Day: abril 22, 2020
Elio Gaspari: O presidente virou vivandeira
Nem todos os eleitores de Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram nele
Vivandeira é uma palavra bonita que designa coisa feia. A expressão foi usada em agosto de 1964 pelo marechal-presidente Humberto Castello Branco, numa memorável lição:
“Há mesmo críticas tendenciosas e sem fundamento na opinião pública de que o poder militar se desmanda em incursões militaristas. Mas quem as faz são sempre os que se amoitaram em meios militares. Felizmente nunca rondaram os portões das organizações do Exército que chefiei. Mas eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.
O presidente Jair Bolsonaro amoitou-se diante do quartel-general do Exército, onde havia uma aglomeração de vivandeiras que pediam extravagâncias do poder militar. No dia seguinte, disse que não tinha nada a ver com as faixas que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e uma volta à ditadura escancarada do Ato Institucional nº 5.
O capitão disse também que “eu sou, realmente, a Constituição”. Não é. Dias antes, falou em “minhas Forças Armadas”. Minhas?
Deve-se voltar ao marechal Castello Branco. Como chefe do Estado-Maior do Exército, no dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício do João Goulart ao lado do quartel-general enfeitado por tanques, ele assinou uma circular reservada para os comandos. Disse que “os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”.
Mais: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”.
Castello Branco era um general francês. Já o seu colega Aurélio de Lyra Tavares, subchefe do Estado-Maior do Exército, era qualquer outra coisa. No dia seguinte, mandou-lhe uma carta na qual dizia que havia lido a circular depois de sua expedição. (Portanto não tinha nada a ver com aquilo). Informou que percebia um clima de apreensão “pela leitura dos jornais”. (Maldita imprensa.)
Em qualquer corporação há Castellos e há Lyras. O general viria a ser o desastroso ministro do Exército do presidente Costa e Silva e integrante da patética junta militar de 1969. Deu no que deu.
Nem todos os eleitores de Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram no capitão. Em janeiro de 2019, quando ele entrou no Planalto com seus 58 milhões de votos, poderia haver o sonho de um emparedamento do Congresso. Passado um ano, o Executivo ficou menor que o Parlamento. Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo pueril e viu-se atirado ao olho de uma crise econômica que não provocou e que não mostra competência para administrar. Nas suas palavras: “Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”. Não é uma luta de poder, nem acaba qualquer governo e o dele deve continuar até 31 de dezembro de 2022.
Se o presidente nada teve a ver com a vivandagem, torna-se impossível encaixar o Bolsonaro de domingo (19) no Bolsonaro da segunda-feira (20). Do alto da caçamba de uma camionete ele disse que “não queremos negociar nada. (...) É agora o povo no poder”.
Sem golpe, não haverá como.
Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Bruno Boghossian: Com oferta ao centrão, Bolsonaro usa cargos para expandir poderes
Presidente alimenta paranoia e vai em busca de um seguro-impeachment falsificado
Jair Bolsonaro se lançou no mercado político em busca de um seguro-impeachment falsificado. Depois de alardear que há planos malignos para tirá-lo do poder, o presidente chamou líderes do centrão para o chá da tarde. Na saída, eles passaram a negociar cargos com ministros do Palácio do Planalto.
Ainda que Bolsonaro tenha praticado barbaridades suficientes para justificar uma dezena de processos do tipo, não existe articulação real para removê-lo do cargo. O presidente sabe, mas alimenta a paranoia para tentar expandir seus poderes.
Demonizados por Bolsonaro, os partidos do centrão se tornaram uma peça desse jogo. O governo acenou a PP, PL, PRB e outras siglas com o comando de órgãos como Banco do Nordeste, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e até secretarias do Ministério da Saúde.
Junto com legendas nanicas e os bolsonaristas do PSL, o bloco somaria 190 deputados —ultrapassando os 172 votos que poderiam barrar um eventual processo de impeachment. Com 206, o Planalto ainda conseguiria impedir a Câmara de aprovar mudanças na Constituição.
Para levar o plano adiante, Bolsonaro precisaria acertar as contas com uma base que aplaude sua retórica antipolítica. Ao sugerir que o objetivo da manobra é evitar uma conspiração para tirá-lo do cargo, ele espera amenizar a própria hipocrisia.
O Planalto apresentou um mapa de cargos para Valdemar Costa Neto. Depois, Bolsonaro foi a um comício golpista, chamou políticos de patifes e disse que não queria "negociar nada". De volta para casa, assistiu a um vídeo de Roberto Jefferson, que pode ser beneficiado pela partilha.
O governo já tentou oferecer cargos para esses partidos em abril de 2019. Bolsonaro não segurou a língua, atacou as legendas e implodiu o projeto. Alguns políticos que estiveram com o presidente acreditam que o mesmo pode acontecer agora.
O melhor seguro contra o impeachment que um presidente pode ter é governar. Bolsonaro já se mostrou incapaz de desempenhar esse papel.
Bruno Boghossian é jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).
Conrado Hübner Mendes: A democracia não é para sempre, e a revolução autoritária não será promulgada
O negacionismo político é mais perigoso que o sanitário
Pioneiro do rock russo, Andrei Makarevich contou em suas memórias que nunca lhe ocorrera que "qualquer coisa pudesse mudar na União Soviética". Recordava-se do conforto de pensar que "tudo era para sempre", de "viver num Estado eterno". O colapso não cabia na sua imaginação.
O mesmo se passa com democracias. A ideia de que nada é tão ruim quanto parece, ou de que a história está do seu lado, pouco importa o que fazemos, tende a produzir resignação e passividade em democratas.
Dois séculos atrás Alexis de Tocqueville chamou a atenção para esse "fatalismo democrático". David Runciman o chamou de "armadilha da confiança": quanto mais se confia na permanência, maior o risco de pôr tudo a perder.
Democracias do mundo, nos últimos 20 anos, sofreram significativa queda de qualidade. A quantidade de cidadãos insatisfeitos com o regime não parou de crescer. Relatório do Centro para o Futuro da Democracia, da Universidade de Cambridge, mostra que a proporção de insatisfeitos atingiu o pico de 57,5% em 2020, marco da "recessão democrática".
O ano de 2020 também nos levou ao pico da "terceira onda de autocratização" no mundo, segundo relatório do Centro V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. Pela primeira vez desde o relatório inaugural, de 2001, há mais países autocráticos que democráticos no mundo. O Brasil, descrito como país "em via de autocratização", é um dos destaques negativos.
Apesar de tudo isso, logo após as eleições de 2018, surgiu aqui a legião dos profetas da democracia risco-zero. Vieram para nos proteger contra os alarmistas, aqueles que acenderam a luz amarela ao olhar não só para as palavras e atos de Bolsonaro em 30 anos de carreira, mas para a violência concreta e simbólica do movimento que ele incita.
Os profetas, grupo eclético que reuniu de Ives Gandra a FHC, de Luís Roberto Barroso a Aloysio Nunes, e um pequeno grupo de acadêmicos, afirmavam que tudo não passava de "choro dos perdedores".
O cientista político Carlos Pereira não nos poupou de provocação assim que o governo Bolsonaro completou seu primeiro ano. Em texto com título jocoso —"Ih... a democracia não ruiu"— voltou a nos ensinar que "as chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas", uma "quimera".
Sua evidência científica era um famoso estudo da década de 1990, que relacionava estabilidade democrática e faixa de renda. Foi só. Não se deu sequer ao luxo de ouvir o que os autores daquele estudo, Fernando Limongi e Adam Przeworski, dizem hoje. Não permitiu a nuance, nem a dúvida.
O negacionismo político, que desfila cheio de soberba e verniz retórico, não foi só precipitado. Ao se apressar na resposta, não teve tempo de entender a pergunta. Não olhou para os lados, não ouviu os gritos dos fatos, dos números e das redes. Não observou as ruas, as periferias, as terras indígenas; nem as salas de aula, os laboratórios, as Redações de jornal. Mal examinou a integridade das instituições.
A deterioração democrática não chegou com Bolsonaro, mas ganhou com ele magnitude e velocidade desconhecidas. O presidente não só continua a apoiar o pedido de golpe militar e o fechamento do Congresso e do STF, como embarcou sem volta no negacionismo sanitário, contra tudo que diz a ciência e a experiência mundial. É negacionismo estratégico, pois lhe interessa o destino político, não as mortes.
Há duas maneiras de instituições responderem. Uma é repousar no negacionismo político e emitir notas de repúdio. Outra é explorar vias políticas e jurídicas para preservar o mínimo democrático que nos resta, acima de projetos eleitorais de curto prazo. Ou alguma combinação criativa que não estamos vendo.
A revolução autoritária não será promulgada. Nem sairá no Diário Oficial.
*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Vinicius Torres Freire: Montadoras perdem 80% das vendas e esperam que governo destrave crédito
Quase nenhuma montadora prevê reiniciar a produção de veículos antes de maio
Uma semana antes do paradão, em meados de março, no Brasil se compravam cerca de 11 mil veículos por dia. A média de abril, até dia 20, era de 2.250 veículos por dia, baixa de uns 80%. A queda em relação a abril do ano passado também anda pela casa dos 80%.
Já foi pior. Na semana final de março, os licenciamentos não passavam de 1.300 por dia.
Quase nenhuma montadora prevê reiniciar a produção de veículos antes de maio. A retomada da atividade deve ser postergada e lenta mesmo nessas mais otimistas. Várias devem voltar pouco antes do início de junho.
Sobram estoques, não se sabe o futuro da epidemia em cada região onde estão as fábricas (mais de 40% da produção é na Grande São Paulo) nem as diretrizes dos governos para o comércio, por exemplo.
Por ora, as empresas adaptam as fábricas ao mundo da epidemia. As linhas de produção ficarão mais lentas, por falta de demanda e porque precisarão ser ajustadas para evitar contaminações. Serão necessários mais ônibus para transportar trabalhadores (para evitar lotação). Será preciso repensar refeitórios que chegam a servir milhares de refeições por dia, comprar máscaras e instalar medidores de temperatura (para detectar febris), conta Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, a associação das montadoras.
No mais, a preocupação central da indústria é com o crédito: financiar capital de giro e prolongar o prazo de pagamento de empréstimos já contraídos. O caixa míngua, como no país quase inteiro. Além do mais, é preciso fazer com que o socorro chegue a toda cadeia, de fornecedores a concessionárias, afirma Moraes.
O problema com o crédito vai além. Aumentou o custo de captação dos bancos das montadoras, instituições que financiavam 45% dos veículos vendidos antes da epidemia _isto é, o crédito pode ficar mais caro.
Dinheiro há, o Banco Central aumentou a liquidez. Mas os bancos estão na retranca porque a perspectiva de inadimplência é enorme, em geral. Faltam, pois garantias. De algum modo, isso pode vir do governo, que assumiria parte do risco.
Segundo Moraes, há conversas avançadas entre ministério da Economia, BNDES, bancos privados e montadoras, caso a caso, e com a Anfavea. As empresas precisam da solução “para ontem”; Moraes acredita em algum acordo até o final desta semana. As suspensões de contrato, reduções de salário e outras medidas do gênero já começaram.
As montadoras de veículos e máquinas agrícolas empregam diretamente 123 mil trabalhadores em 10 estados e 40 cidades. Têm peso de 10% na indústria, atrás apenas da indústria de alimentos e do setor de petróleo e combustíveis, mas são o ramo que, para cima ou para baixo, arrasta consigo a cadeia produtiva mais longa e extensa. No geral, a indústria de transformação como um todo “puxa” mais o PIB do que qualquer outro setor da economia.
O governo ainda anda devagar no planejamento das medidas contra a ruína. Ainda não tem medidas para microempresas, para empresas que faturam mais de R$ 10 milhões e para grandes empresas especialmente abaladas pelo paradão.
Decerto não se pode fazer favor para graúdos bem de vida. Mas a desgraça é geral, em micro, pequenas, médias e grandes. A redução do consumo do desempregado da grande ou da pequena afeta a economia da mesma maneira.
A destruição de empresas e poupanças tornará a retomada ainda mais difícil. Acreditar que, num distante “depois da crise”, basta voltar a “reformas e ajuste fiscal” é mistura de loucura e incompetência.
*Vinicius Torres Freire é jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
Hélio Schwartsman: E a África, gente?
Muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI
Sem uma vacina que possa ser aplicada em larga escala, essa pandemia só vai acabar depois que a maioria dos terrestres tiver sido contaminada pelo Sars-Cov-2 e tornar-se imune a ele. Não vou considerar aqui a hipótese mais trágica, mas que não pode ser inteiramente descartada, de que infecções prévias não confiram proteção pelo menos parcial ao paciente.
Isso significa que, a menos que sua confiança na chegada relativamente rápida da vacina seja de 100%, as políticas de isolamento social que a grande maioria dos países abraçou precisam ser fortes o suficiente para evitar o colapso dos sistemas de saúde, mas não tão draconianas que impeçam o aparecimento gradual da chamada imunidade de rebanho.
O ritmo em que devem ocorrer tanto o isolamento como a retomada só pode ser calculado em nível local, levando em consideração itens tão variados como a capacidade da rede hospitalar e da realização de testes, a adesão da população às recomendações sanitárias, perfil demográfico, densidade urbana, hábitos de interação social etc.
Se tem lógica para a Suécia, onde mais da metade das residências é ocupada por apenas um morador, adotar uma forma mais relaxada de distanciamento —grande parte das infecções ocorre dentro de
casa—, essa mesma abordagem pode revelar-se desastrosa numa favela brasileira, onde quatro ou mais pessoas vivem num único cômodo, sem água corrente para a lavagem das mãos.
E a coisa pode ficar ainda pior. O que fazer no caso dos muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI? Não estou exagerando. Dez países africanos não têm nenhum ventilador; outros quatro contam com não mais que meia dúzia. Neste caso, a carência é tamanha que o próprio objetivo de proteger o sistema de saúde perde parte do sentido. Pode-se ainda defender o isolamento na esperança de que surja a vacina ou um remédio eficaz, mas aí já vira mais aposta do que gestão.
Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Nelson de Sá: China toma lugar dos EUA na América Latina, alertam 'think tanks'
Washington deveria enviar assistência humanitária, como Pequim, não 'destroieres da Marinha', diz artigo no NYT
Na chamada do New York Times, "Gracias China!!!". Artigo de representantes de dois "think tanks" do establishment de política externa, Council on Foreign Relations e Inter-American Dialogue, destaca que Argentina e México agradecem Pequim pelo apoio contra a Covid-19 --e até "Jair Bolsonaro minimiza sua retórica", embora mais para manter a venda de soja.
Enquanto isso, Donald Trump "anuncia aumento de ativos militares no Caribe e costa do Pacífico", quando, "em vez de destroieres da Marinha, os EUA deveriam prestar assistência humanitária a nossos vizinhos", como faz a China. Em suma, no subtítulo, "Liderança dos EUA na América Latina é questionada e Pequim se posiciona para ficar com o manto".
O consultor americano Ian Bremmer, da Eurasia, voltada para risco geopolítico, falou na mesma linha ao podcast do âncora da NBC Chuck Todd. Relatou que a cadeia de suprimentos da China já está em 70% e atinge "funcionamento total" em maio. "Ou seja, enquanto os americanos ainda estiverem parados, os chineses estarão prontos para ser a fábrica do mundo de novo."
Por toda parte, conclui ele, "os cidadãos começam a dizer: 'Por que estamos seguindo os EUA?'. Você vê isso no Sudeste Asiático, na África, na Europa e até na América do Sul".
POLÍTICA INDUSTRIAL LÁ
Também no NYT, o senador republicano Marco Rubio propõe "uma abrangente política industrial pró-americana", depois de "décadas priorizando ganhos financeiros sobre a produção de bens físicos".
O modelo --e concorrente-- é a China, onde "o Partido Comunista apoiou as empresas no desenvolvimento do capital produtivo de longo prazo". Em suma: "Por que não tivemos máscaras e ventiladores? Porque são ações que não maximizam retorno financeiro" em Wall Street.
CHINA AVISOU
Reportagem do Financial Times sobre a "guerra de mídia social" de Eduardo Bolsonaro e Abraham Weintraub com a China ouve, de "autoridade de comércio" brasileira: "O pior é que isso pode plantar uma semente de desconfiança, criar uma imagem negativa do Brasil como fornecedor de produtos à China".
E de "diplomata sênior" brasileiro: "Já danificou as relações. Os chineses já sinalizaram que, se continuarem, os danos podem ser mais tangíveis. Essas mensagens já foram enviadas".
COLAPSO
Com mais de um mês em quarentena e o "colapso" de hospitais e crematórios em Lima, sites peruanos noticiam que a "Polícia bloqueia rodovia enquanto pessoas tentam fugir" da capital (imagem acima).
Na manchete do El Comercio, o país passou de 17 mil casos, o segundo na América Latina, e "Lima reporta mais mortos que todo o Chile", o terceiro. O ministro peruano da Saúde declarou: "Queremos evitar o que se viu em Guayaquil", corpos nas ruas.
Washington Post e o site chinês NetEase já acenderam o sinal vermelho sobre o Peru, com o segundo destacando o temor da América do Sul de se tornar "o próximo campo de batalha" da pandemia.
Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.
Bernardo Mello Franco: Carreatas da morte
No dia em que o estado registrou a milésima morte pelo coronavírus, manifestantes pararam o trânsito e fizeram buzinaço em frente ao Hospital das Clínicas. No mesmo quarteirão funciona o Instituto Emílio Ribas, cuja UTI não tem mais leitos para novos pacientes.
Perto dali, na Avenida Paulista, ambulâncias tentavam abrir caminho entre veículos enfeitados com bandeiras do Brasil. Os motoristas ignoraram as sirenes e continuaram a bloquear as pistas. Um homem de camisa da seleção saiu do carro e celebrou a adesão ao movimento: “Vamos parar São Paulo!”. Ele terminou a performance com gritos contra o governador, que faz apelos diários para que a população respeite o isolamento.
No mesmo cenário, uma semana antes, ativistas em verde e amarelo já cobravam a reabertura imediata do comércio. Um grupo ergueu um esquife e encenou o enterro da “ditadura da Covid-19”. Ao fundo, um alto-falante tocava a música eletrônica do “meme do caixão”, que faz piada com uma cerimônia fúnebre em Gana.
No futuro, as carreatas da morte ajudarão historiadores a explicar o Brasil de 2020. Em Brasília, os manifestantes aproveitaram para pedir golpe militar e fechamento do Congresso. O ato terminou com discurso do presidente Jair Bolsonaro, festejado aos gritos de “Mito”.
No Rio, o protesto motorizado passeou pela Zona Sul e tomou a Avenida Niemeyer rumo a São Conrado. Ao passar pelo Vidigal, virou alvo de uma chuva de ovos. O fotógrafo Lucas Landau, da agência Reuters, registrou o momento em que um policial saiu em defesa dos motoristas e apontou a arma contra moradores da favela. Em comunidades dominadas por milícias, não houve carreata. O comércio já recebeu ordem para reabrir as portas, ignorando decretos estaduais e municipais.
Na Bahia, o cardiologista Fábio Vilas-Boas, secretário estadual de Saúde, reagiu com indignação ao ver as imagens de domingo. “Será que essas pessoas aceitam assinar um termo renunciando ao acesso a leitos de UTI e ventilação mecânica para si, para seus pais e para seus filhos?”, perguntou, numa rede social. Até agora, nenhum bolsonarista aceitou o desafio.
Míriam Leitão: Canais da saúde e da economia
O ministro da Saúde, Nelson Teich, na reunião com os governadores do Nordeste, repetiu algumas vezes que é preciso olhar “os modelos matemáticos” para “entender o problema”. Para os governadores que vivem o drama real e imediato da pressão no sistema de saúde, pareceu meio apavorante que o ministro queira tempo para saber como agir. Um dos participantes da reunião disse que “ou ele terá um choque de realidade e vai virar um novo Mandetta ou pode ser um desastre monumental. Em crises como esta não costuma haver meio termo.”
No meio desse conflito federativo, todos os governadores com quem eu falei elogiaram a disposição de Teich para o diálogo. Isso, que deveria ser rotina numa federação, a esta altura parece até uma concessão de tão obstruídos que estão os canais. Os governadores focaram na ampliação que vêm fazendo de suas vagas de UTI nas redes estaduais, relataram as dificuldades e pediram mais critério no repasse de recursos e insumos. Ao fim, ficaram de formalizar seus pedidos ao Ministério.
Há dois trilhos de ajuda aos estados e municípios, um de repasse para a saúde, e outro de socorro aos estados, que depende do Ministério da Economia. Depois da derrota na Câmara, o projeto virou uma fonte de briga, continua parado no Senado onde o governo tenta mudar tudo.
Na segunda-feira, numa transmissão direta com investidores, o ministro Paulo Guedes falou que pode ampliar o dinheiro para os estados se os governadores congelarem os salários dos servidores por dois anos. Isso é super-razoável, mas há três problemas: primeiro, em vez de contar para banqueiros e investidores, deveria estar falando com governadores; segundo, deveria dar o exemplo e fazer o mesmo no governo federal. O terceiro problema é a maneira como Guedes relata os eventos e apresenta os números:
– Os governadores vieram para uma conversa com o presidente, e tudo que eles pediram foi dado. Inclusive com algum aumento. Por isso que é injusta essa visão de que o presidente está perseguindo o governador A ou o governador B. É falso. É falso. É uma fakenews política. É um uso político contra o presidente, injusto, e contra nós também, injusto. Porque os governadores vieram aqui e saíram muito felizes. Foram atendidos. Voltaram uma semana depois pedindo algo que foi calculado em R$ 220 bilhões.
O presidente mal fala com os governadores, o ministro prefere falar com o mercado financeiro. A questão é que aumentar o FPE ajuda estados menores. Para o Rio Grande do Sul, o FPE representa 1,6% da receita. No Nordeste é grande, mas não cobre as despesas que eles estão tendo agora. Falei ontem com um governador que recebeu R$ 40 milhões para a saúde e já aumentou seus gastos em R$ 180 milhões. Para os estados maiores, será preciso compensar perdas de ICMS. Pode não ser a fórmula aprovada na Câmara, mas terá que acontecer, do contrário, os estados entrarão em colapso. Paulo Guedes disse, nessa fala aos investidores, que os governadores estavam tentando “transformar uma crise na saúde em uma farra eleitoral”.
Por palavras, omissões, erros, este governo está provocando uma baita crise federativa no meio de uma pandemia. Paulo Guedes lamenta que esta crise não tenha acontecido depois dos “oito anos de transição”.
– Alguém tem alguma dúvida que nós somos federalistas? Alguém tem alguma dúvida que nós enfrentaríamos muito melhor esta crise se o Brasil já fosse uma federação fortalecida? Imagine que os estados já tivessem, ao fim desses oito anos de transição, em que nós estamos descentralizando as receitas para estados e municípios, imagine que já tivesse terminado isso e então chegasse a crise da saúde. Não estava esse desespero, procurando respirador e máscara, porque todos teriam a condição de se defender.
O governo, que chegou falando em mais Brasil e menos Brasília, tem feito o contrário e na crise deixa critérios políticos contaminarem decisões que teriam que ser técnicas. O dinheiro dos contribuintes está concentrado em Brasília, e a União tem o monopólio de emissão de títulos e de moeda. Mas isso não pode ser entendido como uma propriedade de quem neste mandato ocupa o governo federal. É do país como um todo, e Brasília tem que socorrer os entes federados em uma crise. E isso é agora. E não após o tal período de oito anos, com o qual conta o ministro da Economia.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Merval Pereira: Golpe frustrado
O presidente Bolsonaro tentou dar ares de apoio dos militares à sua presença na manifestação antidemocrática que avalizou no domingo em Brasília, mas soube, antecipadamente, que a área militar se incomodava com a escolha como moldura de uma ação política o Forte Apache, como é conhecido o Quartel-General do Exército.
Ele convidou para acompanha-lo os ministros da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, que recusaram, por considerarem que a presença deles sugeriria que o Exército avalizava a manifestação.
Por ser político, os generais consideram que Bolsonaro tem o direito de participar de manifestações políticas, mas, diante da repercussão negativa, avaliaram que o presidente deu um passo em falso ao convalidar as reivindicações antidemocráticas.
Por isso, tiveram uma reunião com ele na noite do mesmo domingo, onde ficou combinado que Bolsonaro falaria no dia seguinte para desfazer o clima político tenso, e à noite o ministério da Defesa deu uma nota oficial garantindo que as Forças Armadas obedecem à Constituição.
A frase proferida por Bolsonaro na manhã de segunda feira - “Já estou no poder, por que daria um golpe?” - foi dita a ele na reunião de domingo.
A investigação já em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as fake news cruzará inevitavelmente com o novo inquérito aberto sobre as manifestações antidemocráticas, pois tudo indica que os mesmos que orquestram as notícias falsas contra os que consideram adversários políticos são os que organizam e financiam essas manifestações que pedem a intervenção militar e o fechamento do Supremo e do Congresso.
A piada do dia entre os parlamentares é que os sorteios no Supremo Tribunal Federal (STF) estão sendo feitos pela mão de Deus, como o gol do Maradona. O inquérito sobre as manifestações antidemocráticas caiu, no sorteio eletrônico, para o ministro Alexandre de Moraes, o mesmo que já preside o inquérito sobre as fake news contra o STF. E o pedido do deputado Eduardo Bolsonaro para impedir a prorrogação da CPI das Fake News no Congresso foi para o ministro Gilmar Mendes, um dos mais ferrenhos combatentes das fake news, e que tem assumido publicamente posições vigorosas contra as reivindicações ilegais de intervenção militar. A tal ponto que retuitou uma declaração de outro ministro do STF, Luis Roberto Barroso, não exatamente seu amigo, repudiando os que pedem a volta do AI-5 e da ditadura militar.
O inquérito das fake news já existe há um ano no Supremo, e recebeu muitas críticas pela maneira como foi criado, em regime de sigilo como o de agora, e sem a participação da Procuradoria-Geral da República. Está mais avançado do que o Procurador-Geral atual, Augusto Aras, gostaria.
Ele pediu a abertura de um inquérito para investigar os atos antidemocráticos, mas excluiu o presidente Bolsonaro do rol de suspeitos de os incentivarem, provavelmente para cacifar-se à vaga do Supremo que se abre em novembro com a aposentadoria do ministro Celso de Mello.
Mas bastará um parlamentar, ou associação da sociedade civil, requisitar ao ministro Alexandre de Moraes que inclua Bolsonaro no inquérito que o pedido será encaminhado pelo Supremo à PGR, criando um constrangimento que possivelmente impedirá a não aceitação.
O inquérito do ministro Alexandre de Moraes já tem uma relação de 10 a 12 de deputados bolsonaristas, mais empresários, que tiveram o sigilo quebrado, e a Polícia Federal estava a ponto de fazer busca e apreensão em seus endereços quando veio a quarentena.
Com o novo inquérito, dificilmente vai dar para parar a investigação, que já teria identificado o chamado “gabinete do ódio” que funciona no Palácio do Planalto como a origem das fake news, e poderão surgir dados que liguem esse grupo palaciano, coordenado pelo vereador Carlos Bolsonaro, à organização dessas manifestações ilegais.
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, conversou ontem com o ministro Alexandre de Moraes e deverá receber um relatório sobre as investigações das fake news no início da próxima semana.
A investigação original é sobre o STF, mas há indícios de que está tudo ligado. A Polícia Federal deve manter os mesmos policiais que já estão trabalhando no inquérito das fake news, para dar mais agilidade às investigações.
Luiz Carlos Azedo: Distopia no presente
“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa”
A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada, uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e à “sociedade do espetáculo”.
Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário: cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que, obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.
O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor, chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus — os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os primeiros a voltar ao trabalho.
A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo? Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.
A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal, prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.
Tirania
Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é domina por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.
Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente, seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o “grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do que a moderna transmissão de dados.
A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso regime democrático.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-distopia-no-presente/
Monica de Bolle: Quarentenas intermitentes
A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las
Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. Queiramos ou não aceitar essa nova realidade, a verdade é que ela já está posta. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à covid-19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.
Não sou infectologista. Contudo, como economista tenho a obrigação de manter-me bem informada sobre os determinantes da crise econômica e do quadro futuro que se apresenta. Esses determinantes não são de natureza econômica: são provenientes do comportamento de uma fitinha de RNA, o vírus Sars-CoV-2. Tenho conversado e interagido com profissionais das áreas de saúde pública, infectologia, virologia, microbiologia. Não tratar do que se passa de forma interdisciplinar é erro certo não apenas na formulação dos cenários que se apresentam, mas, sobretudo, nas medidas econômicas necessárias para atender às necessidades da população.
Já escrevi nesse espaço que o quadro de quarentenas intermitentes requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente: de outro modo, não haverá como sustentar a população mais vulnerável do País nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Em artigos para este jornal, para a Revista Época e em vídeos no meu canal do YouTube tenho dito à exaustão que o momento pede que todos comecem a se preparar para uma nova realidade. Não retornaremos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 tão cedo – talvez esse mundo tenha já desaparecido para sempre.
Fazer chegar essa mensagem aos ouvidos das pessoas, tarefa para a qual eu e muitos outros temos nos dedicado, é muito difícil. Evidentemente, ninguém quer acreditar que o modo de vida com o qual estavam acostumados se foi. Mas é preciso preparar-se para isso e acreditar no que a ciência nos tem dito.
A economia das quarentenas intermitentes é algo que não conhecemos. É um sistema que não funciona da forma relativamente contínua com a qual estamos acostumados, mas um sistema que soluça e engasga. Para atenuar esses espasmos e a volatilidade deles decorrente, tenho insistido, junto com outras pessoas, que é preciso pensar na reconversão da indústria. A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las.
Esse esforço passa pela produção em escala de equipamentos hospitalares diversos, incluindo os de proteção individual, de que toda a população precisará quando as quarentenas forem temporariamente relaxadas. Abordei esse tema em entrevista concedida ao programa Roda Viva na última segunda-feira. Serviços também precisarão se readequar: restaurantes, por exemplo, terão de aprender a funcionar em rodízios, com poucos clientes e com uma capacidade de entrega que hoje não têm. Comerciantes terão de adaptar seus negócios para a convivência com o vírus, redesenhando normas e adotando plataformas online quando possível. Também precisarão, inevitavelmente, contar com serviços de entrega.
Novas tecnologias terão de ser desenvolvidas. Elevadores não poderão ter botões, já que são foco de contaminação. Deverão ter sensores térmicos? Tecnologias de reconhecimento de voz? É provável que a indústria tecnológica dê um salto de dez anos, que o processo de automação, já em curso, ganhe imenso ímpeto. Nesse caso, as relações de trabalho haverão de mudar ainda mais rapidamente, tornando a adoção da renda básica permanente mundo afora uma medida indiscutivelmente necessária.
Para aquelas empresas que podem trabalhar em rodízios, reduzindo o número de pessoas nos escritórios, o trabalho de casa será uma realidade que veio para ficar. Vamos precisar de mais capacidade para os serviços de internet, testemunharemos o crescimento em larguíssima escala da indústria de aplicativos para fins diversos. A segurança online será exponencialmente mais importante do que já é. A regulação da privacidade e da comercialização de dados precisará sair do papel.
Deixo essas ideias para que reflitam sobre o cotidiano, sobre tudo aquilo em que não paramos para pensar. Deixo-as para que comecem a se adaptar desde já.
* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY
Vera Rosa: Bolsonaro quer aliado na presidência da Câmara; Marcos Pereira é cotado
Planalto age para atrair partidos e fazer sucessor de Rodrigo Maia
BRASÍLIA - A estratégia do presidente Jair Bolsonaro para formar uma base de sustentação parlamentar passa pela eleição para o comando da Câmara, hoje nas mãos de Rodrigo Maia (DEM-RJ), seu desafeto. Ao tentar atrair o Centrão com a oferta de cargos – que vão de diretorias do Banco do Nordeste a secretarias em ministérios –, Bolsonaro também procura construir uma candidatura à sucessão de Maia.
Nos bastidores, o presidente se movimenta para impulsionar a campanha do deputado Marcos Pereira (SP) nessa disputa, marcada para fevereiro de 2021. Vice-presidente da Câmara, Pereira comanda o Republicanos, partido que recentemente abrigou o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, ambos do Rio. Os dois se filiaram temporariamente, enquanto o Aliança pelo Brasil não consegue as assinaturas suficientes para sair do papel.
Pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Pereira é um dos postulantes do Centrão ao comando da Câmara. A bancada evangélica leva hoje o título de principal avalista de Bolsonaro no Congresso. Outro candidato que conta com a simpatia do presidente é o deputado Arthur Lira (AL), líder do PP e réu em processo por corrupção passiva. A ideia de Bolsonaro é observar, mais adiante, qual dos dois será fiel a seu projeto e terá mais viabilidade.
Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não poderão concorrer à reeleição, se não houver mudanças de regras. Motivo: a Constituição impede que os presidentes da Câmara e do Senado sejam reconduzidos aos cargos na mesma legislatura. Antes da crise do coronavírus, no entanto, havia uma articulação nesse sentido, principalmente por parte de Alcolumbre, que encomendou até parecer jurídico. Bolsonaro, por sua vez, está convencido de que precisa construir uma alternativa a Maia. Cabe ao presidente da Câmara autorizar ou não a tramitação de qualquer pedido de impeachment na Casa.
Cargos
Em outra frente para buscar apoio, o Planalto decidiu apressar a entrega de cargos a partidos do Centrão, como mostrou o Estado. Bolsonaro impôs, porém, um filtro: os indicados não podem ter trabalhado em administrações do PT. Além disso, o Planalto vai monitorar as redes sociais de todos.
O DEM perderá o comando da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e da Parnaíba (Codevasf), que deve ser entregue ao PP de Lira e do senador Ciro Nogueira (PI). Pelo acerto dos últimos dias, o PL de Valdemar Costa Neto ficará com o Banco do Nordeste. O governo também prometeu ao partido de Valdemar a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, cargo que formula estratégias de combate ao coronavírus. O Republicanos, por sua vez, poderá ocupar uma secretaria no Ministério do Desenvolvimento Regional. Pereira foi ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços na gestão de Michel Temer.
Bolsonaro fará nova rodada de conversas nos próximos dias. Nesta quarta-feira, ele receberá o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. Nesta quinta-feira a audiência será com o prefeito de Salvador, ACM Neto, que dirige o DEM.
No domingo, porém, ao participar de manifestação que defendia o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, o presidente atacou o que chamou de velha política. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, disse ele, em cima da caçamba de uma caminhonete, diante do Quartel-General do Exército.
Para o deputado Efraim Filho (PB), líder do DEM na Câmara, as divergências devem ser arquivadas neste momento. “Falar em intervenção militar, por um lado, e impeachment, por outro, é um desserviço para o Brasil. Já temos crise de saúde, crise econômica e uma nova crise política não seria bem-vinda”, afirmou. “Precisamos de um pacto de união nacional para enfrentar a covid-19. Não é hora de disputa política nem de discursos agressivos”, avaliou Baleia. / COLABORARAM CAMILA TURTELLI e MATEUS VARGAS