Day: abril 13, 2020

‘Não seremos os mesmos depois do coronavírus”, diz analista à Política Democrática Online

Revista da FAP publica artigo que aponta mudanças após a pandemia do Covid-19

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A contaminação pelo coronavírus se generalizou, desestruturando a política, a economia, as relações sociais e a cultura dos países afetados. A grande questão é o que acontecerá quando o mundo voltar à normalidade. Essa é a reflexão que a analista Erdna Odama propõe em texto que ela produziu para a 17ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todos os conteúdos da publicação são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade.

»Acesse aqui a 17ª edição da revista Política Democrática Online

De acordo com o artigo, após a pandemia, a sociedade não será a mesma. “Não seremos os mesmos, a começar pela confiança arranhada em nossos governantes, que, como  regra, demoraram a tomar as medidas responsáveis e ainda batem cabeça sobre como preparar-se para os desafios de recuperar a economia, a política e a cultura, gravemente conturbadas pela pandemia”, afirma.

Erdna também registra, no artigo da Política Democrática Online, que, uma primeira possível mudança pode dizer respeito às relações entre o Estado e os cidadãos. “O monopólio da racionalidade esfumou-se”, diz, para continuar: “As ações individuais e espontâneas de pessoas anteciparam-se em grande medida às dos governos, em que a solidariedade humana se sobrepôs aos ditames da ordem pública. Esse povo guerreiro, que não hesitou em arriscar a vida para ajudar o próximo, deverá resistir a retornar ao mero papel de coadjuvante na condução da ordem pública, a cargo exclusivo dos gabinetes do poder”.

Essa atitude, conforme aponta a autora do artigo, se estenderá às relações entre os países. “O globalismo espera-se possa enterrar de vez a oposição à integração entre os países”, acentua. Segundo ela, não só o surto epidemiológico desconheceu fronteiras, mas também as providências adotadas no país, revelando-se bem-sucedidas, foram rápida e acertadamente copiadas pelos demais, em benefício de milhões de vidas.

“Não será isso suficiente para desarmar o conflito entre o isolamento nacionalista e a solidariedade global?”, questiona a analista no artigo publicado na revista Política Democrática Online. ‘Tanto mais porque, no dia seguinte à sanha assassina desse novo vírus, todos terão de trabalhar juntos para, entre outros, reestruturar seus sistemas de saúde, evitar a falência de grandes e, sobretudo, pequenos empresários – estes responsáveis por grande parte do PIB dos países centrais –, reabilitar o funcionamento das companhias de transporte aéreo, compartir pesquisas científicas e oferecer ajuda (médica, alimentar e financeira) aos países mais debilitados”, assevera.

Leia mais:

» Coronavírus: ‘Nem tudo é terrível e negativo’, diz historiador Joan del Alcázar

» ‘Reação ao bolsonarismo nas urnas é legítima defesa da nação’, diz Alberto Aggio

» Coronavírus agrava crise do governo Bolsonaro, diz editorial da revista Política Democrática

» Coronavírus e naufrágio de Bolsonaro são destaques da revista Política Democrática

» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática online


Almir Pazzianotto Pinto: Um certo capitão Bolsonaro

Que fazer, prosseguir com atividades não essenciais ou preservar vidas?

Longe estou de pretender traçar paralelo entre o capitão Jair Bolsonaro com o galante capitão Rodrigo Cambará, nascido da imaginação de Érico Veríssimo na trilogia O Tempo e o Vento. Tratarei do presidente da República que derrotou Fernando Haddad em duelo incruento e democrático, após terçarem armas e vencerem no primeiro turno políticos experientes como Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva e outros de menor projeção que me dispenso de nomear.

A História mostra como são difíceis e imprevisíveis as disputas eleitorais. Recordo-me da surpreendente derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para o general Eurico Dutra, em 1945, e do retorno de Getúlio Vargas, em 1950. A vitória de Fernando Collor, em 1989, foi inesperada. O mesmo aconteceu na primeira eleição de Lula. Não nos esqueçamos das condições políticas reinantes em janeiro de 1985, quando, em pleno regime militar, Tancredo Neves impôs dura derrota a Paulo Maluf no colégio eleitoral.

Em maio de 2018 Jair Bolsonaro era tido, no jargão turfístico, como azarão, destinado a ficar em quarto ou quinto lugar. Despontava como favorito Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira. A seguir viria Ciro Gomes. Mais atrás, Marina Silva e Álvaro Dias. Correndo por fora, o empresário João Amoêdo, do Partido Novo.

Não repisarei o que já se disse sobre o triunfo de Jair Bolsonaro. Aconteceu e basta. Foi eleito para exercer mandato de quatro anos, conforme prescreve a Constituição. Poderá candidatar-se à reeleição. Ao tomar posse prestou compromisso “de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

Promessa idêntica fizeram os presidentes anteriores. A fórmula encerra o óbvio. Sabemos, entretanto, que jamais foi respeitada. O juramento de defesa da Constituição tem sido pro forma. Não evita que a Lei Fundamental seja alvo de emendas retalhadoras. A de 1988 exibe mais de cem cicatrizes e, em nome de reformas, aguarda por muitas outras. A todo momento se ouve falar em nova Assembleia Constituinte ou em emenda parlamentarista.

Quanto ao bem geral do povo brasileiro, abstenho-me de comentar. Somos pobres e subdesenvolvidos. Se alguém alimentasse dúvida, a pandemia do coronavírus bastaria para eliminá-la. Com falta de recursos materiais e humanos, a assistência à população se sustenta graças à dedicação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, dos auxiliares imediatos e mediatos, dos secretários da Saúde e médicos dos Estados, de grandes e pequenos municípios, da solidariedade de empresários e trabalhadores.

Quando votamos em Jair Bolsonaro – e me incluo entre os eleitores –, sabíamos o que estávamos fazendo. Conhecíamos os riscos de conduzir à chefia do Poder Executivo alguém que não se encontrava habilitado por completo para o cargo. Como paraquedista treinado para o combate corpo a corpo, afeito ao uso de armas brancas e de fogo, S. Exa. se revela incapacitado para conservar alianças que exijam tolerância e serenidade. Não sabe dialogar, ignora a arte oriental do silêncio e não tem a humildade beneditina para ouvir antes de argumentar.

O perfil paradoxal do presidente Bolsonaro mais se evidencia quando declara guerra ao ministro Mandetta pela exemplar correção no exercício do cargo. Devotado aos princípios da hierarquia e da disciplina, inerentes à organização das Forças Armadas, S. Exa. não compreende serem eles incompatíveis com a vida civil. Compete ao presidente da República, segundo a Constituição, a prerrogativa de nomear e exonerar ministros de Estado. Nunca, porém, de forma abusiva, como simples demonstração de autoridade. Afinal, a ele também se aplicam as exigências do artigo 37, cabendo-lhe observar, no interesse da República, os princípios de impessoalidade, moralidade e eficiência.

À falta de vacina, os países que melhores resultados colhem no combate à pandemia são os que adotam severa política de isolamento, ressalvados os serviços indispensáveis à satisfação das necessidades permanentes da sociedade. É impossível combinar a proteção à saúde, para garantir a sobrevivência do maior número possível de pessoas, com a plena continuidade do transporte, da comunicação, do turismo, da diversão, dos esportes, da grande e pequena indústria, do comércio atacadista, varejista e ambulante. Países que subestimaram o isolamento pagam alto preço em número de infectados e mortos.

Estamos cientes de que a pandemia trará prejuízos inevitáveis. Para o Brasil significa mais uma década perdida. Não há como evitá-lo. Empresas estão sendo fechadas e numerosos trabalhadores têm o contrato de trabalho suspenso ou são demitidos. O que fazer em tais circunstâncias? Privilegiar o prosseguimento de atividades não essenciais ou preservar vidas? A palavra é do leitor que se mantém enclausurado.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Alex Ribeiro: BC avalia momento certo para os juros

Injeção de liquidez não exclui possível estímulo monetário

Muitos analistas do mercado financeiro acreditam que exista um conflito entre as medidas de liquidez e de política monetária. Ou seja, quando o Banco Central (BC) adota medidas para injetar dinheiro na economia, sinaliza que não pretende fazer novos cortes na taxa básica de juros. Essa leitura não parece correta. O BC tem enfatizado o princípio da separação entre a política monetária e a estabilidade financeira. Novas baixas da taxa básica de juros seguem em consideração. A questão é quando usar esse instrumento de estímulo da economia.

Depois de deixar o mercado sem referências durante o período de silêncio do Comitê de Política Monetária (Copom), o presidente do BC, Roberto Campos Neto, fez uma maratona de comunicação nas duas últimas semanas. Ele chamou muito a atenção para as medidas que injetam liquidez, capital e crédito na economia. Essa é a prioridade no momento. Sobre juros, disse várias vezes que, para cortar mais a taxa Selic, é preciso ter certeza de que os estímulos vão de fato se transmitir pelo mercado financeiro, chegando à economia real.

Lembrou que não se deve fazer política monetária por analogia - ou seja, não é porque os Estados Unidos cortaram os juros a zero que o Brasil deve fazer o mesmo. Campos Neto vem repetindo a tese de que países desenvolvidos, que atraem capitais nos períodos de incerteza, são diferentes de países emergentes, que registram fuga de capitais nessas circunstâncias. No momento atual, a saída de recursos estrangeiros tem sido dez vezes maior do que na crise financeira de 2008.

Isso quer dizer que a política monetária perdeu a eficácia? “Não significa que nós não acreditamos na política monetária”, ponderou Campos Neto numa live promovida pela XP. “Não que acreditamos que a política monetária não tem potência”, disse ele num webinar do Credit Suisse.

Na realidade, Campos está apenas reproduzindo a comunicação feita pelo Copom na sua última reunião. Quem quer conhecer a visão do colegiado sobre a força da política monetária na conjuntura atual deve reler a ata da reunião de março. “Os membros do comitê discutiram a efetividade da política monetária como política de estímulo à demanda”, diz o documento. “Concluíram que, embora nesse momento seus efeitos sejam limitados, os mesmos serão relevantes para acelerar a recuperação econômica, quando as restrições impostas pela pandemia começarem a arrefecer.”

A questão, portanto, não parece ser que a política monetária não tenha potência. O ponto é quando ela poderá ser útil para estimular a demanda. Nesse período de forte volatilidade e de excesso de prêmios de risco, estímulos monetários têm efeitos limitados. Podem ter até efeitos negativos, se o estímulo for mal recebido pelos mercados e se acelerar a fuga de capitais do país, com efeitos sobre o dólar.

Mas é bom notar que, embora haja uma certa obstrução na transmissão da política monetária na conjuntura atual, ela voltará a ficar operacional mais adiante. E, provavelmente por isso, Campos Neto tem enfatizado que, hoje, a agenda são as chamadas medidas macroprudenciais. “A gente está fazendo [medidas] em liquidez e capital porque a gente entende que são mais importantes neste momento”, disse ele no webinar do Credit Suisse. Por extensão, pode-se entender que cortar os juros não é o mais importante “neste momento”.

Há duas semanas, quando anunciou um conjunto de medidas que injetou liquidez e capital na economia, o presidente do Banco Central indicou que, dependendo das conjuntura, o remédio a ser adotado é diferente. “Medidas tomadas em momentos de maior turbulência têm efeitos que são diferentes de um momento em que o mercado está mais calmo”, disse. Com um mercado mais calmo, o BC teria espaço para cortar juro.

A conclusão é que, ao contrário do que muitos acreditam, o Banco Central não abandonou a lógica do regime de metas de inflação.

Aparentemente, está aguardando o momento o adequado, quando a transmissão da política monetária ganhará mais potência.

É certo que o Banco Central vai cortar os juros? O que há, hoje, é uma sinalização de manutenção da taxa básica na próxima reunião, em maio. Mas esse não é um “forward guidance” firme - num cenário de muita incerteza, o Copom está mais propenso a fazer algo diferente do sinalizado. “O comitê reconhece que se elevou a variância do seu balanço de riscos e novas informações sobre a conjuntura econômica serão essenciais para definir os seus próximos passos”, disse o comunicado do colegiado, que até agora não foi modificado pelos seus membros.

A grande variância do balanço de riscos significa que, hoje, o Copom acredita menos no seu cenário econômico central, no qual não há muito espaço para os juros caírem. Os cenários alternativos têm peso muito grande nas decisões do Copom. Tanto que, na reunião de março, o colegiado deu um peso especial para um cenário de queda mais forte da demanda, que aconselhava cortes maiores do que 0,5 ponto percentual.

Mas Campos Neto tem enfatizado riscos do lado negativo, sobretudo o de abandono das reformas e do ajuste das contas públicas. O cenário principal do BC é que, num momento em que governo e Congresso priorizam a resposta emergencial à crise do coronavírus, reformas e o ajuste fiscal ficam em segundo plano, porém serão retomados logo em seguida. Mas há uma incerteza que tem pesado na curva de juros futuros. Se o risco se materializar, o impacto deve ser mais forte, elevando inclusive o juro neutro da economia.

É dentro desse arcabouço bem convencional do regime de metas que o Banco Central deverá tomar as suas próximas decisões. As medidas que injetam liquidez e capital na economia seguem a lógica da estabilidade financeira. Campos Neto lembrou nos últimos dias que há certa relação entre uma coisa e outra, já que uma liberação de compulsórios ou uma eventual compra de títulos públicos no mercado tem implicações monetárias. Mas a tendência é que o Copom apenas procure medir os impactos das medidas na trajetória da inflação para, então, tomar separadamente a melhor decisão para os juros.


Leandro Colon: Servidor público também precisa pagar a conta da crise

Governo propõe cortes no setor privado, mas há um silêncio sobre medidas para o funcionalismo

O Senado tem ao todo cinco funcionários no “serviço aeroportuário”. As remunerações partem de R$ 25 mil, segundo registros oficiais.

A atribuição deles é cuidar do planejamento das viagens das autoridades e de seus convidados que desembarcam no aeroporto de Brasília.

O serviço é subordinado à Polícia Legislativa do Senado, que fornece 19 servidores, com bons salários, para o “serviço de plenário e comissões”.

Outros 22 policiais legislativos trabalham na proteção do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ao todo, a Casa tem cerca de seis mil funcionários de carreira e comissionados. Em tempos de sessões virtuais, com senadores votando de casa pela internet, e voos restritos, é inútil o “serviço aeroportuário”.

Assim como não há necessidade para 19 policiais cuidarem da segurança do plenário e das comissões, que estão inoperantes fisicamente.

Mas enquanto o governo federal propõe o corte de jornada e dos salários do setor privado para enfrentar a crise do coronavírus, há um silêncio sobre medidas que atinjam o bolso do funcionalismo público.

Os três Poderes —Executivo, Judiciário e Legislativo— não se mexem para buscar uma saída legal que corte na própria carne.

O presidente do STF, Dias Toffoli, por exemplo, tratou de acalmar a tropa da Justiça quando a hipótese de redução salarial foi aventada.

Reportagem publicada no domingo (12) na Folha mostra que haveria um caixa de R$ 6 bilhões se houvesse uma diminuição de 25% na jornada e nos salários por três meses na administração federal.

Somando os funcionalismos estadual e municipal, o valor subiria a R$ 36,8 bilhões, de acordo com estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Um dinheiro que poderia ir para o combate à pandemia.

Grande parte desses são servidores de carreira, que compõem uma elite com estabilidade trabalhista em meio a uma crise econômica que promete ser sem precedentes. Que ao menos então recebam menos por trabalhar menos nesse período.


Cacá Diegues: O normal como problema

Vírus é resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência

Não pensem que um dia a gente volta ao normal. Não é só que o vírus ainda pode matar muita gente, não sei quantos. Mas é que o mundo já não é mais o mesmo, e nunca mais será. Tudo muda tão depressa, diante de nossos olhos. O que aprendemos de manhã, já não serve para o fim da tarde. A cada momento, o vento sopra de um modo diferente para nos dizer o que se passa mais adiante ou um pouco atrás de nós.

Esse tempo do vírus é um tempo de desgraças, não é pra gente comemorar nada. Só um louco ou um ignorante pode preferir isso ou aquilo, no meio da incontrolável tempestade. Nós temos é que ficar atentos, vigiar a direção para onde o barco vai, depois que ela passar.

Levamos a vida provocando a Natureza, como se ela tivesse que nos obedecer e se manter sob nosso controle para sempre, agora que sabemos quase tudo dela. O vírus é uma resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência. Como foram no passado a peste na Guerra do Peloponeso, a Negra no fim da Idade Média, a Gripe Espanhola na Primeira Guerra Mundial. É como se a Natureza, com muita sofisticação apesar da brutalidade, estivesse nos dizendo que fomos longe demais.

Bertrand Russel nos disse que “o amor é sábio e o ódio é tolo”. Mas nós, há tanto tempo, tentamos construir um mundo baseado na tolice do ódio, contra os semelhantes que sempre julgamos mais frágeis e talvez inferiores. Invisíveis eram as famílias moradoras de favelas, elas podiam ser substituídas de pronto em nossos serviços, tipo varejo ou mão de obra. Agora que o vírus ameaça maltratar preferencialmente essas populações, indefesas porque ignoradas, clamamos contra a hipótese e assustados pedimos socorro. Porque não podemos ficar sem seu papel, já milenar, de justificar por inércia nossos privilégios, nosso conforto pessoal. Com a pandemia se alastrando, os políticos procuram proteger a quem representam, fazendo sobreviver os que nos servem. Ao contrário do que podíamos supor, os invisíveis se tornam visíveis para seguirem servindo os mesmos, nos novos tempos.

E ainda nos dizem para evitar a “politização do vírus”. Está bem, não temos que politizar o vírus para defender ou atacar mandatos e candidaturas, não temos que nomear heróis, graças à maldade do vírus. Mas como podemos saber quem nos faz bem e quem nos faz mal, se não podemos politizar o evento? A ialorixá e educadora Wanda d’Omolú, em recente entrevista ao GLOBO, nos iluminou com a declaração de que “a Terra está passando por uma limpeza” e que “daqui a pouco, ela estará limpa e nós teremos oportunidade de fazer diferente”. Portanto, diz ela, “não podemos voltar ao normal, porque o normal era justamente o problema”.

O normal era países em guerra permanente, uns sufocando os outros; era a divisão do mundo entre uma esquerda e uma direita que, tirando muito pouco, era tudo a mesma coisa; era a superioridade da abstração religiosa de uma ideologia sobre a realidade; a exploração do trabalho, sem reconhecimento ou recompensa; a imensa desigualdade social e o racismo, que quase sempre a justifica; o julgamento do sonho, como uma negação do mundo real em que queremos viver. Tudo isso que faz da humanidade um projeto tão bonito, que ainda não deu certo. Não posso achar que voltar a esse normal seja um avanço, uma vitória da felicidade que buscamos durante a vida inteira.
_______________
Em 30 de março, o Sinditelebrasil, sindicato das empresas de telecomunicações, pediu e conseguiu, junto ao Tribunal Regional da 1ª Região, uma decisão liminar que suspende o recolhimento da Condecine pelas empresas do setor. A Condecine é uma taxa devida por essas empresas, para o desenvolvimento do audiovisual brasileiro, responsável por 80% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Como todo mundo sabe, Condecine e FSA são responsáveis pela existência atual de nosso cinema. Sem eles, em breve, não existirão mais filmes brasileiros de qualquer natureza.

Já as empresas de telecomunicações no Brasil nunca ganharam tanto dinheiro como agora. Sobretudo depois de declarado o justíssimo isolamento social, a quarentena que nos faz usar, muito mais vezes ao dia, nossos telefones e outros meios de comunicação. O crescimento do faturamento dessas empresas, nesse período, é de 300% .

As teles alegam à Justiça que, nesse momento de crise, seus lucros devem ser preservados como garantia de “manutenção de empregos”. Que tal comparar esses riscos com os de produtores, distribuidores e exibidores brasileiros, com a totalidade de salas de cinema no Brasil fechadas por causa dessa mesma crise? Está aí um bom exemplo do tal “normal” a que eles querem sempre voltar.


Ricardo Noblat: Quem piscará primeiro – o presidente ou o ministro?

Esgotou-se a paciência de Mandetta com Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro disse que o coronavírus está indo embora do Brasil. Em que país ele vive? Ocorre justamente o contrário: o coronavírus espalha-se a galope pelo país, infectando e matando em maior número. E assim será pelos próximos dois meses, segundo o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde.

Quem pode estar indo embora do governo é Mandetta. A não ser que Bolsonaro engula mais um sapo indigesto que ele lhe serviu ontem ao dizer em entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, que está ministro, não é ministro. E que o brasileiro fica cada vez mais confuso quando ele diz uma coisa e Bolsonaro o oposto.

Vai encarar, presidente? Está disposto a demitir seu ministro da Saúde em meio à pandemia que só por aqui infectou 22.169 brasileiros até ontem, matando 1.223? E logo agora quando o vírus começa a alcançar os que não fazem parte dos chamados grupos de risco como idosos e vítimas de outras doenças?

Na última segunda-feira quando parecia estar por um fio, Mandetta participou da reunião mais tensa de sua vida. Foi com Bolsonaro no Palácio do Planalto, e mais uma dezena de ministros. Saiu faíscas, apagadas pelos ministros empenhados em evitar que Mandetta pedisse demissão ou que Bolsonaro o demitisse.

A certa altura, Mandetta disse com todas as letras a Bolsonaro: “Enquanto eu for ministro da Saúde, sou eu que mando ali, não o senhor”. Para surpresa geral, o presidente calou-se. Mais tarde, em confidência a um amigo, o general Fernando de Azevedo e Silva, ministro da Defesa , comentou ainda perplexo com a cena:

– Você me conhece. Saber que sou um conciliador. Mas naquele momento, se eu fosse o presidente, teria demitido Mandetta.

O problema de Bolsonaro é que ele se convenceu de que demitir Mandetta não seria um bom negócio. No caso, ficaria como o único responsável pelos estragos que o vírus causará ao país. Bolsonaro prefere fritar Mandetta em público e espera que, enfraquecido, ele se enquadre ou abandone o paciente.

A queda de braço entre os dois parece próxima do fim. Nem Mandetta suporta mais Bolsonaro, nem Bolsonaro a ele. Mandetta quer salvar vidas. Bolsonaro, a Economia. A paciência do ministro esgotou-se. Resta saber quem tomará a iniciativa da separação.

Bolsonaro é descartável – nós, os idosos, não

Se não virar um presidente mais ou menos normal, tchau e benção

Sinto-me bem aos 70 anos de idade, a quatro meses de completar 71. Há 7 anos ganhei duas pontes safena e uma mamária pelos mãos do cirurgião Fábio Jatene e aos cuidados do cardiologista Roberto Kalil. Nada de cloroquina. Só agora começo a ouvir falar dela como a droga dos sonhos de Bolsonaro.

Trabalho, em média, 16 horas por dia. Se você faz o que gosta, trabalhar não cansa. Estou acima do peso. E fumo dois charutos por dia, o que não deveria. Não me exercito com regularidade, apesar dos apelos do meu filho mais velho. Mas quando vou à academia, pedalo quase 7 quilômetros em 30 minutos.

Vivo em paz com minha mulher, com meus três filhos e seis netos. Ai deles se faltarem ao almoço dominical obrigatório. O almoço foi suspenso e deixei de vê-los há pelo menos 30 dias. O confinamento não me faz mal – salvo por não poder reunir a família. De certa forma, vivo confinado desde que inaugurei este blog há 16 anos.

Não arredarei o pé de casa até que me convença de que o perigo passou. Mesmo assim penso em fazer como soldados japoneses que continuaram lutando a 2ª Guerra Mundial décadas depois de ela ter terminado. Não seria uma má ideia, uma vez que isso não implicaria em me desconectar do mundo, por impossível.

Mas a propósito do que resolvi escrever sobre mim mesmo, o que raramente faço? Para dizer que mesmo fazendo parte do grupo mais vulnerável ao coronavírus não autorizo ninguém, muito menos Jair Bolsonaro, a me tratar, e aos demais da minha idade e nas mesmas condições, como mercadoria descartável.

Perfeitamente descartável seria ele, um aventureiro que se elegeu presidente sem dispor do mínimo preparo para o cargo. Que não tem e nunca teve uma proposta de governo para chamar de sua. E que diante do seu primeiro e grande desafio desde a posse, vaga por aí perplexo, amalucado, sem saber direito o que fazer.

Está cercado por ministros medíocres à sua imagem e semelhança, salvo honrosas exceções. E desesperado ao ver que poderá ir pelo ralo a única ideia que teve e persegue com obstinação: a de se reeleger em 2022. Vive para isso e para mais nada. Pois deveria se cuidar porque nem mesmo seu atual mandato está seguro.

A não ser capaz de reinventar-se, dificilmente governará o país por mais dois anos e meio. Não se tira presidente em meio a uma pandemia, concordo. Mas se tira depois que ela passar, depois que se avalie sua responsabilidade por tudo que aconteceu e depois que as panelas emudeçam e as ruas comecem a falar.

Os militares, 21 anos depois, voltaram aos quartéis sem que o país sofresse forte abalo. Dois presidentes da República foram depostos, dois ex-presidentes foram presos, e a democracia seguiu em frente. Por mais que Bolsonaro tente enfraquecê-la, Congresso e Justiça têm resistido a todos os seus arreganhos. E assim será.

Ou baixa a bola e vira um presidente mais ou menos normal, o que, convenhamos, exigiria muito dele, ou irá para o olho da rua, o que parece ser seu destino. E página virada.


Bernardo Mello Franco: Seis momentos em que Mandetta contestou Bolsonaro no Fantástico

O presidente Jair Bolsonaro não deve ter gostado muito da entrevista do ministro Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico.

A seguir, seis momentos em que o médico contestou ou desafiou o capitão:

1) Sinais trocados: Mandetta criticou as falas de Bolsonaro contra as orientações do Ministério da Saúde. "Eu espero uma fala única, uma fala unificada, porque isso leva para o brasileiro uma dubiedade. Ele não sabe se ele escuta o ministro da Saúde, se ele escuta o presidente, quem é que ele escuta", afirmou.

2) Passeio na padaria: Depois de uma semana marcada por novos passeios do presidente, o ministro criticou quem desrespeita a quarentena. "Quando você vê as pessoas entrando em padaria, entrando em supermercado (...), isso é claramente uma coisa equivocada", disse.

3) Aumento das infecções: Mandetta avisou que o coronavírus deve se alastrar no próximos dois meses: "Maio e junho serão, realmente, os nossos meses mais duros". Neste domingo, sem apresentar qualquer dado científico, Bolsonaro disse o contrário: "Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus".

4) Ministério x Planalto: O ministro disse que seus auxiliares tomam os cuidados necessários contra a pandemia. "Até agora, nós não tivemos nenhum colaborador nosso que tenha tido a gripe, a virose", contou. O Planalto virou foco da doença em Brasília. Ao menos 23 integrantes da comitiva que acompanhou Bolsonaro aos EUA foram infectados, incluindo os ministros Augusto Heleno e Bento Albuquerque. O presidente diz que não pegou o vírus, mas se recusa a mostrar o resultado dos testes.

5) Fake news: Mandetta criticou as teorias conspiratórias que proliferam na ala olavista do governo. "Tem muita gente que gosta da internet, que vê na internet uma fake news dizendo que isso (o vírus) foi uma invenção de países para ganhar vantagens econômicas. Outras pessoas acham que existe um complô mundial contra elas", ironizou. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, já sugeriu que a China teria disseminado a doença para "dominar o mundo".

6) Páscoa com Caiado: O ministro concedeu a entrevista no Palácio das Esmeraldas, sede do governo de Goiás. Ele passou a Páscoa com o governador Ronaldo Caiado, que rompeu com Bolsonaro durante a pandemia.


Fernando Gabeira: Cloroquina sem paixão

Na Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio era bala de prata. Os remédios eram combinados num coquetel

Não sou médico, nem cientista. É uma temeridade escrever sobre a cloroquina agora que sua composição química ganhou componentes ideológicos. Abordo o tema com minha experiência da campanha contra a Aids, que pude seguir ativamente, com mandato e sem estar preso em casa.

Desconfio também da experiência do general que vê na batalha de hoje uma repetição da batalha do ano passado, do político que vê na campanha atual uma réplica da campanha anterior.

Ainda assim, vou tateando. No combate à Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio em si era uma espécie de bala de prata contra o vírus. Os remédios eram combinados num coquetel.

Imagino que alguma coisa assim esteja acontecendo no combate ao coronavírus. Quando surgiram os rumores da pesquisa francesa liderada por Didier Raoult, Trump ainda não havia anunciado sua predileção pela cloroquina.

Os rumores na internet eram de que a hidroxicloroquina estava associada à azitromicina e que estava sendo usada no Hospital do Coração.

Liguei para confirmar, e o hospital desmentiu, dizendo que aquilo era fake news. Não noticiei nada, porque achava que, mesmo com desmentido, haveria corrida.

Nos EUA, Anthony Fauci, o homem que comanda a luta contra o coronavírus, fez também uma advertência sobre o perigo da notícia, pois os estoques poderiam ser esgotados.

Em seguida, li a história de um médico chinês de pouco mais de 30 anos, imigrante nos EUA. Ele foi contaminado pelo coronavírus e esteve entre a vida e a morte. A colônia chinesa estabeleceu os contatos com Wuhan, cujos médicos tinham já uma grande experiência. Recomendaram hidroxicloroquina com Kaletra, um remédio usado também contra a Aids. Isso fortaleceu para mim a ideia de que a cloroquina estava associada a um outro remédio, uma tática combinada como foi, guardadas as proporções, no caso da Aids.

Continuei atento ao movimento dos chineses, com os poucos recursos que tenho para segui-los. Li que a China pirateou outro remédio experimental contra o coronavírus, o Remdesivir.

A patente é da empresa americana Gilead, que deve faturar mais de US$ 2,5 bilhões com ele, apesar do avanço chinês sobre sua fórmula.

O Remdesivir é um antiviral mas não pode também ser considerado uma bala de prata. Seu uso foi aconselhado pela Agência Europeia de Medicina em casos muito graves, como um tratamento compassivo.

De novo, apesar de serem batalhas diferentes, a experiência da luta contra a Aids ilumina o caminho, até que uma outra luz mais forte e direta me conduza.

O Brasil resolveu inicialmente o problema da cloroquina comprando-a da Índia. Esse país vende remédios assim como a China vende equipamentos médicos. O Ocidente se aproveita dos preços baixos de ambos até que descobre sua dependência.

Mas em breve poderemos chegar à possibilidade de um coquetel ou uma simples associação de remédios. Nesse momento, veremos a possibilidade de distribuí-los gratuitamente.

Foi assim com o coquetel da Aids. Muita discussão com a equipe econômica por causa dos custos. O problema seguiu adiante mesmo depois da vitória da gratuidade.

Apareceu então, com intensidade, o problema das patentes. Até que ponto um respeito religioso pelos direitos dos laboratórios multinacionais não era um obstáculo para a salvação das vidas?

Felizmente, na época, tínhamos um ministro da Saúde, José Serra, que compreendeu bem o dilema e soube defender o que me parece uma posição correta no debate planetário sobre patentes.

A cloroquina, graças ao empenho de Trump e Bolsonaro, ganhou destaque na cena, mas o Remdesivir, a julgar pela apropriação chinesa, também merece um exame.

Na verdade, há pelo menos oito atores, remédios em teste, que foram ofuscados pela cloroquina e mereciam mais atenção. Nenhum deles é de direita ou de esquerda. São fórmulas químicas, e sinto-me meio acaciano a formular essa frase.

No entanto, o vírus já foi politizado, os remédios são politizados de uma forma equivocada. A questão que nos espera é testá-los adequadamente e garantir que cheguem às pessoas e discutir os direitos de patente num mundo devastado pela pandemia.


Bruno Carazza: O antes e o depois de Bolsonaro

Coronavírus marca o fim da primeira fase do governo

James Carville é um consultor político que em 1992 assessorou Bill Clinton na disputa pela Presidência dos EUA, então ocupada por Bush pai. Reza a lenda que Carville afixou numa das paredes do comitê de campanha um cartaz com três lembretes para que o candidato democrata não perdesse o foco durante os debates. Diziam eles: “Não se esqueça do sistema de saúde”, “Mudança vs Mais do Mesmo” e “A economia, estúpido”.

Muito antes de Carville, economistas e cientistas políticos já estudavam as íntimas relações entre a política econômica e seus impactos nas urnas. Políticos normalmente se esquecem disso, mas além de eleitores, somos empregados, empresários, profissionais liberais ou aposentados. E percepções sobre crescimento, desemprego e inflação afetam nossas decisões de votar tanto ou mais do que preferências ideológicas ou inclinações por este ou aquele candidato.

William Nordhaus, vencedor do prêmio Nobel de economia em 2018, lançou em 1974 a hipótese de que políticos são tentados a se valer da política econômica como estratégia para se reelegerem ou fazerem seus sucessores. De acordo com sua teoria dos ciclos político-econômicos, governantes tendem a adotar políticas restritivas no início do governo, aprovando reformas e apertando o cinto das despesas enquanto sua popularidade está alta. À medida em que o mandato se aproxima do fim, é hora de afrouxar as rédeas e expandir os gastos e o crédito, apostando que o crescimento dos empregos e dos lucros lhes trarão mais votos.

Em 2018, ao se colocar à disposição de Bolsonaro para ser o seu Posto Ipiranga, Paulo Guedes prometeu mundos e fundos. Com números espetaculosos, convenceu o ex capitão de que valeria a pena apoiar um programa amargo de reformas no primeiro ano de governo (Previdência, privatizações e cortes de despesas), pois dali em diante os investimentos iriam bombar e o crescimento, deslanchar.

Seguindo a receita de bolo do ciclo econômico-eleitoral, Guedes persuadiu Bolsonaro de que as medidas liberais se reverteriam em uma fácil reeleição em 2022.

No entanto, o mesmo antigo compositor baiano que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso” também nos alertava que “a vida é real e de viés”. E se no início do ano, quando tudo parecia tranquilo, Bolsonaro já estava incomodado com a demora de Guedes em entregar os resultados prometidos, a pandemia causada pelo novo coronavírus torna ainda menos provável que os planos de Guedes se concretizarão.

Analisando as pesquisas de opinião pública conduzidas pelo Ibope nos últimos 35 anos, fica evidente como a gestão da economia foi determinante para as ambições eleitorais de praticamente todos os presidentes brasileiros. José Sarney, por exemplo, viu sua aprovação cair da casa dos 70% no lançamento do Cruzado para menos de 10% após os sucessivos fracassos de seus planos heterodoxos. O mesmo aconteceu com Collor: engana-se quem imagina que sua popularidade despencou com as denúncias de corrupção. Com a inflação subindo e a economia em recessão, sua avaliação positiva já estava abaixo de 20% quando Pedro Collor contou tudo. Daí em diante foi só ladeira abaixo.

FHC segurou o quanto pôde para se reeleger, mas viu a sua reprovação crescer de 20% para 50% com a liberação do câmbio no início de 1999. A partir desse ponto seu segundo mandato se arrastou em meio a políticas fiscais e monetárias restritivas para salvar o Real, racionamento de energia e problemas externos como a crise na Argentina e os atentados terroristas nos Estados Unidos. Como resultado, o projeto de permanência do PSDB no poder foi abortado com a derrota de José Serra em 2002.

Lula foi o único presidente do atual ciclo democrático a conseguir aplicar as recomendações do manual da teoria do ciclo político-econômico. Com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, foi dada continuidade à política contracionista de Pedro Malan nos primeiros dois anos de governo, comprando credibilidade nos mercados interno e externo. Com o mensalão batendo às portas do seu gabinete, Lula abriu as torneiras do gasto público e do crédito dos bancos oficiais para estimular a economia e impulsionar sua popularidade. Sua aprovação subiu de 30% em meados de 2005 para atingir impressionantes 80% em 2010, atropelando a crise financeira de 2008 e elegendo com facilidade a sua sucessora para o Palácio do Planalto.

A história de Dilma na Presidência pode ser contada em três atos.

Enquanto a economia rodava acelerada pela política expansionista de Guido Mantega, seus índices de aprovação giravam em torno de 60%. A insatisfação popular com a classe política irrompeu com os protestos de rua de 2013, e dali até a reeleição Dilma se equilibrou entre 30% e 40% de popularidade.

Mas então a tempestade perfeita se formou: os excessos econômicos do passado cobraram seu preço no mesmo momento em que o maior escândalo de corrupção da história brasileira atingia o PT e os principais partidos da coalizão governista. Com sua reprovação batendo em 70% da população, todos sabem o que aconteceu.

A crise da covid-19 marca o fim prematuro da primeira fase do governo Bolsonaro. Ninguém sabe qual será o saldo macabro de mortes da pandemia no Brasil, e muito menos qual a duração e a gravidade dos seus efeitos econômicos. Simulações do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estimam que a economia brasileira crescerá de 2,3% a 4,4% menos do que o esperado, enquanto no mercado já há instituições financeiras que trabalham com uma recessão de 5%, segundo o boletim Focus do Banco Central.

Se o cenário de desemprego recorde e quebradeiras no setor privado se concretizar, e de mãos atadas pela piora fiscal provocada pelas medidas de socorro contra a pandemia, a maldição de Carville (“é a economia, estúpido!”) assombrará os 30 meses que separam Bolsonaro das eleições de 2022. Haja cloroquina para tentar evitar a queda na sua popularidade.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Hussein Kalout: A insustentável estratégia da diplomacia brasileira

Políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural para a nova doutrina das relações exteriores do País. Se enganaram 

Apesar das desconfianças e da perplexidade com a heterodoxia da nova orientação da “política exterior” do País, políticos, diplomatas, militares, acadêmicos e empresários imaginaram que a realidade iria servir como barreira natural de contenção para as descalibradas aventuras que se prenunciavam e o pragmatismo, logo acabaria, com o tempo, predominando sobre a frívola proposta que foi apresentada à Nação.

O novo corolário doutrinário das relações exteriores do País trazia consigo um equívoco de concepção: desprezar na largada os tabuleiros de fácil e imediata maximização dos interesses nacionais em troca da projeção de hipotéticas vitórias em tabuleiros mais volúveis e de alta complexidade – e isso, obviamente, sem os necessários recursos que delimitam o poder real de dissuasão de um país.

China e EUA foram transformados em dilema. O presidente, durante a campanha e após a campanha, não poupou esforços para atacar um país e louvar o outro. O inquilino da Casa Branca tornou-se referência moral e padrão estratégico a ser seguido pelo Palácio do Planalto. Até os erros, inertemente, são macaqueados.

No marco dessa difusa equação, a reafirmação de lealdade a esse alinhamento passou a estar consubstanciado no constante antagonismo com a China, na agressividade retórica na América do Sul e no abandono do equilíbrio dos temas médio orientais. 

O bolsolavismo acreditava que poderia modular duas narrativas, que, apesar de ambivalentes, poderiam funcionar sem custo diplomático. Erro crasso! Em seu torpe ideário, provocar um choque frontal com os chineses serviria a dois propósitos: 1) alimentar os ignorantes agitadores digitais de sua bolha ilusória nas redes sociais; e 2) reforçar os laços com Washington de aliado obediente e comprometido com a causa anti-China. A sua turva visão não alcançou, até o momento, a compreensão de que os EUA querem seguidores e não sócios na partilha de qualquer espólio comercial envolvendo o mercado chinês.

Irritar a China publicamente e contemporizar os danos nos bastidores – para capitalizar com americanos e aplacar a ira dos chineses – é uma estratégia falida. É como caminhar no fio da navalha com uma granada na cintura.

Os bolsolavistas não sopesaram em seus cálculos a virulência da reação chinesa. Julgaram que o pragmatismo chinês amorteceria a sua infantilidade institucional e o que prevaleceria, ao fim e ao cabo, são os negócios – puxados sempre pelos competentes adultos do Ministério da Agricultura e pela prudência dos generais.

O governo Bolsonaro criou um falso e desnecessário dilema para definir o papel do Brasil no contexto das relações do Brasil-China-EUA. Elevar as relações entre Brasília e Washington ao patamar de uma parceria estratégica – ou mesmo uma aproximação nos termos imaginados por Bolsonaro – não deveria excluir a expansão da relação política e comercial com Pequim. Uma agenda profícua com a China não deveria implicar, por outro lado, distanciamento dos EUA.

Para jogar no tabuleiro geoestratégico em meio às duas superpotências mundiais – cujos recursos de poder são superiores aos nossos –, o Brasil precisa ter clareza das consequências. Atacar Pequim, sem ter para onde escoar as suas commodities e sem saber como substituir os investimentos no setor energético e de infraestrutura do País, é de um amadorismo atroz.

Enquanto o bolsolavismo não quebrar a criptografia das regras de engajamento que regulam as relações sino-americanas, é melhor o Brasil manter uma distância segura em relação a esse embate.

A diplomacia do governo Bolsonaro não dá sinal de querer ser governada pela razão, pelo pragmatismo ou em defesa dos interesses estratégicos do País, mas, sim, monetizar em votos apoiadores fanáticos a serviço de seu projeto de poder – mesmo que isso arruíne a relação do Brasil com China, França, Alemanha, Argentina ou o inimigo fabricado da vez.

HUSSEIN KALOUT, 43, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.


O Estado de S. Paulo: PGR contraria Supremo e diz que Bolsonaro pode sim decidir sobre isolamento

Em parecer, procurador-geral da República contraria entendimento de ministro do STF e afirma que não é possível avaliar se limitar a circulação tem eficácia contra a covid-19

Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro tem o direito de decidir sobre o “momento oportuno” para maior ou menor distanciamento social no enfrentamento do novo coronavírus. A opinião é do procurador-geral da República, Augusto Aras. Em parecer ao qual o Estado teve acesso, Aras afirma que, como o mundo passa por uma “crise sem precedentes”, repleta de “incertezas”, não é possível avaliar hoje, com precisão, se a estratégia de limitar a circulação de pessoas tem eficácia para impedir o avanço da covid-19.

Alegando preocupação com os efeitos da quarentena sobre o PIB e o emprego, Bolsonaro tem travado um cabo de guerra com governadores de todo o País, desde março. Na semana passada, em reunião com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ele chegou a dizer que a economia vai para o “beleléu”, neste ano, por causa da pandemia.

“As incertezas que cercam o enfrentamento, por todos os países, da epidemia de covid-19 não permitem um juízo seguro quanto ao acerto ou desacerto de maior ou menor medida de isolamento social, certo que dependem de diversos cenários não só faticamente instáveis, mas geograficamente distintos, tendo em conta a dimensão continental do Brasil”, escreveu Aras.

Para o procurador-geral da República, cabe ao Executivo definir qual o grau mais adequado de isolamento social, levando em conta tanto o sistema de saúde quanto a economia.

No domingo, 12, Bolsonaro afirmou no Twitter que, para toda ação desproporcional, a “reação também é forte”. “Além do vírus, agora também temos o desemprego, fruto do ‘fecha tudo’ e ‘fica em casa’, ou ainda o ‘te prendo’”, escreveu o presidente, numa referência ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Apontado como potencial presidenciável em 2022, Doria ameaça aplicar medidas mais duras – como multas e até prisão –, caso a população não respeite o isolamento social.

O parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) deve ser encaminhado hoje ao Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte vem dando sinais, porém, de que não vai dar aval a medidas que contrariem recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que defende limitar a circulação de pessoas para impedir a propagação do vírus. No mês passado, o ministro Luís Roberto Barroso proibiu que o governo federal veicule qualquer campanha na linha “O Brasil não pode parar” que sugira que a população retorne ao trabalho.

A posição de Aras, no entanto, colide frontalmente com o entendimento de Barroso. Para o ministro do Supremo, o distanciamento social não é uma decisão política do presidente da República, mas, sim, uma “questão técnica”, que se impõe para garantir o bem-estar da população – uma opinião que também vem sendo defendida pela maioria dos governadores.

Enquanto Barroso “fecha a porta” para qualquer medida do Palácio do Planalto que possa colocar em risco o isolamento, Aras deixa a possibilidade aberta para o presidente, sob a alegação de que o cenário é instável e cabe a Bolsonaro avaliar as medidas realmente necessárias, considerando orientações técnicas e científicas de sua equipe.

“As decisões dos órgãos de governo sobre um maior ou menor isolamento social como ferramenta de enfrentamento da epidemia de covid-19 levam em consideração os avanços científicos, cujos esforços têm trazido a cada dia dados novos a serem considerados, e dependem de cenários fáticos que estão em constante mutação”, destacou o procurador.

Rejeição. Indicado para o cargo por Bolsonaro, o procurador-geral da República se manifestou em ações movidas pelo Rede Sustentabilidade e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM), que acionaram o Supremo contra a campanha “O Brasil não pode parar”. Aras defendeu a rejeição das ações por algumas razões, apontando que não ficou comprovada a existência da peça publicitária, que já saiu do ar.

O procurador também alega que o assunto já é tratado em ações que tramitam na Justiça Federal de São PauloRio e Distrito Federal, havendo, portanto, outros meios jurídicos para resolver a controvérsia.