Day: maio 6, 2020

Coronavírus: ‘Trump não esconde sua decepção com pandemia’, diz Ricardo Tavares

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, consultor analisa impacto da Covid-19 na corrida eleitoral norte-americana

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O novo coronavírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa”. A avaliação é do consultor internacional de empresas de tecnologia, Ricardo Tavares, mestre em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e membro do Council on Foreign Relations (CFR), em artigo que produziu para a 18ª edição da revista Política Democrática Online. “Trump não esconde sua decepção com a pandemia”, afirma.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

Tavares lembra que, nos Estados Unidos, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano. “O presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade”, escreve o consultor.

O mestre em ciência política observa, ainda, que, no Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o vice-presidente Joe Biden e o senador Bernie Sanders. Segundo o artigo publicado na revista Política Democrática Online, Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato democrata à presidência.

“O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado democrata em eleições recentes”, escreve Tavares. “No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho”, continua.

De acordo com o consultor, Trump não esconde sua decepção com a pandemia porque esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico.  Em fevereiro, conforme observa o autor, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

Leia mais:

» Coronavírus: Ciência busca vacina para salvar população contra pandemia

» Lilia Lustosa lista filmes sobre universo das pandemias, como a do coronavírus

» ‘Vamos viver de forma dramática com Covid-19 até final do ano’, diz Helio Bacha

» ‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

» ‘É urgente enfrentar escalada autoritária de Bolsonaro’, diz editorial da Política Democrática

» Política Democrática: Tragédias do coronavírus e do governo Bolsonaro são destaques

» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Eleições 2020: Jornada destaca dados importantes aos futuros candidatos

Realizado pela FAP, curso de formação política chega à penúltima aula e explica fim das coligações proporcionais

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Informações importantes sobre as eleições municipais de 2020, como prazos, normas de financiamento de campanha e prestação de contas, são explicadas na penúltima aula multimídia da Jornada da Cidadania, disponibilizada, a partir desta quarta-feira (6), na plataforma de educação a distância. O novo pacote de conteúdo do curso de formação política, realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), apresenta outros dados importantes a quem tiver interesse na disputa para vereador ou prefeito nos 5.570 municípios do Brasil.

O acesso à plataforma da Jornada da Cidadania é exclusivo a alunos matriculados com login e senha. Na principal videoaula do novo pacote de conteúdo, o advogado Arlindo Fernandes de Oliveira, especialista em direito eleitoral, destaca a nova regra do jogo. “O sistema eleitoral é o mesmo há muito tempo, mas, agora, nesta eleição, pela primeira, há uma novidade importante, uma vez que cada partido deve sair sozinho, sem coligações proporcionais, nas eleições municipais”.

Em seguida, o jornalista e colunista político Luiz Carlos Azedo explica o que é o Cidadania, que apoia a Jornada da Cidadania, apresentando o partido político que ele define como “pluralista”. Depois, o secretário-geral do partido, Davi Zaia, dá dicas sobre o papel do bom vereador, e o diretor de Treino da empresa Ideias Radicais, Renato Diniz, explica os níveis de abstração da liderança.

O novo pacote de aula também indica aos alunos que assistam ao filme a Voz da Igualdade (2008). A obra cinematográfica estadunidense tem direção de Gus Van Sant. É baseada na vida do político e ativista gay Harvey Milk, que foi o primeiro homossexual declarado a ser eleito para um cargo público na Califórnia, como membro da Câmara de Supervisores de São Francisco.

Os alunos também deverão ler o primeiro capítulo do livro Coronelismo, Enxada e Voto, que aborda indicações sobre a estrutura e o processo do coronelismo. O autor é Victor Nunes Leal. Em seguida, no podcast, o advogado eleitoral que ministrou aula de abertura comenta a possibilidade de adiamento das eleições municipais e as possíveis consequências da pandemia sobre o pleito de 2020. Para finalizar, os alunos também deverão responder à prova e ao questionário de satisfação.

Didática do curso

No total, o curso tem 36 horas de duração, distribuídas ao longo de 14 semanas. De acordo com o coordenador da Jornada da Cidadania, o advogado Marco Marrafon, o objetivo é formar e capacitar cidadãos acerca de conteúdos relevantes à política, além de fornecer bases fundamentais para possíveis candidatos que pretendem disputar as eleições municipais deste ano.

O conteúdo programático da Jornada da Cidadania está dividido em cinco pilares: ética e integridade na ação política; comunicação eficaz; fundamentos de teoria política e democracia; comunicação eficaz e casos de sucesso. Sempre às quartas-feiras, a plataforma disponibiliza novo pacote de aula multimídia. Dessa forma, o aluno pode se organizar ao longo da semana para aproveitar todos os conteúdos de cada aula.Leia mais:

Leia mais:

» ‘Governos vivem crise’, diz Felipe Oriá em nova aula da Jornada da Cidadania

» Síndrome do sapo cozido instiga aula de ética da Jornada da Cidadania

» Defesa de causas: 10 dicas de Leandro Machado na Jornada da Cidadania

» Ciberpopulismo ameaça democracia? Jornada da Cidadania responde em nova aula

» Entenda liberalismo igualitário e progressista em aula da Jornada da Cidadania

»Marco Marrafon: CF estabelece cooperação federativa para superar crise do coronavírus

» Comunismo e social-democracia têm ponto em comum? Veja Jornada da Cidadania

» O que é liberalismo econômico? Jornada da Cidadania explica corrente em nova aula

» Como ser um líder de sucesso? Veja nova aula multimídia da Jornada da Cidadania

» Nova aula do curso Jornada da Cidadania aborda política como vocação


Cristiano Romero: A economia Frankenstein

Modelo brasileiro é aberração por não superar passado

O longo período de instabilidade entre meados das décadas de 1970 e 1990, seguido de tentativas frustradas (ou incompletas) de implantação aqui de uma economia competitiva, equilibrada do ponto de vista fiscal e menos desigual no que diz respeito à distribuição da renda, criou no Brasil uma espécie de Frankenstein. No fundo, o país nunca superou modelos que, aparentemente, sucederam num determinado momento, mas, em outros, tornaram-se uma das principais razões do fracasso do nosso Produto Interno Bruto (PIB) em crescer de forma mais rápida.

A longa batalha contra a superinflação nos fez pensar apenas no dia de hoje. O planejamento de longo prazo, uma característica presente nas nações ricas e marcante nas economias asiáticas de crescimento acelerado, perdeu relevância na Ilha de Vera Cruz desde a crise da dívida, em 1982.

Parece mentira, mas, no início daquela década, o governo tinha órgãos públicos para avaliar permanentemente, por exemplo, a qualidade de rodovias federais construídas na década anterior. O objetivo era verificar se o impacto do aumento do tráfego ao longo do tempo não estava diminuindo a eficiência daquela estrada, elevando os custos dos produtores de grãos e de bens industriais. Na ocasião, um engenheiro brasileiro desenvolveu, para facilitar essa tarefa, um software que se tornou referência no mundo.

A urgência do combate à inflação turvou a visão de empresários, consumidores e formuladores de políticas públicas. Nada era mais importante do que domar o processo inflacionário, que, desde a primeira crise global do petróleo, em 1973, tornou-se uma preocupação, uma vez que o Gigante do Atlântico Sul era fortemente dependente de importação de óleo bruto.

A coexistência de mecanismos distintos usados não só nos planos de estabilização, mas também em modelos de desenvolvimento, forjou contradições que atolam esta enorme economia numa espécie de areia movediça. Daí, a referência ao famoso personagem da escritora Mary Shelley.

Na Ilha de Vera Cruz, convivem lado a lado um sofisticado mercado financeiro, dotado de instituições capazes de competir com seus pares internacionais, especialmente nas áreas de gestão de recursos e estruturação de operações no mercado de capitais, com uma injustificável rede de bancos estatais, seis no total. Justamente por não conseguirem competir com os rivais do setor privado, esses bancos custam caro ao Estado.

Tendo sido, ao lado dos bancos estaduais, uma das fontes da superinflação nas décadas mencionadas, continuam funcionando 26 anos após o lançamento do Plano Real, sujeitos a pressões políticas e à geração de prejuízos cobertos pelo suor de todos os brasileiros. Isto, sem falar da fatura recorrente que temos que honrar, decorrente de rombos dos fundos de pensão vinculados a essas instituições, originados de gestão temerária ou corrupção. A pergunta que fica é a seguinte: se a maioria dos congêneres estaduais foi privatizada, por que não se deu a mesma destinação, senão a todos, a quatro ou cinco dos federais?

Banco do Brasil e Caixa detêm quase 50% do volume de depósitos do sistema bancário. No fundo, a concentração faz a alegria dos grandes bancos privados, uma vez que isso é a garantia de que jamais haverá competição real no segmento de bancos de varejo. Isso explica os juros altos cobrados por todos os bancos, as taxas injustificáveis aplicadas a coisas como avaliação de imóvel, à resistência ignominiosa das instituições financeiras de renegociar dívidas, alongar prazos de débitos, enfim, de dar uma contribuição aceitável e indolor (face a seus lucros) à sociedade no momento mais trágico da humanidade em mais de cem anos.

Na semana passada, esta coluna relatou, de forma bastante sintética, as gestões da economia brasileira desde 1964. O objetivo é mostrar como o vai-e-vem de modelos, conceitos e experiências nos paralisa. Naquela edição (29/04/2020), foram retratadas as administrações até o último governo militar. Por um problema técnico, a conclusão desse relato e a informação de que o relato continuaria na edição seguinte foram suprimidos.

A crise da dívida, em 1982, solapou o modelo de substituição de importações adotado até então. Dali emdiante, o governo não teve mais condições de investir em obras públicas e mesmo na manutenção dos investimentos realizados em setores como os de telefonia e energia. O modelo estatal não funcionava mais e, na verdade, tornou-se fonte da perda do controle da inflação. A insistência em ressuscitar o defunto custou e ainda custa caro ao país. Senão, vejamos:

  1. Em 1986, o governo Sarney lançou o Plano Cruzado, a primeira tentativa de se derrubar a inflação, no período de redemocratização, por meio de um choque; preços e salários foram congelados, “tablitas” foram aplicadas sobre prestações de crediário (criando-se um efeito ilusório para o consumidor, de que sua dívida diminuíra quando, na verdade, o valor era o mesmo, descontado dos juros embutido na prestação); a inflação despencou, os trabalhadores tiveram ganho real de renda no início do plano, mas, à medida que o consumo expandiu-se de forma veloz, houve desabastecimento, cobrança de ágio etc; dois fatores já condena riam o Cruzado ao fracasso: o fato de termos uma economia fechada, herança do governo Geisel; e a situação fiscal precária da União; fracassado o plano, Sarney ainda lançou duas tentativas que não deram certo, os planos Bresser e Verão;
  2. Em março de 1990, eleito como o “outsider” que na verdade não era, Fernando Collor de Mello valeu-se do ataque mais radical e ousado da história do país para debelar a inflação: o confisco dos depósitos; toda a dívida pública era, grosso modo, reemitida a cada 24 horas; isso criou o que os economistas chamam de “quase-moeda”, tornando inútil qualquer esforço de controle monetário na economia, logo, era impossível controlar a evolução dos preços; o plano, chamado por Collor de “bala de prata”, isto é, a última do tambor, fracassou, mas seu governo lançou agenda liberalizante para o país superar o modelo de substituição de importações.

Na próxima edição, a coluna tratará das gestões seguintes.


José Murilo de Carvalho: 'Militares que embarcaram no governo Bolsonaro se veem em um dilema'

Para o historiador José Murilo de Carvalho, tutela do Exército pode ser usada contra o presidente

Por Malu Delgado, do Valor Econômico

SÃO PAULO - A tutela do Exército pode ser usada contra o presidente Jair Bolsonaro “caso ele leve o país a situação de grave instabilidade”, avalia o historiador José Murilo de Carvalho, em entrevista ao Valor. Observador atento do papel das Forças Militares na república brasileira e em especial na conjuntura atual, José Murilo concordou em responder a perguntas por e-mail, sua forma recorrente de comunicação, mesmo antes da quarentena.

“Imagino que os militares que embarcaram na canoa furada do governo se veem em um dilema: ou caem fora, ou arriscam fazer as Forças Armadas pagarem o custo dos erros do presidente”, enfatizou, numa resposta enviada dias antes de o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, divulgar, na segunda-feira, o documento que enfatiza exatamente o papel constitucional dos militares, como reflete o historiador. “Não creio que a corporação militar esteja disposta a pôr em perigo sua reputação entre a população para defender um presidente que não está à altura do cargo”, disse ao Valor.

Na reedição revista e ampliada de seu livro “Forças Armadas e política no Brasil”, da Editora Todavia, José Murilo já enfatizava ter uma “nova, e mais pessimista, interpretação do papel das Forças Armadas na história de nossa República e na construção de nossa ainda claudicante democracia”. A atuação dos militares, explica ele, merece seu olhar atento desde os tempos em que o jovem universitário, militante da Ação Popular, assistiu perplexo ao golpe de 1964. Nesta revisão, José Murilo dedicou um capítulo exclusivo a 2019, intitulado “Uma república tutelada”.

Além de relembrar o histórico tuíte de abril de 2018, do general Eduardo Villas Bôas - que o historiador classifica como agressão à Constituição pelo fato de pressionar um outro Poder, o Supremo Tribunal Federal, a rejeitar o habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - José Murilo escreve que já havia “nuvens políticas turvando os céus bem antes”. Em 2015, pontua, o general que comandava a Secretaria de Economia e Finanças do Exército, Hamilton Mourão, já dava fortes declarações sem a usual contenção de militares para se meter em assuntos políticos.

“Não se pode deduzir do fato da inédita presença de militares no governo [Bolsonaro] a existência de um governo militar que se pareça com o que vigeu entre 1964 e 1985”, explica o historiador em seu livro. Mais explicitamente, os militares do governo Bolsonaro não representam as corporações e em uma eventual militarização do governo Bolsonaro, o presidente não teria adesão total das três Forças.

A pandemia serviu para ressaltar dramaticamente o problema de nossa desigualdade social”

Em outro ponto de reflexão que não poderia estar mais atual, José Murilo já salientava em sua obra que a Constituição de 88 manteve o papel de poder moderador das Forças Armadas, no seu artigo 142 (como na Constituição de 1824). É sintomático, continua ele, que não tenha havido “sequer uma tentativa de mudança em 39 anos de governos civis”, como se a república brasileira precisasse dessa bengala para sobreviver. “Cria-se, desse modo, um círculo vicioso: as Forças Armadas intervêm em nome da garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação das práticas democráticas”, escreveu.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O senhor já havia feito análises minuciosas sobre o papel político dos militares do Brasil, antes e depois da ditadura. Considerando a noção de “intervencionismo tutelar” das Forças Armadas, no Estado Novo, o senhor considera que a tutela militar ainda é característica preponderante do governo Bolsonaro agora, neste atual cenário de política agravada pela pandemia da covid-19?

José Murilo de Carvalho: A visão tutelar é das corporações militares, especialmente do Exército, não de Bolsonaro. Ela pode mesmo ser usada contra Bolsonaro, caso ele leve o país a situação de grave instabilidade. Recentemente, um general repetiu um mantra dessa visão dizendo que as Forças Armadas servem à pátria, não a governos [o general Alberto Cardoso, que idealizou o GSI e a Abin, no governo Fernando Henrique Cardoso, afirmou em 2019 que o papel das Forças Armadas “é pela defesa da pátria e garantia da lei. Nós não somos servidores do governo, somos servidores do povo brasileiro”]. Ora, no artigo 142 da Constituição está escrito que as Forças Armadas estão submetidas à autoridade suprema do presidente da República. Contradizendo essa afirmativa, o próprio artigo diz, a seguir, que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos Poderes constitucionais”. São duas coisas incompatíveis, uma aberração jurídica. Ou elas se submetem ao presidente ou garantem os Poderes. Em caso de presidente que ameace a independência dos Poderes, sem que haja ameaça grave ao país, o que farão elas? A ideologia da tutela as levará a optar pela segunda parte. Imagino que os militares que embarcaram na canoa furada do governo se veem em um dilema: ou caem fora, ou arriscam fazer as Forças Armadas pagar o custo dos erros do presidente.

Valor: Qual é a trincheira militar para evitar o desdobramento de um impeachment de Bolsonaro? O apoio das Forças Armadas, da cúpula à base, vai funcionar como contenção para Bolsonaro?

José Murilo: Entendo que contenção aqui se refere à defesa de Bolsonaro. Outro mantra das Forças Armadas é que elas têm boa aceitação na população, embora enfrentem a hostilidade de intelectuais, artistas, jornalistas. Esta visão tem sido confirmada em inúmeras pesquisas de opinião pública. Sem grande perigo de convulsão social, não creio que as Forças Armadas intervenham contra ou a favor do presidente. Hoje, a não ser em cabeças paranóicas, não há o perigo comunista como se alegava em 1964. Sem ameaça séria à segurança pública, não creio em intervenção explícita. Poderá haver disfarçada como a do general Villas Bôas às vésperas do julgamento de Lula no Supremo. Se a gravidade de uma eventual crise, como a de conflito entre os Poderes, for provocada ou acirrada pelo presidente, ele próprio poderá ser o alvo de ação para “garantir os Poderes constitucionais”. Não creio que a corporação militar esteja disposta a pôr em perigo sua reputação entre a população para defender um presidente que não está à altura do cargo.

Valor: Em suas reflexões sobre a cidadania brasileira, o senhor pontuou que “perdeu-se a crença de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade”. Quais podem ser as consequências deste momento, considerando os aspectos políticos e a falta de vigor da nossa democracia?

José Murilo: A pandemia serviu para ressaltar dramaticamente o problema de nossa desigualdade social há muito apontado por analistas de nosso drama nacional. Sem a pandemia, já parecia quase impossível reduzir a desigualdade que bloqueia nosso caminho para um país sustentável. Com ela, tem-se corretamente gastado milhões para aliviar o drama dos pobres. Mas o que tem sido feito para aproveitar a crise no sentido de promover reformas estruturais? Nada. A cláusula pétrea de nossas políticas econômica e fiscal é: distribuir se possível, redistribuir, isto é, tirar, via política fiscal, de quem ganha mais para dar a quem ganha menos, nunca. Hoje, quem ganha R$ 5 mil ao mês cai na mesma alíquota do imposto de renda de quem ganha R$ 100 mil.

Valor: Como o senhor mesmo já atestou, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor tinham “traços messiânicos e, sintomaticamente, nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por não se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com o papel do Congresso”. Bolsonaro segue a mesma característica do trio acima?

José Murilo: Ele está indo por caminho perigoso, talvez acreditando no respaldo incondicional verde-oliva, que os outros não tinham. Acho que está enganado. No momento, está protegido pela pandemia. Um processo de impeachment nestas condições seria inapropriado. Depois, não. Para o país, o ideal seria que parasse de dar motivos para medida tão drástica.

Valor: Pelo menos um terço da população brasileira apoia Bolsonaro. A nação segue “bestializada”, se é que se pode apropriar do termo nesta reflexão?

José Murilo: Usar a expressão hoje não seria adequado. Na proclamação, realmente não houve povo, como notou Aristides Lobo. Só Quintino Bocaiúva viu povo na rua, como noticiou na edição do dia 16 em seu jornal, “O País”. Foram as primeiras “fakenews” da República. Mesmo depois, durante toda a Primeira República, os votantes não chegavam a 5% da população. O povo só se manifestava em revoltas que não alteravam as bases do sistema. Hoje é totalmente diferente. Há uma imensa ágora nas redes sociais em que quase todos se podem manifestar. Há conflito de opinião, mas chamar uma parte de bestializada seria arrogância da outra parte. A divergência é fruto de nossa sociedade, de nossas desigualdades.

Valor: Desde o início do século 21, expande-se no mundo a noção mais liberal e fiscalista, com forte debate sobre o papel do Estado-nação, como o senhor mesmo já salientou em suas obras. O senhor acredita que a pandemia vai abrir espaço para um reposicionamento do intervencionismo estatal? Isso poderia ser benéfico?

José Murilo: Até liberais ortodoxos concordam que em situações como a de hoje é imprescindível a iniciativa do Estado. Se isso vai ter consequências duradouras é uma questão de adivinhação. Entre nós, já ficaria satisfeito se, como lição da crise, o Estado decidisse montar um sistema mais eficiente e mais abrangente de saúde pública e de apoio a vulneráveis.

Valor: A democracia sairá mais frágil ou mais consolidada após a superação desta pandemia?

José Murilo: Outra adivinhação. Meu lado otimista, em fase minguante, acredita que nossas instituições terão força suficiente para navegar evitando o naufrágio. No que se refere à consolidação de sistemas políticos, a capacidade de sobreviver a desafios é um dos fatores mais importantes.


Ricardo Noblat: Justiça põe a nu o governo Bolsonaro. E o que se vê é muito feio

Aperta-se o cerco

Diz a lei que ninguém é obrigado a produzir provas que o incriminem. Ou o presidente Jair Bolsonaro não conhece a lei ou decidiu contrariá-la para ajudar a esclarecer o que de fato houve quando ele tentou intervir na Polícia Federal, provocando por tabela a saída do governo do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

De volta do expediente no Palácio do Planalto, no cercadinho à entrada do Palácio da Alvorada onde costuma confraternizar com seus devotos e mandar jornalistas calarem a boca, Bolsonaro sacou do seu celular e mostrou um fragmento de mensagens trocadas por ele e Moro. Ocorre que o que ele mostrou dá razão ao ex-juiz.

Moro disse em depoimento à Polícia Federal que Bolsonaro lhe enviara notícia publicada sobre um inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal para apurar malfeitos de um grupo de deputados aliados dele. E ao comentar a notícia, escreveu que era por isso que chegara a hora de trocar o diretor-geral da Polícia Federal.

Por que Bolsonaro assinou embaixo da acusação que, se provada, poderá servir para que o Procurador-Geral da República o denuncie pelos crimes de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de Justiça e corrupção passiva? Sabe-se lá! Bolsonaro é seu maior inimigo.

Cadê a gravação em vídeo e áudio da reunião ministerial de 22 de abril passado? Só falta a gravação ter desaparecido, como Queiroz. Ou aparecer faltando trechos. O ministro Celso de Mello, do Supremo, deu um prazo de 72 horas para que uma cópia fiel da gravação lhe seja entregue pelo governo. Nem uma hora a mais.

Foi nessa reunião, segundo Moro, na presença de várias testemunhas, que Bolsonaro afirmou que se não pudesse trocar o superintendente da Polícia Federal no Rio, trocaria o diretor-geral e o próprio ministro da Justiça. Desde agosto de 2019 que ele cobrava a Moro a substituição. Queria pôr ali um delegado de sua confiança.

A razão disso? Foi o próprio Bolsonaro, outra vez, que se complicou ao explicá-la ontem: “O Rio é o meu Estado. O Rio é meu Estado. Eu fui acusado de tentar matar [a vereadora] Marielle Franco, quer algo mais grave? A Polícia Federal tem que investigar. Por que não investigou com profundidade?”. Não, ele não foi acusado.

Talvez tema, um dia, ser. Investigados são os seus filhos Carlos, o Zero Dois, e Flávio, o Zero Um. E não pela morte de Marielle, mas por ligações com milicianos e apropriação criminosa de parte dos salários pagos a servidores públicos empregados em seus gabinetes na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa do Rio.

Em março último, Moro ouviu de Bolsonaro quase em tom de súplica: “Você tem 27 superintendentes [da Polícia Federal]. Eu quero apenas 1, o do Rio”. À época, Moro já fora avisado por Bolsonaro que o futuro diretor-geral da Polícia Federal seria o delegado Alexandre Ramagem, que cuidara dele depois da facada.

Só não foi porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, suspendeu a posse. Mas Ramagem indicou para substitui-lo o delegado Rolando Alexandre de Souza, seu braço direito na Agência Brasileira de Inteligência. E a primeira coisa que Rolando fez foi trocar o superintendente do Rio. Como Bolsonaro queria.


Elio Gaspari: Bolsonaro semeia a anarquia militar

Para quem vive uma pandemia e uma recessão, essa encrenca não era necessária

Quando Jair Bolsonaro falou que “o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade e da verdade, também estão ao nosso lado”, não disse coisa nenhuma.

Foi apenas uma construção astuciosa, mas, como o capitão não consegue parar, acrescentou: “Não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos. Faremos cumprir a Constituição. Será cumprida a qualquer preço”. Logo ele, que se julga “realmente, a Constituição” e se referiu às “minhas Forças Armadas”. Ganha um resfriadinho em Caracas quem não conseguir juntar lé com cré.

Para quem vive uma pandemia com a marca dos 10 mil mortos batendo à porta e uma inédita recessão já instalada na economia, esse tipo de encrenca não era necessária.

O capitão passou mais tempo no baixo clero da Câmara do que no Exército, onde conheceu melhor as sendas da indisciplina do que as normas da corporação. Nelas, também não se enquadrava, por exemplo, o major e ex-deputado Curió do Araguaia. Levado ao Planalto por um sentimento antipetista, Bolsonaro flerta com a anarquia militar.

Essa anarquia, resultante de divisões dentro das Forças Armadas, se fez sentir na política brasileira do século passado, até que perdeu ímpeto em 1977 e desapareceu com a redemocratização.
Na crise que Bolsonaro incentiva, misturam-se ingredientes tóxicos. O primeiro deles é a influência de sua família no governo.

O que restava do prestígio militar do marechal Henrique Lott, poderoso ministro da Guerra de 1954 a 1959, esvaiu-se em 1962, quando sua filha Edna elegeu-se deputada estadual. Com 3 dos 5 presidentes-generais (Castello Branco, Emílio Médici e Ernesto Geisel), a história foi outra, e seus familiares não se metiam no governo. Castello demitiu um irmão porque aceitou um presente e não moveu um dedo quando a Marinha negou ao seu filho a promoção a almirante.

O segundo ingrediente tóxico vem a ser o “núcleo militar” formado no Planalto. É composto por militares da reserva e por um general da ativa agregado. Governos que não tiveram essa bizarrice funcionaram: José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Os que a tiveram: Costa e Silva e, de certa forma, Figueiredo, deram-se mal. Fora da linha de comando, só há a bagunça.

O terceiro ingrediente é a simpatia de Bolsonaro pela opinião de sargentos e suboficiais, somada ao expresso apoio dado a policiais militares amotinados. A ele se junta uma militância parruda e agressiva.

Nos últimos 50 anos, o Brasil teve dois tipos de chefes militares no Exército: aqueles de quem se sabia o nome e aqueles de quem não se sabia. Orlando Geisel e Leônidas Pires Gonçalves estiveram no primeiro grupo. Um enquadrou os generais depois da anarquia de 1969, na crise da doença de Costa e Silva. O outro, comandou-os no governo Sarney, quando baixou o chanfalho no capitão Bolsonaro.

Depois, no segundo grupo, vieram dois chefes que comandaram a força por 13 anos. Deles não se fala e eles também não falam. Quem cruzar com os generais Gleuber Vieira e Enzo Peri na rua, não saberá quem são.

A ambos aplica-se a lição que Ernesto Geisel deu a um paisano que lhe perguntou quem era um general que ele promoveu à quarta estrela. “Um grande oficial, e a prova disso é que você não sabe quem é.” Chamava-se Jorge de Sá Pinho.

*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Vinicius Torres Freire: Más notícias sobre o tamanho da crise

Indústria cai mais que previsto; ritmo ainda forte da epidemia trava mais o PIB

Aos poucos, as notícias da epidemia caem pelas tabelas. São substituídas pelo conta-gotas dos vazamentos do "caso Moro", pelas ameaças semanais de golpe presidencial e pelas evidências diárias de tutela militar. Sim, tutela, pois os generais soltam comunicados em que pressupõem seu poder moderador e afirmam em público e oficialmente o que entendem ser a justa medida das relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

Parece até que a epidemia se tornou uma rotina inevitável de morte e destruição econômica. Foi para escanteio o debate das medidas extras para atenuar a crise. Foi para a lateral a conversa sobre a necessidade de mais UTIs, ventiladores, testes.

A economia afunda? Quanto? Não se sabe bem, e pouca gente parece querer saber. Em março, a produção da indústria caiu mais de 9% ante fevereiro. A estimativa média era de queda de uns 4%. Parece faltar informação sobre o tamanho da desgraça e, portanto, medida razoável da reação necessária para atenuá-la.

Abril deve ter sido pior na indústria, pois foi um mês inteiro de paradão da pandemia. Projeção preliminar de economistas do Bradesco indica uma baixa de outros 6%, sobre março. Despiora? Ressalte-se: é queda sobre queda, cava-se dentro de um buraco.

Os serviços são um setor muito maior na economia; pode ser que uma despiora salve abril de um desastre geral maior. Mas não sabemos.

Os economistas do departamento de pesquisa macroeconômica do Bradesco também fizeram um primeiro exercício sobre o que pode ser a queda da renda em meses de epidemia. Isto é, o que dá a soma dos rendimentos totais do trabalho, dos benefícios sociais habituais e os benefícios sociais específicos para os tempos de epidemia?

No exercício, é considerada a massa mensal dos rendimentos do trabalho (soma de todos os "salários"). Supõe-se que o rendimento médio dos trabalhadores formais caia 25%; o dos informais, 50%. Haverá compensação parcial dessa perda, com seguro-desemprego extra e o auxílio emergencial para os informais. Os benefícios sociais rotineiros continuam na mesma.

A perda total de massa de rendimentos seria então de pouco mais de 8% por mês, neste exercício ainda muito preliminar e pouco balizado por dados reais de salários, que tão cedo não vão existir, aliás. Caso essa situação se estendesse para o ano todo, o consumo das famílias cairia quase 6%. O PIB, mais de 6%.

Não é o cenário desses economistas, que ora preveem queda de 4%, pois imagina-se alguma recuperação na segunda metade do ano.

A gente só pode imaginar, porém. O ritmo da economia depende também do ritmo da epidemia, com ou sem isolamento social. Faz mais de dez dias que há dúvidas sobre o ritmo do espalhamento da doença e suas mortes. Não sabemos desde fins de abril se o ritmo da doença parou de fato de desacelerar (se a taxa de crescimento de mortes está caindo).

Caso a epidemia não desacelere de modo relevante, medidas de isolamento e o medo recessivo da doença vão durar por mais tempo: mais mortes por mais tempo, mais meses desespero nos hospitais, mais medo nas ruas e nos negócios, mais dificuldade de retomada de alguma vida normal. Mais do que a pior da história conhecida, a recessão seria convulsiva.

Como se diz faz dois meses, a desaceleração da epidemia depende de isolamento e outras políticas de contenção do espraiamento da doença, para qual não há plano do governo federal, que sabota de resto as medidas regionais e locais mais sensatas. Pouca gente ainda parece ligar.


Monica De Bolle: Monetizável confusão

O Brasil está muito próximo de viver algo inédito na sua história, com um futuro quadro de depressão econômica

Monetizável rima com aplicável, inegável, e formidável. Formidável não no sentido de fantástico ou admirável, mas de algo que assumiu proporções excessivas, desnecessariamente. Entende-se que haja confusão, pois economia monetária é um tema árido por excelência, e é inegável que ela acontece no momento. O que não falta nos jornais brasileiros são artigos sobre “monetização” em suas diversas conotações, o que, paradoxalmente, torna a confusão em torno do termo visivelmente monetizável. O leitor, afinal, compra o jornal e lê sobre a confusão. Nos atos de comprar e ler a torna moeda corrente, por assim dizer.

O termo “monetização” é aplicável a variadas circunstâncias. Por exemplo: quando o banco central norte-americano – o Fed – compra títulos de longo prazo do Tesouro nos mercados secundários, a operação conhecida como “quantitative easing” (ou afrouxamento quantitativo), ele “monetiza”. O processo se dá da seguinte forma: de um lado, o Fed entra no mercado como comprador; de outro, um banco entra como vendedor. O encerramento da transação se dá com a aquisição de títulos pelo Fed, que se tornam parte do seu ativo, enquanto o depósito do banco no próprio Fed é creditado no montante da compra. Esse depósito faz parte do passivo do Fed, ele constitui as reservas bancárias que, por sua vez, compõem a base monetária. O aumento das reservas bancárias decorrente dessa transação eleva a base monetária, o que significa que houve uma “monetização”. Essa monetização, entretanto, fica circunscrita ao balanço do Fed – não há mais dinheiro circulando na economia em decorrência dela. Portanto, não há risco de inflação proveniente dessa ação, como já está mais do que comprovado. Isso significa que esse tipo de monetização é plenamente compatível com um regime de metas inflacionárias.

Em breve, o Banco Central (BCB) brasileiro poderá fazer essa operação, pois a PEC 10 de 2020 o permite. O uso de “quantitative easing” é um dos instrumentos adicionais de que os bancos centrais dispõem para combater os efeitos agudos da crise que hoje atravessamos. Não há qualquer problema em fazer isso no contexto brasileiro, pois, como dito, a operação se limita a inflar o balanço do BC sem ameaças ao regime de metas inflacionárias.

Mas consideremos o regime de metas inflacionárias. O Brasil está muito próximo de viver algo inédito na sua história, como tenho escrito nesse espaço. Vamos enfrentar um quadro de depressão econômica, com possível queda de dois dígitos do PIB em 2020, acompanhado de um processo deflacionário. Deflações são situações de quedas generalizadas do nível de preços: não se trata da queda do preço de um ou outro bem ou serviço, mas de todos os bens e serviços. Essas situações, sobretudo quando se configuram em espirais deflacionárias, isto é, quedas contínuas de preços movidas pela expectativa de que os preços continuarão a cair, são extremamente danosas para a economia. Empresas perdem receita e capacidade de sobrevivência, consumidores perdem renda, governos perdem capacidade de arrecadar. A razão dívida/PIB explode. Trata-se de uma situação de falência econômica múltipla.

Não é exagero dizer que espirais deflacionárias são piores do que as hiperinflações do nosso passado. Com essas se convive, penosamente.

Na situação de espiral deflacionária, um banco central que nada faz não está cumprindo o regime de metas. Afinal, o regime estabelece um piso e um teto para a inflação. Se a inflação acima do teto é um problema, a inflação abaixo do piso, possivelmente em território negativo, é um problema de magnitude igual ou pior. Países que viveram situações deflacionárias mostram a dificuldade de quebrar esse ciclo. Para evitá-lo e cumprir, na medida do possível, o regime de metas inflacionárias, cabe ao Banco Central lançar mão de todos os instrumentos à sua disposição, o que inclui a monetização explícita. Trata-se da emissão monetária para cobrir os déficits do governo, como faz hoje o Banco da Inglaterra (BoE). O BoE o faz não por ser o Reino Unido um país rico e de moeda forte.

Ele o faz precisamente por causa do risco deflacionário que se apresenta. Faz porque tem um regime de metas a cumprir e um compromisso com a população.

É comum que nós, brasileiros, achemo-nos diferentes dos outros também em matéria de economia, e nosso passado inflacionário sustenta essa percepção. Mas sejamos honestos: perante o abismo da deflação, todos somos iguais. Não se olha para o abismo com complacência.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Bruno Boghossian: Depoimento frágil de Moro evidencia fixação de Bolsonaro com PF do Rio

Presidente se recusa a explicar as 4 tentativas de trocar chefe do órgão em seu estado

Jair Bolsonaro saiu descontrolado do Palácio da Alvorada. Esbravejou contra a imprensa e disse que não interferia na Polícia Federal. "Não tenho nada contra o superintendente do Rio", afirmou.

O presidente só não explicou por que, então, tentou forçar a substituição do chefe do órgão no estado quatro vezes em menos de um ano e meio. Segundo o ex-juiz Sergio Moro, o presidente fez pressões pela mudança em agosto de 2019 e em janeiro, março e abril deste ano.

Na quinta tentativa, seus desejos foram atendidos. Ele precisou atropelar o Ministro da Justiça e demitir o diretor-geral da Polícia Federal, mas finalmente conseguiu mexer no órgão em sua base política. A recusa do presidente em explicar os motivos desse lance é reveladora.

O depoimento de Moro sobre a intervenção de Bolsonaro na PF, tornado público nesta terça (5), foi considerado "fraquíssimo" por quem acompanha o inquérito. O ex-juiz se negou a imputar crimes ao presidente e apresentou poucas provas da intromissão do antigo chefe.

As oito horas de declarações do ex-ministro evidenciaram apenas a fixação de Bolsonaro com um único posto. Embora a PF tenha 27 superintendências regionais, Moro afirmou que o presidente dizia querer "apenas uma, a do Rio de Janeiro".

Em agosto, Bolsonaro disse que a justificativa era a baixa produtividade do órgão. Moro disse que aquele era um "motivo inverídico". Depois, o presidente citou como causas investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco que só ocorreram meses depois de suas primeiras investidas pela troca.

Quando a mudança se concretizou, Bolsonaro se enfureceu com jornalistas que perguntavam sobre a interferência. Pela manhã, mandou os repórteres calarem a boca. No fim da tarde, deu uma resposta pela metade: "O Rio é o meu estado".

Moro disse dez vezes à PF que os motivos da pressão de Bolsonaro "devem ser indagados ao presidente". Dessa vez, ele não poderá mandar os investigadores se calarem.


Rosângela Bittar: Jogo de assombrações

Provocar a cizânia na tropa é o pior dos ataques a um comando militar

Sabe-se, com certeza, apenas que golpe não é. Mas não se conhece o significado real da invocação do presidente Jair Bolsonaro às Forças Armadas, cujo apoio ele alardeia para ameaçar, exatamente, com o golpe.

Os comandos militares não atendem ao convite à intervenção consentida. Este é o modelo reclamado nos domingueiros e violentos piqueniques golpistas da Praça dos Três Poderes. As manifestações, animadas pelo presidente, sua família e amigos, descomprometidos com a civilidade, alimentam falsa tensão política.

Desviam, com crueldade, o foco da dura e letal realidade da pandemia que mata brasileiros e brasileiras. Até que ponto não passa de blefe o compromisso incondicional da força militar que o presidente propaga?

Os escalões profissionais das Forças pretendem manter-se no papel constitucional que cumprem, à risca, há décadas. Para o que pretende Bolsonaro, aí está o problema.

Por enquanto, ainda não se cansaram de redigir notas reafirmando a observância rigorosa das atribuições constitucionais. É um texto esperado, que surge sempre em seguida às manifestações de que participa o presidente, à frente de um grupo de fanáticos. Assim, de ameaça em ameaça, e explicação em explicação, o suspense é mantido. Por mais que se reúnam com Bolsonaro nas vésperas dos atos extremistas, permitindo-lhe mostrar força, os militares não parecem dispostos ao papel de algozes da democracia.

Reforça o enredo do terror o fato de terem quadros e indicações para todas as funções. Hamilton Mourão, Braga Neto e Fernando Azevedo constituem praticamente uma “junta” natural. Luiz Eduardo Ramos, da ativa, é regra três para assumir o comando da tropa, em substituição a Edson Leal Pujol. Apesar do seu veemente desmentido, a notícia de que daria a rasteira já havia cumprido seu objetivo de confundir. Em evidente relevância aos temores lançados nos comícios em que paira a ameaça de intervenção militar. Tudo se encaixa, nada é por acaso. Se a interpretação é exagerada, o que significam as insinuações de Bolsonaro de que dispõe dos militares para o que der e vier?

Selecionemos duas hipóteses de explicação adequadas à conduta do presidente. Numa, é possível concluir que os militares são vítimas e estão sendo provocados para aceitarem se engajar nas esquisitices do governo. Embora não estejam dispostos a tudo, não têm meios para reagir às pressões públicas de Bolsonaro.

Como resistem, ficam na mira. De quem? Do Gabinete do Ódio, o operador oficial, de dentro do Palácio, desse tipo de enredo. Atua sempre sob o comando do filho vereador e do professor virtual que, de Richmond, tutela o governo, em Brasília.

Bem-sucedido, o grupo já conseguiu, para ficar apenas no tema em questão, demitir Santos Cruz, abalar Hamilton Mourão, denegrir Rocha Paiva (melancia), irritar Villas Boas, e iniciar, agora, uma guerra contra Pujol. Acham que ele não atua politicamente e não coloca sua tropa a serviço do interesse do governo. Confiam que, se não conseguirem arrastar o comandante para o embate político, pelo menos promovem a divisão, pois consideram os escalões intermediários já engajados na dialética presidencial. Provocar a cizânia na tropa é o pior dos ataques a um comando militar.

Uma segunda hipótese, de significado também realista, mostra o presidente atormentado por inquéritos que o colocam, bem como a sua família, no alvo da incursão em crime. Ameaçado, ele ameaça.

E o que acossa Bolsonaro são, sobretudo, as investigações em três frentes: as das fake news, cujo aprofundamento pode retroagir a sua eleição; a dos gabinetes parlamentares controlados pela família e suas conexões, no Rio; e a das denúncias do ex-ministro Sérgio Moro.

De assombrado, Bolsonaro partiu para cima e virou assombração.


Vera Magalhães: Xadrez com um pombo

Moro dá depoimento cirúrgico e calculado, enquanto Bolsonaro vocifera contra si

A internet, com todas as suas contribuições às ciências humanas, também produziu, vejam só, uma teoria “psicológica”. Trata-se do complexo do pombo enxadrista, um fenômeno que tem tudo a ver com o espírito do tempo bolsonarista.

Diz esse conceito, comumente empregado para descrever a inutilidade do debate científico com os negacionismos de todas as espécies, que argumentar com certas pessoas é o mesmo que jogar xadrez com um pombo: ele vai defecar no tabuleiro, sair voando e derrubando todas as peças e ainda alardear que venceu a partida.

A dinâmica entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro desde o pedido de demissão do ex-ministro até o ato da última terça-feira, 5, com a divulgação da íntegra do depoimento de Moro à Polícia Federal, é em tudo idêntica a uma partida de xadrez entre um humano e um pombo.

De forma sucinta e extremamente calculada, Moro tratou de: 1) entregar provas, evidências, testemunhas e caminhos de investigação para todas as suas declarações do dia 24 de abril e 2) evitar dizer que Bolsonaro cometeu algum crime.

Essas duas primeiras estratégias visam evitar que o ex-juiz e ex-ministro: 1) seja acusado de ter praticado denunciação caluniosa e 2) seja acusado de ter prevaricado diante do que sabia serem pedidos ilícitos do então chefe.

Tomado esse cuidado, Moro passou a executar seu outro grande objetivo com o depoimento: enredar o presidente e desenhar para a PF e o Ministério Público Federal o caminho das pedras e do xeque-mate no pombo.

Frisou, inclusive numerando (talvez tenha grifado com caneta marca-texto ao final e marcado com post-its, daí a demora do depoimento de oito horas), os elementos de prova e o caminho para buscar novas:

1) o próprio depoimento;

2) mensagem de WhatsApp de Bolsonaro a ele em 23 de abril dizendo que o inquérito do STF sobre fake news era um motivo para trocar o diretor-geral da Polícia Federal;

3) o histórico de pressões passadas e recentes para a troca de Maurício Valeixo e o superintendente da PF no Rio, inclusive dizendo que Bolsonaro mentiu publicamente sobre as razões para a troca no Rio (e apontando dados públicos que desmentem o presidente);

4) declarações de Bolsonaro se autoincriminando em pronunciamento após sua demissão;
5) a reunião de ministros gravada em que Bolsonaro fez pressão pública pela troca na PF;

6) relatórios da Abin mostrando que já havia relatórios de inteligência da PF para a Presidência e que, portanto, a justificativa de Bolsonaro não para em pé;

7) que os relatórios podem ser pedidos à PF se a Abin não fornecer;

8) mais mensagens de WhatsApp de seu celular.

Mais: Moro evoca o testemunho de vários ministros, com destaque proposital aos militares. Mexe com o senso de disciplina e senso de dever das Forças Armadas e aposta que os generais não vão mentir para proteger o presidente.

O golpe fatal: Moro deixa claro que a verdadeira preocupação de Bolsonaro era com o inquérito do STF, tanto que dá a cereja do bolo do depoimento, quando diz que tem outra mensagem do presidente para si sobre esse assunto (ainda inédita).

Na sua vez de mover as peças, o que fez Bolsonaro? Como um pombo, estufou o peito, abriu as asas e desandou a falar no cercadinho em frente do Alvorada. “Produziu mais elementos para se autoincriminar”, comentou um frio observador da partida.

Além de ter um pombo como adversário, Moro tem outro trunfo: à frente do inquérito está Celso de Mello, que decidiu que a partida será transmitida ao vivo, sem cortes nem jogadas sigilosas. Isso inclui depoimentos dos senhores generais e o aguardado áudio da reunião ministerial – que, aliás, o presidente tinha ameaçado divulgar, antes de ser dissuadido pelos pacientes pajens de farda.


Bernardo Mello Franco: Um carrasco no Planalto

Bolsonaro recebeu o major Curió, símbolo da matança de opositores na ditadura militar. Foi mais uma isca para atiçar os extremistas que apoiam seu projeto autoritário

O Brasil já contava 7.025 mortos pelo coronavírus quando Jair Bolsonaro encontrou tempo para confraternizar com um carrasco da ditadura. Na manhã de segunda-feira, o presidente abriu o gabinete para receber Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió. Ele já foi denunciado seis vezes pela matança promovida pelo Exército na repressão à Guerrilha do Araguaia.

O encontro foi omitido da agenda oficial de Bolsonaro. Só entrou nos registros à noite, depois de revelado pelo blog de Rubens Valente no UOL. Mais tarde, um senador governista divulgou fotos da conversa. Numa delas, o presidente aparece agachado ao lado do visitante, acusado de participar de sequestros e assassinatos.

O próprio Curió forneceu provas do massacre. Em 2009, ele abriu arquivos ao jornal O Estado de S. Paulo e confirmou a execução de 41 militantes presos, que não ofereciam perigo às tropas. Muitos se entregaram maltrapilhos e famintos, após meses de fuga na floresta.

Em entrevista a Leonencio Nossa, reproduzida no livro “Mata! O major Curió e as guerrilhas do Araguaia”, o militar reformado comparou o extermínio de prisioneiros à limpeza de uma lavoura. “Quando se capina, não se corta a erva daninha só pelo caule. É preciso arrancá-la pela raiz para que não brote novamente”, disse.

Bolsonaro sempre exaltou a matança na selva. Na Câmara, ele debochava das famílias dos desaparecidos com o slogan “Quem procura osso é cachorro”. No Planalto, extinguiu o grupo de trabalho que tentava identificar restos mortais dos combatentes.

A recepção a Curió foi uma nova isca para atiçar a militância de extrema direita que apoia o projeto autoritário do capitão. O episódio se soma a outras indignidades bolsonaristas, como as agressões a jornalistas e as ameaças ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal.

Em mais uma falsificação histórica, a Secretaria de Comunicação da Presidência chamou o major de “herói do Brasil”. A Convenção de Genebra trata a execução de prisioneiros como crime de guerra, e nem as leis da ditadura autorizavam o que se fez no Araguaia. O Ministério Público Federal pede a condenação de Curió desde 2012, mas ele continua solto graças a uma interpretação generosa da Lei da Anistia.