Day: maio 2, 2020
Alon Feuerwerker: O abacaxi para descascar
Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai.
Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar mas só de vez em quando têm os votos para tal.
Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como estava quase todo mundo meio encrencado com a Lava Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelos menos um punhado de bois atravessarem.
Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.
O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.
Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.
Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores da reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.
Um abacaxi não trivial de descascar.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Marcus Pestana: O SUS, Eugênio e Mandetta
Tempos nebulosos e sombrios os que estamos vivendo. No exato momento da publicação deste artigo a COVID-19 já terá levado mais de 210 mil vidas em todo o mundo e mais de 6 mil vidas no Brasil. Sem falar na enorme subnotificação que começa a ser desvendada, principalmente nos países emergentes e nos países mais pobres. Os sistemas nacionais de saúde estão sendo testados em seus limites. O mundo inteiro está mergulhado num momento desafiador. A presente crise promove a combinação perversa entre a violenta pandemia do coronavírus e o fantasma de uma crise econômica inédita e devastadora.
Felizmente, na saúde, com todas as mazelas e problemas, o SUS é um sistema nacional unificado e coordenado, com capilaridade e descentralização de ações. Sofre sempre o problema crônico de falta de recursos, mas heroicamente resiste e enfrenta a epidemia. A saúde suplementar complementa as ações publicas cuidando de 47 milhões de brasileiros. Mas o sistema de saúde pode colapsar. O resultado só não é pior graças à correta política de isolamento social liderada pela a antiga equipe do Ministério da Saúde, por Governadores e Prefeitos.
Poderia me dedicar, nessas linhas, a discutir a crise política derivada da saída do Ministro Sérgio Moro, os conflitos permanentes, reavivados nos últimos dias, entre os poderes da República, a falta de rumo, na saúde e na economia, fruto dos problemas internos do Governo Federal, a expansão geométrica da epidemia entre nós. Mas preferi homenagear os milhares de profissionais de saúde e gestores que neste momento defendem, a duras penas e com enormes sacrifícios, as nossas vidas, nas pessoas de dois grandes protagonistas da história do SUS: o grande sanitarista Eugênio Villaça e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Afinal, a missão do SUS é cuidar das pessoas e suas ações são feitas por pessoas, e entre elas alguns exercem papel destacado de liderança.
Eugênio Villaça completou, no último dia 24, oitenta anos. Vindo lá de sua Pará de Minas e inspirado na experiência de seu pai, que desenvolvia trabalho social num posto de puericultura, assumiu desde cedo o compromisso explicitado nos agradecimentos em seu livro “As Redes de Atenção a Saúde”, uma das suas principais publicações entre outras dezenas: “projetos de saúde exigem amor aos seus sujeitos, especialmente às pessoas mais humildes”. Formou-se em Odontologia na UFMG e se tornou um reconhecido cirurgião em Belo Horizonte e professor da Universidade. Uma virada em sua vida aconteceu a partir do curso que fez na Escola Nacional de Saúde Pública, se especializando em planejamento de saúde. Abandonou sua promissora carreira de cirurgião odontológico, que lhe daria uma vida material muito mais tranquila, para se dedicar de corpo e alma à saúde pública.
A prática sem boa teoria é cega. A teoria sem a ação transformadora é estéril. Eugênio se transformou em um dos mais importantes sanitaristas do Brasil, um dos autores mais lido pelos gestores e profissionais do SUS e atuou em centenas de municípios brasileiros e em experiências marcantes no Paraná, Ceará e Minas Gerais. Eugênio Villaça concentra uma rara combinação de qualidades: rigor e qualidade intelectual, inquietação existencial, espírito público, experiência acumulada, criatividade, integridade pessoal, aguçado senso crítico, compromisso social, espírito militante e capacidade de trabalho e liderança. Sempre foi uma referência para organizações multilaterais como OMS, OPAS, BIRD, BID e de acordos de cooperação internacional. Aos 80 anos, continua militando como principal consultor do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais – CONASS, e contribuindo para a evolução e superação dos gargalos desta política pública de saúde vitoriosa chamada SUS.
Sempre soube que o SUS era uma obra coletiva em permanente construção, como na escolha do poema de João Cabral de Melo Neto para abrir um de seus livros que “um galo sozinho não tece a manhã, ele precisará sempre de outros galos... para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. O SUS é obra de milhares e ele influenciou e qualificou muitos deles.
Lutou e luta pela primazia da atenção primária como centro de gravidade ordenador das redes de atenção integral à saúde e alertava, não por veleidade teórica ou preciosismo, para a imprecisão de alguns conceitos, como baixa, média e alta complexidade ou atenção básica, como se o nível primário de atenção não fosse central e pudesse ser desqualificado como uma coisa trivial, simples, sem importância. Lembro bem dele questionando nossa equipe em Minas Gerais: “O que é mais complexo um transplante ou fazer uma pessoas parar de fumar ou beber exageradamente?” E completava: “Nenhum dos dois, são ambos complexos. Um denso em tecnologia, outro em cognição e relacionamento humano”.
Em seu centrado otimismo cunhou uma frase que virou um mantra no CONASS: “O SUS é uma solução com problemas e não um problema sem solução”. Nos oitenta anos de Eugênio Villaça, a homenagem a todos os sanitaristas que impulsionaram com suas ideias a construção do sistema público de saúde brasileiro, que heroicamente nos defende da COVID-19.
Luiz Henrique Mandetta é médico ortopedista, nascido no Mato Grosso do Sul, com formação em ortopedia pediátrica nos EUA. Foi secretário municipal de Campo Grande, dirigente da UNIMED lá, deputado federal de 2011 a 2018. Compartilhei com ele durante oito anos as manhãs das quartas-feiras na Comissão de Seguridade Social, Saúde e Família da Câmara dos Deputados. Ele era o mais “caxias” da turma toda, e olha que eu era muito aplicado também. Mas ele era o único, o único mesmo, que estudava na véspera todos os projetos em pauta. Sério, dedicado, inteligente, experiente, estudioso, competente e entusiasmado pelas lutas em favor da saúde. Aos 54 anos, em 2019, foi nomeado Ministro da Saúde.
Tivemos grandes ministros da saúde como Adib Jatene José Serra, entre outros. Mandetta passou a integrar a lista dos melhores ministros de toda nossa história. As crises forjam os grandes líderes. Durante o enfrentamento do coronavírus, Mandetta transformou-se em uma referência para a população brasileira. Com seu carisma, profissionalismo, seriedade e capacidade de comunicação conseguiu mobilizar o país em torno da única estratégia disponível para o enfrentamento da pandemia: o isolamento social. Ganhou a confiança e a admiração de milhões de brasileiros. Deixou um vácuo enorme com a sua saída.
Não há saídas simples para problemas complexos. Erguer um sistema público de acesso universal e atenção integral à saúde não é nada fácil num país que tem um investimento público per capita três vezes menor que Portugal, quatro vezes menor que a Espanha, de sete a nove vezes menor que Itália, Canadá, Reino Unido e França. Se é verdade que o SUS tem graves limitações, principalmente financeiras, seria impossível imaginar a defesa da vida diante da agressiva pandemia da COVID-19 sem a existência do SUS. Esses 31 anos de construção do SUS é obra de milhares de gestores, profissionais de saúde, conselheiros de saúde, espalhados anonimamente por cada um dos municípios brasileiros. Mas o seu sucesso relativo deve-se em grande parte às ideias e ações de pessoas com Eugênio Villaça Mendes e Luiz Henrique Mandetta. A eles nossa homenagem e gratidão.
Demétrio Magnoli: Operação geopolítica da China na pandemia terá implicações de longo prazo
Na aurora de 7 de fevereiro, o nome de Li Wenliang surgiu numa inscrição imensa, desenhada na neve, à margem de um rio chinês.
Três meses e uma pandemia depois, em 29 de abril, a página A5 da Folha foi inteiramente ocupada por um informe publicitário que canta as glórias da China. As duas imagens contam uma história —ou melhor, a inversão de uma história. A operação terá implicações geopolíticas de longo prazo.
O médico Li Wenliang, um dos primeiros a soar o alarme da nova doença, foi calado pelo Estado, contraiu o coronavírus e morreu. A notícia correu nas redes sociais, convertendo-o em herói popular: o símbolo da perversidade do regime.
A página publicitária na Folha traz a voz de Xi Jinping, dublada por um "especialista" brasileiro, um diplomata chinês e o médico-burocrata responsável pela medicina tradicional chinesa. É o segundo funeral de Li Wenliang: o panegírico da "eficiência" sanitária do sistema totalitário.
O primeiro pilar da "guerra da informação" deflagrada por Xi Jinping é a manipulação das estatísticas de óbitos. Segundo os números oficiais, a China encerra sua epidemia com 4.600 mortos, 13 vezes menos que os EUA, onde o vírus continua a ceifar 2.000 vidas por dia.
Deborah Birx, a chefe da força-tarefa dos EUA para a Covid, classificou a contabilidade chinesa como "irreal". A palavra quase apareceu num relatório da Comissão Europeia, mas foi suprimida por temor à represália do principal fornecedor de respiradores, máscaras e EPIs.
O segundo pilar é a campanha de "filantropia sanitária", pela transferência gratuita desses equipamentos e materiais a países em desenvolvimento. Nessa frente, o governo chinês divide o trabalho com Jack Ma, fundador do Alibaba, a "Amazon do Oriente". A iniciativa faz parte de um projeto muito mais ambicioso, a "rota da seda sanitária", que almeja converter a China em ator global no setor multibilionário da indústria farmacêutica.
O surto do ebola na África Ocidental, em 2014, foi o palco da aventura pioneira chinesa na política sanitária internacional. Na ocasião, a China cooperou com os EUA, cumprindo papel coadjuvante. Já na "rota da seda sanitária", ela opera unilateralmente, projetando influência no Sudeste Asiático, na Ásia Central e na África.
A escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS, em 2017, alavancada por um lobby chinês, converteu a organização em trampolim para a diplomacia sanitária de Xi Jinping na África, que utiliza a Etiópia como cabeça de ponte.
O FMI estima violentas quedas do PIB anual nos EUA (-5,9%), na Zona do Euro (-7,5%), no Reino Unido (-6,5%) e no Japão (-5,2%), mas discreto crescimento na China (1,2%). A crise do coronavírus acelera as tendências prévias de deslocamento do eixo econômico global. Mas o triunfo geopolítico chinês, apoiado na falsificação da história, deriva essencialmente dos fracassos ocidentais.
Os EUA praticaram o esporte primitivo do negacionismo, retrocederam para o isolacionismo e, no fim, renunciaram a disputar influência com a China na OMS. Trump tenta, pateticamente, livrar-se da responsabilidade pela negligência, atribuindo a pilha de 65 mil cadáveres ao "inimigo estrangeiro" (o "vírus chinês") e disseminando teorias conspiratórias (o "vírus de laboratório"), enquanto faz da emergência sanitária um pretexto para radicalizar a xenofobia.
Do outro lado do Atlântico, a União Europeia fechou descoordenadamente suas fronteiras internas e reativa a tensão entre Alemanha e o trio França/Itália/Espanha em torno das estratégias de resgate da economia.
"Para a China, tudo serve a uma utilidade política; um número nada significa para eles", explica Ai Weiwei, o célebre artista dissidente chinês, referindo-se à macabra piada estatística. A China da página A5 soterra a China da inscrição na neve fofa. Ao mentiroso, as batatas.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Julianna Sofia: Fila 'cultural' de Onyx é desculpa para incompetência do governo
Fila 'cultural' de Onyx é desculpa para incompetência do governo
Da linhagem dos obscurantistas do bolsonarismo para os quais o problema do Brasil é o brasileiro, o ministro Onyx Lorenzoni (Cidadania) credita à "nossa cultura" um dos motivos para as filas nas agências da Caixa para sacar o auxílio emergencial de R$ 600.
Zombaria diante do desespero de trabalhadores em jornadas penosas de espera de até oito horas. Se é traço cultural, a atual administração esmera-se em reforçá-lo.
Entre março e abril, ao menos 1 milhão de trabalhadores perderam seus postos de trabalho e teriam direito ao seguro-desemprego. Foram 804 mil os que garantiram o recebimento do benefício. Outros 200 mil não conseguiram acesso a agências do Sine, nem funcionaram os meios remotos para obter o auxílio. "Temos uma pequena fila, que estamos dando conta rapidamente", explicou o secretário Bruno Bianco (Previdência e Trabalho).
Foi na gestão de Jair Bolsonaro que, desde meados do ano passado e depois de mais de uma década, segurados do INSS passaram a reviver o pesadelo do atraso na concessão de benefícios previdenciários. Uma fila cujo pico atingiu 2,3 milhões de aposentadorias e auxílios represados em 2019 e só deve ser zerada no segundo semestre deste ano. A demora permitiu ao governo empurrar para 2020 uma despesa de R$ 2,3 bilhões --uma espécie de "pedalada social".
Sob as barbas de Onyx, uma outra espera. Embora empregue superlativos para tratar dos pagamentos do Bolsa Família, ele andou esquecendo que ainda há 200 mil famílias vulneráveis que solicitaram o benefício há mais de 45 dias e aguardam resposta. A fila afeta pessoas em extrema pobreza em mais de 700 municípios.
É preciso reconhecer presteza em certas ações do ministro, no entanto. Como revelou o repórter Renato Onofre, Onyx indicou seu professor particular de inglês, há pouco conhecido e em início de carreira, a uma vaga no ministério —salário de R$ 10 mil. Bastou a divulgação para o processo ser rapidamente cancelado.
Hélio Schwartsman: Um tribunal que não se contém
O fato de o STF ter poder para fazer algo não implica que deva fazê-lo
É com dor no coração que hoje vou defender Jair Bolsonaro. Mais especificamente, vou problematizar a decisão do STF que suspendeu a investidura de Alexandre Ramagem no cargo de diretor-geral da Polícia Federal.
Comecemos pelo que a determinação não significa. Ela não significa um flagrante erro judicial nem uma espécie de golpe de Estado. Vivemos num sistema constitucional que dá ao Judiciário a última palavra em todas as questões que envolvam a interpretação da lei.
Minha objeção é que o fato de o STF ter poder para fazer algo não implica que deva usá-lo. Como já disse aqui diversas vezes, um sistema que confere tamanha força ao Judiciário só funciona bem se seus órgãos de cúpula souberem exercer a autocontenção, em especial nas questões que envolvem a separação de Poderes.
Isso significa, num caso como o de Ramagem, ater-se às exigências formais especificadas em lei, evitando evocar princípios constitucionais vagos e inescapavelmente subjetivos. É verdade que o artigo 37 da Carta diz que todos os atos da administração devem ser pautados pela impessoalidade e pela moralidade, entre outros quesitos. Mas existem no Brasil quase 20 mil juízes. Se cada um deles sentir-se autorizado a ignorar o que a lei inequivocamente especifica para impor sua concepção pessoal de moralidade, o país estará perdido.
Infelizmente, o STF vem adotando o caminho mais intervencionista já há algum tempo. Começou com as prisões do ex-senador Delcídio Amaral e do ex-deputado Eduardo Cunha —ambas em clara oposição à letra da Constituição— e fez escola com os vetos à nomeação de ministros por Dilma Rousseff e Michel Temer.
Isso significa que Bolsonaro deveria estar livre para interferir na PF? É claro que não. Mas o remédio para mais essa iniquidade do ex-militar é um processo por crime de responsabilidade ou por infração penal comum, não o encurtamento dos poderes presidenciais.
Guilherme Amado: O fisiologismo à Bolsonaro
O abraço escancarado no centrão não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso
O Palácio do Planalto fez uma caçada no domingo 19 ao telefone dos ex-deputados Roberto Jefferson e Cristiane Brasil, pai e filha, expoentes do centrão, mesmo que hoje sem cargo. Jair Bolsonaro queria falar diretamente com Jefferson, curioso para saber o que o pivô do mensalão revelaria mais tarde numa live sobre um suposto plano de Rodrigo Maia para derrubar o presidente da República. Bolsonaro logo soube o que pretendia o ex-companheiro de Câmara e partido. Jefferson está disposto a fazer com Bolsonaro o mesmo que fez com Fernando Collor e com Michel Temer: ao perceber a decadência de um governo e a fragilidade política de um presidente, estender a mão. Atacaria Rodrigo Maia, sem apresentar fato que sustentasse o tal golpe por vir, em troca disso.
Claro que se trata de uma aproximação despretensiosa, baseada nos mais elevados princípios da República. De cristão para cristão. Mas quis o destino que o namoro, para usar a terminologia presidencial, se desse na mesma semana do divórcio litigioso com Sergio Moro. A saída do símbolo da Lava Jato — para o bem e para o mal — e a entrada de Jefferson para a base do governo foram simbólicos de uma ruptura na prática com algo que Bolsonaro só fez no discurso, ao longo da vida parlamentar e também como presidente: o tal do combate à corrupção. Embora sua eleição tenha ocorrido em parte no embalo do papo de enfrentar o crime de colarinho-branco, nunca houve de fato um esforço do presidente para tanto. O abraço escancarado no centrão de Jefferson, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira e Gilberto Kassab tem ocorrido sem constrangimento. O que não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso.
O bolsonarismo só havia tirado da cartola um novo tipo de fisiologismo, desde a formação inicial do governo. Ou não é fisiologismo nomear militares porque são militares e não necessariamente pela qualificação técnica? Evangélicos por serem evangélicos? Um veterinário sanfoneiro para a presidência da Embratur? Uma blogueira para coordenar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? Um deputado investigado por criar candidaturas laranjas como ministro? Tentar emplacar o filho — o filho — como embaixador nos Estados Unidos? Bater o recorde de emendas parlamentares liberadas para aprovar a reforma da Previdência? Nada disso difere de aceitar um indicado do centrão.
Mesmo o centrão tem cargos desde o começo. Basta perguntar a qualquer líder dos novos partidos com relação direta com Bolsonaro — PP, PTB, Republicanos, PSD — sobre o que o DEM, esse também do centrão, vale lembrar, tem ou já teve no governo. Foi o único a ter três ministérios, Agricultura, Cidadania e Saúde, até a saída de Luiz Henrique Mandetta. Embora a legenda diga que os ministérios não são indicações da cúpula partidária, é inevitável lembrar que só a sigla com as presidências do Senado e da Câmara teve tantas pastas. O partido nomeou ainda para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). No Ministério da Saúde, o ex-deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA) ganhou uma assessoria e o também ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) uma diretoria.
Roberto Jefferson foi um dos poucos réus políticos do mensalão que admitiu ter pego dinheiro: R$ 4 milhões pagos pelo PT. Ficou um ano em regime fechado e depois cumpriu a pena em casa. Hoje, é réu na Justiça Federal do Distrito Federal, acusado de integrar uma organização criminosa no governo Temer, para a concessão de registros sindicais em troca de propina — acusação que ele refuta. Seu plano, agora, é levar Bolsonaro de volta ao PTB.
Bolsonaro foi do PTB de Jefferson, bem como foi também do PDC, PPR, PP, PFL (hoje DEM), PSC e, ufa, do PSL. O delator do mensalão acha que o partido deve voltar a ser o lar do presidente. “Estou do lado do capitão. Faço a defesa dele de coração, com minha alma, brandindo a espada sagrada que tenho em defesa do legado que recebi de meus antepassados”, disse à coluna, afiado em jeffersonês castiço. Perguntado se quer cargos, é rápido no gatilho: “Sabe qual cargo eu quero do governo Bolsonaro? Quero trazer para o PTB o cargo de presidente da República. Eu quero que Bolsonaro venha para o PTB. Ele já foi do partido e tem tapete vermelho para voltar com o grupo dele. Bolsonaro vai conhecer um partido de verdade, de homens de verdade, que não correm da luta”.
Até outro dia, pouco antes de Bolsonaro bater recorde no número de pedidos de impeachment em tão pouco tempo — já foram 31, em 15 meses de governo — a relação entre centrão e bolsonaristas não era, ao menos publicamente, boa. “Deus nos livre e guarde do centrão”, escreveu a bolsonarista Bia Kicis. “Eu sou contra qualquer acordo com o centrão”, defendeu Alê Silva, também defensora do governo. “Nos foi colocado na mesa pelo centrão duas opções. Uma verdadeira chantagem. Não vamos ceder”, bradou Luiz Lima, outro do PSL pró-Bolsonaro. Mas os três deputados federais foram às redes sociais nesse tom antes da agonia de Bolsonaro fazê-lo rifar Moro para controlar a Polícia Federal e insistir numa conexão com os partidos de centro.
Agora, o que está se tentando formar é uma só base, que vai congregar bolsonaristas e centrão. Sem rubor de nenhuma parte e com o beneplácito de generais com assento no Planalto, a exemplo dos ministros Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto.
A militância digital parou da noite para o dia de atacar o centrão nas redes sociais. “Virei rei nas redes sociais de meu estado. Não apanho mais”, contou, pedindo sigilo, um dos líderes partidários que se sentou com Bolsonaro e que está pleiteando um dos cargos que era do DEM.
Agora longe dessa turma, Moro perdeu quase todas as batalhas que travou em seus 15 meses de governo. Saiu menor do que entrou e maculou sua biografia, podendo impactar até o destino jurídico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda se espera, afinal, do voto de Celso de Mello, que pode desempatar o 2 a 2 do pedido de anulação da sentença de Lula, que tramita na Segunda Turma do STF sob o argumento de que Moro se mostrou publicamente parcial ao integrar o governo do opositor do homem que prendera. Ao deixar o cargo, disse estar à disposição do país, no que alguns políticos viram um sinal de que entrará para a política — o que ele segue negando.
Enquanto Moro estuda seu futuro, as peças do xadrez bolsonarista se movem rápido. Uns sempre mais rápidos do que outros. Disse Roberto Jefferson à coluna, referindo-se à mais poderosa deputada bolsonarista hoje e até outro dia afilhada de Moro: “A Carla Zambelli, por exemplo, é uma moça honrada. Tenho a maior admiração por ela”.
Adriana Fernandes: Transações tenebrosas
Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios
A pandemia da covid-19 mudou a noção de tempo e urgência. Não há tempo para esperar acomodações de interesses políticos diversos para aprovar a ajuda financeira aos Estados e municípios, enquanto a população brasileira assiste atônita a matemática da morte com o avanço da doença.
Já se passaram 19 dias da aprovação do projeto na Câmara. O texto está no Senado, com votação prevista para este sábado. Mas nada garante a sua aprovação. Pelo contrário. O projeto modificado terá que retornar para a Câmara para nova votação e o mais provável é que nem mesmo ocorra na próxima semana.
O acordo fechado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, diretamente com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para o repasse de R$ 60 bilhões está provocando brigas justamente pela regra de divisão dos recursos. Os senadores dos Estados mais prejudicados estão se sentindo traídos.
Para ter domínio do projeto e coordenar a articulação do apoio ao texto que irá à votação, o próprio presidente do Senado assumiu a relatoria. O parecer foi divulgado com explicações detalhadas acompanhado de um arquivo em PowerPoint de fazer inveja (isso não é ironia) aos idealizadores do polêmico programa Pró-Brasil.
Faltou Alcolumbre, porém, mostrar a tabela principal. A que compara o valor a receber pelos Estados e municípios entre o texto do Senado e a proposta da Câmara, motivo de rompimento entre Paulo Guedes e o presidente Rodrigo Maia.
Acontece que diversas tabelas preparadas por assessores econômicos dos parlamentares, entre elas, a do relator do projeto na Câmara, deputado Pedro Paulo, começaram a circular mostrando que o Amapá, o Estado do presidente do Senado, ocupa o segundo lugar no topo do ranking que mostra a divisão dos recursos quando comparado com o número de habitantes. Atrás apenas de Roraima.
Os Estados onde a pandemia é mais grave, e que deveriam receber a maior parte do dinheiro, não vão receber o bolo maior. Se não bastasse o clima ruim com a divisão dos R$ 60 bilhões prometidos por Guedes em quatro meses, a subsecretária do Tesouro, Pricilla Maria Santana, em videoconferência assistida pelo repórter Daniel Weterman, do Broadcast, revelou que foi feita uma divisão de rateio que nem o Tesouro conhecia por “critérios políticos”.
Como assim? O governo fechou um acordo em que a secretária responsável pela relação do Tesouro com os governos regionais não podia se meter porque o assunto era político.
O desgaste tem sido grande. Lideranças do Senado já avisaram que o valor do socorro pode subir para R$ 80 bilhões para acomodar as reclamações. Quem perde muito está reagindo. A começar por São Paulo, epicentro da pandemia no Brasil.
O senador paulista José Serra é o mais indignado. O tucano apresentou uma proposta para preservar o objetivo do projeto que veio da Câmara. Na justificativa, ele diz que a nova proposta estabelece critérios pouco transparentes, beneficiando mais os municípios pouco afetados pela queda da arrecadação tributária.
À coluna, o economista José Roberto Afonso, especialista em contas públicas e assuntos federativos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), afirma que proposta do Senado é uma irresponsabilidade porque aposta na divisão regional e ignora os critérios técnicos que pautam tributação, orçamento e saúde. Guedes, por outro lado, se diz confiante no acerto do acordo.
Quando o político prevalece sobre o técnico, porém, não tem com dar certo. No cenário atual, no limite, mesmo que não queira politicamente, o governo terá que socorrer os governos das unidades mais ricas, se o colapso for eminente.
Os graves problemas na distribuição do auxílio emergencial de R$ 600, com filas nas agências da Caixa e desespero das pessoas para receber o benefício estampados todos os dias, mostram que sozinho o governo federal não pode tudo. Mesmo que a verba esteja na sua mão.
Se o governo tivesse organizado uma parceria genuína com Estados e prefeituras, talvez, a distribuição do auxílio estivesse hoje com menos problemas. É a prova também que não basta o dinheiro. É preciso boa gestão. Por isso, as ações de saúde para o combate do coronavírus estão para trás na execução das despesas do Orçamento, com mostrou reportagem do Estado.
A Brasília do Palácio do Planalto, da Esplanada dos Ministérios e dos gabinetes agora virtuais dos parlamentares continua virada de costas para o País. No seu pior momento, está metida em transações tenebrosas.
A coluna pede desculpas por ter insistido, nas últimas semanas, no tema federativo. Mas o resultado da negociação das próximas horas e dias vai dizer muito como muitas cidades estarão em condições de enfrentar os efeitos da covid-19.
Miguel Reale Júnior: Pandemônio
Comportamentos de Bolsonaro indicam possível anormalidade de personalidade
Em entrevista ao programa Câmera Aberta, da Band, em 1999, Bolsonaro, indagado se, caso fosse presidente, fecharia o Congresso, respondeu: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia”. Nessa entrevista defendeu a tortura e disse que o Brasil “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil (...) matando uns 30 mil (...). Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.
Ao votar no impeachment, ele o fez em homenagem ao torturador coronel Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, disse.
Pela segunda vez, em plena pandemia, dia 19/4, Bolsonaro foi à manifestação dominical contra o Congresso Nacional e a favor da ditadura. Antes da fala de Bolsonaro, circunstantes gritavam “Fora Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF” e carregavam faixas pedindo “intervenção militar já com Bolsonaro”, que em seu discurso falou: “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil” – adotando como seu, portanto, o teor do encontro.
A identificação com essa reunião se comprova ao pretender interferir a favor dos manifestantes, com a mudança do diretor da Polícia Federal: na mensagem enviada a Moro, ministro da Justiça, Bolsonaro reproduz nota do site O Antagonista segundo a qual a PF está “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas.
O presidente, então, escreveu: “Mais um motivo para a troca”. Patente, destarte, que buscava intervir no inquérito determinado pelo ministro Alexandre de Moraes instaurado para verificar “a existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano”. A nomeação de pessoa íntima para a diretoria da PF, cuja posse foi obstada pelo STF, é prova do interesse de demissão do então dirigente para se imiscuir nas investigações.
A atitude de Bolsonaro em face da pandemia, “uma gripezinha”, mostra indiferença pelo que poderia acontecer se desrespeitadas as normas de isolamento e quarentena determinadas pela OMS e pelo ex-ministro Mandetta.
Na última terça-feira, 28, indagado sobre o aumento do número de mortes, o presidente deu resposta agressiva: “E daí? Lamento. Eu sou Messias, mas não faço milagres”. A soberba, todavia, revela-se no uso das expressões “eu sou a Constituição”, “tenho a caneta”, “o presidente sou eu”, “quem manda sou eu”.
Tais comportamentos indicam possível anormalidade de personalidade, a merecer análise médica acurada.
Já opinei ser a interdição um caminho eventual para Bolsonaro. Não estava a fazer blague. As atitudes habituais permitem supor possível transtorno de personalidade, falha profundamente estudada por Odon Ramos Maranhão, titular de Medicina Legal (Psicologia do crime, 2.ª ed. Malheiros, 1995, cap. 7) e objeto de classificação pela CID-10, a Classificação Internacional de Doenças da OMS, em livro específico sobre doenças mentais (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, editor Artes Médicas, pág. 199).
Nessa classificação, o transtorno de personalidade antissocial tem por características a “indiferença insensível face aos sentimentos alheios; uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito a regras; a baixa tolerância à frustração; a incapacidade para experimentar culpa e propensão a culpar os outros”.
Poderia haver, eventualmente, transtorno de personalidade paranoide, cujos sintomas seriam, por exemplo, “combativo e obstinado senso de direitos pessoais; tendência a experimentar autovalorização excessiva e preocupação com explicações conspiratórias”.
Outra publicação respeitada é o DSM-5, da Associação Psiquiátrica Americana, que em http://www.niip.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-Mentais-DSM-5-1-pdf.pdf, nas páginas 645 e seguintes, estuda os tipos de transtornos da personalidade, cabendo destacar: “1- paranoide, caracterizado por desconfiança e suspeita tamanhas que as motivações dos outros são interpretadas como malévolas; 2- antissocial, cujo padrão é desrespeito e violação dos direitos dos outros; 3- narcisista, que apresenta sentimento de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia”.
Atentemos para o comportamento reiterado de Bolsonaro, ao longo do tempo, em favor de situações que geram dor, em apoio a manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF, chegando a agir, como presidente, para não se apurar devidamente a organização do ato de domingo 19 de abril; em campanha contra o isolamento social, única medida possível para reduzir mortes; usando a trágica expressão, “e daí?” acerca do aumento do número de mortes; no gosto pelo aplauso popular, pois, no domingo 15 de março, ao ser ovacionado em frente ao Planalto falou: “Isso não tem preço”.
São esses os sinais indicativos de possível enquadramento nas categorias psiquiátricas acima lembradas, o que cumpre ser verificado por experts em medida adotada em defesa do País.
No meio da pandemia, um pandemônio.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Míriam Leitão: Para evitar uma briga federativa
Projeto do Senado ainda não pacificou o conflito em torno da ajuda aos estados, e o risco é aprofundar ainda mais a crise federativa
A proposta do senador Davi Alcolumbre não pacificou ainda a briga sobre a ajuda federal aos estados e pode ter criado a receita para aprofundar a crise federativa. Desde que foi divulgada, na quinta-feira, tem alimentado os cálculos dos estados, que montam tabelas para saber quanto ganharão ou deixarão de receber. A grande crítica feita é que a fórmula ficou confusa, o que é o caminho para que haja briga entre os estados e entre os municípios. O Senado como a casa da federação não pode fomentar esse conflito.
Governadores e secretários de Fazenda começaram a trocar mensagens com deputados logo na quinta-feira mostrando os defeitos da proposta. Nos R$ 10 bilhões de transferência direta para a Saúde, usando o critério de taxa de incidência, o maior volume foi para o Amapá, estado do senador. A ideia de dividir os R$ 50 bilhões em partes iguais para estados e municípios, passa por cima do fato de que o ICMS arrecada R$ 480 bilhões por ano, e o ISS arrecada R$73 bilhões. Não faria sentido, dizemos críticos da proposta, que a compensação seja do mesmo tamanho para perdas de dimensões diferentes. Olhando-se as fatias para cada estado pelo cálculo per capita — que o Ministério da Economia queria — há um desequilíbrio completo, alguns estados superam R$ 300 por habitante, outros R$ 80.
Contas são feitas e refeitas, mas o temor é que elas alimentem mais desentendimentos, com estados beneficiados pelos critérios defendendo a proposta, e os que se acham prejudicados ficando ressentidos com os outros. Cidades e estados brigando entre si. Câmara e Senado em disputa de queda de braço. Alcolumbre quis evitar exatamente esse cenário quando chamou a relatoria para si no meio da briga entre o ministro Paulo Guedes e o presidente da Câmara Rodrigo Maia. Ele achava que, ao ser ele mesmo o relator, ficaria mais confortável para o presidente da Câmara conduzir a votação do projeto.
A briga foi resultado da falta de diálogo do atual momento. A área econômica não gostou da proposta da Câmara dizendo que era um cheque em branco, porque ela propunha a recomposição de toda receita perdida. Estados e municípios teriam a garantia de que receberiam do governo federal o suficiente para cobrir toda a perda de arrecadação com esses dois impostos. A equipe econômica achou que assim se comprometeria com uma despesa sem valor definido, preocupação que faz todo o sentido, mas a solução poderia ter sido negociada.
O ministro Paulo Guedes escalou acusando o projeto de ser farra eleitoral e pauta bomba. O ambiente ficou ainda mais envenenado com as acusações do próprio presidente a Rodrigo Maia. O governo fora flagrantemente derrotado na Câmara na votação por 431 votos a 70, um resultado que além do mais mostrava sua fragilidade política. Parlamentares ouviram de integrantes do governo que o presidente dera ordem de que não houvesse transferência para São Paulo e Rio de Janeiro. Não sendo possível cumprir tal determinação, o que se tentou foi encontrar saídas que reduzissem a transferência.
O caminho escolhido foi o ministro Paulo Guedes falar diretamente com Alcolumbre e construir uma proposta alternativa. O projeto da Câmara foi deixado de lado. O senador tentou achar um caminho do meio. Nem a fórmula da Câmara — compensação da perda da arrecadação —nem a da Economia, que queria a divisão do dinheiro pelo critério per capita. O senador criou uma fórmula que mistura tamanho da arrecadação, com a quota-parte do Fundo de Participação, e mais o critério per capita. O resultado ficou confuso. Além disso, argumentam os críticos do projeto, esse não deveria ser o momento nem o instrumento de política distributiva. Essa é a hora de atender à emergência sanitária.
Alcolumbre marcou para hoje a primeira votação do projeto, querendo fazer o segundo turno na terça-feira. Depois o projeto volta para a Câmara. Nesse meio tempo ele tenta dialogar com os deputados, principalmente Rodrigo Maia, as adaptações ao projeto para que o texto seja aprovado.
Há uma guerra de números que, por vezes, chega a absurdos com valores que parecem sem lógica e fora da ordem de grandeza. O melhor caminho seria todos se acalmarem para melhorar o diálogo com o Congresso. Os estados e as cidades estão precisando do dinheiro o mais urgentemente possível. Essa é uma calamidade.
Ascânio Seleme: Um presidente que odeia pelas manhãs
Presidente se vê esvaziado dos ensinamentos do dia quando se deixa contaminar pela ignorância da noite
Quase todo mundo sabe que política é a arte do entendimento, a busca do possível, a técnica de guiar ou orientar um grupo, uma comunidade, uma cidade, um estado ou uma nação através de argumentos e medidas que atendam ao interesse da maioria. É isso o que se espera do homem público, seja ele um veterano conservador ou um novato reformador. Ele precisa pensar muito antes de tomar uma decisão, calcular antecipadamente o impacto de cada passo que for dar, cada frase que for pronunciar. Procurar não cometer erros e evitar turbulências que o atrapalhem alcançar o objetivo da maioria. Ter jogo de cintura, buscar a paz. Exatamente o contrário do que faz cotidianamente o presidente Jair Bolsonaro.
Quando as coisas chegam a um ponto de ebulição capaz de gerar uma explosão, o bom político recolhe-se, cala-se, conta até dez, dorme sobre o problema para ter tranquilidade para decidir no dia seguinte. Comete o conhecido “sleep on it”, que é a técnica de deixar a matéria esfriar antes de nela tocar, ou consultar o travesseiro antes de reagir. Com Bolsonaro ocorre o oposto. Ele quase sempre amanhece atazanado, pronto para dar uma bronca em repórter, para reagir ao que considerou um insulto recebido na véspera, a reverberar sobre algo que por prudência deveria ter sido deixado para trás ou sobre o qual seria melhor discorrer com a calma das manhãs.
Duas razões parecem estar por trás dessa volúpia matinal do presidente. A primeira e mais evidente é que no “sossego do lar”, Bolsonaro passa horas sem ouvir seus assessores, seus generais, aqueles que tentam e muitas vezes conseguem colocar freios em seus ímpetos. No Alvorada, quando a noite cai, o presidente só tem os seus filhos, os três zeros que entopem sua cabeça com as ideias que ele vai desovar ao longo do dia e expelir de modo mais direto e sem rodeios na entrevista que dá na porta do palácio aos jovens repórteres atônitos, que produzem as principais manchetes de quase todos os dias.
A segunda razão tem natureza emocional. Bolsonaro sente-se encorajado pela claque que amanhece diariamente com ele na saída da residência oficial. Dá para ver como ele se regozija com os aplausos e palavras de apoio quando fala, quando ofende jornais ou manda jornalista calar a boca, quando desce o pau em governadores, deputados e senadores ou quando ataca ministros do Supremo Tribunal Federal. Percebe-se em alguns momentos que ele fala e olha para a claque rindo, buscando incentivo, que obviamente obtém. Essa turma o incensou mesmo quando defendeu o fim do isolamento e disse que a Covid-19 não passava de uma gripezinha.
Se da claque não se deve esperar mesmo muita coisa, afinal essa turma é composta por seguidores e admiradores fiéis e cegos, o mesmo não devia se dizer do presidente. Mas é o que ocorre. Não se pode esperar muito de Jair Bolsonaro. Sobretudo pelas manhãs. O ataque ao ministro Alexandre de Moraes é um exemplo da clássica frase “de onde menos se espera daí é que não sai nada mesmo”, do Barão de Itararé. Quando sai alguma coisa, vem nesse formato que atenta contra o mais elementar dos mandamentos do bom político, que é não permitir que a coisa fuja do seu controle. No episódio, Bolsonaro entregou o controle ao Supremo, que reagiu em coro contra ele.
E não adianta tentar explicar os arroubos presidenciais pela lógica bolsonarista de que o mundo mudou com o fim da política clientelista. Até porque essa máxima besteira, que há muito tempo tinha sido explodida, foi agora soterrada pelo acordo com o centrão. E depois não é disso que se trata. O que ocorre é que o presidente se vê esvaziado dos ensinamentos do dia quando se deixa contaminar pela ignorância da noite. Woodrow Wilson, que governou os Estados Unidos de 1913 a 1921, produziu um frase que qualquer brasileiro adulto que acompanhou a política nacional dos últimos 20 anos entende bem: “Nos assuntos públicos a burrice é mais perigosa do que a desonestidade, porque é mais difícil de ser combatida”.
Merval Pereira: Apagão estatístico
Mecanismos não presenciais alternativos estão sendo recomendados pela comunidade estatística internacional
Os tempos estranhos a que se refere o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello levam a que, no Brasil, a tecnologia não possa ser usada para auxiliar o combate à Covid-19. Políticos da esquerda e da direita usam a mesma alegação, proteção aos direitos individuais, para tentar impedir que os celulares sejam usados para monitorar o distanciamento social, no caso pioneiro de São Paulo, ou para fazer pesquisas do IBGE.
No caso do governador João Doria, ele foi acusado por partidos de direita, capitaneados pelo deputado Eduardo Bolsonaro, de promover uma invasão aos direitos individuais ao usar os celulares para identificar a mobilidade social nesses tempos de pandemia. Como vários países fazem, e até mesmo o próprio governo, cujo ministério de Ciência e Tecnologia havia feito um acordo com as operadoras telefônicas com o mesmo objetivo.
Nesta quarta-feira, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julga ação direta de inconstitucionalidade (ADI) da OAB e dos partidos PSDB,PSB, PSOL e PCB contra a medida provisória que permite ao IBGE usar a lista de assinantes das companhias telefônicas para fazer pesquisas neste período em que o distanciamento social exige a utilização de mecanismos não presenciais alternativos (telefone, vídeo, e-mail) para manter o fluxo de informações que evite o que já está sendo classificado de “apagão estatístico”, como alertaram vários ex-presidentes do IBGE em carta aberta.
Para a OAB, a MP viola dados sigilosos de brasileiros e não apresenta mecanismos de segurança para minimizar o risco de acesso e o uso indevido deles. Não apenas a salada de siglas chama a atenção, mas a incongruência, pois o PSDB é o partido que tem em João Doria seu principal líder. Nem Eduardo Bolsonaro tem razão em criticar o monitoramento celular para identificar aglomerações, nem tem sentido a ação do PSDB e demais partidos, liderada pela OAB.
Susana Cordeiro Guerra, presidente do IBGE, explica que crise do COVID-19 obrigou o IBGE a adiar o Censo Demográfico para 2021, e não está permitindo que seus entrevistadores percorram as residências coletando as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, a principal fonte de informações do país sobre emprego, educação, renda e condições de vida da população brasileira.
O IBGE fez também um convênio com o Ministério da Saúde para pesquisa domiciliar especial sobre o COVID-19, instrumento fundamental para ajudar a planejar a saída do confinamento imposto pela crise sanitária.
Os problemas encontrados pelo IBGE, que já tinha obstáculos específicos de países em desenvolvimento, como o receio da violência que dificultava o contato do pesquisador nos domicílios e o acesso a certas áreas das cidades dominadas pela bandidagem, são comuns a mais de 200 países que têm institutos de estatísticas oficiais. Em Nova York, por exemplo, há políticos que, em vez de barrar as entrevistas por telefone, estão enviando cartas a seus eleitores pedindo que cooperem com os institutos oficiais de pesquisa.
Em diferentes continentes constata-se a reorganização dos institutos de pesquisa, com exemplos nas Américas (Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, EUA e México), na Europa (Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Portugal, Reino Unido e Suécia) na Oceania (Austrália). No período de 16 de março a 16 de abril de 2020, foram identificadas, segundo o IBGE, medidas comuns adotadas, entre elas: “adoção de modalidades alternativas de pesquisa, de acordo com a natureza e as características de cada operação, para substituir a coleta de campo nas pesquisas contínuas e as atividades presenciais de coleta de dados”.
Os mecanismos não presenciais alternativos estão sendo recomendados pela comunidade estatística internacional, enquanto a emergência mundial da saúde continuar: “uso de registros administrativos para produção de estatísticas, adoção de entrevistas por telefone, preenchimento de formulários pela web e/ou e-mail, entre outros, preservando o sigilo e o rigor técnico das estatísticas oficiais”.
Ter acesso à lista de assinantes das operadoras telefônicas é o mesmo que consultar os antigos catálogos telefônicos que a tecnologia tirou de circulação. Mas em qualquer país civilizado, é possível acessar o catálogo telefônico digital através da internet.
Ricardo Noblat: Para não cair, Bolsonaro rende-se ao “é dando é que se recebe”
Quem veio para quebrar o sistema, alia-se a ele
Estelionato eleitoral é se eleger prometendo uma coisa e, depois, fazer o seu oposto. Lembra algo? Calma! Jair Messias Bolsonaro, que esta semana acusou seus desafetos de conspirarem para transformá-lo num pato manco, poderá ser lembrado por último.
Estelionato eleitoral, por exemplo, lembra o presidente Fernando Henrique Cardoso, que sucedeu a Itamar Franco. Para se reeleger em 1998, ele garantiu que o Real manteria seu valor em relação ao dólar. Eleito e reempossado, desvalorizou o Real.
Lembra mais o quê? Sim, Dilma Rousseff, que se reelegeu prometendo manter a política econômica do seu primeiro mandato, nada ortodoxa. Fez o contrário, para desencanto dos que votaram nela e horror do PT que passou a criticá-la.
Fernando Henrique não conseguiu eleger seu sucessor, o ex-ministro da Saúde José Serra. Para não amargar uma derrota fragorosa, Serra se apresentou como se fosse candidato de oposição ao governo. No caso de Dilma, ela foi derrubada.
Governantes procedem assim quando a realidade os contraria. Não o fazem necessariamente por maldade. Dão o dito pelo não dito para sobreviver. Fernando Henrique e Dilma sabiam que não teriam como honrar sua palavra. Esperavam retomá-la depois.
Não é o caso de Bolsonaro, incapaz de enxergar um palmo à frente. Ele acreditou que se imporia à realidade. Inventou formas bizarras de superá-la. E terceirizou a solução de problemas que seria incapaz de resolver por não ter se preparado para tal.
Em breve, o que restará das promessas que ele fez para se eleger? Combate à corrupção? Abandonada desde que a dupla dinâmica formada por Flávio, o Zero Um, e Queiroz, o seu faz tudo, passou a ser investigada pelo Ministério Público no caso da “rachadinha”.
O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, expelido do governo por se opor ao aparelhamento da Polícia Federal, tem muito que contar a esse respeito. Suas principais iniciativas contra a corrupção foram sabotadas, ora pelo Congresso, ora por Bolsonaro.
Crescimento econômico? O pibinho de 2019 foi menor do que o pibinho deixado como herança por Michel Temer. O próximo será negativo – algo como menos seis por cento ou até pior. O projeto neoliberal do ministro Paulo Guedes foi para o espaço.
Bolsonaro prometeu governar em harmonia com os demais poderes? Em algum discurso, uma vez eleito, prometeu. Em campanha, não, porque não combinava com seu perfil. Pois vive em guerra permanente para dominar os demais poderes.
O presidente eleito para “quebrar o sistema”, agora com medo de que lhe abreviem o mandato, está prestes a se aliar ao sistema. O Centrão vem aí! Em breve, numa repartição de sua cidade, a fina flor do fisiologismo político estará em cartaz.
Centrão é como foi batizado o grupo de partidos que adere a qualquer governo desde que possa faturar cargos, emendas ao Orçamento da União, e outros favores impróprios de ser mencionados. Melhor, antes, retirarem as crianças da sala.
Foi na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 que o Centrão nasceu. Inicialmente, sua razão de ser era contrapor-se à esquerda no debate das questões econômicas. De lá para cá, Centrão virou sinônimo de coisa ruim, que se vende em troca de sinecuras.
Bolsonaro não quer saber disso, não. Sem partido, sem base de apoio no Congresso porque nunca se interessou em construí-la, precisa, às pressas, de pelo menos o voto de 171 deputados para barrar na Câmara a abertura de um processo de impeachment.
Por isso ele declarou aberta a temporada do “é dando que se recebe”, uma máxima de São Francisco de Assis. Como, por aqui, o que o santo rezava acabou desvirtuado, Bolsonaro sempre poderá apelar para Lucas, versículo 6:38: “Dai, e ser-vos-á dado”.
É verdade que, segundo o apóstolo Paulo, Jesus ensinou: “Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber” (Atos 20:35). Mas Bolsonaro e o Centrão pularam essa página da bíblia.