Day: abril 9, 2020

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El País: Hidroxicloroquina vira "muleta" para Bolsonaro e Trump

Medicamento, pesquisado em todo o mundo para tratar Covid-19 e defendido pela Casa Branca, se tornou munição de grupos bolsonaristas contrários ao isolamento social. Mandetta aponta riscos de efeitos colaterais

Cientistas do mundo inteiro correm contra o relógio em busca da cura e de uma vacina para o novo coronavírus. Por enquanto, nada de definitivo no front, a não ser tratamentos experimentais, alguns deles considerados promissores, mas ainda sem estudos em escala suficiente para serem considerados uma recomendação geral. Um deles é uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, drogas para o combate da malária, artrite e lupus, em pacientes com Covid-19. No Brasil —e nos EUA— o tema não é apenas científico: virou pólvora para o embate político e arma na “guerra cultural” do países polarizados. Tanto Jair Bolsonaro como Donald Trump resolveram se transformar em defensores de primeira linha das substâncias, mesmo que a parte técnica dos Governos que comandam não endossem as recomendações com a mesma ênfase. A maior preocupação do especialistas, lá como aqui, é que a divulgação precoce do tema leve à automedicação ou ao uso indiscriminado antes que todos os riscos estejam mapeados.

No caso do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que é estritamente contrário às medidas de isolamento social contra a disseminação do vírus, tem insistido no tema e já dá como certo o sucesso no uso da droga para tratar a doença. Em pronunciamento em rede nacional nesta quarta-feira, o presidente afirmou que realizou um acordo com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para que o Brasil continue recebendo matéria-prima para a produção da hidroxicloroquina. “De modo a a podermos tratar pacientes da Covid-19, bem como malária, lúpus e artrite”, afirmou. Do outro lado do debate, há um grupo de cientistas e médicos, incluindo o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que pedem cautela e tentam acelerar as pesquisas para chegar a uma conclusão mais segura sobre o uso dessas drogas nesta pandemia.

Mandetta vem afirmando que é necessário mais tempo de pesquisa sobre o medicamento, embora já tenha liberado a substância para tratamentos de pacientes em estado avançado e médio da doença. Via de regra, médicos no Brasil estão autorizados a prescrever a cloroquina e a hidroxicloroquina para pessoas com coronavírus contanto que haja consentimento formal do paciente. Nesta quarta, o ministro novamente ponderou que a substância pode trazer efeitos colaterais ainda desconhecidos, especialmente em idosos e naqueles que não realizaram teste para a Covid-19 e podem estar com outras doenças. “Será que vai proteger ou será que eles [idosos] podem ter arritmia cardíaca, precisar de CTI [Centro de Terapia Intensiva] e ter enfarte agudo do miocárdio?”, questionou. O ministro informou ter pedido ao Conselho Federal de Medicina que se posicione sobre a eficácia ou não da substância até 20 de abril.

No Brasil, há dois estudos em curso sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina, medicamentos análogos, indicados para o tratamento de malária, reumatismos e lúpus, dentre outras doenças. Um deles é o da Coalização Covid Brasil, coordenado pelo Hospital Albert Einstein, Sírio Libanês HCor e BRICNet, rede que realiza estudos na área de medicina intensiva. O outro é coordenado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e, embora ainda não tenha sido concluído, resultados preliminares apontam que a taxa de morte de quem usou a cloroquina no tratamento é a mesma daqueles que não usaram. Ambos os estudos estão sendo acompanhados pelo Ministério da Saúde e fazem parte de um conjunto de 9 pesquisas em curso sobre tratamentos para a doença.

Algumas publicações internacionais já apontam, no entanto, que a droga poderia ser capaz de atuar contra o coronavírus, impedindo sua replicação no organismo, de acordo com documento da Anvisa. O mesmo documento pondera, entretanto, que a margem entre a dose terapêutica e a dose tóxica da droga é estreita. Por isso, estudos conclusivos ainda são necessários. “Não sabemos se há um grupo de maior risco [às adversidades do medicamento], por exemplo”, afirma Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e professor titular da Escola Paulista de Medicina. “Mas eu nunca vi nenhum efeito colateral. Prescrevo há 40 anos esse remédio e nunca registrei nenhuma adversidade”. Mas Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde, ressaltou durante entrevista coletiva que o principal efeito colateral de ambas as drogas é a possibilidade de causar arritmia cardíaca. “O coração é uma bomba que depende da ativação de um sistema elétrico próprio. Esse medicamento pode produzir um prolongamento de uma dessas fases elétricas do coração e propiciar um ambiente favorável a uma arritmia que pode ser potencialmente fatal”, afirmou nesta semana.

Apesar da ausência de conclusões, o Governo já vem movendo suas peças para aumentar a produção do medicamento, evitar a automedicação e garantir seu abastecimento. No dia 20 de março, a cloroquina e a hidroxicloroquina passaram a necessitar de receita médica em duas vias para serem compradas nas farmácias. A medida valerá especialmente para que os pacientes que já fazem uso da droga não fiquem desassistidos caso haja uma procura em massa nas farmácias. Paralelamente, os laboratórios químicos das Forças Armadas anunciaram que estão ampliando a produção da cloroquina podendo chegar à fabricação de 500.000 compridos por semana. E o Ministério da Saúde já anunciou a distribuição do remédio para os Estados. De acordo com o secretário da Saúde de São Paulo, José Henrique Germann, o Estado recebeu 200.000 comprimidos que já foram distribuídos aos hospitais.

Médicos ligados a opositores no alvo

Apesar do empenho mundial em busca de conclusões científicas sobre a medicação, Bolsonaro segue usando como munição política a possibilidade de haver um tratamento para a doença. “Há 40 dias venho falando do uso da hidroxicloroquina no tratamento do COVID-19. Sempre busquei tratar da vida das pessoas em primeiro lugar, mas também se [sic] preocupando em preservar empregos. Fiz, ao longo desse tempo, contato com dezenas médicos e chefes de Estados de outros países”, escreveu o presidente, nesta quarta-feira, em sua conta no Twitter. “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz. Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da COVID-19. Seriam questões políticas, já que um pertence a equipe do Governador de SP?”, disse, em referência à gestão de seu oponente político, João Doria (PSDB).

Os dardos lançados pelo presidente tinham dois alvos bem claros. Trata-se de duas das maiores sumidades médicas do país, Roberto Kalil Filho, cardiologista do Hospital Sírio Libanês, e o infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo. Ambos recém-curados do coronavírus. Kalil Filho recebeu alta nesta quarta-feira depois de passar 10 dias internado. No mesmo dia, ele afirmou à rádio Jovem Pan que usou a hidroxicloroquina, depois que um dos médicos que o tratava propôs seu uso. Ele ponderou, no entanto, que a droga foi apenas uma das que ele usou para se tratar, juntamente com outras, e que, não pretende, com isso, influenciar o tratamento de ninguém.

A declaração de Kalil alavancou ainda mais as provocações contra David Uip, que já vinha sendo pressionado a dizer se havia feito uso do medicamento. Retornando ao trabalho nesta semana após 15 dias afastado, e sabendo que era sobre ele a publicação de Bolsonaro no Twitter, Uip se defendeu. “Presidente, respeite o meu direito de não revelar o meu tratamento”, afirmou, durante entrevista coletiva nesta quarta-feira em São Paulo. “Não há nenhuma importância no que eu tomei ou deixei de tomar. “O que é importante é que eu não me automediquei. O resto é absolutamente pessoal”.

Uip, que chegou a ser tratado por Kalil antes que o cardiologista adoecesse, afirmou que não revelaria seu tratamento, um direito que tem, como paciente. Nas redes sociais chegaram até mesmo a publicar uma suposta receita médica de cloroquina emitida pela clínica de Uip a um paciente. O médico confirmou a veracidade do documento à Rádio Gaúcha, afirmando que a receita teria sido vazada por alguém do seu consultório. Na coletiva, no entanto, ele afirmou que tomará “as providências legais e adequadas a essa invasão da minha privacidade”.

Seja como for, o assunto movimenta torcidas virtuais contra e a favor de Bolsonaro, ou do medicamento, e isso, por si só, não é um efeito colateral desprezível no modus operandi bolsonarista. Nos EUA, analistas políticos argumentam que Trump cumpre seu roteiro de sempre: se agarrar em uma visão “otimista” e “antissistema”, dessa vez em relação à pandemia. No caso de as drogas comprovadamente se mostrarem efetivas, o presidente dos EUA poderá dizer que se antecipou aos especialistas “do sistema”. Caso não dê certo, o ocupante da Casa Branca tem experiência em apenas mudar o foco da conversa e ignorar a campanha anterior. Não seria a primeira vez que Bolsonaro seguiria seu script.


Cora Rónai: O privilégio de estar aqui e agora

O ano de 2020 será lembrado para sempre, assim como nós nos lembramos até hoje de 1348, o ano em que a peste negra chegou à Europa 

A vida mudou de endereço. Não acontece mais na rua; “lá fora” é um lugar pouco frequentado, exótico, cheio de riscos. Moro numa avenida movimentada e nem preciso ir à janela para saber a quantas anda a quarentena; o barulho ou o silêncio me informa. Há poucos carros. Já houve menos. Num primeiro momento, tudo o que se ouvia eram as motos dos entregadores. No último fim de semana o trânsito aumentou, e ficou equivalente ao do intervalo de um jogo decisivo da Copa, apressado e escasso — mas ainda assim intenso demais para uma população que deveria ficar em casa.

O ar melhorou muito. Antigamente, quando as janelas ficavam abertas, minha sala era vítima de uma poeira preta e pegajosa. Limpava-se, e horas depois, já estava tudo sujo de novo.

(“Antigamente”, hoje, é advérbio que se aplica ao mês passado.)

A poeira sumiu.

Ando descalça e, ao fim do dia, as solas dos meus pés continuam bastante limpas. Eu já nem me lembrava que isso pode acontecer onde não há poluição; aqui nesse apartamento, onde moro há tanto tempo, nunca aconteceu.

Ouço os passarinhos lá do outro lado.

A natureza agradece a pandemia; o planeta respira aliviado sem a nossa presença. Se continuar viva, vou ter saudades desse ar puro, dessa falta de poeira e dos dias claros. Vou ter saudades também da esperança que insiste em achar que vamos sair disso melhores, mais humanos, menos egoístas; não vamos.

O mundo já passou por toda a espécie de calamidade, e nem por isso a humanidade aprendeu os princípios essenciais da empatia e da compaixão.

Mas nesse momento, isolada há mais de três semanas, consumindo toda informação que posso, acompanhando estatísticas lúgubres e gestos de grandeza, vendo fotos de cidades vazias e de hospitais cheios, não consigo deixar de imaginar que, de agora em diante, vamos repensar as nossas prioridades e prestar mais atenção à nossa volta.

Também não consigo deixar de pensar que é uma espécie de privilégio existencial estar aqui, agora. O ano de 2020 será lembrado para sempre, assim como nós nos lembramos até hoje de 1348, o ano em que a peste negra chegou à Europa.

— As grandes cidades do mundo pararam em 2020 — dirão os netos dos netos dos nossos netos.

Que diferença faz isso se, em algumas décadas, mesmo os mais jovens e saudáveis dentre nós já não estarão mais aqui? A longo prazo, nenhuma. Mas o que se leva dessa vida é um conjunto de experiências e de vivências, e nós estamos passando pela experiência mais extraordinária do século, talvez do milênio.

Nós estamos experimentando em primeira mão o espanto diante das imagens de metrópoles desertas que, amanhã, serão as ilustrações batidas dos livros de História.

(Sim, eu acredito na sobrevivência dos livros.)

Nós somos a primeira geração que ainda não sabe como isso vai acabar. É lógico que, podendo escolher, nenhum de nós escolheria passar por isso; mas essa não é uma escolha.

Então pelo menos vamos observar bem, e vamos tentar ser as melhores testemunhas que pudermos ser.


Ribamar Oliveira: 'É preciso uma ação forte dos bancos estatais'

Para Henrique Meirelles, alguns dos problemas enfrentados pelas companhias ainda não foram adequadamente resolvidos pelo governo

Os governos e analistas de vários países já discutem cenários para a retomada da economia no pós-crise da covid-19. Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central, ex-ministro da Fazenda e atual secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, observa que, no Brasil, o ritmo da retomada vai depender da saúde financeira das empresas no momento da transição.

Com a experiência de quem pilotou a saída do país da crise de 2008, Meirelles adverte que alguns problemas enfrentados hoje pelas empresas ainda não foram adequadamente resolvidos pelo governo.

O primeiro deles, segundo Meirelles, é que os bancos estão com políticas restritivas de crédito. Embora tenham recursos disponíveis, pois o BC reduziu o depósito compulsório e o governo disponibilizou uma linha especial de crédito para capital de giro, o dinheiro não está chegando nas empresas. “É normal, pois há o receio com a situação futura dos tomadores. Mas é preciso pensar em alternativas para o problema.”

Ele lembra que, na crise de 2008/2009, um dos problemas centrais foi justamente o travamento do crédito, tanto internacional, como doméstico. “O consumo colapsou porque não tinha crédito”, recorda. “Houve queda de 20% do crédito total no país.” Naquela época, pequenas e médias empresas e pequenos bancos ficaram sem acesso ao crédito.

Entre as medidas adotadas para enfrentar aquela crise, Meirelles destaca a redução do compulsório. “Liberamos desde que os recursos fossem direcionados para bancos e financeiras com capital até certo limite.” Ele sugere que as próximas liberações sejam vinculadas a empréstimos para pessoas físicas, jurídicas e a outros bancos.

O atual secretário da Fazenda de São Paulo observa que, no Brasil, existem quatro grandes bancos, sendo dois deles estatais. “É preciso usar mais o Banco do Brasil e a Caixa, pois eles foram muito úteis em 2008 e 2009”, diz. “É preciso uma ação forte dos bancos oficiais federais ofertando recursos.” Ele lembra que, naquela época, o cadastro positivo ainda não era público, uma vantagem da situação atual.

Para Meirelles, os bancos estatais poderão, sem dúvida, estimular a competição entre os bancos. Mas ele sugere também que o governo pense na criação de um fundo garantidor de crédito, que possa dar maior segurança às operações.

Além da questão do crédito, o ex-ministro da Fazenda considera que a ajuda do governo às empresas que não demitirem os trabalhadores também não foi adequada. O governo criou uma linha de crédito para financiar a folha de pagamento das empresas, mas Meirelles acha que o caminho correto é o adotado pelo Reino Unido. Lá, o governo vai bancar 80% do salário, até um certo limite, dos trabalhadores que não forem demitidos, mas colocados em licença.

O ex-ministro considera que a solução adotada pelo governo brasileiro - a linha de crédito para a folha de pagamento - levará as empresas a ficarem endividadas, o que poderá dificultar a retomada da economia.

Para ele, seria preferível que o Tesouro disponibilizasse recursos, a fundo perdido, para que as empresas pagassem os seus empregados. “Antes da crise, as empresas estavam saudáveis. Elas também precisam estar saudáveis na retomada”, propõe.

Outro problema que precisa ser resolvido com rapidez, na opinião do ex-ministro, é o pagamento da renda emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais. “Esse é um desafio logístico”, disse, observando a dificuldade da maioria desses trabalhadores terem acesso aos sites oficiais com as informações sobre o programa.

Sem que essas questões estejam bem resolvidas, Meirelles acha que a maior probabilidade é que a retomada da economia no pós-crise da covid-19 tenha a forma de “U”, e não de “V”. Ou seja, depois de uma queda abrupta, haverá um tempo maior para que ocorra uma recuperação plena da atividade econômica. Em sua avaliação, uma rápida recuperação após a crise é uma possibilidade mais difícil.

Sem ilusões
Não se pode ter ilusão sobre o efeito da crise provocada pela pandemia na economia. A melhor referência sobre o que vai acontecer nesta área é a crise internacional de 2008/2009. A economia brasileira sofreu pouco com aquela crise, pois o Produto Interno Bruto (PIB) caiu apenas 0,1% em 2009. A retomada foi rápida, pois aconteceu no segundo trimestre daquele ano.

Mesmo assim, os tributos administrados pela Receita caíram 1,3 ponto percentual do PIB. Mas a queda foi compensada por aumento de receitas não administradas pela Receita, como dividendos pagos por estatais federais. Houve alta ainda da receita da Previdência.

Neste ano, a recessão será bem maior que em 2009, como estima a totalidade dos analistas do mercado. Alguns chegam a dizer que o PIB poderá cair 6%. Em tal cenário, não é apenas a receita administrada pela RFB que será bem menor, mas também a receita não administrada e a arrecadação da Previdência, em virtude do desemprego que deverá ocorrer. “A queda da receita vai ser muito forte”, disse uma fonte do governo.

No caso do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o efeito também será dramático e a receita deverá cair mais do que o PIB. Especialistas consultados pelo Valor advertem que setores com maior carga tributária (como energia elétrica e combustíveis) poderão ter maior contração da atividade do que os de baixa carga tributária (como alimentos e produtos farmacêuticos).


Zeina Latif: Faltam informações

A taxa de incidência da doença é muito heterogênea entre Estados brasileiros

A extensão territorial do Brasil e seus muitos contrates regionais criam um quadro heterogêneo de incidência da epidemia do novo coronavírus. Os problemas para a definição de estratégias, no entanto, não param aí. O Ministério da Saúde (MS) tem optado por não decretar o isolamento social em todos os Estados. Por ora, cada um segue suas regras, adaptando as sugestões feitas pelo governo federal.

Não tem sido diferente nos EUA, onde o presidente Trump reluta em decretar o isolamento no país todo. Os 50 Estados da federação declararam situação de emergência, mas cada um adota suas medidas para lidar com a epidemia. Apenas 13 Estados decretaram quarentena total; a maioria a limitou a algumas cidades.

É precipitado afirmar que a descentralização de decisões é equivocada, pois o objetivo não é evitar a disseminação da doença, mas sim, como sabemos, suavizar sua curva de infecção.

O problema é a falta de uma coordenação entre as ações dos entes da federação, sendo inevitável a leitura de que disputas políticas atrapalham. Como resultado, reduz-se a eficácia das medidas sanitárias. Afinal, o vírus não respeita as fronteiras das cidades e dos Estados.

Uma medida recente, a ser implementada a partir do dia 13 de abril, foi definir critérios para regiões com baixa incidência da doença relaxarem o distanciamento social, mas levando em conta sua capacidade de suprir as demandas da área da saúde – como leitos, respiradores, testes laboratoriais e equipes de saúde

Considerando que as curvas de novos infectados segue ascendente – diferentemente do que ocorre em outros países, inclusive da América Latina – , talvez a decisão se mostre precipitada.

A complexidade do Brasil se releva em números. A taxa de incidência da doença é muito heterogênea entre Estados. Aqueles com maior fluxo de viajantes e fronteiras mais permeáveis sofrem mais.

De acordo com o MS, no dia 6 de abril, o Distrito Federal tinha a maior taxa de incidência (15,5 casos para cada 100.000 habitantes), o que faz sentido. Na sequência, Amazonas (12,6) e Ceará (11,0) também sofrem bastante, talvez por serem, reconhecidamente, importantes rotas do trafico de drogas. Ambos exibiram taxas acima de São Paulo (10,5), o quarto colocado.

Alguns dados parecem incoerentes, com Estados mais parecidos exibindo taxas de incidência bastante diferentes. Enquanto na Bahia a taxa estava em 2,9 para cada 100.000 – acima de Minas Gerais (2,5) –, no vizinho Sergipe estava em 1,4. Há também divergências relevantes entre as taxas do Maranhão (1,9), Pará (1,2) e Piauí (0,7), que, por sua vez, destoam imensamente do Ceará, em que pesem as peculiaridades deste Estado.

Seria importante o MS coletar e divulgar dados relativos ao número de exames realizados, como fazem outros países. Nos EUA, por exemplo, a cifra atingiu 1,92 milhões de testes no dia 7 de abril, o que equivale a 5,6 testes para cada 1.000 pessoas.

Essas incoerências nos dados reforçam a avaliação de que há um problema sério de subnotificação de doentes, por conta da insuficiência de testes. Especialistas apontam para a baixa confiabilidade dos dados no Brasil, pois testamos basicamente (e parcialmente) os casos sérios. Há também o problema de falsos negativos nos testes que visam identificar se o indivíduo já adquiriu anticorpos.

Isso significa que a curva de evolução de infectados não é muito confiável. Assim, fica mais arriscado e difícil estabelecer estratégias para o confinamento – sua duração e abrangência.

Da mesma forma compromete-se a avaliação do impacto da pandemia na economia.

Vale lembrar que o relaxamento que foi iniciado na China e as discussões crescentes em países europeus só têm sido possíveis por conta da inflexão da curva de novos casos.

O quadro é de muita incerteza. Sem dados robustos e confiáveis da autoridade de saúde, não conseguiremos responder de forma segura se o próximo passo deverá ser de endurecimento ou de relaxamento do isolamento.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Eugênio Bucci: O ministro, o chefe do ministro e a pandemia de ‘fake news’

Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação não há governança para a crise

Na terça-feira o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deu mais uma de suas coletivas diárias. Mostrou-se olímpico, seguro de seu papel e de seu cargo. Mandetta tem hoje mais estabilidade do que Jair Bolsonaro. O presidente pode demiti-lo – os generais não deixam.

A impotência presidencial tem um quê de conto de bruxas. O presidente vai fazer a barba de manhã e pergunta ao reflexo de si mesmo: “Espelho, espelho meu, existe algum ministro mais querido do que eu?”. O espelho responde, dá o nome e o endereço, mas Bolsonaro, corroído de ciúme, não tem poder para expulsá-lo da pasta. Está reduzido ao papel de presidente-café-com-leite-muito-embora-bravateiro. Sai enfezado do Palácio da Alvorada e se põe a berrar sobre a crueldade ministricida de sua caneta, uma senhora canetona, que é maior do que a caneta dos outros (ele e sua obsessão com símbolos fálicos).

Palavras ao vento. Contra Mandetta a caneta do narcisista que desconhece a beleza vale menos do que uma aspirina. O sereno ministro da Saúde sabe disso e, por saber, tripudia. Na terça-feira, em sua coletiva, disparou recados ácidos – ainda que elegantes – contra o chefe que não o chefia. Entre outros venenos, amaldiçoou as fake news (gênero narrativo adorado pelo café-com-leite) e as redes sociais (o ambiente predileto do estadista avesso à máquina estatal).

“As fake news, esse final de semana, fizeram um gráfico igual àqueles gráficos da epidemia”, diagnosticou o ministro. “Fake news foi o que mais subiu, subiu bem mais que o número de casos (de covid-19).”

Mandetta aproveitou para denunciar que circulam perfis falsos como se fossem dele e avisou com total explicitude: “Não sou de mídia social, não gosto; gosto do mundo real. Vou trabalhar essa epidemia no mundo real. O que eu tiver que falar, não acreditem em nada que não seja falado aqui (nas coletivas diárias, diante das câmeras de TV). (...) Eu não posto nada, eu não comento nada, eu não faço nada nesse mundo virtual”.

O que ele está dizendo, em suma, é que adota o estilo oposto ao do chefe que não é chefe. Este, abduzido pelas fantasmagorias imaginárias do seu conto de bruxas, acha que governa pelo Twitter, pelas lives e pelo histrionismo de suas milícias virtuais. Em sua fantasia de filme de terror, alimenta-se da bajulação dos seus fiéis fascistinhas de WhatsApp, que sabotam o isolamento e insultam os chineses com ofensas racistas. Bolsonaro substitui a burocracia governamental pelos urros virtuais dos seguidores e acredita que assim deixa para trás a “velha política”.

O resultado prático de seu delírio é muito simples e palpável: em cada um de seus atos acentua a dissolução dos regramentos da administração pública em favor da dinâmica dos “engajamentos”, das “curtidas” e do irracionalismo das redes. Para ele, os algoritmos opacos dos conglomerados globais que monopolizaram as comunicações na era digital são a mais perfeita tradução da vontade do povo. Sim, é uma sandice, mas é nessa sandice que ele acredita. O triunfo de sua crença acarretará a derrocada do Estado, da República, da política e da democracia. Bolsonaro gosta de fake news porque vê o Estado, o governo, a República, a política e a democracia como um embuste a ser destruído. Ele e as fake news nasceram um para o outro. Nasceram um do outro.

Razoável, o ministro da Saúde rejeita as doideiras do presidente e veste o colete do SUS para apostar no caminho inverso. Com razão, parece entender que as fake news concentram uma ameaça tão ou mais grave do que a pandemia. O poder público fica anulado se não puder contar com informações baseadas na ciência e se essas informações não servirem de base para o debate público e para a orientação das pessoas e da sociedade. Sem fontes confiáveis e um sistema organizado de comunicação, não há governança para a crise.

A indústria das fake news – que hoje no Brasil está a serviço do bolsonarismo – opera para minar a confiança do público nas autoridades, na política, na universidade, na ciência e na imprensa. No longo prazo, essa indústria fabrica fanatismo e clamor por uma tirania de extrema direita no Brasil. No curtíssimo prazo, amplifica o número das mortes que virão com o coronavírus e agrava a recessão econômica que virá depois. Isso mesmo. Em sua narrativa perversa, as fake news do bolsonarismo dizem defender a economia e os empregos, mas, ao patrocinarem a explosão do número de casos e o colapso do sistema de saúde, produzirão a desagregação social, com violência e criminalidade ainda mais generalizadas, e isso tornará mais improvável qualquer recuperação econômica.

Será difícil enfrentar essa indústria, que conta com o apoio esgoelado do presidente-café-com-leite. Ele tem pouco poder (não consegue nem falar grosso com o ministro da Saúde), mas a indústria em que ele joga suas fichas tem uma capacidade gigantesca de produzir estragos. E, por enquanto, não há vacina contra a usina de fraudes desinformativas com que o presidente e suas falanges robóticas vêm infestando a sociedade brasileira.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


José Serra: Democracia na calamidade

Precisamo-nos afastar do autoritarismo e da demagogia com base em fórmulas mágicas..

O Brasil enfrenta os efeitos sociais e econômicos da pandemia de covid-19 em ambiente plenamente democrático, com os Poderes Legislativo e Judiciário assumindo papel central na gestão da crise, além de uma ação firme e tempestiva dos governos estaduais. No âmbito federal, as manifestações heterodoxas da Presidência da República, contrárias ao isolamento social, vêm sendo remediadas pela capacidade de ação do Parlamento e pela temperança do Supremo Tribunal Federal (STF). Nosso regime democrático, que se baseia na divisão dos Poderes da República, salvou muitas vidas quando assumiu elevado grau de protagonismo no combate ao novo coronavírus.

De todo modo, as falhas nos entendimentos entre as instituições do poder federal em torno das ações contra o patógeno é preocupante. Assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu que o vírus representa uma pandemia, lideranças da área econômica do Executivo federal apressaram-se a dizer que alguns poucos bilhões seriam suficientes para exterminar os efeitos da doença. O governo chegou até a defender a Proposta de Emenda à Constituição n.º 186, a PEC da Emergência Fiscal. Um equívoco, tendo em vista que a medida impediria contratar médicos, criar auxílios financeiros emergenciais para beneficiar grupos vulneráveis, bem como linhas especiais de crédito para salvar empresas. Tivesse sido aprovada, estaríamos diante de uma verdadeira tragédia sanitária, social e econômica.

Em artigo publicado neste espaço fiz críticas à PEC 186, remando contra a campanha de outros economistas e mostrando que a medida poderia criminalizar componentes importantes da política fiscal ao vedar a criação de despesas obrigatórias e renúncias tributárias. Tivemos sorte de ela não ter sido aprovada antes da proliferação da covid-19 em todo o País.

Creio que o Congresso Nacional vem exercendo suas funções institucionais de forma tempestiva e enérgica. Na fase inicial da crise o Senado assumiu a responsabilidade de anunciar um projeto de decreto legislativo para reconhecer a situação de calamidade, flexibilizando as regras e os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Não havia outro caminho, dadas as incertezas e a necessidade de elevar as despesas do Orçamento em caráter extraordinário e urgente. Essa iniciativa forçou o governo a abandonar a ideia de alterar as metas fiscais prevista em lei, levando-o a enviar mensagem presidencial à Câmara dos Deputados que foi convertida no Decreto Legislativo n.º 6, suspendendo a necessidade de se atingir qualquer meta fiscal no ano corrente.

A Câmara, por sua vez, promoveu uma arrojada articulação política para aprovar a PEC do “Orçamento de Guerra”, que hoje tramita no Senado. A medida poderá garantir ao Executivo segurança jurídica para empreender uma política fiscal expansionista, indubitavelmente necessária para lidar com os efeitos econômicos e socais da pandemia.

As novas regras constitucionais criariam uma espécie de orçamento público extraordinário, baseado na maior flexibilidade da gestão fiscal. A proposta também ampliaria os instrumentos de intervenção do Banco Central (BC) na economia, sem dispensar a devida prestação de contas ao Congresso. Aliás, espero que sejam soterrados todos os projetos de lei que conferem autonomia política ao BC, especialmente se aprovada essa PEC. O acúmulo de atribuições conferidas ao banco implode qualquer argumento favorável à soberania política da nossa autoridade monetária.

Essa atuação salva-vidas do Parlamento está sintonizada com recentes decisões tomadas pelo STF, instituição essencial do nosso regime democrático, que vem atuando com temperança. Sem titubear, a Suprema Corte concedeu na semana passada uma medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.357, em favor da Advocacia-Geral da União, que excepcionalizou a incidência de diversas restrições da LRF e da Lei de Diretrizes Orçamentárias deste ano.

Nessa linha, o STF também suspendeu a campanha publicitária do governo “O Brasil não pode parar”, ao conceder cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 669. Financiada com recursos públicos, a propaganda contrariava orientações da OMS e do próprio Ministério da Saúde - um disparate carregado de ideologia e populismo, sem o menor rigor técnico.

Não se pode deixar de destacar aqui o bom combate dos técnicos do Ministério da Saúde, que têm atuado de maneira responsável em prol da integridade física das pessoas. Nossos heróis - médicos e demais profissionais que lidam diretamente com a covid-19 - serão sempre lembrados e homenageados.

A guerra contra a pandemia do coronavírus constitui um desafio colossal para nosso povo. Nossas ações devem ter o respaldo técnico da comunidade científica e dos organismos internacionais. Para isso precisamos afastar-nos do autoritarismo e da demagogia fundamentada em fórmulas mágicas que supostamente trariam soluções integrais e rápidas, simplificando barbaramente a realidade.

A saúde no Brasil depende da democracia plena durante a calamidade, e não da calamidade instalada na democracia.

*Senador (PSDB-SP)


Vinicius Torres Freire: Novos poderes podem ajudar BC a reduzir pânico dos juros do coronavírus

Senado entende mal medida que pode ajudar BC a reduzir juros que governo paga

Em tempos de epidemia e fome, discutir os novos poderes que o Congresso pode dar ao Banco Central parece indiferença. Mas:

1. Trata-se de oferecer novos meios para o BC agir em tempos de calamidade sanitária e econômica;
2. É possível que, assim, o BC possa reduzir o custo da dívida do governo (baixar taxas de juros);
3. Talvez o BC possa tirar do caminho algum entulho que trava a oferta de empréstimos;
4. O BC teria instrumentos para evitar algum acidente maior no sistema financeiro, coisa que torna qualquer crise econômica ainda mais dramática.

Do que se trata? Uma emenda constitucional, já aprovada na Câmara, permite que o BC compre títulos do governo de médio e longo prazos, além de títulos de dívida privada. Falta a aprovação do Senado, onde certos parlamentares têm feito críticas disparatadas ao projeto. A emenda é de fato uma reviravolta grande nas finanças públicas brasileiras, coisa de tempos de guerra e colapso, portanto apropriadas (em teoria).

Para começar pelo menos enrolado, em princípio: o BC poderá adquirir títulos do Tesouro de prazo mais longo. Quando há mais gente mais interessada em emprestar para o governo, mais títulos se compram: o preço dos títulos sobe, a taxa de juros cai (é a mesma coisa). Quando mais gente refuga os títulos, os juros sobem.

Talvez o BC venha a comprar títulos públicos apenas a fim de conter a disparada recente das taxas de juros mais longas, uma ação emergencial, um sedativo.

Mas, talvez, o BC possa reduzir as taxas de qualquer prazo de vencimento, por bem mais tempo.

A taxa de curto prazo (a Selic, prima do DI) deve baixar mais. Quem sabe desça a perto de zero, pois estamos sob risco de depressão e de inflação na prática nula. A fim de evitar a alta de juros de longo prazo, seria necessária ação extraordinária do BC: compra de títulos de prazo mais longo (dois, sete, dez anos, digamos), que não pagariam taxas muito maiores do que a de curto prazo (do que a Selic).

O governo, pois, acabaria se financiando com empréstimos de curto prazo, com juros bem menores. No entanto, mesmo entre doutos entendidos há dúvidas sobre os planos do BC: agir para atenuar pânicos, paliativo passageiro, ou “achatar a curva” por mais tempo (como se escrevia nesta coluna no domingo)?

Recentemente, as taxas de juros dos títulos com vencimento mais longo subiram de modo selvagem. Neste ano, a diferença entre a taxa de um ano e a de sete anos andava pela casa de pouco mais de dois pontos percentuais até o início de março. Na semana final do mês, a diferença chegou a ir além de cinco pontos.

No atacadão do mercado de dinheiro, é uma diferença brutal, sinal de grande pânico. As taxas de um ano caíram, as mais longas subiram (mais gente preferiu comprar títulos de curto prazo, mais gente preferiu vender os de longo prazo).

Em resumo simples, muita gente está com medo do futuro, embora outros percalços expliquem parte do movimento. Assim, todas as taxas mais longas da praça financeira, do mercado de dinheiro aos bancos, ficam mais altas (isto quando existe negócio).

A ação do Banco Central pode, no final das contas, baratear os empréstimos para o Tesouro (se “achatar a curva” por mais tempo). Na prática e indiretamente, o BC em parte financiaria o governo nestes tempos de calamidade. A despesa com juros cairia. A dívida pública aumentaria um pouco menos (vai aumentar muito, de qualquer modo, dados o aumento de gasto e a queda medonha da receita).


Maria Hermínia Tavares: Salve o SUS

É sobre ele que recai a responsabilidade de atender à maioria das vítimas do vírus

"Temos sido salvos pelas nossas instituições", disse Joseph Stiglitz em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no último domingo. O Prêmio Nobel de Economia se referia ao mesmo tempo aos Estados Unidos e ao Brasil, governados por presidentes populistas, incapazes e desinteressados em liderar os esforços nacionais de enfrentamento do coronavírus.

O americano destaca a importância, em seu país, do Centro de Controle de Doenças e dos médicos que lutam contra a pandemia. No Brasil sem presidente para o que de fato importa, é sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) que recai a responsabilidade de atender à imensa maioria das vítimas do vírus. Por essa razão, não será demais entender como logramos construir uma das maiores estruturas públicas de saúde do mundo.

O SUS nasceu do compromisso das forças que se opuseram à ditadura militar com o princípio de que a saúde deveria ser um direito garantido a todos os brasileiros, o que não acontecia até então. Uma rede nacional de médicos sanitaristas progressistas concebeu o sistema e ganhou os políticos democratas, que o inscreveram por inteiro na Constituição de 1988.

Para universalizar o acesso à saúde, o SUS promoveu a articulação e a divisão de responsabilidades e recursos entre os serviços de saúde dos três níveis da Federação. Antes, estes se ignoravam, eram redundantes e deixavam sem atendimento os brasileiros mais pobres.

Nos governos de Fernando Henrique Cardoso fincaram-se os marcos institucionais do sistema, incluindo a vinculação constitucional dos seus recursos --tão combatida pelos ultraliberais--, o que lhe permitiu sobreviver em tempos de escassez. Nos governos do Partido dos Trabalhadores, o sistema público de saúde ganhou musculatura, com novos programas, ampliação da oferta de serviços às populações mais vulneráveis, formação de recursos humanos e melhoria de gestão.

Os problemas do SUS sempre foram múltiplos e de difícil trato: a qualidade desigual do atendimento pelo país afora, filas, congestionamento em hospitais, falta de médicos, oferta limitada de tratamento para doenças mais graves: indícios de que os recursos quase sempre foram insuficientes para dar conta da gigantesca tarefa.

Mas não é para se enfeitar que o atual ministro da Saúde usa jaqueta com o monograma do SUS: 3/4 da população são atendidos pelo programa, e perto de 2/3 dos brasileiros em mais de 5.300 municípios são cobertos pelas equipes de Saúde da Família.

Será preciso lembrar disso quando, no pós-pandemia, tivermos que enfrentar a dura discussão sobre o que caberá ao setor público como tarefa e como recursos.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebra


Bruno Boghossian: Coronavírus escancara desigualdade e pesa em dobro sobre mais pobres

Os mais pobres ficam mais expostos ao vírus no transporte público e em casas com muitos moradores

O coronavírus vai pesar em dobro sobre os brasileiros mais pobres. Além de sofrer com a desaceleração da economia e com a lentidão do governo em implantar medidas de emergência, a população de baixa renda deve ser atingida de maneira mais grave pela doença.

Para quem vive com pouco dinheiro, a primeira onda da pandemia chegou cedo. Nos grupos mais pobres ouvidos pelo Datafolha, sete em cada dez pessoas não podem trabalhar de casa e esperam perder parte de suas rendas. Já uma pesquisa do Data Favela mostra que 58% dos moradores desses bairros não têm comida para mais uma semana.

A severidade dos casos de Covid-19 também pode ser maior para esses brasileiros. Um estudo feito por Laura Carvalho, Luiza Nassif Pires e Laura de Lima Xavier mostra que, entre os mais pobres, há uma incidência desproporcional de fatores de risco, que aumentam o perigo de morte.

Na população que só completou até o ensino fundamental, 54% têm doenças crônicas como diabetes, hipertensão e problemas pulmonares. Entre pessoas que cursaram o ensino médio ou o ensino superior, esses índices são de 28% e 34%.

Outras duas dimensões agravam a crise na base da pirâmide social: mais chances de contágio e a precariedade do sistema de saúde. Os mais pobres ficam mais expostos ao vírus no transporte público e em casas com muitos moradores. Também têm menos acesso aos leitos hospitalares do que quem usa a rede privada.

"Somadas as três dimensões, você tem como resultados mais óbitos entre os mais pobres, que são justamente aqueles que são chamados a trabalhar, dada a vulnerabilidade econômica", diz Laura Carvalho. "Acumulam-se problemas que tendem a tornar essa pandemia uma pandemia com caráter muito desigual."

A população mais pobre foi usada como peça da propaganda negacionista de Jair Bolsonaro contra o coronavírus. O presidente explora o desespero daqueles que correm o risco de passar fome, mas deveria trabalhar com urgência para protegê-los.


Míriam Leitão: O que sobrará da ideia inicial

As ideias liberais foram deixadas de lado, agora o governo tenta sustentar a versão que teve a agilidade na resposta à crise, o que não teve

Ao fim desta pandemia, pouca coisa vai sobrar da agenda com a qual o ministro Paulo Guedes chegou ao governo. As reformas foram engavetadas, o plano Mansueto foi deixado de lado por outro que socorre os estados na emergência, a empresa que está para ser privatizada ajudou a fazer o caminho para o pagamento do auxílio emergencial, a proposta de zerar o déficit público se transformará no maior déficit da nossa história.

Ontem, o governo, de um lado, a Câmara e os governadores, de outro, brigavam em torno de quanto transferir aos estados e municípios neste momento. O chamado Plano Mansueto era uma excelente ideia para um outro mundo, e certamente voltará a ser. Ele induz os estados e municípios a se ajustarem e buscarem notas de crédito melhores e os incentiva com recursos e avais conforme a nota alcançada. Mas como falar em ajuste num momento em que despencam as arrecadações de ICMS e ISS? Agora, a Câmara decidiu aprovar projeto que facilita as transferências para a sustentação da receita dos estados e municípios e suspende a cobrança das dívidas com o Tesouro.

O deputado Rodrigo Maia explicou ontem que, se deixasse o Plano Mansueto, ele seria desvirtuado, porque estavam sendo incluídas emendas com propostas de gastos de longo prazo:

– O Plano Mansueto é correto, vai ter que ser enfrentado, mas neste momento todos os estados vivem a mesma angústia, que é a necessidade de receitas para enfrentar a crise.

A pandemia mudou completamente tudo no mundo, mas o fato é que o projeto do governo já não ia bem. O que houve de privatização foi a venda de participações ou blocos de ações feita por algumas empresas e bancos públicos. A abertura da economia também teve pouco avanço. O projeto liberal patinou no primeiro ano de governo. Agora, devido às circunstâncias, ele tem que ser deixado de lado, e economistas preparados para fazer um programa têm que fazer o inverso.

A versão do governo, dita em várias entrevistas, é que o país estava decolando quando foi abatido pela crise. Não é verdade. O primeiro trimestre já não vinha dando bons sinais de recuperação da economia. O comércio caiu 1,4% em janeiro e subiu menos em fevereiro, 1,2%. O setor de serviços vinha de duas quedas no final do ano passado, subiu apenas 0,4% em janeiro e voltou a cair 1% em fevereiro. Na indústria, as duas altas dos meses de janeiro e fevereiro não recuperaram as perdas de novembro e dezembro. Olhando apenas para fevereiro, último mês antes da pandemia, o Ibre/FGV projetou alta de apenas 0,1% no seu Índice de Atividade Econômica (IAE).

Na entrevista concedida ontem pela área econômica foi dito que eles estavam se preparando desde dezembro para esta crise. Isso está bem distante dos fatos. A verdade é que até o começo de março o governo continuava defendendo apenas a aprovação das reformas. Perguntei a um integrante graduado da equipe econômica, no dia 5 de março, que resposta seria dada à crise do coronavírus e ouvi que havia apenas três infectados e que o Brasil era uma economia fechada que seria menos impactada. Naquele mesmo dia, o número subiria para oito. E ontem já havia 800 mortos.

Ontem, em entrevista coletiva, o secretário Adolfo Sachida sustentava que o Brasil fora o mais rápido a responder, do ponto de vista da economia, e o secretário Waldery afirmou que é o segundo emergente que mais está gastando, atrás apenas do Chile. Isso não é um campeonato de despesa. O que é preciso é fazer o dinheiro realmente chegar. Nesta quinta-feira é que começará de fato a acontecer o pagamento da primeira parte do auxílio emergencial. Anunciar medidas não é o mesmo que realizá-las. É preciso reduzir o tempo dedicado à reescrever a história para se empenhar mais em garantir a execução das medidas.

O banco BNP Paribas estima que o deficit primário este ano poderá chegar a 7,3% do PIB, com uma combinação de aumento de gastos e queda de arrecadação. Ao final desta crise, a dívida bruta poderá alcançar um patamar recorde, de 90% do PIB. Já o UBS tem números menos piores. O deficit este ano pode ir a 7%, com endividamento de 86% no ano que vem. Mas ele acredita que até em 2021 o governo teria um forte deficit primário, de 4% do PIB.

A conta será salgada. O mais importante agora é implantar o que vem sendo anunciado. E no momento seguinte preparar o plano da reconstrução da economia e dos parâmetros fiscais, para o dia em que este pesadelo passar.


Ascânio Seleme: Malditas redes

Avalanche de mentiras é tão grande que elas acabaram desmoralizadas

Além de facilitar de maneira extraordinária as comunicações planetárias, as redes sociais deram voz a quem não as tinha, ou que não conseguiam expandi-la de maneira a alcançar mais do que seu círculo íntimo. Foi uma extraordinária revolução que mudou a forma das pessoas pensarem e agirem e transformou a indústria. Mais diretamente as indústrias das comunicações e das telecomunicações, mas todas as outras sofreram consequências, muitas de maneira positiva. No Brasil, apesar de reveses por abusos contra a livre concorrência e pela disseminação de mentiras, tudo ia relativamente bem, até chegarem Jair Bolsonaro, seus filhos e o gabinete do ódio.

A onda global de fake news que causa forte impacto sobre as redes, sobretudo na Europa, produzindo um enorme dano às suas imagens, não pode ser comparada ao que se viu no Brasil destes últimos dias. Em todo o mundo as pessoas passaram a buscar informações sobre o coronavírus em fontes confiáveis, nos veículos profissionais de notícia, com medo de se contaminarem pelas fakes disseminadas. Aqui, a avalanche de mentiras é tão grande e contínua que as redes acabaram sendo desmoralizadas. O efeito dessa onda é de tal maneira devastador que até mesmo um post do presidente da República foi retirado do ar pelo Facebook por ser mentiroso, mas apenas depois de causar enorme estrago.

Membros de grupos de WhatsApp raramente recebem alguma coisa de primeira mão. Quando não é uma mensagem pessoal, quase tudo chega por redirecionamento. Fora as piadas, as orações e as sacanagens, o que mais se vê hoje em dia são campanhas contra o confinamento. Mesmo não se conseguindo identificar o autor material da obra, sabe-se perfeitamente quem teve a ideia e a quem ela serve. Os objetos da sua ira são quase sempre os mesmos, com destaque para a mídia. Geralmente são ataques rasos e burros, mas ainda assim há militantes cegos que os distribuem.

Além da imprensa e de partidos de oposição a Bolsonaro, esse ódio alcança também os poderes Legislativo e Judiciário. A mais nova peça distribuída é a que indaga por que deputados e senadores não abrem mão de seus salários e suas vantagens por exercício de função e redirecionam esse dinheiro para o combate ao vírus. É ridículo, mas tem gente que acredita, sem fazer os devidos cálculos, que o volume de recursos (de alguns milhões de reais) que seria alcançado com a medida exótica poderia resolver a guerra (de muitos bilhões de reais) contra o flagelo.

Mais uma vez, não precisa ser gênio para saber quem produziu essa pérola e quais os instrumentos usados para a sua distribuição. São os de sempre, os que culpam Congresso, Supremo e imprensa pelo fracasso extraordinário de um dos piores e mais absurdos presidentes da História do Brasil. Como todo o material é distribuído por uma rede eficientíssima de robôs, mais cedo ou mais tarde essas barbaridades vão acabar em seu celular, encaminhados por membro desatento de um de seus grupos.

É verdade que de um lado as redes têm altíssimo valor nessa pandemia, sendo usadas pelos entes oficiais da saúde para se comunicar e por empresas para se conectar e atender aos seus clientes. Por outro lado, elas têm sido instrumento para difundir contrainformações que podem resultar até em mortes. O fato é que por isso as pessoas começam a se desligar. Pode ser difícil, para alguns será como mergulhar no mar numa noite escura. Mas um pouco mais de cuidado com o que se lê e com o que se compartilha não fará mal a ninguém. Em alguns casos, é melhor cair fora mesmo.

Post Scriptum
Talvez não explique por que os Estados Unidos são líderes de casos e mortes por coronavírus, mas uma visita a qualquer aplicativo de voos em tempo real, como o “Aviões ao Vivo”, pode dar uma boa pista. No Brasil, ontem, às 12h34m, havia 18 aviões voando. Na Índia, quatro aviões ocupavam o espaço aéreo. Na Itália, havia dois, na França, sete. E nove sobrevoavam a Inglaterra. Nos Estados Unidos, era impossível contar, porque somavam centenas.