Day: abril 23, 2020

Weiller Diniz: A maldição do capitão

A nostalgia é o insondável sentimento da recusa ou negação do tempo, do espaço ou de ambos. É o sempre querer estar alhures, desejar retroagir. A república brasileira do século XXI é uma sentença esmaecida da nossa ancestralidade. Depois de 5 séculos, ao menos 5 cruéis e pesadas heranças nos agrilhoam ao passado colonial: a inexperiência de administradores, a descontinuidade de projetos, pandemias, a autonomia das capitanias em relação ao poder central, além de um desonroso e obscuro sebastianismo.

Após o ‘achamento’, em 1500, o Brasil amargou 30 anos de completo abandono pela coroa portuguesa. A ambição e entusiasmos concentravam-se nas Índias de Vasco da Gama. Durante 3 décadas de descaso, o país esteve entregue a saqueadores, mercenários, náufragos, traficantes, contrabandistas de pau-brasil e malfeitores de toda ordem. São os nossos primórdios. Terra de ninguém e reles ilha do desdém. A mais pesada das heranças lusitanas, o acaso, mais uma vez, nos pariu.

A embarcação francesa “Peregrina” foi, casualmente, pilhada em um entreposto comercial com toneladas de pau brasil, peles de animais, algodão e aves silvestres. Féria de meses de pirataria francesa em domínios portugueses, o Brasil. Rapinagem e tratados diplomáticos desprezados pela França, coagiram Portugal a colonizar o Brasil para abortar o dreno das riquezas. “Era o prenúncio de tempos sombrios”, pontuou o escritor Eduardo Bueno em “Capitães do Brasil”.

Em meio ao surto de uma pandemia dizimadora – a peste negra que matou D. Manuel, o Venturoso – inaugurou-se o arrendamento brasileiro, a leste de Tordesilhas e, com ele, iniciou-se nossa desventura. Foram rabiscadas 15 donatarias ou capitanias. Os aquinhoados – começo do compadrio e pioneiros do nepotismo – foram escolhidos em conchavos e lobbies junto aos amigos do rei, D. João III. A nobreza, infantes, condes e duques desdenharam a cortesia ultramarina. Aqui desembarcaram, majoritariamente, aqueles de mais baixa patente. Das 15 extensas faixas de terra, 12 foram dadas a capitães e parentes. Alguns jamais pisaram em suas posses.

O colapso do modelo expropriatório não tardou. O fracasso das capitanias foi outro pesado legado. Os capitães não tinham aptidão ou vocação para administrar. Eram íntimos das armas, do conflito, da beligerância e da morte. Administrativamente eram inexperientes, despreparados, desinteressados e sem projetos para desenvolver as propriedades. À exceção de duas capitanias, os capitães naufragaram em terra firme. Uma das heranças mais perversas – as sesmarias – nos amaldiçoaram para a eternidade. É o DNA do modelo latifundiário, da escravidão, monocultura e estratificação social.

Os capitães tinham poderes absolutistas em suas posses. Administrativamente podiam explorar as riquezas, doar as sesmarias e cobrar impostos; politicamente faziam as próprias leis com poder de escravizar; judicialmente tinham o poder de prender, arrebentar e matar. As leis eram circunscritas aos limites geográficos das capitanias. Cada estado forjava sua lei. A Coroa – ávida pelos 10% dos capitães e o quinto de 20% das riquezas minerais – desprezava o barril de pólvora na iminência de explodir em razão dos conflitos internos. A alternativa ao descalabro foi o centralismo da administração em 1548, com o 1 governo-geral.

A anarquia colonizadora ocorreu em meio ao sebastianismo ou mito sebástico. Um fenômeno de tola crendice popular envolvendo o falecimento de rei português, D. Sebastião, “O Desejado”. Morto em uma batalha na África e sem localização do corpo, disseminou-se um movimento messiânico de salvação através do renascimento do rei. A espera do ressurgimento do mito salvador se espalharia pelo mundo.

Jair Bolsonaro é o atual capitão da donataria. É um peregrino que gosta de predicações golpistas, sabota a ciência e tem desvarios monárquicos absolutistas. É a síntese do Brasil colônia: atrasado, belicoso, primitivo, desprezado pelo mundo e condenado a ruína. A estreiteza para gerir o Brasil é notória e antecede a pandemia. Não apresentou projetos ao país e troça com o diversionismo incensado por abjetas criaturas do rei e o gabinete do ódio. O esvaziamento político, derivado da inépcia, levou o capitão ao isolamento, como no período pré-colonial.

A federação vem sendo redesenhada por travas do Supremo Tribunal Federal. Os estados – como no Brasil colônia – tocam autonomamente a proteção sanitária a despeito do charlatanismo presidencial. As comichões autocráticas, típicas dos capitães de outrora, são democraticamente rechaçadas pelas instituições e o isolamento vai se transformando em confinamento. O débil sebastianismo também é indesejado e será exorcizado. Tampouco conseguirá restaurar os poderes absolutistas dos seus antepassados capitães.


Bernardo Mello Franco: O general quer elogios

O general Ramos está insatisfeito com o trabalho da imprensa na pandemia. Deveria se mudar para o Turcomenistão, onde o ditador proibiu os jornais de usar a palavra ‘coronavírus’

Nos idos de 1967, o marechal Costa e Silva fez uma reclamação à condessa Pereira Carneiro, então proprietária do “Jornal do Brasil”. “O seu jornal tem tratado muito mal a mim e ao meu governo”, queixou-se. Em tom diplomático, a senhora respondeu que o diário buscava publicar “críticas construtivas”. O ditador reagiu com franqueza: “Eu gosto mesmo é de elogio”.

O general Luiz Eduardo Ramos foi cadete no período autoritário, mas chegou aos postos de comando na democracia. Foi promovido a coronel em 2003, quando a Presidência era ocupada por um ex-operário que liderou greves contra a ditadura. Ontem ele teve uma recaída, e resolveu usar uma entrevista ministerial para fazer reparos ao trabalho da imprensa.

“Desde que começou essa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos”, disse o chefe da Secretaria de Governo. “No jornal da manhã é caixão e é corpo, na hora do almoço é caixão e é corpo, no jornal da noite é caixão, é corpo e é número de mortes”, protestou.

À moda de Costa e Silva, o ministro afirmou que o jornalismo “não está ajudando”. Ele sugeriu que os repórteres se colocassem no lugar de uma senhora de idade que gostaria de se sentir melhor na pandemia. “Tem tanta coisa positiva acontecendo... É muita notícia ruim, mas vamos também divulgar notícias boas”, apelou.

Apesar do tom edificante, Ramos não está preocupado com o bem-estar das velhinhas. Se isso fosse verdade, ele convenceria o chefe a parar de sabotar a quarentena. O objetivo das medidas de isolamento é proteger os grupos mais vulneráveis do vírus. O presidente prefere empurrá-los para o sacrifício em troca da reabertura imediata do comércio.

Os bolsonaristas sonham viver no Turcomenistão, onde o ditador Gurbanguly Berdimuhammedow proibiu a imprensa de usar a palavra “coronavírus”. Ontem o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, declarou que o Brasil “é um dos países que melhor performa (sic) em relação à Covid”. No mundo real, faltam leitos de UTI e há cemitérios abrindo valas comuns para enterrar vítimas da doença.


Ascânio Seleme: A manada de Bolsonaro

Não enxergam nada à frente, atropelam tudo o que se interpõe no seu caminho

Um meme circulou nesses dias na internet mostrando animais invadindo cidades vazias em razão do isolamento contra a contaminação do coronavírus. Há quatro imagens. A primeira mostra cervos nas ruas de uma cidade no Japão. Na segunda veem-se cabras circulando num adensamento urbano no País de Gales. A terceira são peixes nas agora cristalinas águas de Veneza. E a quarta mostra brasileiros vestidos de verde e amarelo, pregando a intervenção militar, a volta do AI-5 e o fim da quarentena, e tem como legenda “gado no Brasil”.

Era para ser uma brincadeira? Claro. Mas o fato é que a brincadeira retrata muito bem o tipo de gente que sai às ruas para pedir que se cometam atentados contra a vida e contra a democracia. São pessoas que se aglomeram e seguem na mesma direção num comportamento de manada causado por um agente que eles nem sempre conhecem ou conseguem identificar. No caso dos bolsonaristas, a origem é o “gabinete do ódio” do Palácio do Planalto. Ou alguém tem dúvida sobre quem produz as convocações para essa manada? Inquérito determinado pelo Supremo Tribunal Federal vai responder a essa questão.

As pessoas que carregam cartazes pedindo a intervenção militar, o fechamento do Supremo e do Congresso parecem estar em estado de euforia gerado pelo uso da codeína presente em certos xaropes. Os viciados, quando sob o efeito da droga, são chamados de “bois”, porque ficam muito excitados, respondem rapidamente a estímulos externos e são facilmente manipulados. Como não enxergam nada à frente, atropelam tudo o que se interpõe no seu caminho. Por estarem cegos, acabam sendo violentos.

Veem-se repetidamente agressões a jornalistas ou a qualquer um que pense de maneira diferente da manada. Os gritos que ela produz são insolentes, autoritários, nervosos. O sentimento de euforia de grupo causa uma impressão de impunidade, e a manada sente que adquiriu superpoderes e se comporta como se fosse inalcançável. O mais grave é que, além dos sentidos, o intelecto dessas pessoas também parece sofrer descompensações causadas pelo efeito manada. Mas, ao contrário da emoção, que só é mexida quando a manada está reunida, a razão parece sofrer dano permanente.

Só assim se explica a crença de que o presidente Jair Bolsonaro é o novo que veio para expurgar o Brasil da velha política. Esse é o maior e o pior de todos os enganos da manada. Bolsonaro é político mais velho do cenário político nacional. O que ele ambiciona, e faz com que a manada também ambicione como se fosse original, é a volta a um passado tão distante quanto macabro. A manada é burra, não há outra forma de entender os pedidos de intervenção militar com Bolsonaro no poder. Se concretizado, teríamos um Estado militar/miliciano de consequências nefastas para todos, inclusive para a manada.

Além das permanentes loas ao passado remoto, o presidente também pratica a política corriqueira do passado recente. Ele e seus filhos cometeram enquanto parlamentares as famosas rachadinhas, a maneira mais sórdida de se fazer um dinheiro rápido. Retiravam parte dos salários dos servidores dos seus gabinetes e o embolsavam. E a afirmação de que não iria negociar nada feita na porta do QG diante da manada era uma mentirinha típica do velho político. Bolsonaro está negociando, sim, e com o que há de pior na política nacional.

Seus interlocutores no Congresso e nos partidos são, entre outros, o ex-deputado Valdemar Costa Neto (criminoso condenado tanto no mensalão quanto no petrolão), o senador Ciro Nogueira (investigado pela Lava-Jato), o ex-prefeito e ex-deputado Gilberto Kassab (processado por improbidade administrativa, financiamento ilegal de campanhas e contratação ilegal de empresas), o deputado e ex-ministro Marcos Pereira (denunciado pela Lava-Jato por receber propinas da Odebrecht) e o ex-deputado Roberto Jefferson (criminoso condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro).

A síndrome que acomete a manada que acredita em Bolsonaro poderia ser também chamada de efeito “Maria vai com as outras”. Mas aí, não. Esses homens e mulheres não toleram o gênero feminino.


Ribamar Oliveira: Senado condiciona benefício a emprego

Se aprovada pela Câmara, “PEC da guerra” criará insegurança jurídica

O texto da Proposta de Emenda Constitucional 10/2020, mais conhecida como “PEC do Orçamento de Guerra”, recentemente aprovado pelo Senado, introduziu um novo complicador para as empresas que, se aprovado pela Câmara dos Deputados, trará uma grande insegurança jurídica, de acordo com consultores ouvidos pelo Valor.

O recebimento de benefícios creditícios, financeiros e tributários, direta ou indiretamente, concedidos no âmbito dos programas oficiais de combate aos efeitos da pandemia, estará condicionado ao compromisso das empresas de manutenção de empregos, “na forma dos respectivos regulamentos”, de acordo com o artigo 4º do texto do Senado.

Uma das medidas adotadas pelo governo para redução dos efeitos do novo coronavírus na economia, logo no início da pandemia, foi adiar o pagamento de PIS, Pasep e da Cofins, bem como da contribuição previdenciária patronal. Os empresários pagarão as quatro contribuições devidas em abril e em maio apenas em agosto e em outubro.

Esta foi uma forma de dar mais fôlego de caixa às empresas, que tiveram suas vendas drasticamente reduzidas do dia para a noite. Tecnicamente, o procedimento é conhecido como diferimento. A questão é que todas as empresas, mesmo aquelas que estão demitindo trabalhadores, terão direito de adiar o pagamento das quatro contribuições. Quando o diferimento foi autorizado, ainda em março, a instrução normativa da Receita Federal não condicionou o benefício à manutenção do emprego.

Pode-se alegar, portanto, que o artigo da PEC, caso aprovado pela Câmara, terá vigência posterior ao início do diferimento das quatro contribuições. A lei não pode retroagir para prejudicar o contribuinte. Ocorre que, segundo avaliação da área técnica do governo, é muito provável que as empresas não tenham caixa em agosto e outubro para pagar os tributos do mês e os atrasados. Por isso, os técnicos não descartam que os débitos tributários referentes a abril e maio venham a ser, posteriormente, objeto de um novo Refis, ou seja, de um parcelamento em condições favorecidas, que já está sendo chamado de “coronarefis”.

Se isto ocorrer, será um novo benefício tributário a ser concedido às empresas em relação a fatos ocorridos no período da pandemia. Neste caso, o artigo da PEC poderá ser acionado e em que medida? O texto diz que a manutenção do emprego será exigida, “na forma dos respectivos regulamentos”, sem explicar o que isso significa, talvez indicando a necessidade de uma regulamentação.

A exigência da manutenção do emprego, no entanto, se aplica a todos os outros benefícios que estão sendo concedidos pelo governo durante a pandemia, inclusive os creditícios e os financeiros. Há, por exemplo, empréstimos em condições especiais que estão sendo colocados à disposição das empresas. O Banco Central será autorizado também a comprar títulos privados e a realizar uma série de operações financeiras que, de forma direta ou indireta, pode resultar em benefício para alguma empresa ou instituição financeira.

Diante da amplitude da medida, com consequências jurídicas imprevisíveis, um político de grande experiência disse ao Valor que o Senado colocou o artigo na PEC para ficar bem com o eleitorado, ao mostrar sua preocupação com o emprego, mas certo de que ele será derrubado pela Câmara, com desgaste para os deputados. É, pode ser. Mas, vale lembrar a famosa pergunta feita por Garrincha, na Copa do Mundo de 1958: “Já combinaram com os russos?”.

O artigo 9º da PEC aprovada pelo Senado determina que as instituições financeiras que venderem ativos ao BC, durante a pandemia, não poderão aumentar a remuneração, fixa ou variável, de diretores e membros do conselho de administração, no caso das sociedades anônimas, e dos administradores, no caso de sociedades limitadas.

De acordo com a PEC aprovada pelo Senado, a remuneração variável inclui bônus, participação nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos remuneratórios associados ao desempenho.

Mas, não está claro o período da vigência da proibição. A PEC aprovada pelo Senado diz que o Banco Central editará regulamentação sobre as exigências de contrapartidas “durante a vigência desta emenda constitucional”. Não seria durante a vigência da situação de calamidade pública, ou seja, até 31 dezembro deste ano?

Há também outra redação confusa na PEC do “Orçamento de Guerra”. Mas, neste caso, a confusão já vem do texto inicial aprovado pela Câmara. O artigo 5º diz que será dispensado o cumprimento da chamada “regra de ouro”, durante ‘a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade pública nacional”.

A Constituição proíbe que o governo aumente o seu endividamento para custear despesas correntes. Só pode fazer isso para financiar investimentos e para amortizar a dívida, ou seja, despesas de capital. Este princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas. Como observa a nota técnica 95/2020, da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, desde meados do ano passado já se projetava descumprimento da “regra de ouro” em 2020.

O Orçamento da União deste ano foi aprovado com montante de operações de crédito superior em R$ 343 bilhões às despesas de capital, lembram os consultores legislativos Vinícius Leopoldino do Amaral e Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt, autores da nota técnica. Tais operações de crédito em excesso, assim como as despesas por elas custeadas, encontram-se pendentes de autorização, observam.

Como o regime extraordinário da PEC visa atender às necessidades decorrentes da pandemia, a suspensão do cumprimento da “regra de ouro” não poderia ser aplicada a situações anteriores ao surgimento do novo coronavírus. Os autores concluem que a suspensão da “regra de ouro” teria que ser parcial e somente aplicável às repercussões geradas pela pandemia. Mas isto não é o que está escrito na PEC, que suspende o cumprimento da “regra de ouro” durante “a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade”.


Maria Cristina Fernandes: A cilada do impeachment

Pedido é a isca jogada por Bolsonaro para se vitimizar e unir militares em sua defesa

O presidente da República participou de uma manifestação que tinha por objetivo subverter a ordem política, infração que o enquadra tanto na Lei de Segurança Nacional quanto na Lei do Impeachment. Ao fazê-lo diante de um quartel, além de incitar militares à desobediência, preceito que também o enquadra nesta lei, infringiu a norma que submete atividades no perímetro de 1.320 metros dos quartéis militares à autorização se seus comandos.

Sozinha, a manifestação de domingo já dá motivos de sobra para juristas redigirem empolados pedidos de impeachment. Somado ao estímulo do presidente a que as pessoas quebrem o isolamento social, colocando em risco o direito coletivo e individual à saúde, tem-se aí abundantes argumentos para o afastamento do presidente do cargo. É um prato cheio de iscas.

O PT já fisgou a primeira ao aprovar o mote #forabolsonaro. Ao fazê-lo, o partido reverte decisão tomada dias atrás e torna-se a primeira grande legenda a cair na armadilha que o presidente montou para se apresentar como vítima de uma conspiração. Foi seguido pelo PDT, que briga pela hegemonia dos escombros da oposição.

O comando de caça aos esquerdistas continua vivo no bolsonarismo, ainda que roto e amarelado. No poder, o presidente da República ganhou novas bandeiras. Quer reviver o espírito antipolítica que move tanto as Forças Armadas quanto a classe média urbana desde o tenentismo e foi, em grande parte, responsável por sua eleição.

Para isso, gostaria de fisgar a Câmara dos Deputados e, se der, até o Supremo Tribunal Federal. Um inimigo comum com os militares é um cobiçado objeto de desejo do bolsonarismo e mesmo entre os militares mais abespinhados com o ato de domingo, encontra-se convergência com o discurso de que não o deixam governar. Ter evidências de que Rodrigo Maia estaria envolvido numa articulação para derrubá-lo é tudo que o presidente precisa para unificar, em sua defesa, militares da reserva e da ativa, em grande parte divididos em relação aos limites de sua provocação.

A ferida do domingo ainda está aberta. O acerto feito entre o comandante do Exército, Edson Pujol, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva era o de que o primeiro cuidaria das tropas e o segundo, da política. A geração que hoje ocupa cargos de comando nas Forças Armadas ainda se ressente por pagar o preço de um golpe do qual não participou. Por isso, a Pujol caberia manter as tropas longe da política e a Azevedo, tomar conta para que o capitão, além de militarizar o Palácio do Planalto, não se arvorasse a politizar os quartéis.

Faz tempo que esse acerto foi destroçado, se é que, algum dia, chegou a ter validade. No dia seguinte ao ato de domingo, quando o comandante do Exército não foi capaz de mandar sua tropa enxotar quem fazia do perímetro militar um palanque antes da chegada do comandante supremo, Bolsonaro encenou, mais uma vez, o papel de capitão tutelado. E debochado. Ao proclamar que ele era a Constituição, porém, gozou, mais uma vez, de seus bedéis.

Foi assim que o ministro da Defesa foi levado a emitir a nota na qual diz que as Forças Armadas só têm um aliado, a Constituição e, no momento, um inimigo, o coronavírus. Parece pouco, mas seus redatores viram ali o limite até onde um subordinado pode ir.

Os militares parecem se manter silentes frente a um governante que namora à luz do dia com o golpismo porque a alternativa os expõe ainda mais. O que seria um governo Hamilton Mourão senão a farda, sem disfarces, no poder? Por isso, desencadearam a operação panos-quentes. Buscaram interlocutores para mediar a relação com o Congresso. O apelo foi o de que era preciso pacificar para o capitão não radicalizar. Seria preciso aceitar um presidente que estupra mas não mata a Constituição.

De pelo menos um interlocutor ouviram que de nada adiantaria se vestir de bombeiro se o presidente- incendiário permanecia incontido. Bolsonaro voltou o gabinete do ódio contra o projeto aprovado na Câmara de ajuda a Estados e municípios. Considera-o pauta bomba, tanto pelo rombo nas finanças públicas quanto pelo benefício a seus adversários.

Mas isso não justifica que saia proclamando apoio a um ato pela prisão do presidente da Câmara. O segundo mandato de Dilma Rousseff não teria chegado a abril de 2016 se ela tivesse ido à rua protestar contra a patifaria de Eduardo Cunha, das pautas bomba e de todas as emendas impositivas aprovadas durante a agonia de seu mandato. Bolsonaro prova do mesmo veneno que vitaminou sua ascensão. E sinaliza que vai dar continuidade ao banquete.

Para isolar o presidente da Câmara, oferece aperitivos ao Centrão. Vai distribuir os de sempre, Funasa, FNDE, Codevasf, sabendo que vão pedir de entrada as agências reguladoras e, de prato principal, a presidência da Câmara. Como tanto o Executivo quanto parte do Centrão querem se ver livre de Maia, tudo parece convergir para o bem da nação. Só que não.

As lideranças que negociam com Bolsonaro são as mesmas que, em 2016, almoçavam com Dilma e, no mesmo dia, jantavam com Michel Temer. Vão sair correndo do porão antes de o barco começar adernar.
Furos não vão faltar. Paulo Guedes perdeu a aula que ensinava a gastar. Vai ficar ainda mais perdido num governo não vai conseguir se desvencilhar dos auxílios que começou a pagar. Se no Sudeste, os R$ 600 não refrescam o motorista do Uber, no Nordeste já bombou a venda de ovos. O pessoal que tomou conta do governo sabe abrir para-quedas melhor do que fechar contas.

Some-se a isso os dois inquéritos que tramitam no Supremo, fake news e ato antidemocrático, nas mãos do mesmo relator, Alexandre de Moraes. Como poderá compartilhar provas entre um e outro processo, a busca pelo nome e sobrenome do personagem por trás de ambos estará facilitada.

Por isso, o pedido de impeachment é contraproducente. E arrisca a antagonizar a oposição com a maioria que, se não aprova Bolsonaro, tampouco quer tirar o foco do principal, que é a pandemia. As cordas estão aí. O capitão que não consegue colocar uma máscara de proteção ainda está por se mostrar capaz de tirar o novelo que ele mesmo enrola no pescoço. Num país que está na UTI, quem se apresentar para puxá-lo vai passar por carrasco.


Zeina Latif: Na confusão, não se vai longe

É inacreditável a discussão da retomada sem consulta do time da Economia

Há muito trabalho a ser feito na economia. Mesmo que não houvesse o isolamento social, o custo econômico da epidemia seria elevado, pelas consequências de uma crise social e pelo contágio do quadro global sobre o crédito, as exportações e o mercado financeiro.

O governo não está inerte, mas há muitas lacunas no conjunto de medidas e desafios a serem enfrentados, durante e após o isolamento social.

Primeiro, há indefinições e ajustes necessários nas medidas econômicas. Por exemplo, a linha de crédito da Caixa às microempresas dá tratamento diferente daquele oferecido a pequenas e médias empresas para honrar a folha, com juros mais baixos. Há também muitas pendências no socorro a setores, como o de energia.

Segundo, é preciso maior coordenação interna do governo. Um exemplo são as dificuldades enfrentadas pelos Ministérios da Saúde e da Agricultura por conta da ausência de resposta contundente do governo aos ataques do ministro da Educação à China. É necessário reconstruir as relações diplomáticas, não só pelas dificuldades na importação de equipamentos de saúde daquele país, mas pelo impacto sobre as exportações e futuros investimentos no Brasil, inclusive nos leilões de infraestrutura.

Terceiro, falta diálogo com Estados e municípios para uma solução rápida e justa para a expressiva queda de arrecadação, sem comprometer a higidez fiscal da União e sem abrir espaço para excessos desses entes. A solução da tensão atual deveria se dar pelo diálogo entre os Poderes Executivos da federação, e não pelo ataque ao Congresso.

O governo também falha ao afastar a proposta de flexibilizar a carga horária e os salários do funcionalismo – contida na PEC emergencial –, em linha com o proposto ao setor privado. Seria um grande passo no socorro a Estados e a municípios, cuja arrecadação está comprometida com o pagamento da folha.

Quarto, falta respeito institucional e liderança do Executivo na relação com os demais Poderes, abrindo espaço para avanço de pautas perigosas. Há centenas de projetos de lei no Congresso, para o período de calamidade pública, que geram distorções e injustiças, com ônus ao erário e ao funcionamento da economia.

Não faltam propostas de proteções indevidas a segmentos do setor produtivo e da sociedade.

O mesmo vale para a suspensão da cobrança de serviços de utilidade pública – energia, água, telecomunicações, gás, internet, pedágio de transporte de carga. Seria um desastre para esses setores que já sofrem as consequências da epidemia e engrossam a fila de pedidos de ajuda da União.

Há propostas que ferem o mercado de crédito e ameaçam jogar por terra os esforços do Banco Central para estimular as concessões. É o caso da suspensão do pagamento de empréstimos bancários de empresas de menor porte, financiamento imobiliário, e cheque especial e cartão de crédito.

Preocupam as propostas de empréstimo compulsório sobre empresas – alíquota de 10% sobre o lucro líquido nos últimos 12 meses de empresas com patrimônio liquido igual ou superior a R$ 1 bilhão – e outras tantas sobre grandes fortunas.

São medidas de apelo populista que gerariam fuga ainda maior de recursos do País e desincentivo à produção. Não se pode confundir a necessidade de promover a justiça tributária com medidas desastrosas, que podem parecer avanços aos olhos da sociedade, mas, na realidade, são contraproducentes.

A grande maioria das propostas na Câmara aguarda o despacho do seu presidente, Rodrigo Maia, que provavelmente não o fará, tendo inclusive rejeitado algumas recentemente. Por exemplo, a Câmara derrubou proposta do Senado que criava o auxílio-emprego com impacto fiscal na casa de R$100 bilhões.

Importante, porém, o trabalho do governo. Sem isso, fica difícil as lideranças no Congresso desarmarem tantas bombas.

A crise é severa e o pós isolamento será muito difícil. A julgar pela atuação atual do governo, os sinais preocupam, incluindo a inacreditável discussão de plano de retomada sem consulta ou liderança do time da Economia.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Eugênio Bucci: A indústria ilegal de ‘fake news’ por trás dos atos pró-ditadura

Motor do bolsonarismo, ou essa indústria vem à luz, ou a treva cobrirá o resto

Na terça-feira o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações pró-ditadura militar realizadas no domingo. É preciso investigar.

É preciso investigar o horror. Domingo foi um dia de horror. Usando a Bandeira Nacional como capa de Zorro por cima de trajes que imitam fardas militares de camuflagem, os circunstantes exigiram medidas exótico-totalitárias, como o fechamento do Congresso e do próprio STF. Contra o horror, o pedido de investigação foi protocolado na segunda-feira, dia 20, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que cumpriu seu dever funcional. O Brasil precisa identificar a indústria que está por trás desse pesadelo que vai virando realidade.

Todos sabemos que o presidente da República é a cereja podre do bolo infecto. Vestindo uma camisa vermelho-chavista, ele compareceu ao ato em Brasília e discursou diante de faixas que pediam “intervenção militar já”. Ao estrelar a matinê lúgubre, o governante antigoverno segue sua tournê como animador de auditórios macabros e de macabros de auditório.

Não obstante, o próprio Bolsonaro não figura como alvo do inquérito. Isso significa que, ao menos por agora, não será oficialmente reconhecido o que já é ululantemente público: que o chefe de Estado patrocina, com seus garganteios perdigotários, a histeria golpista da extrema direita brasileira. Deixemos isso de lado – por enquanto. Não há de ser nada.

O que mais conta, neste momento, não é investigar o óbvio comprometimento presidencial, mas descobrir quem atua, e como, no backstage das vivandeiras machistas. O decisivo, agora, é saber com que dinheiro, por meio de que engrenagens de comunicação e com que logística esse movimento se tornou uma empresa bem administrada. Quem financia esse circo que, enquanto bate palmas para aquele tal que deu de declarar “eu sou, realmente, a Constituição”, trabalha para implodir a Constituição federal? Quem gerencia a estratégia? Onde estão os cérebros por detrás dos descerebrados? Estão fora do Brasil?

Se não quiser virar geleia, a República precisa decifrar o enigma. Para piorar as coisas, pouca gente ajuda. O presidente da República e as milícias, num coro afinadíssimo, sabotam as políticas sanitárias, chantageando o povo pela reabertura de seus comércios, e ninguém faz nada. As oposições entraram em quarentena moral. É inacreditável. A passividade e a desarticulação das oposições estarrecem. É nesse deserto desolador que a iniciativa de Augusto Aras desponta como o único gesto sério contra o golpismo que bate bumbo. Viva Augusto Aras. Fora ele, só o que temos para protestar contra o anacrônico fascismo vintage são as frases balbuciadas do neoestadista Rodrigo Maia e – ah, sim – a decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Os três pelo menos agiram. Perceberam que não adianta pedir “paciência histórica” e esperar que as instituições tomem as providências. Ora, as instituições são vertebradas por pessoas e, se essas pessoas não agirem com coragem, não haverá como barrar o arbítrio. As pessoas que vertebram as instituições têm de se mexer e, para isso, precisam do clamor organizado das oposições. Ou é isso, ou os fascistinhas de WhatsApp vão levar a melhor.

Os fascistinhas de WhatsApp só não levarão a melhor se os crimes sobre os quais se apoiam forem desmascarados. É aí que entram as fake news. Se quisermos de fato desvendar a máquina do golpismo, teremos de entender o nexo entre a indústria clandestina das fake news e o bolsonarismo. Não basta seguir o dinheiro. É preciso seguir as fake news.

Em sua decisão, Alexandre de Moraes apontou o rumo. Determinou que se apurem a “existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano, bem como as suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação que visam lesar ou expor a perigo de lesão os direitos fundamentais, a independência dos Poderes instituídos e ao estado democrático de direito, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura”. Nada mais justo.

Agora, finalmente, as fake news entraram na mira certa. Elas são produto de uma indústria organizada, profissionalizada, tecnologicamente bem equipada, que opera por meio de negócios ilícitos e de relações de trabalho clandestinas. Essa indústria, que é criminosa na forma e no conteúdo – como são, não por acaso, as próprias fake news –, turbina a propaganda de ódio e promove a fúria inconstitucional, antidemocrática e antirrepublicana. Essa indústria politiza o debate sobre medicamentos, bombardeia a credibilidade da imprensa, calunia as instituições, desacredita a ciência, enxovalha a universidade, demoniza a arte e fomenta o fanatismo. Ela convence os malucos – alguns dos quais em altos cargos públicos – de que incêndios na Amazônia não existem e de que o vírus é fabricado em aulas de marxismo cultural. Essa indústria milionária é o motor do bolsonarismo. Ou ela vem à luz, ou a treva cobrirá o resto.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


José Serra: A democracia sob ataque

Se tentasse agir fora dos limites da lei, o Poder Executivo seria contido pelas instituições

Quem estava atribuindo a última das crises governamentais ao estilo do presidente da República e ao conflito entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta não perdeu por esperar além de um par de dias. O presidente já está desautorizando o ministro recém-empossado, Nelson Teich, e desafiando o compromisso do novo ministro com uma atitude cautelosa e baseada em fatos comprovados, de revisão da política de isolamento.

Os menos pessimistas esperavam que, afastado o ministro que seria um suposto desafeto, Bolsonaro deixaria a política de combate à pandemia em mãos da autoridade competente, aliás, declaradamente em “alinhamento completo” com ele, e assumiria como prioridade total a gestão da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia. Mas sua conduta depois da demissão de Mandetta parece ser não mais a de combate à política identificada com seu ex-ministro, mas a de insatisfação com as instituições da República.

No domingo Bolsonaro liderou um comício em praça pública não para protestar contra o isolamento, como vinha fazendo, mas, como disse, a fim de dar sua vida “para mudar o destino do Brasil”. Em seu discurso, em palanque improvisado da caçamba de uma picape, deu um passo a mais em sua verdadeira campanha contra o Congresso, o Supremo, os partidos políticos e mesmo contra a Constituição, não só com palavras, mas também com condutas pouco apropriadas ao papel presidencial no Estado Democrático de Direito.

Em poucas palavras, expressou teses esdrúxulas sobre a democracia, como o conceito equivocado de que “todos estão submissos à vontade do povo”. Nas democracias, o povo não submete nem é submisso à vontade de ninguém. Só se submete à Constituição, que garante a sua liberdade e emana dele próprio, o povo.

O contexto do discurso, as palavras de ordem implícitas que não vêm de hoje - como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos partidos, e a substituição da Constituição pelo famigerado AI-5 - são questões graves. Evidenciam que, para Bolsonaro e seus seguidores, as autoridades legitimamente eleitas devem submeter-se a uma massa rebelada comandada por ele, que se compromete a fazer não tudo o que a Constituição permite, mas “tudo o que for necessário” - linguagem da política associada à da violência.

O povo brasileiro reconquistou sua liberdade em 1985, pelo voto popular, com imensas manifestações políticas - a campanha das Diretas-Já - e uma negociação realista entre praticamente todas as tendências da oposição, que escolheram Tancredo Neves e puseram fim a um longo período de regime autoritário. A Constituição de 1988, cuja legitimidade veio do voto popular, estabelece que a representação do povo, que se expressa nas urnas, e não em carreatas, é prerrogativa compartilhada pelo Legislativo e pelo Executivo. Qualquer medida de força contra o Congresso equivaleria a tentativa de golpe.

Talvez os inspiradores do presidente - não por acaso dotados de escassa experiência de vida pública, com pouco ou nenhum conhecimento da gestão de governo e nenhuma capacidade para avaliar tanto obstáculos reais como a resiliência dos que tratam como adversários - tenham elucubrado uma tática de provocar o Parlamento, com o propósito de induzi-lo a erro e justificar um golpe de força contrário.

Mas o Congresso, cuja experiência mediana de vida pública é considerável, incluindo familiaridade com a gestão de governo, e muitas vezes décadas de habilidades para fazer e receber concessões, não deverá cair nessa arapuca. Ao contrário, poderá exercer os freios e contrapesos que a Constituição lhe outorga para se contrapor a eventuais deslizes do presidente.

Talvez o primarismo das táticas de alguns dos inspiradores da Presidência os conduza ao devaneio de um golpe com apoio militar. Tratar-se-ia de uma perfeita manifestação de alienação do que hoje representam as Forças Armadas brasileiras, institucionalmente comprometidas com o Estado Democrático de Direito e com suas responsabilidades de manutenção da ordem interna e da defesa externa do País. Elas dispõem de uma oficialidade altamente preparada, disciplinada e hierarquizada, que repelirá qualquer tentativa contra a ordem democrática, como - fique bem claro - seus dirigentes têm tornado público inúmeras vezes.

Caso tentasse agir fora dos limites da lei e em desrespeito à Constituição, o Poder Executivo seria contido pelas instituições. Para tanto os cidadãos brasileiros contam com o Supremo Tribunal Federal, um Poder que fala pela Constituição e se há de pautar pela absoluta neutralidade partidária, ideológica e religiosa na imposição da lei.

Uma certa perda de confiança do Parlamento no presidente vem se avolumando desde sua eleição e a ela se soma um começo de desgaste de sua popularidade, uma vez que ele criou expectativas altas sem que as razões do descontentamento popular com os serviços públicos essenciais fossem bem enfrentadas por seu governo. Com popularidade relativamente menor e desconfiança do Parlamento, Bolsonaro terá de mudar, pois a democracia brasileira ele não mudará.

*Senador (PSDB-SP)


Vinicius Torres Freire: Governo reage, militares contra-atacam na economia, na saúde e no Congresso

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o parlamentarismo branco de Rodrigo Maia

O governo parece que tenta governar, sob o comando do ministro-general Braga Netto (Casa Civil). É uma ação coordenada na política, é o controle do Ministério da Saúde, é uma tentativa de articulação administrativa de ministérios e outra de fazer com que a equipe econômica reaja de modo rápido e “proativo”, digamos.

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o “parlamentarismo branco” de Rodrigo Maia, o que antes fazia na maior parte por meio de “ruas” e milícias digitais. Trata-se de minar parte da força de Maia, obriga-lo a negociar, influenciar a eleição do próximo comando da Câmara (em 2021) e, no mínimo, criar um bloquinho parlamentar com tamanho suficiente para barrar um processo de impeachment.

Um instrumento desse combate, como se viu, é a oferta de cargos para partidos que formaram o núcleo do mensalão e do petrolão, o que já estimula outras legendas a correrem para o balcão de barganhas.

Outra pressão veio dos ministros militares do Planalto, que se queixaram em discursos públicos de que a cúpula do Legislativo e Judiciário podam o governo. Nos mesmos discursos ou entrevistas, reafirmavam compromissos democráticos _punham panos frios no comício autoritário de Jair Bolsonaro.

Na economia, Braga Netto e seus colegas apresentaram um pré-plano de reconstrução. Por ora, parece modesto, para dizer o menos, embora seja um sinal de que também no Planalto “sob nova administração” considera-se que a reação do Ministério da Economia é insuficiente, “técnica, mas tímida e com uma visão pré-crise da economia”, como disse um ministro militar que prefere não dizer seu nome.

Mais uma vez, anunciou-se que haverá centenas de bilhões de investimentos via concessões para a iniciativa privada, além do conserto da legislação que trava negócios, o que mal andava mesmo antes da epidemia.

Antes da coronacrise, tais dinheiros privados já eram mera hipótese, projetos que viriam a se tornar obras talvez em 2022. Agora, a hipótese parece fantástica, pois não se sabe o que restará da iniciativa privada, das poupanças, da demanda e de quando o ânimo de investir voltará a respirar.

O anúncio de investimentos públicos foi vago e, dado o tamanho da ruína, minúsculo —R$ 30 bilhões extras até 2022, no que foi possível entender. No entanto, parece haver alguma luz sobre o tamanho do desastre que terá de ser enfrentado também na economia, que exigirá revolução de ideias econômicas e capacidade executiva, ora mais escassas que equipamentos para proteção do pessoal que batalha nos hospitais.

A conversa de que, em um eventual e distante pós-corona, volta-se ao caminho das “reformas e do ajuste fiscal” demonstra inconsciência do desastre, uma reação estereotipada e apego a um pensamento econômico que já era velho mesmo no mundo “a.C”, antes do corona. Será necessário pensar o impensável, como diz por aí qualquer Nobel de economia civilizado.

Ressalte-se que a contraofensiva começou com a demissão do ministro da Saúde e com o comício autoritário em que Bolsonaro reforçou o ataque aos governadores, titilou a pulsão de morte de parte do país e lasseou ainda mais a democracia.

No sapato roto, sujo e alargado da democracia brasileira, cabem agora discursos presidenciais para uma aglomeração que pede ditadura. Ou seja, as tropas da contraofensiva avançam protegidas por cortina de fumaça antidemocrática e com o apoio de bombardeio contra “as instituições que estão funcionando”.


Fernando Schüler: O ódio e a tribalização cresceram durante a pandemia

A tribalização cresceu durante a pandemia

Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.

Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.

No mundo atual tudo se vulgarizou. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.

O hater tende a ser um dualista moral. Ele imagina, como tentaram mostrar Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em seu “The Coddling of American Mind”, que a vida é uma luta entre pessoas do bem e pessoas do mal, entre a verdade e o erro, e que ele representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.

O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe, mas ganhou escala infinita no mundo digital. Seu segundo esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Seu terceiro esconderijo é a tribo. Ele fala e escreve para a turma dos “especialistas na própria opinião”. Vive em uma banheira morna feita de viés de confirmação.

Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.

Em ambos, o sistema está prestes a ruir. A divergência é para que lado. A linguagem é surpreendentemente parecida. Os palavrões variam, mas são sempre abundantes. Há alusões a animais (gado, jumento) e à tediosa terminologia do século 20 (comunistas, neoliberais).

Como previsível, ambos os grupos consideram que o estranho e a barbárie ficam sempre do outro lado. A alusão ao debate politico brasileiro é lateral. O haterismo não depende de conteúdo. É um problema de forma.

Sua expressão mais banal é a falácia ad hominem, atestado mais claro de que alguém não dispõe de argumento nenhum. Curiosamente, ela é o pão de cada dia de nosso debate público. Para ver a enrascada em que nos encontramos. E lembrar de Umberto Eco.

Há uma ampla literatura sobre as raízes do haterismo na psicologia humana. Uma boa referência é o livro de Hugo Mercier e Dan Sperber, “The Enigma of Reason”. Sua tese diz que a mente humana evoluiu para guerrear por ideias, para justificar nossas ações, conduzir a tribo e destruir a tribo do outro.

O kantismo e sua racionalidade universalista, apelo à imparcialidade e à disciplina no “uso público da razão” seriam uma espécie de antinatureza. A razão iluminista pode expressar o que temos de melhor, mas é rara. Aqui no chão rondamos o estado de natureza.

A internet, por fim, piorou tudo. Sua marca é a reação imediata e não reflexiva. No mundo pré-digital, as instituições produziam alguma moderação nas opiniões. Seu tempo era diferente e nos obrigava a filtros e a algum tempo de espera.

Nas mídias sociais de hoje, muito antes de baixar a curva da raiva já tuitamos duas ou três vezes. Tudo em um ambiente de baixa empatia, destituído de pessoas de carne e osso, que olham na nossa cara, transpiram e com a qual podemos nos identificar.

Por fim, uma máquina de não esquecimento. O inferno de Nietzsche, feito da permanente lembrança de velhos ressentimentos. Estranho mundo em que os contextos mudam, mas as imagens e palavras estão lá congeladas no tempo. Cada gesto, cada erro ou acerto, tudo pronto a ser retirado do freezer, ao sabor da raiva da hora.

No início dessa crise, escrevi que a raiva e a tribalização da vida iriam crescer. As pessoas perderiam muito do contato pessoal e o país de cada um, pouco a pouco, se confundiria mais e mais com sua timeline.

Talvez tenha exagerado, mas temo que não.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Mariliz Pereira Jorge: Reféns da extrema direita

Como permitimos que a extrema-direita sequestrasse nossos maiores símbolos nacionais?

Ao ver as imagens de um homem vestido de verde e amarelo agredir um casal com camisetas vermelhas, nas manifestações de domingo (19), pensei: como permitimos que a extrema direita sequestrasse nossos maiores símbolos nacionais?

Professor de relações internacionais da FGV, Oliver Stuenkel, escreveu no ano passado sobre essa tendência ao redor do mundo. "Os radicais têm se apropriado de bandeiras nacionais para poder chamar vozes discordantes de inimigos da pátria". Não por acaso, é assim que Jair Bolsonaro, parlamentares aliados e apoiadores se referem a qualquer pessoa que faça oposição ao presidente.

Stuenkel dá como exemplo o leão e a cruz, imagens nacionais na Finlândia, hoje associados a grupos xenófobos. A tentativa de Trump em se apropriar da bandeira americana. A mesma tática do partido de extrema direita AfD, na Alemanha, que acusa os demais de terem vergonha dos símbolos alemães.

No Brasil, nossas cores encheram as ruas em favor do impeachment de Dilma como contraponto ao vermelho, marca registrada do PT. A partir daí, bandeira, hino e o verde e amarelo passaram a ser evitados por pessoas contrárias ao afastamento e hoje também por opositores do governo, atitude que acabou dando de bandeja parte da identidade do país aos radicais, que os fizeram reféns da estética cafona-bolsonarista.

A maioria dos perfis bolsonaristas nas redes sociais tem nossa bandeira como marca registrada. Tomamos horror ao uniforme verde e amarelo. O hino nacional virou trilha sonora de passeatas que pedem intervenção militar e também resposta às panelas que gritam "fora, Bolsonaro".

Ao nos afastarmos dos símbolos, segundo o que escreveu Stuenkel, "facilitamos o trabalho da extrema direita, a qual busca estabelecer uma falsa dicotomia entre cidadãos 'verdadeiros' e aqueles menos comprometidos com a nação". Ainda que não seja uma competição, talvez esteja na hora de mudar esse jogo.


Bruno Boghossian: Governadores temem que pressão leve a relaxamento precoce de isolamento

Ataques de Bolsonaro a regras e aperto econômico podem precipitar flexibilização de regras

Um animado saxofonista recebeu clientes de um shopping de Blumenau nesta quarta (22). Graças à decisão do governador Carlos Moisés de reabrir as lojas de Santa Catarina, idosos e crianças vestiram máscaras e se aglomeraram no centro comercial, enquanto vendedores batiam palmas nos corredores.

O estado adotou o isolamento contra o coronavírus há mais de um mês. Registrou 37 mortes e, agora, se tornou uma das primeiras unidades da federação a flexibilizar as regras de maneira significativa. Outros governadores temem que os catarinenses puxem a fila de um relaxamento apressado, com potencial trágico.

Líderes que decidiram manter o distanciamento enxergam um processo precipitado de retomada. Eles atribuem o movimento a pressões econômicas e políticas que se acumularam nas últimas semanas.

Para parte desses governadores, Jair Bolsonaro conseguiu constranger gestores regionais ao atacar o isolamento. O peso político se somou à cobrança de empresários que se viram respaldados pelo presidente.

Além disso, o aperto no bolso de trabalhadores informais, que demoram a receber o auxílio emergencial prometido em Brasília, e a resistência do governo federal em compensar estados e municípios que perderam arrecadação com o esfriamento da economia completam o pacote.

A pressão se torna um projeto com a entrada de Nelson Teich no Ministério da Saúde. Em sua primeira entrevista coletiva, ele ressaltou que acabou de chegar ao governo, mas já prometeu um "plano de saída" do isolamento para a próxima semana.

Alguns governadores dizem que ainda é cedo para a discussão. "No momento em que estamos com 90% dos leitos de UTI ocupados, com o sistema da capital colapsado, falar em relaxamento seria uma irresponsabilidade", diz Helder Barbalho (Pará).

As cenas do shopping de Blumenau foram motivo de comemoração no Planalto. De lá, não se ouviu lamento público diante das imagens da abertura de valas coletivas para enterrar os mortos de Manaus.