Day: maio 1, 2020

Raul Jungmann: Presidencialismo de colisão

Com a fragmentação partidária atual, mais de 25 legendas com assento no parlamento, nenhum Presidente da República pode governar sem lançar mão do chamado presidencialismo de coalizão. O atual presidente decidiu não governar com ele. Resultado, vivemos um presidencialismo de colisão.

Vitorioso em uma eleição crítica, em que os parâmetros das anteriores foram superados ou mitigados e cavalgando a onda da anti-política, o Presidente julgou poder governar com as redes sociais e para os segmentos que o apoiam. Ocorre que, se a sua eleição foi fruto de uma ruptura, a política e o sistema de governo diferentemente não o são, mas de continuidade.

As redes sociais são eficazes para chegar ao poder ou até para derrubá-lo, porém são imprestáveis para governar. Ou seja, não há como projetar a lógica das eleições sobre o modo de governar. Sem a ferramenta do presidencialismo de coalizão, restou-lhe a política plebiscitária de apelar às massas ou à espada, multiplicando conflitos que se espraiam pelos demais poderes e órgãos de controle.

Essa prática deteriora o clima institucional e paralisa seu governo. O que tem levado a sucessivas rodadas de choques e conflitos, numa espiral ascendente. Surgem então as narrativas conspiratórias e auto-justificantes. A última, atribui ao Presidente da Câmara a articulação de um complô, juntamente com governadores e integrantes do STF, para adotar medidas que sangrem o Tesouro Federal e transfiram recursos para os Estados, visando o pleito de 2022.

Nesse quadro, um fator complicador é o vírus privado e familiar no coração da presidência, a influir em decisões de interesse da Nação sob a ótica doméstica, o que tende a promover ondas de desordem, conflitos e uma instabilidade permanente.

No plano simbólico, a saída do ministro Sérgio Moro, vestal do combate à corrupção, e a aproximação com o Centrão, deve levar ao divórcio dos lava-jatistas de sua base de apoio, em nome de uma coalizão parlamentar para enfrentar a hora crítica que se aproxima: a quem caberá o espólio do Covid-19 e da inédita recessão.

É bom lembrar, nessa hora, que crises entre o Parlamento e o Executivo em nossa história, de Deodoro da Fonseca a Dilma Rousseff, levaram à queda do presidente ou ao fechamento do Congresso. Ambos fora do radar e, assim espero, permanecerão.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Fernando Gabeira: Pergunte ao coronavírus

O Brasil politizou o vírus. O governo mergulhou na cegueira ideológica

Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.

Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.

Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.

Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.

Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.

Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.

Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.

Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.

Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.

Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.

É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.

Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.

Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.

Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.

O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.

Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.

Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.

*Jornalista


Luiz Carlos Azedo: O vírus da paranoia

“Bolsonaro acredita que há uma operação no Congresso para inviabilizar o governo financeiramente, ao barrar projetos do ministro Guedes”

O estresse entre o presidente Jair Bolsonaro e o Judiciário não é um bom sintoma político para a democracia, porém, continua. Ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, por unanimidade, as restrições à Lei de Acesso à Informação previstas em uma medida provisória (MP) editada pelo presidente da República. A MP havia sido editada em março, motivando o pedido da Rede Sustentabilidade para que o STF suspendesse os trechos da lei que restringiam o acesso à informação. Alexandre de Moraes havia atendido ao pedido; o plenário do STF confirmou a decisão, o que foi interpretado como uma espécie de desagravo ao ministro, diante dos ataques que havia sofrido de parte de Bolsonaro, pela manhã.

O presidente da República pretendia suspender prazos de resposta e a necessidade de reiteração de pedidos durante a pandemia do novo coronavírus. A Lei de Acesso à Informação regulamenta o trecho da Constituição que estabelece como direito de qualquer cidadão receber, do poder público, informações de interesse da sociedade. Na mesma linha da decisão do Supremo, a juíza federal Ana Lúcia Petri Betto, da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, determinou que a Advocacia-Geral da União (AGU) forneça os laudos de todos os exames feitos pelo presidente Jair Bolsonaro para diagnóstico do coronavírus. A decisão, segundo a juíza, deve ser cumprida em 48 horas, sob pena de multa de R$ 5 mil por dia.

Segundo a juíza, o documento enviado pelo AGU “não atende, de forma integral, à determinação judicial”. Na verdade, não eram os resultados dos exames – que Bolsonaro se recusa a revelar, o que aumenta os boatos de que teria contraído o coronavírus —, mas um relatório médico da coordenação de saúde da Presidência, com data de 18 de março, mas sem os exames. A magistrada havia determinado a apresentação dos dois exames feitos por Bolsonaro, que teriam resultados negativos, segundo o próprio.

Magistrado não dá canetada, somente se manifesta quando provocado. No caso da Lei da Transparência, o Supremo foi provocado por dois partidos políticos — a Rede e o PSB — , além do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em relação aos exames de coronavírus, quem recorreu à Justiça foi o jornal O Estado de S. Paulo. Mas Bolsonaro está convencido de que existe uma conspiração para depô-lo da Presidência, da qual fariam parte o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que tem o poder de aceitar, ou não, os pedidos de impeachment; o governador de São Paulo, João Doria, com quem anda às turras por causa da epidemia de coronavírus; e o ministro Alexandre de Moraes, juiz natural do processo que investiga as fake news e as manifestações que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo e a volta do AI-5, a lei de exceção do regime militar, atos políticos aos quais Bolsonaro compareceu, em Brasília.

Conspiração
Na sua paranoia, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, também fariam parte da conspiração. Para Bolsonaro, as investigações em curso em Brasília e no Rio de Janeiro pretendem atingi-lo, mirando seus filhos Flávio, o senador fluminense, investigado no famoso caso Fabrício Queiroz, envolvido nas rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro; Eduardo, o deputado por São Paulo, que teria organizado, com outros parlamentares, as manifestações a favor de uma intervenção militar; e Carlos, o vereador carioca, que seria o líder do chamado “gabinete do ódio” e responsável pelas fake news lançadas contra os adversários políticos do clã Bolsonaro.

Além disso, Bolsonaro acredita que há uma operação de Maia no Congresso, no sentido de inviabilizar o governo financeiramente, ao estourar o “teto de gastos” e barrar projetos do ministro da Economia, Paulo Guedes. Tudo isso seria apenas uma paranoia se não houvesse as investigações, e se o Congresso não estivesse discutindo uma agenda econômica mais favorável aos governadores e aos prefeitos do que gostaria o ministro da Economia, Paulo Guedes, que fez a cabeça de Bolsonaro e dos ministros militares, de que o governo corre risco de colapsar financeiramente.

Bolsonaro viajou ontem para Porto Alegre, comparecendo à posse do novo comandante militar do Sul, general de exército Valério Stumpf Trindade, cuja área de atuação abrange Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ao falar com a imprensa, responsabilizou governadores e prefeitos pelo aumento do número de mortos na epidemia de coronavírus e criticou o isolamento social. Pela manhã, ao sair do Palácio do Alvorada, havia se queixado: “O Supremo decidiu que quem decide essas questões são governadores e prefeitos. Então, cobrem deles. A minha opinião não vale. O que vale são os decretos dos governadores e prefeitos.”

Em Brasília, o ministro da Saúde, Nelson Teich, diante do aumento de número de mortos e risco de colapso do sistema público de saúde em vários estados, pela primeira vez, admitiu que ainda não é hora de apresentar uma estratégia de relaxamento do distanciamento social. “Neste momento, o distanciamento permanece como orientação. E vamos avaliar cada lugar, cada região, quanto de recurso para atender pessoas”, disse. Admitiu que o número de mortos, no pico da epidemia, pode chegar a 1.000 por dia. Ontem, foram 435 mortos a mais, num total de 5.446 até agora. Com 85.380 casos confirmados, ultrapassamos a China, que registrou 83,9 mil. Isso sem contar a subnotificação.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-virus-da-paranoia/


 Lilia Lustosa lista filmes sobre universo das pandemias, como a do coronavírus

Em seu artigo, Lilia Lustosa cita filmes como Contágio (2011), do premiadíssimo Steven Soderbergh; Epidemia (1995), de Wolfgang Petersen; A Gripe (2013), do coreano Sung-Su Kim; 93 dias (2016), do nigeriano Steve Gukas; e a série documental Pandemia, produzida recentemente pela Netflix

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A ficção invadiu a realidade com Covid-19 e as plataformas de streaming ganharam destaque por sua utilidade para a humanidade em crise, dando uma trégua à guerra entre a telinha e a telona, avalia crítica de cinema Lilia Lustosa.

Em artigo que produziu para a nova edição da revista Política Democrática Online, ela cita e analisas algumas obras cinematográficas sobre pandemias que tomaram conta de países no mundo. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. Todos os conteúdos podem ser acessados de graça no site da entidade.

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A crítica de cinema cita filmes como Contágio (2011), do premiadíssimo Steven Soderbergh; Epidemia (1995), de Wolfgang Petersen; A Gripe (2013), do coreano Sung-Su Kim; 93 dias (2016), do nigeriano Steve Gukas; e a série documental Pandemia, produzida recentemente pela Netflix. “A ideia sendo comparar aquelas ficções à nossa real-ficção. Algo que fascina e traz medo ao mesmo tempo. Medo de ficar ainda mais neurótica. Medo de achar que toda tosse é coronavírus. Medo de perder um ente querido. Medo de enxergar todo o sofrimento do mundo, já sem nenhuma tela de proteção”, escreve.

Em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online, Lilian diz que Contágio, filme americano com grande elenco (Matt Demon, Kate Winslet, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Marion Cotillard), opta por destacar o papel das redes sociais como divulgadoras de informações sonegadas à população pelos meios oficiais. “Ao mesmo tempo, mostra-as também como difusoras de informações ainda não confirmadas, as famosas fake news”, diz, para continuar: “Na nossa real-ficção de hoje, o canal brasileiro de Youtube Spotniks, entre outros, faz o papel do teórico da conspiração interpretado por Jude Law, tendo disponibilizado recentemente o impactante Timeline Covid-19, reportagem sobre a evolução da pandemia no mundo, desde seu provável início até 31 de março”.

Com relação à estética, de acordo com Lilian, o coreano A Gripe destoa um pouco de 93 Dias, “Epidemia e Contágio pelo paroxismo de sua mise-en-scène, que mostra, por meio de uma câmera nervosa e de uma iluminação sombria, imagens grotescas de sangue jorrando, cadáveres sendo empilhados e corpos infectados, incinerados ainda vivos como medida de contenção do vírus”, afirma.

É, segundo a crítica de cinema, uma narrativa um tanto quanto inverossímil, que leva ao extremo o dilema trabalhado também em Epidemia: exterminar a população de uma única cidade versus deixar contagiar a população de todo um país. “Produção americana com elenco de peso (Dustin Hoffman, Morgan Freeman, Kevin Spacey, Rene Russo e Cuba Gooding Jr.) que sugere, ainda, a possibilidade de uma eventual guerra biológica, revelando a descoberta de um vírus letal por parte dos militares dos EUA, informação guardada a sete chaves pelo governo daquele país”, analisa.

De acordo com a autora, nenhuma ficção supera a angústia propiciada pela realidade. “Ao contrastar ficção e mundo real, porém, podemos acreditar, talvez como o Cândido, de Voltaire, que os líderes mundiais – ao menos, quase todos – estão tomando atitudes importantes e sensatas para resolver a maior crise que nossa geração já viu”, acentua. “E mesmo que algumas informações nos estejam sendo omitidas, bem ou mal, ações estão sendo tomadas a fim de frear a pandemia. E isso já é um alento, permitindo-nos vislumbrar os créditos no final do filme”, continua.

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