Day: maio 8, 2020

Monica de Bolle: Por que precisamos de bancos?

O sistema bancário brasileiro já é muito concentrado. Na ausência de um Banco Central atuante em meio a uma crise de magnitude inédita, o risco de concentração aumenta brutalmente

Bancos. Todo mundo tem uma opinião formada sobre os bancos. Geralmente, essa opinião não é das melhores. “Os bancos têm lucros excessivos e não deveriam receber dinheiro do Banco Central.” “Os bancos esfolam as pessoas; por que estamos dando dinheiro para eles?” Muitos bancos têm, sim, lucros excessivos. Muitos bancos praticam, sim, spreads bancários elevados, ou seja, trabalham com uma diferença grande entre a taxa sobre o passivo (depósitos) e os ativos (empréstimos). Essas são distorções existentes no mercado bancário brasileiro, que sofre de elevado grau de concentração. Contudo, elas não justificam afirmar que o Banco Central não deve exercer seu papel de garantidor da estabilidade financeira, sobretudo em momento de crise sem precedentes, como o atual.

Dia desses resolvi dar, em meu canal do YouTube, uma explicação técnica sobre o papel dos bancos. O tema é árido e não há como torná-lo sedutor, aprazível, palatável, ainda que possa dar gosto entendê-lo. É verdade que, ao contrário do papel, o vídeo permite usar recursos visuais para tornar o tema mais atraente. Por exemplo, é possível recorrer a desenhos, em meu caso manuais, para explicar um conteúdo teórico denso. Mas tentarei descrever o cerne do argumento teórico aqui.

“Considerem uma situação em que não há bancos”

Há alguém — um empreendedor — com uma ideia boa na cabeça, mas sem dinheiro na mão. Esse empreendedor quer, por exemplo, fabricar respiradores mecânicos em escala e precisa de um empréstimo para isso. Evidentemente, o projeto trará ganhos para a sociedade. Sem um banco, esse empreendedor dificilmente conseguirá obter junto às pessoas o volume de recursos de que necessita. Por quê? Porque há o que chamamos de assimetria de informação: o empreendedor sabe mais sobre a chance de sucesso de seu projeto do que o punhado de pessoas que o venha financiar diretamente. Há outro problema: o projeto é de longa maturação. Isso significa que quem decidir financiar o empreendedor terá de deixar o projeto chegar ao final para receber o retorno esperado. Portanto, o financiamento direto exigiria das pessoas a capacidade de nada receber por um tempo maior do que elas talvez possuam. E se, por exemplo, ficarem desempregadas antes de o projeto se concretizar? Uma vez investido o dinheiro, não há como o empreendedor devolvê-lo — a isso damos o nome de “iliquidez”. O projeto, em suma, é ilíquido.

Entra o banco. O banco recolhe depósitos de todos, mas guarda em caixa uma fração do que coleta para aquelas pessoas que possam precisar de dinheiro antes da fábrica de respiradores operar a pleno vapor. O restante, o banco empresta ao empreendedor. Vejam o papel social duplo que o banco cumpriu: para a sociedade, agora haverá uma nova fábrica de respiradores. Para os depositantes que podem esperar, haverá uma renda em forma de retorno que talvez não houvesse. A existência do banco permitiu que o investimento fosse feito, gerando ganhos para a economia. Sim, esse exemplo é reducionista, mas capta a essência do papel do banco.

Agora vejam: por construção, o banco nunca tem em caixa todo o estoque de depósitos nele depositado, já que empresta uma parte. Essa parte não tem liquidez. Se ocorrer algo na economia que faça todos acreditarem que o banco não será capaz de ressarcir os depósitos antes de terminar o prazo de maturação do investimento, haverá uma corrida bancária. Por definição, algumas pessoas receberão seu dinheiro de volta; outras, não. É para evitar isso que o Banco Central faz o que chamamos de “injeções de liquidez”, termo que, em bom português, significa “dar dinheiro para os bancos”. Se o Banco Central nada fizer, perdem os bancos, sim. Mas sabem quem mais perde? O pequeno depositante que havia colocado lá seu dinheiro. Ou seja, perdem todos.

Há mais. O papel do Banco Central nessas horas é sistêmico, isto é, ele tem de preservar o ecossistema bancário, que inclui bancos grandes, pequenos e médios. Como escrevi no início do artigo, o sistema bancário brasileiro já é muito concentrado. Na ausência de um Banco Central atuante em meio a uma crise de magnitude inédita, o risco de concentração aumenta brutalmente. Afinal, as primeiras instituições a quebrar serão as pequenas e médias. Se a concentração bancária aumentar, adivinhem o que acontece? Os lucros bancários pós-crise serão ainda maiores, os spreads ainda mais elevados, as distorções ainda mais severas.

Portanto, é um argumento falacioso aquele que vê na superfície uma apelação tentadora, sedutora, até. Em se tratando de bancos, não há sedução possível. Fujam de tudo que lhes pareça óbvio demais.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Guilherme Amado: O ódio como método

Podia-se pensar que uma ameaça autoritária não chegaria aonde chegou, mas agora vê-se que ela continuava ali, submersa

A escalada do autoritarismo de Bolsonaro tem sido num ritmo tal que pode fazer parecer, ao menos aos que acreditaram numa equivalência nesse quesito entre ele e o PT, que tudo isso é novo. O ódio sempre foi método para Bolsonaro. Foi por meio dele que se destacou na multidão, indo a programas de TV popularescos. Foi por meio do ódio que conseguiu se diferenciar de Ciro, Alckmin, Amoêdo, Marina e de outros que batiam em Lula, mas não tanto quanto ele, não da maneira como fazia, de forma que transmitisse a quem estava exaurido, espumando como ele, que só Bolsonaro poderia derrotar Fernando Haddad. Tem sido por meio do ódio que o presidente tem trazido o país até aqui.

Nos 16 meses de governo, não houve uma semana em que o presidente não expressou sua raiva. Um adversário, uma minoria, um antigo aliado, um artista, um jornalista. Odiar é sua profissão de fé. E isso não brota do nada, como se em geração espontânea. O ódio é cultivado. Bolsonaro é consequência de um ódio coletivo, ruminado nos anos do petismo e de seus erros atrozes que fizeram aumentar a ira dos que sempre rejeitaram a esquerda e despertar, entre os que apoiaram Lula, o rancor por terem sido enganados. Mas o presidente também é causa. Ao perceber que algum tema pode dividir mais o país, atiçar o fígado de seus apoiadores, pinça-o e, com sua tropa digital, mobiliza parte do país em torno daquilo — da cloroquina ao golden shower.

A Editora Âyiné lançou em abril no Brasil o livro Contra o ódio, um dos mais prestigiados da filósofa alemã Carolin Emcke, premiada em 2016 na Feira de Frankfurt com o Prêmio da Paz, como uma forma de apelo à tolerância. A Alemanha descrita por Emcke quatro anos atrás muito se parecia com o Brasil de então e mais ainda com o de agora. “Algo mudou na Alemanha. Agora se odeia de forma aberta e descarada. Às vezes com um sorriso no rosto e às vezes não, mas na maioria das vezes sem nenhum escrúpulo. As cartas de ameaças, que sempre existiram, hoje são assinadas com nome e endereço. Delírios violentos e manifestações de ódio expressos na internet se escondem cada vez menos atrás de um pseudônimo”, escreveu a intelectual, uma das mais importantes hoje na Europa, surpreendendo-se com o renascimento do ódio num país que deu aula sobre o assunto.

O mesmo vale para o Brasil. Podia-se pensar que uma ameaça autoritária não chegaria aonde chegou, mas agora vê-se que ela continuava ali, submersa. Aliás, o ódio não é uma exclusividade da direita, nem de ditadores. Lula também incitou o ódio, em grau infinitamente menor do que Bolsonaro, e lucrou eleitoralmente muito mais quando foi mais paz e amor do que raivoso. Mas nenhuma comparação é justa nesse ponto. Não houve governante recente no Brasil que tenha feito do ódio seu modus operandi, como o atual.

As redes sociais do presidente e de seus filhos — Flávio Bolsonaro menos, registre-se — destilam raiva. Entre obsessões, teorias da conspiração ou simples implicâncias com o objetivo de debochar, difamar, humilhar, eles têm alvos permanentes e circunstanciais. Carlos Bolsonaro posta quase diariamente uma foto de João Doria dançando com uma calça colada, querendo insinuar sabe-se lá o quê. O vídeo gera diariamente ondas de comentários homofóbicos. A jornalista Patrícia Campos Mello, que foi à Justiça para processar Jair Bolsonaro pela ofensa de tê-la chamado de prostituta, foi perseguida por bolsonaristas incitados pelas ofensas do presidente. O mesmo ocorreu durante anos com Maria do Rosário e Jean Wyllys. Goste-se ou não dos dois, Bolsonaro e seus comentários odiosos transformaram a vida de ambos em um inferno. Jean Wyllys perdeu sua liberdade. Maria do Rosário até hoje sofre constrangimentos públicos e é vítima na internet de difamação devido ao ódio engendrado.

Criou-se uma atmosfera de repúdio ao respeito pelo outro. A coisa virou de cabeça para baixo. Parece que quem desrespeita os outros, vocifera insultos e preconceitos, deve se orgulhar.

“Quem sente ódio passa uma segurança muito maior hoje do que quem defende a tolerância e o respeito. Bolsonaro não titubeia em sua raiva”

E mostrou isso na semana passada. Na terça-feira 5, a empresária Marluce Gomes, uma das que agrediu os enfermeiros na Praça dos Três Poderes, foi à porta do Palácio da Alvorada para assistir ao stand-up de horror que o presidente faz todos os dias. A empresária é a que, nas imagens da agressão aos enfermeiros, aparece com uma bandeira do Brasil como capa de super-heroína. Naquele dia, já sabendo que é formalmente investigada pelo Ministério Público do Distrito Federal, foi ao palácio pedir apoio de Bolsonaro.

“Se houve agressão, foi verbal, coisa que eles fazem o tempo todo conosco. Houve zero agressão”, disse o presidente a ela.

Não é possível saber a que ato em específico Bolsonaro fazia referência ao falar na agressão. Entre 1º e 3 de maio, profissionais de diferentes áreas apanharam todos os dias de bolsonaristas.

No Dia do Trabalho, uma enfermeira foi sacudida por um irado apoiador do presidente. No sábado 2, em frente à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, um cinegrafista de uma afiliada da TV Record foi empurrado. No domingo, as vítimas foram os jornalistas Dida Sampaio, Orlando Brito, Fábio Pupo, Nivaldo Carboni e o motorista Marcos Pereira, integrante da equipe de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Sampaio levou um soco no estômago. Brito, de 70 anos, foi empurrado.

Bolsonaro, na mesma conversa com os apoiadores, à porta do palácio, defendeu-se dizendo que não é responsável pelas agressões físicas — à verbal, em sua própria fala, expressou apoio. Mas o presidente tem responsabilidade, sim, na agressão física. Ela é resultado de sua permanente perseguição a de quem dele discorda ou a quem o incomoda.

De novo, sem novidades no front. O acervo de expressões preconceituosas e por vezes criminosas do presidente é vasto, em três décadas vivendo da política. Sempre é bom relembrar, embora tudo tenha sido sempre noticiado.

Contra os gays. “A maioria é fruto do consumo de drogas”, disse em 2014 ao jornal El País. “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”, afirmou, em 2011, à revista Playboy. “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele”, disse, em 2010, à TV Câmara.

Contra os negros. “Fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”, disse, em 2017, numa fala contra quilombolas que o levaria a ser denunciado por racismo no Supremo Tribunal Federal, acusação que foi recusada na Primeira Turma com os votos de Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e, veja só, Alexandre de Moraes.

Contra seus adversários políticos. “Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso”, afirmou, em 1999, mesmo ano desta: “Pau de arara funciona. Sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável também”. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, disse em 2016. Dois anos depois: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”.

Erra quem prega o olho por olho. Serenidade e razão são mais poderosos. Em seu Contra o ódio, Emcke lembra que quem enfrenta o ódio com mais ódio já foi manipulado, aproximando-se daquilo que aqueles que odeiam desejam que a pessoa se torne. “O ódio só pode ser combatido com o que escapa aos que odeiam: observação cuidadosa, diferenciações contínuas e dúvidas sobre si mesmo. Isso requer desmontar o ódio pouco a pouco em todas as suas partes.” Requer racionalidade, fatos, debate inteligente. Sem omissão.

Lima Duarte nesta semana emocionou os brasileiros que tem vísceras, ao falar nisso. O ator de 90 anos homenageou Flávio Migliaccio, o brilhante colega que, aos 85 anos, se matou na segunda-feira 4. Lima lembrou o “hálito putrefato” de 1964, o “bafio terrível de 1968” e, sem dar nome ao miasma do Brasil de 2020, em que o vírus e o ódio se aliam, lembrou Bertolt Brecht e Os fuzis da senhora Carrar, escrita em 1937 em meio à Guerra Civil Espanhola. Teresa Carrar não quer que os filhos sigam para a guerra e tenham o mesmo destino do marido, morto anos antes. Por isso, esconde seus fuzis. Lima, como se cobrasse posicionamento de quem se cala, citou a frase de Pedro Jáqueras, irmão da Senhora Carrar, que ele interpretou no Teatro de Arena: “As pessoas que não querem assumir nenhuma culpa acabam lavando as mãos em bacias de sangue”.


Bernardo Mello Franco: O pior papel de Regina Duarte

Fritada por Bolsonaro, Regina Duarte afaga o chefe, relativiza a tortura e mostra que está disposta a engolir novas humilhações para se manter no governo

Nos últimos dias, o país perdeu os talentos de Rubem Fonseca, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Moraes Moreira, Flávio Migliaccio e Aldir Blanc. A cada morte, ouviu-se um silêncio ensurdecedor de Regina Duarte. Com medo de irritar o chefe, a secretária da Cultura não emitiu uma única nota de pesar. “Eu imaginei assim: será que eu vou ter que virar um obituário?”, ela disse ontem, numa desastrosa entrevista à CNN Brasil.

Depois de um longo sumiço, Regina protagonizou um espetáculo de insensibilidade e constrangimento. A atriz fingiu não saber que está sendo fritada pelo presidente Jair Bolsonaro. “Tava um clima super bom. Ele tava superanimado”, desconversou, sobre a reunião em que ouviu cobranças e quase foi demitida.

Numa aparente tentativa de amaciar o capitão, a secretária cantarolou a marchinha “Pra frente, Brasil”, associada à Copa de 70 e ao ufanismo do governo Medici. “Não era bom quando a gente cantava isso?”, suspirou. O repórter Daniel Adjuto precisou lembrá-la que a ditadura matou centenas de brasileiros.

“Na humanidade, não para de morrer. Quando você fala vida, do outro lado tem morte”, relativizou a atriz, antes de dizer que “sempre houve tortura”. “Não quero arrastar um cemitério de mortes nas minhas costas. Sou leve, sabe? Tô viva!”, festejou, como se falasse do mundo encantado das novelas.

Regina deixou claro que está disposta a engolir novas humilhações para continuar no governo. Apesar de reconhecer o risco de ser demitida “a qualquer momento”, ela disse que não pretende entregar o cargo. “Eu tô adorando estar aqui”, justificou. Segundo a secretária, as críticas à sua inação se limitariam a uma “minoria gritalhona”. “O setor gosta de mim. O setor me ama!”, delirou.

Para trazer a entrevistada de volta à realidade, a CNN exibiu um vídeo com queixas da atriz Maitê Proença. Ao ouvir que os artistas estão “sobrevivendo de vaquinhas”, a secretária se descontrolou e arrancou os fones de ouvido. “Vocês estão desenterrando mortos!”, vociferou, num desrespeito à colega de profissão e aos telespectadores. Depois de abandonar uma carreira de sucesso na TV, Regina desempenha no governo o seu pior papel.


Míriam Leitão: Despropósito constrangedor

Dentro do STF, a interpretação é que a constrangedora reunião imposta pelo presidente ontem foi uma forma de jogar para a Justiça a culpa pela crise

Seria só insólita se não fosse uma absurda pressão de um poder sobre o outro. A marcha para o Supremo foi uma total quebra de protocolo da relação entre os poderes. E tudo aconteceu num rompante. O presidente decidiu no meio da conversa com empresários, o advogado-geral da União, José Levi, ligou para o presidente do STF dizendo que o presidente queria ir para lá com empresários e alguns ministros. E saíram andando pela Praça dos Três Poderes. Os ministros do Supremo entenderam o gesto como uma tentativa do presidente de responsabilizar a Justiça pela crise.

Alguns ministros que acompanharam Bolsonaro admitiram depois que ficaram constrangidos com a cena da qual tiveram que participar. No Supremo, outros ministros discordaram da reunião. O próprio Dias Toffoli não tinha como recusar. A grande questão é o que Bolsonaro queria com o gesto?

– Há várias leituras possíveis. Pode-se entender que ele quis dizer para os empresários que é o Supremo, a Justiça, que não está deixando a retomada da economia em razão de suas decisões. Na verdade, eu acho que é insegurança. O governo não sabe o que fazer e quer passar a batata para o outro lado da praça. Mas sem protocolo, sem coordenação, sem planejamento e sem segurança sanitária coordenada nacionalmente, não é um juiz que vai decidir isso – resume um dos ministros do STF.

O evento causou irritação, porque lembrava uma tentativa de intimidação. E o presidente levou até o filho investigado que já foi beneficiado, ainda que temporariamente, por uma decisão do próprio ministro Dias Toffoli, quando suspendeu os inquéritos com base no Coaf, pedido pela defesa de Flávio.

O que foi falado lá tinha várias incorreções.

– Estão aqui grandes empresários que representam mais de 40% do PIB – disse Bolsonaro.

Errado. A indústria de transformação é 11% do PIB, e eles, da coalizão indústria, dizem que são 40% da indústria. Isso significa 4,5% do PIB. Não é pouco, são setores importantes para a economia, mas a ordem de grandeza é bem diferente da que o presidente falou.

– Economia também é vida – disse o presidente Bolsonaro.

Lá fora, ele repetiu essa ideia:

– Dizem que a economia deixa pra lá, que o importante é a vida. Não é assim não.

O líder do grupo, Marco Polo de Mello Lopes, que representa a siderurgia, disse que a indústria enfrenta duas crises, a da Covid e a da queda da demanda “fruto, evidentemente, das decisões de fechamento por parte dos estados”. Ou seja, tudo o que Bolsonaro gosta de ouvir, a culpa é dos governadores. O presidente da Abrinq, Synésio Batista da Costa, disse que há risco “de morte do CNPJ” e argumentou que “o mundo inteiro está operacional, até a China”. Ora, as retomadas que deram certo esperaram a redução das mortes e das infecções.

Em todo o desarrazoado evento houve várias frases infelizes que pareciam valorizar mais a economia que a vida humana. Evidentemente que a economia é importante, mas a normalidade não pode ser baixada por liminar. O lobby industrial não pode desembarcar em Brasília, juntar-se ao presidente, ao ministro da Economia, a ministros militares e marchar sobre o Supremo para dizer que vai ter um colapso se as atividades não forem liberadas agora. O país está tendo uma média de 600 mortes por dia e já passamos de nove mil mortos, além da nossa vasta subnotificação. Lamentaram a morte do CNPJ, falaram de indústria na UTI, usaram figuras de linguagem de mau gosto. E num gesto inútil, porque o que precisa acontecer para que a economia possa voltar o mais rapidamente possível é o governo governar. Foi isso mais ou menos que o ministro Dias Toffoli disse.

Ter que fazer todo esse carnaval para ouvir de um ministro do Supremo que o governo precisa falar com os governadores e os prefeitos, precisa criar um comitê de crise é vexatório. Isso é o básico, já deveria ter acontecido, a coordenação entre os entes federados e a União no meio de uma pandemia em que cemitérios e hospitais entram em colapso é o mínimo que se esperava desde o primeiro momento.
O ministro Paulo Guedes, com suas contas improváveis, disse coisas como “os Estados Unidos desempregaram 25 milhões de pessoas em cinco semanas e nós preservamos 5,5 milhões de empregos”. E mais uma vez prometeu que “o Brasil vai surpreender o mundo”. Mais do que já está surpreendendo.


Merval Pereira: A marcha da insensatez

Bolsonaro não pode aumentar pressão para fim do isolamento no momento em que o país entra na hora mais crítica da epidemia

A marcha do presidente Bolsonaro, seu ministro da Economia Paulo Guedes, deputados e um grupo de industriais sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) é uma típica ação política de pressão, e ao negar esse intuito o chefe do Gabinete Civil General Braga Neto demonstra que não entende nada do assunto, ou, ao contrário, já deixou de ser um técnico apolítico para se transformar em um político seguidor do presidente.

Comparável a isso apenas na forma, não na gravidade institucional, só a marcha que o então governador Antonio Carlos Magalhães fez sobre o Palácio do Planalto, acompanhado de bancada baiana na Câmara e no Senado, para protestar contra a intervenção no Banco Econômico no governo de Fernando Henrique Cardoso.

O presidente Jair Bolsonaro não pode aumentar a pressão para o fim do isolamento justamente no momento em que o país entra na hora mais crítica da epidemia da Covid-19. Uma pressão indevida em cima do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, que foi constrangido a recebê-lo e sua trupe sem audiência marcada e, inacreditável, transmitindo a reunião ao vivo em suas redes sociais.

Seus companheiros de toga ficaram irritados, evidentemente, com o ultrajante avanço do chefe do Executivo sobre um outro poder, e gostariam que Toffoli tivesse recebido apenas o presidente, deixando a comitiva na sala de estar. Evidentemente, não foi uma visita de cortesia, como disse Paulo Guedes, mas sim uma pressão para impedir que Estados façam lockdown e apertem as barreiras para evitar o aumento do caso de mortes pela Covid-19, que já está chegando a limites dramáticos.

A resposta de Toffoli foi certeira, colocando a coisa em seu devido lugar, ao reafirmar que a Constituição garante a competência de estados e municípios na matéria. O comitê de crise sugerido por ele poderia estar funcionando há muito tempo, se o presidente não fosse tão autoritário.

Colocar na mesma mesa representantes de governadores, prefeitos, industriais, comerciantes, médicos, judiciário, sob a coordenação do ministerio da Saúde para planejar o momento certo e como fazer o relaxamento da quarentena seria uma medida correta num governo normal. Mas nada nesse governo é normal.

Agora mesmo estamos às voltas com a disputa pela divulgação do vídeo da reunião ministerial em que o presidente Bolsonaro teria ameaçado o então ministro Moro de demissão se não concordasse com a troca do diretor-geral da Policia Federal.

O governo, através da AGU, primeiro pediu ao ministro Celso de Mello, relator do processo no STF, que revogasse a exigência, e depois que a fita fosse editada. Tudo indica que teremos uma repetição, como farsa, da crise do então presidente dos Estados Unidos Richard Nixon com a Suprema Corte, na investigação do caso Watergate, em torno da divulgação de áudios das conversas presidenciais em seu gabinete no Salão Oval.

Conforme relato do livro “Os dias finais”, de Bob Woodward e Carl Bernstein, o juiz Thurgood Marshall disse no julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o direito de Nixon de escolher quais documentos liberaria para a Comissão Especial que investigava o caso Watergate: “A Nação estará seriamente ameaçada se o Presidente, qualquer Presidente, puder dizer que a Constituição é o que ele acha que é, e que não existe ninguém, nem mesmo a Corte Suprema, capaz de dizer-lhe que as coisas não são assim”.

O promotor especial Jaworski alegava que ele tinha direito de levar o Presidente aos tribunais sobre a questão do privilégio executivo. O advogado da presidência, St. Clair, defendia que o promotor especial era um funcionário do Executivo e devia obediência ao Presidente.

Os juizes pareciam espantados com a alegação de que quem definiria quais provas deveriam ser dadas era o presidente Nixon. O advogado insistia em que a privacidade do Presidente deveria ser preservada, e citou o caso de uma fictícia conversa entre o Presidente e um indicado para a Suprema Corte.

O juiz Marshal então atacou: “o senhor não acha que seria importante tomar conhecimento de uma conversa em que o presidente estivesse escolhendo um membro da Suprema Corte em troca de dinheiro?”.

Resta saber o que o presidente Bolsonaro e seus ministros palacianos querem esconder do público.


Eliane Brum: O Brasil está matando o Brasil

Governado por um maníaco e com as mortes se multiplicando, o país se torna uma ameaça para os vizinhos

O Brasil abriu a semana com a morte de Aldir Blanc, o poeta que, em uma das canções mais pungentes contra a ditadura militar, escreveu: “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”. Morto aos 73 anos por covid-19, o show de Aldir Blanc não pôde continuar. A esperança já não consegue se equilibrar no Brasil e deslizou para o abismo. O país de Aldir Blanc e todo o seu imaginário foram mortos pelo perverso que se embriaga com a própria boçalidade, espirra e aperta com dedos lambuzados as mãos de seus seguidores. E então diz, diante das milhares de vítimas da pandemia e de sua irresponsabilidade: “E daí?”. A morte do poeta oficializa que o Brasil continental perdeu seu continente ―sua carne, sua alma e seus contornos― e a poesia já não nasce.

Desgovernado por Jair Bolsonaro, o Brasil vai se tornando uma ameaça na América Latina. Já é o terceiro no mundo em número de mortes em 24 horas, mesmo com evidências de enorme subnotificação, e tem apavorados os vizinhos. “Se o Brasil espirra, o Paraguai tem uma pneumonia”, escreveu no Twitter Guillermo Sequera, diretor de vigilância de saúde do Paraguai em 1 de Maio. Naquele dia, 63 dos 67 casos confirmados no país eram de pessoas que tinham vindo do Brasil. Outros países que fazem fronteira com o país já expressaram sua preocupação com a expansão da covid-19 em meio ao aumento exponencial da turbulência política.

O Brasil não só é um gigante com 210 milhões de habitantes, tanto vítimas quanto transmissores potenciais do novo coronavírus, como um gigante liderado pelo vilão número um do mundo em pandemia. No domingo, mais uma vez, Jair Bolsonaro estimulou e compareceu a uma manifestação que clamava pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Os golpistas são minoria no país, mas estimulados pela família presidencial que tenta impedir o avanço das investigações sobre seu envolvimento com as milícias.

Enquanto as imagens de corpos empilhados e covas abertas se sucedem, Bolsonaro e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro ensaiam um duelo sem honra: Moro, o herói decaído, tentando desinfetar sua biografia carregada de possíveis ilegalidades; Bolsonaro tentando sobreviver às revelações de seu ex-superministro, subitamente acometido por um surto de moralidade. Conta com o apoio dos generais encantados em voltar ao poder, algo até há pouco impensável num país em que milhares ainda não encontraram os corpos de seus familiares executados pela ditadura militar de 21 anos.

Ao mesmo tempo, a covid-19 vai devastando a Amazônia e converte cidades como Manaus em necrotério. Enquanto o vírus atinge o corpo dos indígenas, o corpo da floresta é destruído pelas motosserras. Os alertas mostram que o desmatamento da Amazônia explode, os caminhões enfileiram-se nas estradas carregados de cadáveres de gigantes.

Só algumas horas depois de Aldir Blanc, o Brasil perdia também Flávio Migliaccio, um dos atores mais queridos de gerações de brasileiros. Associado à alegria por milhões de fãs, ele se suicidou. Como Aldir Blanc escreveu: “O Brazil não merece o Brasil. O Brazil tá matando o Brasil”.


Coronavírus: Mundo vai para barbárie ou civilização?, pergunta Eduardo Rocha

Em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online, economista aponta cenário pós-pandemia da Covid-19

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O coronavírus abriu nova página da história e desafia o gênero humano a escrevê-la e apontar para onde ir: barbárie ou civilização?”. A pergunta é do economista Eduardo Rocha, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (universidade de Campinas), em artigo que publicou na 18ª edição da revista Política Democrática Online. Apublicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, e pode ser acessada de graça no site da entidade.

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Em seu artigo, Rocha diz que o futuro das relações capital-trabalho dificilmente reeditará o formato delas antes da pandemia, que, segundo ele, nada mais é do que a “expressão superestrutural de relações de produção de um mundo que está ruindo aos olhos de todos”. “É ilusão querer que o mundo ‘volte à normalidade do passado’. Não há volta. Aquele mundo não existe mais. O caminho terminou, a viagem começa, diria Georg Lukács (1885-1971)”, diz ele, referindo-se a uma frase do filósofo e crítico literário.

O economista observa que dar respostas rápidas para salvar vidas e manter a produção e serviços é o principal desafio enfrentado em todos os países por conta da pandemia do coronavírus e da Covid-19. De acordo com ele, a violência meteórica da pandemia global do coronavírus em todo o sistema de reprodução social do gênero humano irrompe nova época histórica, cujo enigma desafia a inteligência a decifrá-la de modo a dar respostas às exigências emergenciais – salvar vidas em risco e manter a produção e serviços –, e futuras da humanidade.

“O infarto econômico mundial reconfirmou ontologicamente o trabalho – este eterno e necessário intercâmbio entre o gênero humano e a natureza para a reprodução da vida – como a força material fundante na gênese e no desenvolvimento do ser social, e revelou a necessidade de nova crítica de toda economia política vigente e a reinvenção das relações capital-trabalho”, escreve Rocha.

No Brasil e no mundo, conforme escreve no artigo da revista Política Democrática Online, surgiram excelentes estudos explicativos sobre as recentes medidas governamentais para atenuar os efeitos recessivos da pandemia que mundialmente coexiste agora com a quarta revolução industrial. “Dois fenômenos que intensificam uma conexão histórico-universal nunca vista, realçam velhas e novas contradições, operam e operarão transformações na totalidade do ser social e demandarão a criação inédita de uma governança global para a construção de uma nova sociabilidade humana ao longo do século XXI”, afirma.

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