Day: maio 7, 2020
Everardo Maciel: Um futuro muito incerto
Sem limites, competição e eficiência se convertem em práticas predatórias, que se voltam contra elas próprias
Kristalina Georgieva, diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), no blog da instituição (20/4/2020), qualificou, com precisão, a pandemia da covid-19 como uma “crise como nenhuma outra”, porque mais complexa, mais incerta e verdadeiramente global.
São abundantes as previsões, com base frequentemente em pífias e macabras estatísticas, sobre os desdobramentos da pandemia e suas consequências econômicas e sociais. Todas elas são, entretanto, meras aproximações da realidade – provavelmente distantes –, porque sobre o vírus, como se disse a respeito da China, não há um verdadeiro conhecimento, mas graus variáveis de ignorância. Por igual razão, são precárias as especulações sobre suas consequências sociais e econômicas. Caminhamos no domínio da incerteza, em que fica evidente a impossibilidade de estimativa e cálculo, como conceituava o economista americano Frank Knight (1885-1972).
A despeito disso, ouso, com consciente risco de errar, explorar questões associadas à crise da pandemia.
Em artigo anterior (Generosidade e responsabilidade em tempos de catástrofe, 2/4/2020), atribuí a crise ao descaso internacional com a segurança planetária, com destaque para a prevenção de pandemias e catástrofes naturais, a atenção com o meio ambiente, a correção das desigualdades entre pessoas e entre países e o enfrentamento do crime transnacional e do planejamento tributário abusivo.
A esse descaso se acrescentam uma crescente abdicação do multilateralismo e esvaziamento das instituições multilaterais, em direção oposta à intensa globalização dos negócios.
Construíram-se, igualmente, elegantes formulações teóricas, não necessariamente verdadeiras, a deificar a eficiência e a competição, em desfavor da equidade e da colaboração, promovendo tendências hegemônicas de países e empresas, nos âmbitos comercial e bélico.
É evidente que eficiência e competição são motores do progresso. Sem limites, contudo, se convertem em práticas predatórias, que terminam por se voltar contra elas próprias.
A partir de agora há dois caminhos: manutenção do atual modelo, com ligeiras correções, ou a procura de um novo equilíbrio, em que sejam consideradas a equidade e a colaboração.
Como bem assinalou, em meio à crise, um grafite no metrô de Hong Kong: “Não podemos voltar ao normal, porque o que era normal era exatamente o problema”.
O curso da História, ainda que indeterminado, é seriamente influenciado por catástrofes e pela intervenção de líderes políticos.
A pandemia, para além de sua gravidade intrínseca, irá promover uma disrupção na história da humanidade, com inevitáveis repercussões no financiamento do setor público, hábitos e padrões de consumo e poupança, atividades turísticas, aeroviárias e desportivas, processos digitais, mobilidade urbana, ordenamento do território, cobertura do seguro social, formas de trabalho, efetividade da saúde pública, ensino a distância, etc.
As repercussões não serão homogêneas, porém serão universais e, talvez, impliquem a construção de um Estado de bem-estar social 4.0.
Infelizmente, no mundo de hoje, a safra de líderes políticos, com raras exceções, é formada por populistas e autoritários delirantes e sem escrúpulos.
Por sua importância no cenário internacional, nunca as próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos foram tão importantes para a humanidade. Se nada mudar naquele país, receio de que ocorrerão outras catástrofes.
Brasil. E o Brasil? Triste trópico. Não bastassem a crise sanitária, enfrentada heroicamente pela nossa precária saúde pública, as imprevisíveis consequências sobre a saúde mental dos que estão submetidos ao isolamento social, a crise fiscal que se abate sobretudo sobre os entes subnacionais, o desemprego e as paralisações da atividade econômica, conseguimos acrescentar, por mais absurdo que seja, uma crise político-institucional, que nada mais é do que fruto de doença política, decorrente de uma combinação de corrupção sistêmica, degradação da representação popular e microrrupturas institucionais. Que os céus nos protejam!
*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
Zeina Latif: Sobre problemas reais e quimeras
A julgar pelas dificuldades de gestão da crise no atual governo, há razões para temer o uso ineficiente dos recursos públicos
O Brasil tem sido um exemplo de fracasso no combate a covid-19 no mundo. Seria simplismo apontar a falta de recursos como a razão para a escalada de óbitos e a saturação do sistema público de saúde. O principal problema é a falha de gestão.
Erramos na saúde e precisamos conter os erros na economia.
A elevação dos gastos e da dívida do governo é inevitável, sendo a decisão mais acertada no momento. No entanto, é crucial que o recurso público seja utilizado de forma justa e eficiente. Que a deterioração fiscal valha a pena, pois ela nos custará caro.
Isso sem contar que, com a economia tão fragilizada, será necessário esforço fiscal ainda maior no futuro para garantir a estabilidade da dívida pública como proporção do PIB. O cumprimento da regra do teto não será suficiente para isso, como aponta a A. C. Pastore e Associados.
A julgar pela baixa qualidade da ação estatal e pelas dificuldades de gestão da crise no atual governo, há razões para temer o uso ineficiente dos recursos públicos. Preocupam os excessos e a má alocação, fora as despesas de natureza permanente.
Por ora, a medida com maior impacto no orçamento é o auxílio emergencial de R$ 600 por 3 meses, que está orçado em R$ 123,7 bilhões – a previsão inicial era R$ 98 bilhões. A tendência é de mais aumento, pela grande demanda e pela possibilidade de extensão do programa. Será necessário calibrá-lo e preparar seu desmonte adiante.
Algumas despesas poderão se tornar permanentes, como as decorrentes da inevitável elevação da inadimplência de empresas e entes da federação que contam com garantia da União em seus empréstimos.
O ineditismo da crise estimula a busca por saídas fáceis.
Alguns analistas propõem que o Banco Central compre títulos públicos para financiar o governo, reduzindo a pressão sobre a dívida pública.
Parece uma defesa de volta ao passado que jogou o País na histórica inflação. Esse é um tema secundário, pois instituições como o FMI computam também os títulos públicos na carteira do BC para cômputo do estoque da dívida do governo.
Há ainda os que defendem levar a taxa de juros do BC a zero para estimular o crédito a famílias e empresas. Não será esse medida, porém, que irá ativar o mercado de crédito, principalmente com o elevado risco de inadimplência neste quadro recessivo e com elevada insegurança jurídica.
A medida teria efeitos colaterais na inflação e na capacidade do Tesouro de se financiar. Seria aprofundada a saída de recursos do País, de residentes e estrangeiros, o que pressionaria a cotação do dólar ainda mais. Também poderia alimentar a compra de ativos reais. O resultado seria inflação mais elevada, cedo ou tarde.
As propostas acima baseiam-se na crença de que não há mais risco inflacionário no Brasil. Porém, não é porque a inflação está baixa – ainda mais agora por conta do isolamento social que compromete o consumo - que podemos rasgar manuais.
Não faz muito tempo que lidamos com o risco de descontrole dos preços. A história nos ensina que recessões não impedem a inflação de subir. O desequilíbrio fiscal sistemático – e este risco aumentou – e voluntarismo na política monetária desancoram a inflação. Esse foi o quadro no governo Dilma.
Outros defendem vender as reservas internacionais para financiar os gastos extras do governo. Uma ilusão. As reservas não foram construídas utilizando sobras orçamentárias, mas sim com a emissão de dívida pública. Vendê-las para gastar implicaria reduzir o seguro que o País tem hoje, sem qualquer benefício em termos de redução de dívida. Deixaria o País mais vulnerável a crises.
Melhor deixar como está, com o BC administrando as reservas com vistas ao bom funcionamento do mercado cambial.
Saídas fáceis não existem, principalmente em um país que falha muito na ação estatal. A crise exige cuidado com o uso dos recursos públicos, e estamos falhando. Seria errar duplamente utilizar fórmulas equivocadas para financiar os gastos e trazer alívio à sociedade.
*Consultora e doutora em economia pela USP
Vinicius Torres Freire: Juro real deve ir a zero até junho
Dúvida é saber se BC vai tomar alguma atitude com as taxas mais longas
O Banco Central disse na prática que a taxa real de juros básica vai a zero até junho, mês da próxima decisão sobre a Selic, afora a hipótese de novos choques dentro deste choque terrível da pandemia.
No atacadão do mercado de dinheiro, já está em 0,3% ao ano (taxa para negócios de um ano, descontada a inflação esperada nos próximos 12 meses). Ainda é muito.
Nesta quarta-feira (6), o BC reduziu a Selic de 3,75% para 3% ao ano. Afirmou em comunicado que, em junho, pode reduzi-la em outro tanto, no máximo, para até 2,25%, parando por aí, excetuada a hipótese de novos desastres.
E daí?
Nada disso vai mudar de modo notável a taxa de juros nos bancos. Não é disso que se trata, obviamente. A dúvida é saber se o BC vai enveredar pela grande novidade, no caso brasileiro, de comprar títulos do Tesouro a fim de achatar as taxas de juros de prazo mais longo, o que estará autorizado a fazer em breve, pelo Congresso.
Na teoria mais ou menos padrão, o BC poderia fazê-lo caso a Selic fosse a zero (em termos nominais, não a taxa real). Por ora, como visto, parece que não vai a zero. As taxas ditas longas, no entanto, deram um salto desde meados de março, com o pânico pandêmico.
Essas taxas balizam o custo de o governo financiar seus déficits e dívida. Definem também o piso do custo do dinheiro para negócios de prazo mais longo, o financiamento do investimento privado, por ainda vários meses um assunto congelado. Em suma, a dúvida é saber se o BC quis esses novos poderes apenas para ter uma arma na prateleira, em caso de ruína extra, ou se pretende tomar alguma atitude antes disso.
No mais, no curto prazo, a decisão do BC desta quarta-feira não era surpresa, ao menos para negociantes de dinheiro, embora seus colegas analistas ainda sugerissem queda de 0,5 ponto percentual, na maioria, em vez do 0,75. Francamente, é como discutir, dentro de um incêndio, se o fogo já torrou a carne ou se chegou no osso.
Muito analista argumentava que a redução adicional da diferença de juros entre o Brasil e os EUA provocaria ainda maior desvalorização do dólar. Mas a redução dessa diferença é quase nula. O dinheiro vai embora por puro medo, fuga de risco.
Essa discussão de décimos parece influenciada pelo fato de que a média dos ditos analistas parece otimista com a volta do crescimento em 2021 (e também da inflação).
Na mediana, esperam queda do PIB de 3,8% neste ano e alta de 3,2% em 2021 —tomara que estejam certos. Esperam inflação em 3,3% em 2021. Refizeram mesmo as contas ou simplesmente acreditam em IPCA perto da meta por inércia?
Economistas de bancões brasileiros acreditam que a taxa real de juros fica negativa até o fim de 2021, ao contrário da mediana dos seus colegas do mercado.
O comunicado do BC afirma também, como de costume, que a Selic baixa depende de reformas e de contenção da dívida pública: "A trajetória fiscal ao longo do próximo ano" e "a percepção sobre sua sustentabilidade", "serão decisivas para determinar o prolongamento do estímulo".
Hum. Não vamos saber quase nada das contas públicas antes do final do ano, excetuadas maluquices. Mal vamos saber do tamanho da recessão deste 2020 antes da primavera, sendo otimista de modo solar. Não temos ainda nem a menor ideia a respeito do controle do ritmo da epidemia.
O risco de esperar para ver, de modo convencional, é que a ação pode vir tarde demais. Não é o caso de agir à louca e às cegas, mas é preciso inventar maneiras novas para medir este desastre e seus efeitos.
Ribamar Oliveira: Maior rigor no controle do gasto com pessoal
Mudança na Lei de Responsabilidade Fiscal terá forte efeito sobre a administração
Não recebeu a devida atenção uma mudança feita na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) pelo projeto de lei complementar 39/2020, aprovado na terça-feira pela Câmara dos Deputados e ontem pelo Senado. O noticiário ficou restrito ao montante e à distribuição da ajuda financeira da União aos Estados e municípios, com pouca luz sendo jogada sobre uma alteração que terá caráter permanente e vai melhorar o controle sobre os gastos com a folha salarial dos servidores.
A alteração do artigo 21 da LRF, feita pelo PLP 39, torna nulo o ato que resulte em aumento da despesa com pessoal em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Executivo, do Judiciário, do Legislativo, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas.
Ou seja, não vale mais aquela prática, bastante difundida, de conceder reajuste salarial em várias parcelas a serem pagas pelos governos seguintes. Prática que, na esfera federal, foi usada em governos do PT. A ex-presidente Dilma Rousseff foi obrigada a pagar parcelas significativas de reajustes salariais concedidos pelo ex-presidente Luiz Inácio da Silva. A nova regra valerá para os três Poderes e órgãos da União, dos Estados e dos municípios.
Os aumentos concedidos durante o governo do ex-presidente Michel Temer tiveram parcelas pagas a várias categorias até o ano passado.
Será nula também a aprovação, a edição ou a sanção, pelos chefes do Executivo, pelos presidentes das casas do Legislativo, pelos presidentes de Tribunais do Poder Judiciário e pelo chefe do Ministério Público da União e dos Estados de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público ou a edição de ato para nomeação de aprovados em concurso público quando houver parcelas de aumento de despesas a serem implementadas em período posterior ao fim do mandato.
Como foi aprovado ontem pelo Senado, o PLP 39 vai agora à sanção do presidente Jair Bolsonaro. A nova regra da LRF terá grande importância no controle das despesas com pessoal e acabará com uma prática nefasta dos administradores deixarem despesas de pessoal para serem pagas por seus sucessores.
A iniciativa de alterar o artigo 21 da LRF parece ter sido do Ministério da Economia, aceita e incorporada ao projeto por seu relator, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ela não consta do projeto de lei complementar 149/2020, que trata da compensação pela perda de receita dos Estados e municípios, aprovado anteriormente pela Câmara, e nem do PLP 39/2020 original, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSD-MG). Não resultou também de emenda de nenhum senador.
Alcolumbre disse, em seu parecer, que a motivação da mudança na LRF “é impedir que os governantes e chefes de Poder atuais criem despesas novas para seus sucessores, inviabilizando, dessa forma, a futura administração”. O presidente do Senado lembrou aos seus colegas as práticas política que, infelizmente, ainda imperam no Brasil. “Muitos aqui sabem das dificuldades de administrar um município ou um Estado, especialmente quando herdam dívidas contraídas pelo antecessor, que, em busca de dividendos políticos, compromete a sanidade das contas públicas”.
Alcolumbre entendeu que a proibição para que não se deixe despesa salarial a ser paga pelos sucessores “ajuda a resolver um problema mais estrutural, que a LRF, em sua redação original, não conseguiu plenamente”. A mudança, portanto, feita em meio a uma crise sanitária sem paralelo neste século, ajudará, em caráter permanente, o equilíbrio das contas.
Até agora, a LRF considerava nulo apenas o ato que resultasse em aumento da despesa com pessoal expedido nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato dos titulares dos três Poderes, do Ministério Público e dos tribunais de contas. A regra poderia ser facilmente burlada pois, em boa parte dos casos, os aumentos nas despesas com pessoal são concedidos para vigorarem no último ano dos mandatos, principalmente, no caso de Estados e municípios, com parcelas a serem pagas nos exercícios seguintes.
O exemplo mais recente é o caso da prefeitura do Rio de Janeiro. No mês passado, os vereadores do Rio aprovaram um projeto de lei que cria uma nova gratificação para os servidores administrativos da prefeitura. Como o município está em situação de calamidade pública por causa do novo coronavírus, os vereadores aprovaram uma emenda determinando que a gratificação só será concedida em 2022.
Ou seja, a próxima administração, a ser eleita neste ano, terá que pagar a conta.
Comemorou-se muito, dentro do governo, a aprovação pelo Senado e pela Câmara do artigo 8º do PLP 39, que proíbe governos estaduais e prefeituras de darem aumento, a qualquer título, na remunerações dos seus servidores. O congelamento das despesas com pessoal até o dia 31 de dezembro de 2021 foi apresentado como uma contrapartida de Estados e municípios à ajuda financeira da União durante a pandemia.
A questão discutida na área técnica é que o famoso artigo 8º do PLP 39 pode ser inconstitucional. A nota informativa 18, da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, diz que “poderá haver questionamentos quanto à possibilidade de a União legislar sobre matérias inerentes à competência legislativa e administrativa dos entes subnacionais, sem ofender a autonomia de tais entes”.
A consultoria considera que uma emenda constitucional seria “o instrumento mais adequado para determinar o congelamento da remuneração de todo os agentes públicos das esferas de governo atingidas pela calamidade reconhecida pelo Congresso Nacional”. A questão agora é saber se alguma entidade representativa de servidores terá interesse em ingressar no Supremo Tribunal Federal, com uma ação direta de inconstitucionalidade questionando o artigo 8º.
Bruno Boghossian: Bolsonaro sabota Paulo Guedes mais uma vez e se alinha ao centrão
Presidente autoriza mudança em projeto de servidores e prova que não fala a língua do ministro
Na semana passada, Jair Bolsonaro foi até a portaria do Palácio da Alvorada para desfazer a impressão de que Paulo Guedes era alvo de sabotagem no governo. O presidente disse que seu auxiliar, que posava satisfeito a seu lado, era "o homem que decide economia no Brasil". Dias depois, o próprio chefe ajudou a sabotar os planos do ministro.
Bolsonaro deu sinal verde para desidratar uma das bandeiras de Guedes no pacote econômico do coronavírus. Foi o presidente quem autorizou a retirada de todos os policiais da proposta que congelava salários de servidores para compensar as despesas com a pandemia.
A equipe econômica se queixou dos parlamentares que votaram a favor da blindagem de diversas carreiras do funcionalismo e apontou o dedo para o líder do governo na Câmara, que negociou as mudanças no projeto. Numa espécie de delação, o deputado Vitor Hugo (PSL) entregou o presidente e disse que partiu dele o aval para a traição a Guedes.
A disposição de Bolsonaro para proteger o funcionalismo não é novidade. O presidente fez carreira como representante sindical de militares e, no poder, continuou trabalhando a favor de algumas categorias.
Quando Guedes defendeu publicamente o congelamento de salários dos servidores, no início da última semana, Bolsonaro cutucou o ministro três vezes. O presidente se irritou ao ouvir que os funcionários não poderiam ficar em casa "com geladeira cheia" enquanto milhões de brasileiros perdem o emprego.
O líder do governo foi ao plenário para deixar as digitais de Bolsonaro na votação. Vitor Hugo contou que, em dois telefonemas, o presidente aprovou as alterações na proposta. No fim, deu a dimensão do apreço de seu chefe pela equipe econômica: "Eu sou líder do governo e não líder de qualquer ministério".
O episódio prova que Bolsonaro e Guedes jamais falarão a mesma língua. Como se vê, o presidente está mais próximo de seus novos aliados do centrão, que costuraram os benefícios para os servidores.
Mariliz Pereira Jorge: Bolsovírus
Presidente infectou o país com raiva e desesperança
Estamos todos doentes. Não bastasse o drama que vivemos com a crise da Covid-19, temos que lidar com o rastro de destruição deixado por um germe patogênico incapacitante: o bolsovírus, como foi apelidado.
Jair Bolsonaro conseguiu a façanha de contaminar a população com seu discurso inescrupuloso, seu apreço pela ignorância e seu desprezo pela humanidade. Deixou um país inteiro infectado pela raiva e pela desesperança.
Estamos todos mentalmente desequilibrados. Quem não está cego e não perdeu toda a capacidade de discernimento e a decência sente os efeitos dessa infecção devastadora provocada pelo bolsovírus de uma forma também bastante severa: as pessoas estão tristes, abatidas, exaustas com o festival diário de asneiras, de grosserias e de ataques à democracia.
Assistindo ao noticiário, que dedica boa parte do seu tempo a descrever a crise institucional que não abandona o país, tenho a falsa e perigosa sensação de que não temos outro problema ainda maior, o coronavírus. A gravidade da pandemia acaba diluída diante dos mandos e desmandos desse brutamontes que enlameia a cadeira da Presidência.
Somos atropelados pelo tiroteio entre o presidente e o ex-ministro da Justiça, as brigas com os governadores, os lampejos golpistas, que se tornaram corriqueiros. E, no final do dia, trombamos com o número de mortes pela Covid-19, a baixa adesão ao isolamento, o recorde de perdas entre os profissionais da saúde, os hospitais em colapso.
Todas as nossas atenções deveriam estar focadas em salvar vidas, mas passamos boa parte do tempo tentando nos livrar da insanidade a que Bolsonaro submete o país.
Quem ainda não está louco, condição "sine qua non" para não apoiar este governo tresloucado e incompetente, está sendo enlouquecido à medida que faz oposição a ele. Ou acabamos com o bolsovírus ou não sei o que será de nós.
Ascânio Seleme: Três sugestões contra o vírus
Se opositores forem ao Alvorada haverá confronto?
Já deu para perceber que não há remédio para Jair Bolsonaro. Ele não dá trégua ao bom senso, não faz concessão ao contraditório, ignora apelo em favor do entendimento. Como mandar o presidente calar a boca é exagerar nos seus próprios termos, aqui algumas sugestões para superar o tormento.
1) Jornais, sites de notícias, emissoras de TV e rádio deveriam abandonar a cobertura das manhãs presidenciais no Palácio da Alvorada. Poderia se fazer um pool, e cada dia apenas um cinegrafista, um operador de áudio e um fotógrafo gravariam a saída diária de sua excelência, sem perguntas e sem transmissão ao vivo. Ninguém mais seria ofendido por Bolsonaro, e as bobagens que ele disser para a sua claque ficariam registradas. E, claro, só se publicaria o que de fato importasse.
As perguntas do dia seriam feitas em atos públicos no Palácio do Planalto ou em cerimônias oficiais do presidente. Bolsonaro continuaria falando tontices, podem ter certeza, notícia não faltaria. Só que sem o apoio da claque matinal não teria os arroubos agressivos habituais. Duvido que o capitão tivesse coragem de gritar com um jornalista, mandar ele calar a boca, em frente a uma plateia menos cega e tansa do que a das manhãs do Alvorada.
Um veículo e outro poderiam não topar o pool. Azar, seriam a minoria e reduzir o dano é muito mais importante. O pool seria com os que concordam que não dá mais para aturar as ofensas presidenciais diárias. Quem quisesse continuar dando palanque ao homem, que continuasse. Ajudaria também a deixar mais claro como cada um desses veículos se situa no cenário nacional.
2) Onde anda a oposição a Bolsonaro? Está certo, nem todo mundo é tão estúpido a ponto de se aglomerar durante uma pandemia, como fazem os apoiadores radicais do presidente, mas quase não se veem protestos (fora os panelaços) contra Bolsonaro. Manifestação como a dos enfermeiros, separados por distância regulamentar, como manda o figurino, devem ser repetidas? Talvez, mas o que não se pode negar é que hoje as ruas têm um só dono.
E a entrada do Palácio da Alvorada, que é um espaço público, também só tem um dono. Ou dois. São os adoradores da ditadura e alguns religiosos espertos que vão lá porque sabem que sua excelência vai ajoelhar e rezar com eles, e o resultado do vídeo que produzirão causará tremendo impacto na comunidade. Onde estão os bravos militantes que foram às ruas para defender o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff? Onde anda a turma das jornadas de 2013?
Se opositores forem ao Alvorada haverá confronto? Pode ser, mas é o que já ocorre. Ou vocês dariam outro nome ao que se viu quando radicais atacaram enfermeiras e jornalistas? E pode-se fazer como na Esplanada dos Ministérios durante o processo do impeachment de Dilma, separando-se os lados. Do lado direito do portão, apoiadores. Do lado esquerdo, opositores. Ou ao presidente só se deve prestar loas?
3) A polícia precisa identificar e a Justiça processar os que carregam faixas com dizeres contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional ou a favor de uma intervenção militar e do AI-5. A liberdade de expressão permite que as pessoas digam o que bem entendem, mas sobre o que dizem e defendem serão sempre responsabilizadas. E atacar a Constituição é crime.
Vou dar um exemplo mais claro. Posso até chamar o 01 de ladrão em razão das rachadinhas que ele e o Queiroz operaram nos salários dos servidores do seu gabinete na Alerj, mas não vou porque o caso dele ainda está em andamento. Se o chamasse de ladrão, estaria exercendo meu direito de liberdade de expressão, mas ele poderia me processar por injúria e difamação porque não foi condenado. Sobre a liberdade de expressão repousa a responsabilidade.
E a resposta, afinal, estará sempre com a Justiça.
P.S.: Aliás, falando nisso, por que o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), ainda não acolheu nenhum dos muitos pedidos de impeachment que recebeu? Não é por falta de crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro. Ele já somam quase uma dúzia.
Bernardo Mello Franco: Moro ficou devendo a ‘bala de prata’
O depoimento de Sergio Moro não forneceu uma prova demolidora contra Bolsonaro. Ele apontou caminhos para a investigação, mas evitou incriminar o ex-chefe
O depoimento de Sergio Moro frustrou quem esperava uma prova demolidora contra Jair Bolsonaro. Diante dos delegados, o ex-ministro fugiu do papel de acusador. Chegou a dizer que “não afirmou que o presidente teria cometido algum crime”.
Depois de deixar o governo atirando, o ex-juiz recolheu as armas. Ficou claro que ele busca se proteger da possibilidade de virar réu por denunciação caluniosa ou prevaricação, por ter silenciado durante muito tempo sobre as práticas do chefe.
Moro apontou caminhos para comprovar a tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. O próprio presidente voltou a se complicar na noite de terça, ao admitir mais uma vez sua enorme preocupação com o caso Marielle Franco.
No entanto, o ex-ministro não apresentou a esperada “bala de prata”, uma prova contundente de que Bolsonaro tenha cometido crime comum. Essa prova terá que ser buscada pelos investigadores e pelo procurador-geral Augusto Aras, que não demonstra muita disposição para criar embaraços a quem o nomeou.
O ministro Celso de Mello não exibe a mesma benevolência com o capitão. Ele determinou a entrega do vídeo da reunião em que, segundo Moro, o presidente exigiu a troca imediata do diretor da PF.
Ontem o governo pediu que o ministro reconsidere a ordem, com a desculpa de que a conversa tratou de “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. Seria mais convincente dizer que a fita revelaria os segredos da Guerra do Paraguai.
Para além da disputa jurídica, trava-se um duelo político entre duas figuras que, nas palavras da doutora Rosangela Moro, até outro dia representavam “uma coisa só”. Fora do governo, o ex-ministro passou a usar as redes sociais para se contrapor a Bolsonaro. Nos últimos dias, ele condenou as manifestações golpistas e criticou a indústria das fake News.
Antes de virar alvo, Moro foi conivente com as mesmas práticas para blindar o presidente e a militância bolsonarista. Sua omissão ajudou a pavimentar a escalada autoritária do governo.
Míriam Leitão: Bolsonaro terá de falar
Bolsonaro será ouvido presencialmente. Temer pôde responder por escrito, mas Celso de Mello mostrou que tem outro entendimento
Se o presidente Jair Bolsonaro for ouvido nesta investigação iniciada a partir das declarações do ex-ministro Sergio Moro, a oitiva dele será presencial e não por escrito como ocorreu com o ex-presidente Michel Temer. É a conclusão de especialistas a partir do que está escrito na decisão do ministro Celso de Mello. Presidentes dos poderes podem optar por responder às perguntas por escrito, mas o problema é que Celso de Mello avisou que isso só se aplica à autoridade que for testemunha ou vítima no inquérito. Não será o caso de Jair Bolsonaro.
A parte do texto que chamou a atenção de um procurador, da cúpula do MP, é a que estabelece a “aplicabilidade somente às testemunhas da prerrogativa fundada no artigo 221 do Código de Processo Penal”. Pelo artigo, parágrafo primeiro, presidente e vice-presidente e presidentes do Senado, Câmara e STF quando forem ouvidos em um inquérito podem fazê-lo por escrito. O problema é que o ministro Celso de Mello disse que apenas se a autoridade em questão estiver na condição de testemunha. A dúvida que fica é se o PGR vai mesmo requerer essa diligência.
Em 2017, o ministro Luís Roberto Barroso, durante o inquérito dos Portos, respondeu ao pedido da Procuradoria-Geral da República de ouvir o ex-presidente Temer afirmando que “mesmo figurando o senhor presidente como investigado, seja-lhe facultado indicar data e local onde queira ser ouvido pela autoridade policial, bem como informar se prefere encaminhar por escrito sua manifestação, assegurado ainda seu direito constitucional de permanecer em silêncio”.
A interpretação de Barroso à época é a de que não havia previsão legal sobre a oitiva de presidente da República em um inquérito em que é investigado. O CPP fala apenas de o presidente ser ouvido como testemunha. A questão que se coloca agora é que o ministro Celso de Mello escreveu e grifou a afirmação de que só para testemunha é que cabem as prerrogativas do artigo 221.
Como testemunhas serão ouvidos os ministros Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto. E nesse nível hierárquico deles a prerrogativa é a de poder combinar a hora e o local da oitiva. Mas o que se investiga é se o presidente tentou ou não interferir na Polícia Federal.
No item 7 de sua decisão, o ministro reafirma de maneira inequívoca a “inaplicabilidade a investigados e a réus da prerrogativa do art.221 do Código de Processo Penal”. Diz que isso se aplica somente às autoridades que constarem como vítimas ou testemunhas. “Caso estejam na posição de pessoas investigadas ou acusadas não terão acesso a tal favor legal, como se tem decidido nesta Suprema Corte.” Mais adiante, o ministro repete que “unicamente” as testemunhas e vítimas de práticas delituosas.
“Isso significa, portanto, que suspeitos, investigados, acusados ou réus não têm essa especial prerrogativa de índole processual.” Portanto, estando o presidente Jair Bolsonaro na condições de suspeito, acusado ou investigado nesse inquérito, ele terá que ser ouvido presencialmente. E de novo, mais adiante, o ministro diz, citando um voto anterior dele mesmo, que “independentemente da posição funcional que ocupem na hierarquia do poder de Estado, deverão comparecer, perante autoridade competente, em dia, hora e local por ela unilateralmente designados”. Todos os autos desse inquérito estão sendo enviados para a Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (Dicor), da Polícia Federal.
A decisão do ministro Celso tem outro ponto importante que é a de dar mais poderes à Polícia Federal. A PF poderá tomar a iniciativa de investigar, mesmo sem pedido específico da PGR. “Acentuo que a Polícia Federal, independentemente das diligências investigatórias requeridas pela douta Procuradoria-Geral da República, poderá por autoridade própria proceder a outras atividades de caráter investigatório, tais como aquelas sugeridas pelo senhor Sergio Fernando Moro no depoimento que prestou.” E ele sugeriu, por exemplo, a requisição à Abin dos protocolos de encaminhamento dos relatórios de inteligência feitos com base nas informações da Polícia Federal. Era para mostrar que relatórios de inteligência o presidente sempre teve da PF. O que não tinha era acesso a investigações.
E isso ele não poderia mesmo ter.
Maria Cristina Fernandes: Por quem dobram os cotovelos
Gesto que irritou presidente é de autopreservação de Forças Armadas que veem crescer o contágio em suas fileiras
Há 1.813 militares infectados e sete óbitos, num efetivo de cerca de 390 mil nas Forças Armadas. A proporção de casos (0,5%) é dez vezes maior que o contágio do total da população brasileira. O elevado número de contagiados reflete a exposição dos militares em operações de combate à covid-19, da desinfecção de hospitais e higienização de áreas de grande circulação ao transporte de alimentos e equipamentos hospitalares. A mortalidade entre infectados, por outro lado, é um milésimo daquela observada no país, resultado, em grande parte, do monitoramento precoce dos casos e atendimento nos hospitais militares.
Alguns desses números foram expostos no tenso encontro que, no fim de semana, reuniu os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao Palácio da Alvorada com o presidente da República e seus ministros militares. Na véspera, o general Edson Leal Pujol e todo o generalato presente à cerimônia de transmissão do Comando Militar do Sul haviam dobrado o cotovelo ante um presidente surpreendido.
Com os números, ofereceu-se uma explicação. Para continuar a colaborar com o combate à covid-19, que hoje mobiliza 29 mil militares em todo o país, os militares precisam se cuidar. Os comandantes bateram na tecla, que vêm pautando as portarias militares desde o início da pandemia, de que devem se proteger para proteger o país.
No dia seguinte, o comandante supremo estamparia o divórcio.
Desceu a rampa do Palácio do Planalto para mais um da série de espetáculos que protagoniza nesta pandemia. Cotovelos, naquele domingo, só entraram em cena para seus apoiadores baterem em jornalistas. Sem civismo, mas com muito cinismo, sugeriu que as Forças Armadas partilhariam consigo a paciência esgotada com as instituições e vazou a saída Pujol do comando.
Tratava-se de um balão de ensaio, mas tinha gás suficiente para aumentar a insatisfação dos oficiais da ativa com o presidente da República. O comandante que expunha as tropas ao risco de contágio, visto que se trata “da maior missão” de sua geração, estaria, de fato, com seu cargo em risco? Não. Tratava-se apenas de um presidente que resolvera regar de baciada a semente da indisciplina nos quartéis, praga da República brasileira da qual ele é apenas o mais recente representante.
É sua maneira de reagir ao cordão de isolamento que as instituições começam a apertar em torno de seu pescoço. O decano do Supremo Tribunal Federal é o puxador desse cordão. O depoimento do ex-ministro Sergio Moro frustrou muita gente mas não ao ministro Celso de Mello, que lhe deu publicidade bem como a todo inquérito.
Foi além do procurador-geral da República ao pedir a busca e apreensão do celular do ministro e estabelecer prazo para a tomada de depoimentos das testemunhas e a entrega do vídeo da reunião em que Moro disse ter sido tratada a substituição da superintendência da Polícia Federal no Rio.
Alguns dos intimados não gostaram da advertência do decano de que a resistência das testemunhas em marcar o dia, a hora e o local para serem ouvidos pode resultar em condução coercitiva. Depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tirado de sua casa de madrugada para depor no aeroporto de Congonhas, o Supremo resolveu limitar o instrumento.
Réus não lhe estão mais sujeitos, mas o depoimento “debaixo de vara” continua valendo para testemunhas, mesmo que, entre elas, estejam três generais da reserva na função de ministros (Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto), um dos quais, da ativa.
Advertência no mesmo tom foi usada contra o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, e o secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten. Além do prazo de 72 horas para a entrega do vídeo da reunião, eles foram lembrados de que a eventual adulteração do material está sujeita a penalidades previstas na lei.
Um influente general da reserva viu na decisão do decano uma afronta à presunção de inocência, mas Celso de Mello não parece preocupado com as reações. Não foi por decisão dele que generais deixaram as Forças Armadas para servirem a um governo que tem Jair Bolsonaro como presidente da República e Wajngarten como chefe da comunicação.
O decano chegou ao Supremo no governo José Sarney, quando a democracia parecia consentimento de uma ditadura insepulta. Parece confiar no compromisso das Forças Armadas com a defesa da Constituição ao encurtar a vara com a qual intimou os servidores militares lotados no Palácio do Planalto. A quem serão leais, ao presidente, às Forças Armadas ou à lei máxima do país? A evolução do inquérito mostrará se as três lealdades terão como ser conjugadas.
Nas mais de três décadas em que os militares se ocuparam exclusivamente de profissionalizar as Forças Armadas, só deveram satisfação à justiça fardada. Foi a militarização deste governo, pela tese já nocauteada da tutela, que inverteu esta situação. Na ditadura, o Supremo Tribunal Federal teve acanhado desempenho, com honrosas exceções, como o ministro Ribeiro da Costa, que contestou o julgamento do governador deposto Miguel Arraes pela justiça militar. Hoje não há submissão possível.
No limite, o presidente da Corte e seu ex-assessor, o atual ministro da Defesa, movem as peças da contemporização. Se as Forças Armadas têm números a mostrar de sua participação no combate à covid-19, a Corte também os tem. Foram 1.660 processos e 1.473 decisões em torno da pandemia. Dias Toffoli reabilitou a Ordem do Dia de 31 de março, Fernando Azevedo e Silva entronizou a Constituição. Ambos repudiaram a violência contra jornalistas.
Não chega a ser um dueto, mas é um diálogo que pode manter Bolsonaro sob o cerco da Constituição. Ontem Toffoli definiu o Supremo como a última trincheira. A ver como dará cabo de um presidente que, na definição de um fardado, continua a ser o pentatleta da academia militar. Aquele que, quando a corda arrebentar, se manterá em pé com um pedaço dela nos dentes e os cotovelos em riste.
Fernando Schüler: Arranjo que permitiu o ciclo de reformas se perdeu
O governo Bolsonaro anda de lado. Os sinais são óbvios. Perdeu seu ministro mais popular, reagiu mal à crise e as pesquisas não andam lhe favorecendo. Há um conjunto de investigações delicadas em curso e o último levantamento do Datafolha diz que 45% dos eleitores apoiam seu impedimento.
Tudo isso pode ser apenas conjuntural e a crise se dissolver, quando a pandemia passar, mas intuo que há algo mais estrutural nesse processo.
O governo Bolsonaro é fruto de um arranjo instável entre três movimentos difusos na sociedade brasileira: o conservadorismo cultural, os movimentos contra a corrupção (o lavajatismo) e a agenda liberalizante, apoiada pelo mercado.
A agenda conservadora nunca andou. Ninguém se lembra mais de temas como Escola sem Partido ou a redução da maioridade penal. Coisas como o excludente de ilicitude e a nova regulamentação do porte de armas rodaram no Congresso.
A agenda em torno de Sergio Moro igualmente andou muito pouco. Temas caros ao ex-ministro, como a introdução do "plea bargain" e a prisão em segunda instância foram derrotadas ou simplesmente não andaram, no Congresso, e de quebra ele teve de assistir à instituição do juiz das garantias, depois suspensa pelo STF.
O que andou, até o final do ano passado, em ritmo lento, foi a pauta econômica. Temas como a reforma da Previdência e a Lei da Liberdade Econômica foram seus carros-chefes. O boletim Focus de dezembro previa 2,3% de crescimento para 2020, com inflação e juros nas taxas que sabemos.
As coisas andaram, no primeiro ano, à base de um arranjo de autonomia do Legislativo, dada a recusa do presidente em formar a coalizão majoritária. Disse que, em que pese minoritário, o governo conduzia uma agenda econômica majoritária no Congresso.
Estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro demonstrou que 74,4% dos deputados apresentaram notas acima de 7, em uma escala de 0 a 10 de fidelidade ao governo. No Senado as coisas foram melhores.
O arranjo desmoronou a partir da virada do ano. Em boa medida, ruiu pelas indefinições do próprio governo, que nunca apresentou sua visão sobre a reforma tributária e sequer enviou a reforma administrativa.
Ruiu também pelo crescimento da pauta corporativa do Congresso, expressa no Orçamento impositivo, pelas dificuldades políticas do presidente, pela perspectiva do embate eleitoral e pelo consenso cada vez menor diante de reformas difíceis.
A pandemia explodiu de vez a agenda econômica, o feijão da feijoada deste governo. Feijoada de caldo ralo, diga-se, em um governo que nunca foi de fato liberal (a política de educação é mostra disso), mas que envolvia iniciativas de reforma fiscal e do gasto público nas três PECs do programa Mais Brasil.
Tudo agora pertence ao passado. O país termina os dias contando seus mortos, filas imensas de brasileiros sem máscara se formam nas agências da Caixa, pelo auxílio de R$ 600, e tudo indica que vamos terminar o ano com queda superior a 5% do PIB e déficit superior a R$ 600 bilhões, com o qual vamos conviver durante anos.
Em meio à turbulência, o governo ensaia adesão tardia ao modelo de coalizão, com cooptação do centrão. Previsível: o arranjo anterior, que chamei de modelo de corresponsabilidade, só funcionava sob a batuta das reformas estruturais que (por um bom tempo) perderam seu momento político.
Trata-se de um modelo de sobrevivência política. Pode servir para o governo se proteger, na hipótese de votação de um processo contra o presidente, mas não irá muito mais longe.
O que o país precisa é de repactuação. Algum sentido de estabilidade institucional. Da liderança política como um todo, a começar pelo presidente da República, que faria melhor saindo da cerca, no entorno do palácio, e trocando a lógica do entretenimento político pelas questões de Estado.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Ricardo Noblat: O que Bolsonaro quer esconder – e por quê
Em jogo, seu destino
Até ontem, eram apenas os exames que fez para saber se contraíra o coronavírus que o presidente Jair Bolsonaro se recusava a mostrar por mais que lhe cobrassem. Ele jura que testou negativo para a doença, e que mostrar os resultados violaria sua privacidade.
Desde ontem, porém, Bolsonaro tenta esconder outra coisa – desta vez o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril último onde teria ameaçado de demissão o então ministro Sérgio Moro se ele não trocasse o superintendente da Polícia Federal no Rio.
Por quatro vezes, a Justiça ordenou que ele mostrasse os resultados dos exames, mas Bolsonaro ainda não o fez. Quanto ao vídeo, rogou a Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal, que revogue a decisão que o obrigaria a apresentá-lo em 72 horas.
No caso dos exames, o temor de Bolsonaro é ser flagrado mentindo. Se adoeceu, pior do que mentir foi ter circulado sem máscaras a apertar mãos e abraçar autoridades e bolsonaristas em manifestações de rua podendo tê-los contaminados.
Há oito dias, Bolsonaro chegou a dizer que divulgaria a gravação da reunião ministerial. Explicou-se assim:
– Eu comecei hoje a reunião de ministros pedindo uma autorização para eles, porque a nossa reunião é filmada. E fica no cofre lá, o chip. Eu falei: ‘senhores ministros, eu posso divulgar o que eu falei na última reunião de ministros?’. Ninguém foi contra. Eu falei, tá certo? Mandei legendar, mandei legendar, talvez tenha chegado no meu WhatsApp agora e eu vou divulgar.
Há seis dias, voltou atrás com a seguinte justificação:
– Eu tenho a última, a última, a última: o conselho que eu tive é não divulgar, para não criar turbulência, uma reunião reservada, então é essa a ideia.
Agora, quer que Celso de Mello reconsidere a decisão de pedir o vídeo porque na reunião ministerial foram tratados “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. Não sabia disso quando prometeu divulgar o vídeo com direito a legenda?
Ou por “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado” deve-se entender a confirmação de que de fato ameaçou Moro caso não tirasse da superintendência da Polícia Federal o delegado que Bolsonaro não queria ver por lá?
Suspeita-se que o vídeo possa ter registrado o ataque do ministro da Educação a um dos ministros do Supremo, e também o bate boca entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, sobre os rumos da Economia.
Não deverá passar de hoje a resposta de Celso de Mello ao pedido de Bolsonaro. O provável é que reafirme sua decisão e garanta que os tais “assuntos potencialmente sensíveis” não interessam ao inquérito que apura se Bolsonaro quis intervir na Polícia Federal.