tecnologia para isso, já sabem fazer isso. A gente só transforma em obrigação, você não pode ter contas falsas, elas estimulam a prática de crimes. Você pode ter pseudônimo, desde que por ordem judicial você possa identificar essa pessoa.

A legislação conseguiu unir bolsonaristas, plataformas de internet e parte da sociedade civil em suas críticas. Para os bolsonaristas, trata-se de “censura” e “coisa de comunista”. Para as plataformas, a lei altera o Marco Civil da Internet porque, em última instância, responsabiliza as empresas por conteúdo produzido por terceiros e inviabiliza o modelo de negócio das "big tech". E para a sociedade civil, a lei pode corroer a liberdade de expressão no país. Como o senhor reage?
Neste formato atual, restringimos definição de conta inautêntica, retiramos qualquer menção a conteúdo, para não cair nessa armadilha de discussão de conteúdo. Isso está superado. Isso ocorreu porque existe uma falsa percepção de que existe liberdade na rede.
Hoje as plataformas já têm toda uma política de moderação de conteúdo, em que eles escolhem, muitas vezes por motivos econômicos, o que vai ter mais ou menos alcance, e o que pode ou não permanecer na rede. Não é como falar na praça pública, é como contratar alguém para fazer com que o que você fala chegue até as pessoas.
É um projeto que foi vítima de uma campanha de desinformação violenta, com informações absolutamente falsas, de que estamos censurando conteúdo, não existe nada nesse sentido. Nessa versão que apresentamos ao senador Angelo Coronel, que será o relator, a gente deixa taxativo um artigo só para isso, para dizer que nenhuma derrubada de conteúdo vai acontecer com base exclusivamente nessa lei.

A legislação determina que as plataformas identifiquem e removam contas inautênticas. Quem vai fiscalizar isso?
Vamos ter relatórios de transparência que serão apresentados e pesquisadores independentes trabalhando com isso. E o Ministério Público também poderia adotar políticas para fiscalizar. Além disso, a própria plataforma e terceiros, temos na rede vários sistemas, como o BotSentinel, que ficam buscando essas contas inautênticas e denunciando. E o senador Angelo Coronel vai incluir dispositivos da área penal no texto. Nós concordamos que é preciso aumentar a pena para quem produz conteúdo falso.

Mas aí vai cair na mesma armadilha, quem é que determina o que é conteúdo falso?
Eu respondi a isso em uma dessas lives, disse que, na democracia, quem diz o que é verdade é o Judiciário. Isso virou meme, foi distorcido. Estou dizendo que a democracia tem uma instituição, o Judiciário, e ela que aprecia litígios.

No mundo, em vários países que adotaram leis de fake news, a legislação acabou sendo usada para restringir liberdade de expressão e jornalismo crítico. Como garantir que isso não vai acontecer?
No texto, fizemos uma ressalva sobre conteúdo intelectual, cultural, satírico. Não temos nenhuma pretensão de interferir na atividade jornalística, isso não está em nenhum ponto da lei. Se, na tramitação da lei, houver excessos, vamos suprimir. É muito importante que o Brasil avance, tenha uma legislação sólida nesse tema, mas não podemos cair no autoritarismo.

Por que aprovar essa lei agora e por que tanta pressa, insistir em uma tramitação tão acelerada, sem tempo para debate público?
Porque a gente tem uma janela de oportunidade. Temos esse debate público mundial desde ao menos o plebiscito do brexit e as eleições americanas de 2016, e ainda não temos uma resposta legislativa consistente.
Há constatação clara de que as fake news prejudicam a saúde pública durante uma pandemia, e temos a clareza de que a persistência dessa estrutura automatizada de disseminação de desinformação prejudica também o processo eleitoral e democrático, e é negativo para os dois lados. É ilusão achar que só um lado usa essa ferramenta suja, os dois lados usam. É importante criar legislação para prevenir, não para os fatos que passaram. Conseguimos chegar a um texto que, em grande parte, é consensual, a gente não pode desperdiçar esse momento. É consenso entre parlamentares.

Qual é a perspectiva de aprovação disso no Senado e na Câmara?
Acho que tem potencial de ser votado rapidamente no Senado. De lá, vai para a Câmara. Lá, talvez tenha dificuldade maior. Mas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já falou algumas vezes que o projeto é importante, tem que ser votado.

A legislação fala na importãncia de transparência no uso de redes sociais por órgãos públicos. Qual foi a inspiração para esse trecho?
Há condutas absolutamente equivocadas hoje, uma confusão do que é esfera privada e o que é esfera pública. Achamos por bem incluir um regramento sóbrio que coloca limites claros. É a mesma premissa: você quer fazer, tudo bem, mas vai assumir a responsabilidade. Não remove conteúdo, só responsabiliza.

As plataformas sugerem educação midiática e checagem de fatos como respostas à desinformação, e afirmam que regulação limitará liberdade de expressão.
As plataformas resistem a ter regulação. Nas plataformas, o importante é ter engajamento, tanto faz se é verdadeiro ou falso, isso não faz diferença para o algoritmo nem para o dinheiro. Pelo contrário, todos os estudos apontam que os conteúdos radicalizados e abusivos engajam mais.
A transparência para conteúdos patrocinados e impulsionados, principalmente políticos, já é feita pelo Facebook, em sua biblioteca de anúncios. Por que incluir na lei?
A gente coloca como uma obrigação, não como uma faculdade. Hoje eles fazem porque querem, e se mostrarem só alguns, ninguém pode cobrar.
Algumas empresas dizem que é impossível banir ou punir conta inautêntica, porque isso implica em violação de privacidade, a pessoa precisa revelar quem é.
A gente está vedando a possibilidade de ter uma conta sem se identificar. Todos precisam se cadastrar e se identificar ao abrir uma conta. Posso por a foto e o nome do meu cachorro, mas a plataforma vai ter a informação. É preciso ter algum caminho para responsabilização.

Twitter e Facebook são multinacionais, como vão cumprir isso?
Já fazem isso em alguns lugares do mundo, adaptam o serviço para a legislação do país.

O projeto é parecido com o decreto do presidente dos EUA, Donald Trump, que acaba com a imunidade das plataformas?
É um pouco isso, traz um pouco de responsabilidade para as plataformas. É inadmissível elas ganharem tanto dinheiro e não terem absolutamente nenhuma responsabilidade.


Pablo Ortellado: Poder impotente

Bolsonaro se apoia em discurso populista de que instituições não o deixam governar

Quem pare para escutar o discurso bolsonarista ouvirá que o ímpeto renovador do presidente está sendo bloqueado pelas instituições e que o voto popular não está sendo respeitado, porque o STF derruba as ações, o Congresso não aprova as medidas provisórias e a imprensa persegue o presidente.

Seria necessário fazer valer a soberania popular, que precisaria se impor sobre as viciadas instituições de representação, ainda que por meio de uma intervenção das Forças Armadas atuando como poder moderador. Para os bolsonaristas não se trataria de ditadura, mas de uma restauração da democracia. O nome técnico deste tipo de discurso é populismo.

Populismo é um termo utilizado para descrever os movimentos políticos que empregam um discurso antielites e buscam mobilizar o povo em conexão direta com um líder forte e carismático contra as instituições de representação.

O populismo no poder, portanto, seria paradoxal, porque ao assumir o Executivo o líder se tornaria o poder constituído contra o qual se opunha.

Para não se descaracterizar enquanto projeto de mobilização e de antagonismo permanente, o populismo no poder adota um discurso no qual se coloca como poder impotente, comprimido e esmagado por instituições corrompidas e envelhecidas que precisam ser derrubadas ou renovadas. O projeto populista não tem fim, porque essas elites escondidas e entranhadas funcionam como um fantasma sempre presente, que impediria o líder de governar.

Foi assim com a Venezuela. Era preciso derrubar a imprensa, então se caçaram as concessões de radiodifusão, se cortou a importação de papel e se construiu um sistema de comunicação oficial. Era preciso limitar o Congresso, então foram redesenhados os distritos eleitorais e se esvaziou o Poder Legislativo, criando uma dualidade com a Assembleia Constituinte; era preciso limitar a Suprema Corte, então se alterou a sua composição.

Quando tudo parecia estar sob controle, se apontaram o poder dos empresários e a ação de forças estrangeiras. A resposta antidemocrática da oposição, que tentou um golpe em 2002, e dos Estados Unidos, que implementaram um embargo em 2019, apenas respaldou o discurso do poder impotente, que precisa perseguir permanentemente esse outro poder oculto, entranhado.

O projeto político que temos no Brasil é desse tipo, guardadas as diferenças ideológicas. Bolsonaro quer não apenas medidas pontuais contra a imprensa, o Congresso e o STF. Estamos enredados em um processo permanente que, se não for interrompido agora, vai nos tragar em uma espiral de destruição.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Hélio Schwartsman: Manifestos e manifestações

Ingrediente que faltava para o impeachment, a população nas ruas, pode estar começando a surgir

As coisas pioraram para o presidente Jair Bolsonaro. O ingrediente que faltava para o impeachment, a população nas ruas, pode estar começando a surgir. Os outros dois, a saber, crimes de responsabilidade e uma megacrise econômica, já estavam presentes e seguem com tendência de alta.

Bolsonaro conseguiu o que parecia impossível, que é unir as torcidas organizadas de clubes com rivalidades ancestrais e histórico de confrontos pela defesa da democracia. Louvo-lhes o gesto cívico, mas, diante de curvas pandêmicas ainda ascendentes, não me parece uma boa ideia que as pessoas vão literalmente para as ruas, quando podem fazê-lo virtualmente, através dos vários manifestos pró-democracia que estão aparecendo e ganhando signatários. Espero que o R0 desses abaixo-assinados seja maior que o da Covid-19.

É importante que a sociedade civil deixe claro que está mobilizada para defender as instituições. O alvo primário do recado é o centrão. Ninguém imagina que os políticos desse grupo pegarão em armas por Bolsonaro. Eles sempre se movem por oportunismo e sabem muito bem que, na hipótese de um autogolpe promovido pelo presidente, se dariam mal. Mas precisam de sinais mais ou menos inequívocos de como andam os humores do eleitorado para deflagrar um eventual processo de debandada.

Outros destinatários incluem chefes de Poderes, que devem sentir-se respaldados para traçar linhas que não podem ser ultrapassadas, e generais do Exército, que talvez precisem de um sacolejo para entender que não vale a pena sacrificar décadas de esforço para melhorar a imagem da instituição a fim de defender um ex-tenente fracassado e insubordinado que só pensa em livrar a cara da família cheia de rolos policiais.

Por falar em polícia, o governador João Doria deveria deixar a Polícia Militar nos quartéis no próximo domingo. As ruas ficam mais seguras sem a tropa engrossando as hostes bolsonaristas.


Ricardo Noblat: Quem paga a conta da campanha de Bolsonaro à reeleição

Ministro da Defesa ateia fogo à própria farda

E no final de outubro de 2022, se resistir até lá na presidência, e caso tenha sido candidato outra vez e reeleito no segundo turno, Jair Bolsonaro dirá que a sua campanha foi a mais barata de todas. Disse a mesma coisa ao se eleger presidente pela primeira vez.

Também pudera se disser. Nem Fernando Henrique Cardoso, nem Lula que o sucedeu, nem Dilma Rousseff se comportaram como candidatos à reeleição desde o primeiro dia em que puseram os pés no Palácio do Planalto. Só Bolsonaro, e ostensivamente.

Ele se recusa a descer do palanque desde que levou a facada em Juiz de Fora. Recuperou-se da facada em cima de um palanque virtual. Por falta de preparo e de gosto para as atividades do cargo, não governa. É candidato a não governar pela segunda vez.

Como tal, usa todo o aparelho estatal ao seu alcance para realizar o único objetivo que de fato o atrai. E ao fazê-lo, abusa do poder que lhe foi concedido. Quem paga a conta? Quem paga literalmente a conta? Os contribuintes que pagam impostos.

Quanto custa aos cofres públicos cada saída de Bolsonaro para tomar cafezinho e confraternizar com devotos nos arredores de Brasília? Cada saída mobiliza um grande contingente de seguranças, de carros e de outros equipamentos visíveis e ocultos.

No último domingo, para vencer os quatro quilômetros que separam os palácios da Alvorada e do Planalto, dois helicópteros da Força Aérea Brasileira foram postos à sua disposição. Ele dispensou o primeiro porque era completamente fechado. Quem o notaria?

Providenciou-se o segundo, com uma saída lateral que poderia ser escancarada, como foi, para que ele, do alto, pudesse ser visto e acenar para algumas centenas de bolsonaristas reunidos na Esplanada dos Ministérios. O Messias que vem do céu!

Uma vez na terra, depois de 20 minutos de cumprimentos aos manifestantes que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e uma nova intervenção militar no país, montou em um cavalo da Polícia Militar e cavalgou para ser filmado. Quase perdeu as rédeas do animal.

Quanto custou tudo isso? A despesa será debitada no cartão de crédito da presidência da República, mas jamais será conhecida. São despesas consideradas secretas. Se reveladas, poderiam pôr em risco a segurança do presidente. É isso o que dizem os áulicos.

Ao seu lado no helicóptero estava o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa. Não seria relevante monetizar o custo do passeio do general. Sua presença em um ato de apoio ao presidente candidato implica em custo político – e esse simplesmente não tem preço.

Está nos manuais: compete ao ministro da Defesa exercer a direção superior das Forças Armadas. Exército, Marinha e Aeronáutica tem seus comandantes. Mas eles se reportam ao general Azedo e Silva que, por sua vez, se reporta ao presidente da República.

Quantas vezes Bolsonaro já não proclamou que as Forças Armadas o apoiam? Ao exibir-se com o ministro que as dirige, em manifestação de cunho político e eleitoral, ele passa a mensagem de que conta com o apoio dos militares para governar e se reeleger.

Correu a informação de que Azevedo e Silva pegara carona no helicóptero de Bolsonaro para ir para casa. Como a desculpa soou absurda, o Ministério da Defesa informou que o general aproveitou o sobrevoo para observar as condições de segurança da Esplanada.

O Poder e a Mentira são indissociáveis. Especialmente neste governo onde um presidente tosco é flagrado mentindo toscamente quase todo dia. No passado, Bolsonaro emporcalhou a farda de soldado. Hoje, emporcalha a farda dos generais que se deixam emporcalhar.

Azevedo e Silva foi obrigado por seus companheiros de organização a emitir nos últimos 40 dias três notas oficiais para explicar o que fez ou o que deixou de fazer, o que disse ou o que quis dizer. Não será surpresa se mais uma nota vier por aí.

Cadeia para Sara Winter, a militante neonazista

Justiça fecha os olhos

O que falta fazer ou dizer para ser presa Sara Winter, a bolsonarista neonazista financiada ainda não se sabe por quem, protegida é de se imaginar por quem, que ameaça a vida de ministros do Supremo Tribunal Federal, marcha carregando tochas acesas sobre o prédio do tribunal e, intimada a depor, se recusa a ir?

Na última sexta-feira, a Procuradoria-Geral da República pediu sua prisão preventiva ao Ministério Público Federal em Brasília. O procurador Frederick Lustosa de Melo ainda não deu andamento ao pedido. Winter deverá depor esta tarde na Polícia Federal. Em vídeo postado, ontem, nas redes sociais, avisou que não irá.

Ela está na lista de alvos do inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes. Na semana passada, agentes federais foram à sua casa, em Brasília, atrás de documentos, celulares e computadores. A ativista reagiu por meio de um vídeo onde afirmou:

– Me aguarde, sr. Alexandre de Moraes. Nunca mais vai ter paz na sua vida. Descobrir os lugares que o senhor frequenta. Vamos infernizar sua vida, até o senhor pedir para sair. Hoje o senhor tomou a pior decisão da sua vida.

Sara lidera um grupo de homens armados que montou um acampamento na Esplanada dos Ministérios. Por duas vezes, o Ministério Público do Distrito Federal pediu o fim do acampamento. Por duas vezes, a Justiça do Distrito Federal negou, alegando que o caso deve ser analisado pela Justiça criminal.


Carlos Andreazza: A democracia infantil

O Brasil, sob o norte da mentalidade autoritária, é refém do tribalismo

Receio que nos tenhamos acostumado, cada um com seus ressentimentos, a que democracia seja medir-se nas praças com o adversário; com o inimigo — porque a gramática é de guerra. Nesses termos, quem poderá mais? Ou melhor: quem se beneficiará, afinal, de um embate cujo produto só pode ser a conturbação?

Receio que nos tenhamos tornado adictos da adrenalina própria à instabilidade, parasitas da depressão política que se aprofunda e traga o país. Jair Bolsonaro é a intensificação da instabilidade — o vício na instabilidade também sendo vício nele.

O Brasil é país doente; doença da qual Bolsonaro, presidente eleito, é a mais alta febre. Vamos para a briga de rua de modo a vencer uma convulsão? É essa a ideia? Valer-se do vocabulário da rinha para enfrentar quem monopoliza o dicionário da guerra?

Partir ao confronto, físico, contra quem se alimenta da radicalização?

Desde há muito denuncio o investimento bolsonarista na forja de movimentos plebiscitários para pressão — para intimidação. As facções têm agenda clara — que costura intervenção militar e os fechamentos do Congresso e do Supremo. Desafiá-los no mesmo tom, no mesmo chão, será legitimar a linguagem beligerante e admitir como terreno o dos tacos, que é o mesmo das bombas, que é o mesmo da desobediência civil — que é o mesmo do estado de sítio. Há quem só espere uma oportunidade.

Fora dos marcos republicanos só prosperam aqueles cujo projeto de poder dependa do esvaziamento — da corrosão do caráter — das instituições.

O espírito do tempo é lavajatista, jacobinista — e que não pensem os que desprezam a figura do justiceiro Moro e o papel dos dallagnols de Curitiba estarem imunes à doença. A doença: a da justiça com as próprias mãos. O zeitgeist é o do justiçamento — produto de uma sociedade que não acredita em sua institucionalidade, a qual aceita atalhar, esgarçar, se para que triunfem os propósitos nobres que, ora, todos temos.

Somos todos democratas, todos bem-intencionados. Certo? Aqueles patriotas, vestidos de intervenção militar, que bradam pelo fechamento do STF — declaram-se democratas e de bem — e os valentes que os combatem, aquelas falanges de torcidas uniformizadas de clubes futebol que marcharam contra o fascismo, com as tantas mortes que já causaram e com as tantas ligações com organizações criminosas que têm; também se dizem democratas e gente boa.

Quem poderá mais, entre esses virtuosos?

O Brasil — sob o norte da mentalidade autoritária — é refém do tribalismo; o próprio paraíso de um autocrata. O paraíso do autocrata — nesta altura, depois de cavalgar pela esplanada como um Newton Cruz, feliz da vida: a descrença nos meios institucionais, descrença que o elegeu, compartilhada com os que, pelas próprias mãos, desejam derrubá-lo. Bolsonaro agradece.

O sonho do autocrata: que grupos em defesa da democracia saiam às ruas para arrostar o fascismo. Não é belo, corajoso? O mundo real, contudo, pergunta: qual é a agenda? É só a sectária, da força pela força, para dar vazão ao revanchismo e ir à forra na pancada, ou se pleiteia, por exemplo, o impeachment do presidente? Qual a agenda?

Recordemos que, expressando-se a rojões, gente sob o mesmo impulso democrático — certamente antifascista — matou o cinegrafista Santiago Andrade em 2013. Qual o projeto? Porque, sem demanda institucional, será só anarquia.

Lembremos que os que ora chamam Bolsonaro de fascista são os mesmos que de fascista chamavam Fernando Henrique Cardoso. Não têm credibilidade. Tampouco a musculatura policial. E não se franqueia a pista de um baile autoritário se não se quer que o autoritário que comanda o guarda da esquina dance.

Nota importante: o apoio fardado ao bolsonarismo — já escrevi nesta coluna antes — não estará nas Forças Armadas, mas em influentes setores das polícias estaduais, como aqueles que se amotinaram no Ceará. Houve amostras — no domingo, em São Paulo — de como podem se manifestar seletivamente entre democratas.

Que não se pense que o que se viu no último fim de semana, especialmente na Avenida Paulista, enfraqueça Bolsonaro. Bem ao contrário: fortalece-o. Uma blitz de homens de preto — vestidos de revolução — para reação e choque. Ele agradece, o reacionário, também ele revolucionário — também ele democrata, segundo Paulo Guedes. A quem aquilo atrai? Aquilo atrai ou repele? Aquilo atrai o cidadão — o cidadão de saco cheio das crises geradas pelo presidente — ou o faz lembrar de por que votou no sujeito? Ou a ideia não seria atrair o cidadão que não é militante do PCB? Qual a agenda?

Ah, sim. Não interessa quem atacou primeiro. Interessa que houve confusão; filme já tanto visto e que ativa — revitaliza — o discurso da ordem. Bolsonaro agradece. Os que — em nome da democracia — vão para o conflito, para a porrada, para a quebradeira, entregam o que busca o bolsonarismo. O caos.


Bernardo Mello Franco: Minneapolis é aqui

O assassinato de George Floyd por um policial branco incendiou as ruas americanas. No Brasil, os negros somam 75% das vítimas da polícia

A morte de George Floyd incendiou as ruas dos Estados Unidos em plena pandemia. A imagem de um homem negro asfixiado por um policial branco motivou uma onda de protestos contra o racismo. O levante começou em Minneapolis e se espalhou pelas principais cidades americanas.

No Rio, um ato lembrou o estudante João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos. O adolescente foi morto há duas semanas durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Estava na casa dos tios quando levou um tiro de fuzil nas costas.

A cada 100 pessoas mortas pela polícia no Brasil, 75 são negras, informa o Atlas da Violência. “A brutalidade e o autoritarismo caminham junto com o racismo”, diz Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil. Ela acusa as instituições de leniência com a discriminação racial. “A polícia atira, mata e não há nenhuma reparação às famílias”, critica.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, ressalta que a polícia mata mais negros nos EUA e no Brasil. “A diferença é a escala. Aqui a polícia mata muito mais”, observa.

Ela lembra que a chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco. “Esses números são a face mais evidente da desigualdade racial no país”, afirma.

A manifestação de domingo pedia paz, mas terminou em violência. A PM atirou bombas de gás para dispersar os ativistas. A imagem de um policial apontando o fuzil para um rapaz descalço e desarmado ajuda a ilustrar os motivos do protesto.

“Foi uma cena inadmissível. A polícia que mata negros na favela também ameaça nos matar quando protestamos contra isso”, diz o ativista Rene Silva, morador do Alemão e fundador do jornal Voz das Comunidades.

A diretora da Anistia Internacional ressalta que o racismo sempre esteve entre nós, mas parece ganhar espaço na cena política. No sábado, bolsonaristas marcharam com tochas e máscaras em Brasília. A performance lembrou a Ku Klux Klan, grupo supremacista branco que apoiou a eleição de Donald Trump.


Foto: Beto Barata\PR

José Casado: Investigação no Planalto

O inquérito do Supremo sobre a difusão de informações falsas chegou à antessala de Jair Bolsonaro. Na investigação constam três integrantes da Assessoria Especial da Presidência: Tercio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz. O trio opera com um dos filhos do presidente, Carlos Bolsonaro, vereador carioca.

Tomaz e Gomes foram pagos pela Câmara do Rio na campanha de 2018. No Planalto, suas agendas oscilam entre o lacônico “Despacho interno” e o sucinto “Sem compromisso”. Diniz ganhou um cargo de 27 palavras: “Assessor no Departamento de Relações com a Imprensa Internacional da Secretaria de Imprensa da Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência da República”.

A rede de fraudes se estende por Rio, São Paulo, Minas, Ceará, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. É composta por sites financiados com anúncios públicos e privados. Tem contribuintes como Luciano Hang, da Havan (141 lojas e vendas de R$ 10,7 bilhões), e Edgard Gomes Corona, da SmartFit (850 salas de ginástica e receita de R$ 2,4 bilhões).

Preocupado, Jair Bolsonaro amplia sua malha de coleta de informações, à margem dos 42 serviços regulares de Inteligência militar, policial e financeira. Decidiu “aprimorar” a cooperação dos núcleos (P-2) da Polícia Militar, fragmentados com a politização dessas forças.

Na quinta-feira, em edição extra do Diário Oficial, expandiu a seção de Inteligência do Ministério da Justiça. Fez isso 48 horas após a ação do Supremo contra 25 suspeitos — entre eles, empresários, parlamentares e o ex-deputado Roberto Jefferson.

O processo de agregação da espionagem das PMs foi formatado por André Mendonça, que se qualifica como “servo” de Bolsonaro na Justiça. Ele explora brechas da lei numa área sem fiscalização do Congresso.

Até existe uma comissão de controle. Ela é comandada pelo senador Nelson Trad (PSD-MS) e por outro filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Houve uma única reunião em 480 dias. Durou 9 minutos e 54 segundos.