Day: março 24, 2020
RPD || Lilia Lustosa: (Que) Viva o cinema brasileiro!
Com documentários indicados ao Oscar e ao Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, o ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro, avalia Lilia Lustosa
O ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro. Primeiro, foi a indicação do Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário. Em seguida, foi a vez de Meu Nome é Bagdá (2020), de Caru Alves de Souza, levar o Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, dedicada a produções sobre a juventude.
A verdade é que a Berlinale – o mais politizado dos grandes eventos internacionais de cinema – esteve bem verde e amarela neste ano. A começar pelo júri, que teve Kleber Mendonça Filho como membro, seguido da participação recorde de 19 filmes brasileiros (algumas coproduções), competindo em diversas categorias, incluindo a principal (Urso de Ouro) com Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que integram o coletivo paulista Filmes do Caixote. Sinais do prestígio e do excelente nível que nossa cinematografia atingiu.
Desde aquele longínquo 1898, quando Afonso Segreto registrou as primeiras cenas brasileiras a bordo do navio Brésil, até os dias de hoje, o caminho não tem sido fácil. Problemas de falta de regulamentação e de orçamentos escassos, somados à dificuldade para inserir filmes no circuito comercial, vêm desde sempre obstruindo as veredas de nossa cinematografia. Apesar disso, podemos dizer sem medo que a qualidade do cinema brasileiro melhora a cada ano. Não que já não fizéssemos bons filmes! Desde os anos 30, produzimos obras belíssimas, como Limite (1931), de Mário Peixoto, infelizmente pouco conhecido entre nós, apesar de ter sido eleito pela Associação de Críticos Brasileiros como o maior filme nacional de todos os tempos. Ou ainda Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, que impressionou tanto o historiador de cinema francês Georges Sadoul, que este tratou logo de incluí-lo entre os maiores cineastas do mundo.
Acontece que, por muitos anos, as produções de sucesso eram oriundas quase que exclusivamente do eixo Rio-São Paulo, com algumas exceções brotando aqui e ali em outras regiões do país, o que acabava por gerar certo engessamento de temas e modelos. De uns tempos para cá, o que se nota é uma mudança neste panorama graças a aumento significativo no número de cursos superiores em cinema e audiovisual (87, em 2016; e 184, em 2020 – Fonte: Sistema e-MEC), e ao aparecimento de pequenas produtoras, coletivos de cinema espalhados pelas periferias de nossas capitais, e distribuidoras comprometidas com o cinema nacional em todos seus formatos. Assim, Distrito Federal, Pernambuco, Ceará, Minas, Rio Grande do Sul e outros Estados começam a fortalecer-se e a ganhar espaço no cenário cinematográfico nacional, somando esforços e diversificando nosso cardápio fílmico.
O veterano Cacá Diegues, já em 2013, quando homenageado no Festival do Cinema Brasileiro de Paris, declarou que o Brasil estava vivendo uma das épocas mais férteis de sua história, atribuindo esse boom justamente à descentralização das produções nacionais. Nomes como Gabriel Mascaro (PE), Adilson Queiroz (DF), Gabriel Martins (MG), Marília Rocha (MG), entre tantos outros, passaram a figurar na lista dos indicados em diversos festivais. Um grupo que alguns críticos vêm chamando de “Novíssimo Cinema Brasileiro”, em função de suas produções de baixo custo, com equipes reduzidas, sem depender do Estado ou com pouca participação dele. Alusão direta ao Cinema Novo, claro, que nos anos 60 se valia justamente desse modo de produção. Soma-se ainda a esse grupo uma geração já legitimada dentro e fora do país, que hoje produz filmes com orçamentos mais robustos, no modelo clássico, muitas vezes valendo-se do financiamento estatal, e da qual fazem parte o pernambucano Kleber Mendonça Filho e o cearense Karim Aïnouz, ambos premiados em Cannes, no ano passado.
Mas o melhor dessa história é que a descentralização não enfraqueceu o eixo Rio-São Paulo, que continua a produzir excelentes filmes, seja de arte, seja comercial, feitos por pequenas e grandes produtoras ou pelos tais coletivos formados nas comunidades. Produções como o encantador Turma da Mônica - Laços (2019), de Daniel Rezende (RJ), ou o engajado Um dia com Jerusa (2019), de Viviane Ferreira (SP), estão aí como prova. Sinais de que nosso cinema cresceu, se diversificou e amadureceu, apesar de todas as ameaças de boicote, vindas do governo ou do próprio público brasileiro, que parece ainda não acreditar que fazemos bons filmes em nosso país.
Mesmo assim, a fase é boa! Resta, claro, um longo caminho para que as produções menores cheguem até o grande público. Por enquanto, elas ficam restritas aos festivais. Situação que ainda precisa da participação do Estado para mudar. E é aí que mora o problema! Desde o início do governo Bolsonaro, paira uma espécie de nuvem cinza sobre o terreno cinematográfico brasileiro, ameaçando constantemente seu futuro e a continuidade de sua evolução: cortes nos orçamentos e nas leis de incentivo à cultura, redução nas linhas de financiamento, ameaças de fechamento de instituições, como a ANCINE, e de criação de “filtros” nos conteúdos dos filmes, funcionários de alto escalão plagiando discursos nazistas, demissões e admissões infelizes… Tempos sombrios que contrastam fortemente com o colorido de nosso cinema neste 2020.
RPD || Ivan Alves Filho: A mão e o mistério
Considerada Patrimônio Mundial da Unesco, a Gruta de Lascaux possui pinturas rupestres com cerca de 20 mil anos, acreditam alguns cientistas. Ela foi descoberta em 12 de setembro de 1940 por quatro adolescentes
O que significa, exatamente, aquela mão impressa numa gruta de Lascaux, no interior da França? Será que alguém sabe dizer ao certo? Estamos diante de mais um daqueles mistérios insondáveis da Humanidade?
Em todo caso, a questão sempre me fascinou. Penso em várias hipóteses. Primeiro, o homem teria percebido que a mão o diferenciava dos animais. Daí o destaque dado a ela. Afinal, ele era o único ser a ficar de pé, com as mãos liberadas, portanto. E o raio de visão consideravelmente ampliado. As datas calculadas pelos arqueólogos para a idade das pinturas rupestres de Lascaux se aproximam dos 30 mil anos, época em que o homem já era perfeitamente homo sapiens erectus. Faz certo sentido.
Vamos prosseguindo. Outra hipótese implicaria aceitar que o homem quis legar para a posteridade um testemunho de sua passagem por esse vasto mundo de Deus. Como se, subitamente tomado de uma consciência de indivíduo, ele se dispusesse a comunicar, transmitir, registrar sua humanidade àqueles que fatalmente lhe sucederiam. Por que não? A consciência humana em gestação revelava, assim, que o homem não era imortal. E a pintura o teria auxiliado a expressar isso, a deixar sua marca para o futuro. Ou seja, nós. É razoável pensar assim. Nascia o mundo do simbólico, que também nos diferencia dos animais. Karl Marx chegou a dizer que o pior dos arquitetos é superior à melhor das abelhas por fazer uso de sua imaginação.
Mais uma hipótese seria buscar no gesto do homem que estampava sua mão nas paredes de uma rocha a necessidade de compreender, ainda que de forma confusa ou embrionária, sua exterioridade em relação ao meio. O homem e sua imagem ganhavam então o mundo. Razoável também, não é? É possível imaginar ainda que, com seu gesto, o homem pretendesse fazer arte, isto é, embelezar o ambiente que o cercava. A coisa também faz algum sentido.
Ou, então, descartaríamos todas essas possibilidades. Nesse caso, poderíamos imaginar que a mão de Lascaux era simplesmente a mão de Lascaux. E nada mais.
Confesso que essa última hipótese é a que mais me atrai – mesmo que não seja, forçosamente, a mais consistente. Ainda que não faça lá muito sentido.
Mas será que o mistério faz?
RPD || Dora Kaufman: Transformação digital liderada pela Inteligência Artificial - impactos sobre o mercado de trabalho
As próximas décadas podem ser marcadas pelas tecnologias inteligentes, que estarão presentes em sistemas globais de produção com modelos de negócios integrados e conectados
A combinação de avanços nas tecnologias de Inteligência Artificial (IA) e robótica, por um lado, acelera a produtividade com economia de custos e aumento da eficiência e, por outro, tem fortes impactos sociais, particularmente no mercado de trabalho. Nas próximas décadas, as tecnologias inteligentes estarão presentes em sistemas globais de produção com modelos de negócios integrados e conectados, caracterizados por precisão nos parâmetros de eficiência, personalização de processos e produtos.
Observa-se crescente automação inteligente das tarefas rotineiras, repetitivas e previsíveis, que são as funções predominantes no mercado de trabalho. O trabalhador humano está competindo com a tecnologia inteligente, que é mais barata de empregar com a vantagem adicional de evoluir continuamente; apenas parte dos trabalhadores será realocada para tarefas não suscetíveis à mecanização, tarefas que exigem habilidades humanas que requerem formação adequada (e não simples treinamento).
Vale observar que, historicamente, desde a Revolução Industrial, no século XVIII, o progresso tecnológico priorizou a mecanização das tarefas manuais (trabalho físico); o progresso tecnológico do século XXI, no entanto, engloba igualmente tarefas cognitivas tradicionalmente sob domínio humano, dentre outros atributos, pela maior capacidade e velocidade de processar enormes bases de dados. Ademais, a disrupção tecnológica da IA distingue-se das anteriores pela aceleração e por novos modelos de negócio não intensivos em mão de obra (logo, não gera oferta massiva de empregos).
Os estudos sobre o futuro do trabalho divergem nos números, reflexo das respectivas percepções sobre a ingerênciados arcabouços sociais, legais e regulatórios; e das distintas metodologias. Existe consenso, contudo, de que o resultado entre vagas eliminadas e vagas criadas tende a ser negativo, privilegiando os trabalhadores qualificados. Na competição entre o trabalhador humano e o “trabalhador máquina”, os humanos estão em desvantagem: (a) a manutenção é mais barata, as máquinas trabalham quase que em moto contínuo (sem descanso, sem férias, sem doenças), com um custo médio menor por hora trabalhada (US$ 49 dos humanos na Alemanha e US$ 36 nos EUA, contra US$ 4 do “robô”); (b) as máquinas inteligentes se aperfeiçoam automática e continuamente (processo de machine learning/deep learning); e (c) o custo de reproduzi-las é significativamente menor do que o custo de treinar profissionais humanos para as mesmas funções.
Em paralelo, a substituição do trabalhador humano pelos sistemas inteligentes gera efeito negativo sobre a renda ao aumentar a competição pelos empregos remanescentes. Há fortes indícios de que, em qualquer cenário, a automação inteligente favorece o crescimento econômico, mas gera mais desigualdade (predominantemente, serão extintas as funções de menor qualificação, em geral exercidas pela população de baixa e média renda). Ou seja, a automação inteligente é positiva para o crescimento e negativa para a igualdade.
No Brasil, o processo de transformação digital está relativamente atrasado, mas com impactos perceptíveis sobre o emprego: (a) na indústria, as tecnologias de automação digital, têm ainda baixa penetração, prevalecendo a digitalização de processos internos e a automação básica; (b) no varejo, particularmente o setor bancário, o foco da adoção da IA são os processos internos (redução de custo/aumento de eficiência) e a experiência do cliente (assistentes virtuais/chatbots); (c) no agronegócio, talvez o setor no país mais avançado nesse processo, observa-se a aplicação de tecnologias de IA nas várias etapas de produção, com consequente redução da oferta de trabalho; (d) no setor público, estamos na 51ª posição em GovTech (Governo Tecnológico), mas à medida que avança a digitalização, diminui o número de vagas de trabalho: o alistamento militar on-line, por exemplo, representa atualmente 47% do total – 1,7 milhão de candidatos/ano –, já tendo reduzido de 2.307 para 829 os servidores diretamente envolvidos.
O debate entre se a automação vai substituir os trabalhadores humanos ou vai ampliar sua capacidade aparentemente está superado. A realidade em todos os países e setores de atividade econômica mostra que ambos os processos estão acontecendo simultaneamente. Existe nova forma de relacionamento homem-máquina, que, em algumas situações, empodera os humanos e, em outras, os substitui. Precisamos de políticas públicas com três urgências a serem equacionadas: (a) como lidar com a massa de trabalhadores que tendem ao desemprego pela substituição do trabalhador humano por máquinas/sistemas inteligentes; (b) como requalificar e reciclar a força de trabalho (revisão do ensino em todos os níveis e dos programas de treinamento in company); e (c) como requalificar os trabalhadores nas funções remanescentes para atender à nova interação humano-tecnologia.
Pedro Fernando Nery: Devolvam o FGTS!
Dinheiro foi acumulado por anos sem que reservas de lucro fossem distribuídas
Os trabalhadores chegam à crise com uma poupança. Nas próximas semanas, a economia entrará em quarentena e dois desafios se colocam: evitar que as empresas sem demanda mandem embora seus funcionários, e evitar que quebrem, destruindo para sempre empregos formais. Os trabalhadores têm uma reserva suficiente para manter parcialmente seus salários nos próximos meses: o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Os recursos acumulados no Fundo após décadas de resultados não distribuídos, que compõem seu Patrimônio Líquido, podem ser a solução para pagar os salários – mantendo empregos e empresas e permitindo uma recuperação mais rápida no pós-pandemia.
O FGTS tem cerca de R$ 100 bilhões líquidos em caixa, que lastreiam um patrimônio líquido de montante equivalente – informa Igor Vilas Boas, consultor do Senado que é ex-presidente do Conselho Curador do FGTS. São recursos que, individualmente, não pertencem a nenhum trabalhador.
E existem associados ao Fundo 37 milhões de contas ativas, dos atuais vínculos dos trabalhadores em atividade. Desconte-se os empregados de estatais, que não sofrem risco de demissão, bem como empregados de maior renda, que podem possuir alguma poupança própria. Restam cerca de 30 milhões de contas de trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.
Se R$ 100 bilhões do FGTS fossem distribuídos entre esses 30 milhões de trabalhadores, teríamos algo como R$ 3 mil. É possível então pagar um salário mínimo para cada um deles por três meses, ou R$ 1.500 por dois meses – por exemplo. Pelas regras atuais, esse dinheiro não pertence aos trabalhadores, financiando empreendimentos de empreiteiras. Para ser liberado, é preciso lei.
Havendo lei, a Caixa poderia depositar mensalmente os recursos para ajudar os empregadores a pagarem os salários. Não deve haver grande dificuldade logística, afinal o Fundo recebe depósitos dos próprios empregadores. É só fazer o caminho reverso. Vilas Boas explica ainda que essa operação se beneficiaria da expertise do Saque Imediato, feito em 2019.
A ajuda do FAT (que paga o seguro-desemprego) pode cobrir eventuais diferenças ou os meses seguintes, ou auxiliar o governo a desonerar encargos como INSS. O uso do FGTS pode também permitir que o Tesouro concentre seus limitados recursos em ações de saúde ou na assistência, que há de acolher aqueles que nem emprego formal tem para perder. Vilas Boas lembra que a própria manutenção dos salários ajuda o governo a não sofrer tanto com a queda de arrecadação.
A medida não há de ser polêmica. É intuitivo que haja alguma reação das empreiteiras, que terão menos crédito para seus projetos. Mas no estágio atual da crise, os canteiros estão fechados ou prestes a fechar, e diante da incerteza ninguém deve estar contratando novos projetos. O consultor ressalta que o FGTS se beneficiará nos meses subsequentes, com mais depósitos e menos saques.
A manutenção dos postos de trabalho e das empresas é um imperativo para todos os países. Quando a pandemia passar, a economia vai se recuperar mais rápido se as empresas tiverem de pé e se não tiverem de contratar novos trabalhadores – o que demanda tempo e recursos com processos seletivos e, mais importante, treinamento. É uma grande vantagem o Brasil ter uma poupança de R$ 100 bilhões para garantir esses postos – ainda que não se use toda.
A crise da covid-19 escancara distorções de nossa Constituição e da legislação que a regulamenta. A ausência de proteção aos informais apesar de uma Seguridade trilionária. A blindagem dos servidores públicos diante de qualquer desastre. A subtributação dos mais ricos. Mas também o paradoxo de haver um fundo de garantia que pouco garante aos trabalhadores.
Esse dinheiro do FGTS não caiu do céu: ele é resultado direto do suor e talento de gerações de trabalhadores, que depositaram mesmo sem saber parte do seu salário nessa poupança forçada todo o mês. Ele foi acumulado durante anos em que reservas de lucro não foram distribuídas. É hora de devolver. Se não agora, quando?
*Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: A Escolha de Sofia
O Brasil hoje: se correr, o bicho covid-19 pega; se ficar, o bicho da recessão come
O mundo todo e o Brasil, particularmente, vivem um dilema típico de “A Escolha de Sofia”. Aprofundar o isolamento e a paralisação de estados, cidades, empresas, empregos e pessoas, em nome da saúde e da vida? Ou mitigar o combate radical ao coronavírus para tentar preservar empresas e empregos, em nome da economia?
Na prática, uma guerra da área sanitária com parte de governantes, empresários e economistas. De um lado, governadores que trabalham diretamente com o Ministério da Saúde e os especialistas no setor; de outro, o presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Economia e aliados.
Em tese, todos têm razão. A prioridade absoluta neste momento é trabalhadores, funcionários, autônomos e diaristas em casa para interromper a transmissão do vírus maldito. A prioridade de hoje, porém, não pode desconsiderar a de amanhã: a pandemia acaba e as vítimas não serão só os mortos e contaminados, mas todos que produzem, vendem, trabalham. O horizonte é de terra arrasada, com recessão, quebradeira de empresas e lojas, 40 milhões de desempregados, na previsão de um grupo de empresários.
Como sempre, em todas as crises, dificuldades e momentos, as maiores vítimas todos nós sabemos quem são e serão: velhos, homens, mulheres e crianças da tal da “base da pirâmide”. Passado o momento em que os infectados e mortos eram recém-chegados da Ásia e da Europa, ou por eles foram contaminados, a expectativa, que dá um tremor no corpo e um frio na coluna, é que o vírus chegue às favelas, cortiços, às imensas áreas sem água, sabão, muito menos álcool gel.
São milhões com imunidade baixa, higiene precária, compreensão da situação equivalente ao (mínimo) grau de educação. Logo, serão os alvos fáceis de um vírus oportunista e letal. São os moradores de rua, os que vendem água, milho ou qualquer coisa por aí, os diaristas que só recebem (e comem) quando trabalham e, entre eles, os informais, que crescem freneticamente e sem amparo legal. Eles vão morrer mais com o vírus e vão sofrer mais no pós-vírus. Se correrem, o bicho covid-19 pega; se ficarem, o bicho da recessão come.
O novo coronavírus chegou para valer em todas as unidades da Federação, decretando calamidade pública, prenunciando colapso da saúde e crescendo na velocidade do exemplo mais dramático, a Itália. E tudo isso na pior hora. Um dos líderes mundiais em desigualdade social, o Brasil convive com falta de estado e bolsões de miséria absoluta em todas as suas regiões. E vem de dois anos de recessão, de mais dois “crescendo” 1,3% e desperdiçou 2019 com PIB de 1,1%. Mais: a questão fiscal é o maior obstáculo da economia.
De onde tirar a montanha de dinheiro que o País precisa para salvar vidas, tratar doentes, preservar setores mais atingidos, empregos, milhões de famílias sem renda? O governo tem anunciado medidas, como flexibilização das regras trabalhistas e de pagamento de dívidas e vales de R$ 200,00 para informais e os mais miseráveis entre os miseráveis. Mas, num País populoso como o nosso, significa que a conta é altíssima para os cofres públicos, mas o valor que chega à mesa das famílias é irrisório. Tudo deprimente, apavorante.
A luz no fim do túnel só virá, primeiro, com o máximo rigor contra a transmissão do vírus e, depois, com união, patriotismo, solidariedade, as disputas políticas de lado, o presidente acordando para a realidade e uma certa elite esquecendo, por ora, a eterna ganância e a velha arrogância. Aliás, uma pergunta: como os bancos vão entrar nessa onda? Governos de esquerda, centro e direita vêm e vão e esse é o setor que mais lucra. É hora de retribuir, porque se trata de questão de vida e morte. Das pessoas e da economia.
Bruno Boghossian: Insistência em agenda liberal drena capital político de Guedes
As primeiras reações da equipe econômica diante da catástrofe que se aproximava provocaram irritação no mundo político
Quando o coronavírus já assustava meio mundo, Paulo Guedes sugeriu ao Congresso Nacional que avançasse com a privatização da Eletrobras e da Casa da Moeda. Por semanas, o ministro da Economia insistiu em que sua agenda liberal era a única maneira de conseguir dinheiro para enfrentar a crise.
Consideradas insuficientes, as primeiras reações da equipe econômica diante da catástrofe que se aproximava provocaram desconfiança de investidores e irritação no mundo político. Guedes conseguiu piorar ainda mais esse ambiente nos últimos dias.
A desastrosa medida provisória que permitia a suspensão de contratos de trabalho sem medidas de compensação contaminou de vez o receituário que o ministro pretendia deixar como marca e drenou o capital político que ele já vinha perdendo desde que assumiu o cargo.
Sua equipe alegou que o governo amenizaria a perda de renda dos trabalhadores em uma medida que seria publicada posteriormente, mas o estrago estava feito. O vaivém que levou Bolsonaro a defender a ação pela manhã e revogá-la menos de quatro horas depois ampliou a deterioração.
Investidores e integrantes da equipe apontam, há dias, que o ministro emite sinais contraditórios e deixa de apontar rumos claros no esforço para enfrentar a crise.
Na sexta (20), Guedes teve conversas individuais com grandes empresários, mas deixou de participar da videoconferência pública em que eles pediram apoio a Bolsonaro. No fim de semana, os apelos continuaram, mas o ministro não foi visto. Finalmente, na segunda (23), quando a medida da suspensão de contratos se tornou pública, o chefe da economia não apareceu para dar explicações.
Em seus 15 meses no posto até aqui, Guedes se notabilizou por desconsiderar danos políticos que seus planos poderiam produzir. Não foram poucas as ocasiões em que o ministro, concentrado nas cifras das contas públicas, ignorou o impacto social amargo de suas medidas de aperto.
Guedes chegou a incluir na proposta de reforma da Previdência uma proposta que reduzia o valor pago a idosos muito pobres e a deficientes, o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Apresentou também, na medida provisória que flexibiliza a contratação de jovens, uma controversa taxação sobre o seguro-desemprego.
As duas ideias foram bombardeadas e derrubadas pelo Congresso. O desgaste, no entanto, se acumulou. A cada plano com essas características, a agenda do ministro perdeu tração entre parlamentares e passou a incomodar até o presidente.
Bolsonaro se alinhou à cartilha liberal e abraçou boa parte dos planos de Guedes, mas também manifestou oposição a propostas que podiam causar prejuízos políticos ao governo.
Em diversas ocasiões, o comportamento do presidente provocou questionamentos sobre o poder que o superministro teria para fazer avançar sua agenda. Ainda antes de tomar posse, Bolsonaro criticou a reforma da Previdência sugerida pelo governo Michel Temer —mais suave que aquela planejada por Guedes. “Não podemos querer salvar o Brasil matando idoso”, afirmou.
Foi o próprio presidente quem torpedeou os planos de reforma administrativa, que aplicaria regras mais duras ao funcionalismo público para reduzir as despesas do governo com servidores. Guedes queria uma mudança radical, Bolsonaro determinou um rearranjo suave, que nunca se concretizou.
As divergências apontavam que o ministro pôs as planilhas à frente da viabilidade política de seus planos e, especialmente, das penalidades sociais embutidas nessa agenda.
Os choques produzidos por aquelas propostas provocaram, aos poucos, os primeiros sinais de fragilidade do ministro. Guedes, porém, se beneficiou do fato de que eram tempos de relativa calmaria e se protegeu atrás do apoio de investidores para dobrar a aposta.
As duas circunstâncias se esvaíram em poucos dias com a crise do coronavírus. Ainda assim, o ministro preferiu se agarrar à unha a suas antigas convicções.
Enquanto até governos europeus comprometidos com fórmulas fiscalistas passaram a adotar medidas emergenciais de expansão de gastos, Guedes insistiu na aplicação de um receituário inapropriado para tempos de caos.
A medida provisória que permitia a suspensão de contratos de trabalho contamina ainda mais a agenda econômica. Qualquer plano, de agora em diante, tende a ser recebido com contestação e desconfiança nas ruas, no Congresso e, principalmente, no gabinete presidencial.
Pablo Ortellado: Menor do que Trump
Plano de Bolsonaro para ajudar trabalhadores é cruel até em comparação com o de Donald Trump
Não há mais dúvidas de que a crise do coronavírus vai gerar uma recessão. No Brasil, as medidas sanitárias levaram ao fechamento do comércio, ao isolamento da força de trabalho e a uma redução do consumo das famílias. Teremos encolhimento da atividade econômica, diminuição da arrecadação e forte incremento dos gastos de saúde. Se não agirmos logo, além dos doentes e dos mortos teremos também milhões de desempregados e desassistidos passando fome.
O Brasil tem hoje 18,6 milhões de trabalhadores sem carteira assinada, 4,5 milhões deles ocupados como trabalhadores domésticos; temos também 19,3 milhões de trabalhadores por conta própria sem CNPJ. Nosso comércio varejista, que está quase todo fechado, emprega outros 5,6 milhões de trabalhadores, já excluído o setor de supermercados e alimentos.
A tudo isso se somam 11,9 milhões de trabalhadores que já estavam desempregados. São dezenas de milhões de brasileiros que precisarão de apoio para alimentar suas famílias.
Em todo o mundo, governos têm abandonado temporariamente os preceitos de equilíbrio fiscal e adotado medidas de economia de guerra. Setores duramente atingidos estão recebendo apoio financeiro, a folha de pagamento das empresas está sendo parcialmente subsidiada pelo Estado para evitar demissões e trabalhadores informais estão recebendo auxílio na forma de uma renda básica de cidadania.
Enquanto isso, o plano de Bolsonaro é psicótico, não sabemos se motivado por cegueira ideológica ou por uma brutal insensibilidade social. Mesmo se comparadas às do plano de Donald Trump, as medidas de Bolsonaro são cruéis.
Embora as negociações no Congresso americano ainda estejam em curso enquanto esta coluna é escrita, tudo indica que os Estados Unidos devem dar US$ 1.200 por adulto e mais US$ 500 por criança para as famílias americanas com renda menor do que US$ 75 mil (para sobreviverem por cerca de três meses); enquanto isso, Bolsonaro quer dar aos trabalhadores informais que estão no cadastro único para programas sociais R$ 200 de auxílio, por três meses.
Enquanto Trump vai ajudar 57% das famílias americanas, Bolsonaro vai ajudar 36% das famílias brasileiras; enquanto Trump vai dar cerca de 80% de um salário mínimo americano por mês, Bolsonaro vai dar 20% de um salário mínimo brasileiro; enquanto Trump quer empregar nesse auxílio 1% do PIB americano, Bolsonaro quer empregar apenas 0,2% do nosso PIB.
O programa de Bolsonaro, mesmo em termos relativos, é apenas um quinto do que o de Trump, seu mentor.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Hélio Schwartsman: Covid-19 não acaba tão cedo
Retardar a disseminação é só o primeiro round da luta
Declarações de autoridades e muitos dos artigos publicados na imprensa dão a impressão de que, se formos capazes de atravessar três ou quatro meses de extremas dificuldades, teremos triunfado sobre a Covid-19. Odeio ser o portador de más notícias, mas, se tudo sair melhor que o planejado, isto é, se conseguirmos retardar a disseminação da epidemia e assim evitar o colapso dos serviços de saúde, teremos vencido só o primeiro round de uma luta que poderá ser bem mais longa.
Como já escrevi aqui, epidemias normalmente acabam com uma vacina ou com o chamado esgotamento dos suscetíveis, que ocorre quando a maior parte da população já entrou em contato com o patógeno e desenvolveu defesas contra ele, dificultando sua propagação —a tal da imunidade de rebanho.
Em termos globais, isso só começaria a ocorrer depois que 4 bilhões de pessoas tivessem sido contaminadas. A menos que a proporção de casos não detectados da Covid-19 seja várias ordens de magnitude maior que as estimativas correntes, estamos longe disso. Daí decorre que, mesmo que zeremos as novas infecções, as cadeias de transmissão tenderão a restabelecer-se assim que as restrições à circulação forem relaxadas. Vimos isso na China no último domingo.
Nós provavelmente teremos de administrar sucessivos lockdowns para manter os hospitais operantes. Cada vez que a transmissão sustentada voltar a aparecer, será preciso reinstaurar o distanciamento social. Fala-se em um ano e meio para desenvolver uma vacina e pô-la no mercado —se é que o Sars-Cov-2 é "vacinizável"; muitos vírus não são.
Dados mais precisos sobre a epidemiologia da Covid-19 poderiam levar a uma mudança de estratégia.
Mas, enquanto eles não vêm, é preciso atuar segundo o princípio da precaução. Atrasar a disseminação da epidemia aumenta a dor econômica, mas dá aos médicos mais tempo para encontrar um tratamento, hoje nossa melhor esperança.
Míriam Leitão: Improvisos e falta de comando
Falta um plano e uma direção ao governo, que tem improvisado. A confusão da MP do contrato de trabalho foi mais uma prova disso
O Ministério da Economia acha que a ajuda real à economia pode chegar até a R$ 130 bilhões. Como houve uma queda forte de juros, o Tesouro está gastando menos este ano no pagamento aos detentores de títulos públicos. Portanto, o governo poderia na prática aumentar as despesas nesse valor. Mas falta um plano e uma direção. O governo tem improvisado e a confusão da MP do contrato de trabalho foi apenas uma prova disso. A ideia de jogar sobre o trabalhador a conta do ajuste foi totalmente sem sentido. O presidente Bolsonaro tentou defender a MP e teve que recuar.
Sobre o espaço para gastar nessa crise, uma fonte da área econômica avalia que o relevante é o déficit nominal, aquela conta que inclui o custo dos juros, e não o resultado primário para o qual todos olham. Em vez dos R$ 124 bilhões de reais de déficit, o importante seria o déficit nominal, que tem caído. Era 7% do PIB em 2018 e caiu no ano passado para 5,9%. Em 2020 o Tesouro pagará R$ 120 bi a R$ 130 bi a menos com a queda da Selic.
Mas se há espaço fiscal, faltou sensibilidade social na medida do emprego. De manhã, o próprio presidente Bolsonaro elogiou no twitter a MP. O secretário Bruno Bianco, de Previdência e Trabalho, disse que estava sendo preparada uma segunda Medida Provisória que regulamentaria o acesso ao seguro-desemprego por parte desses trabalhadores, além de um percentual do salário a ser pago pelo governo. Quem acompanhou as discussões no fim de semana acha que houve atropelo e confusão. Era para ser uma medida que aliviasse as empresas mas mantivesse os empregos, ainda que com salários menores, e acabou sendo uma MP que dava tudo ao empregador e fragilizava ainda mais o trabalhador. “Do jeito que está não vai ficar”, esse foi o recado que o Congresso mandou para o presidente. E ele revogou o artigo 16.
A confusão é decorrência direta de o governo ter demorado a entender a gravidade da crise. Por estar em negação, e mais preocupado com a luta política, o presidente se atrasou em todas as medidas e isso se refletiu também na equipe econômica. Em vez de conduzir, o governo tem sido conduzido pelos fatos. Os governadores enviaram cartas, a associação dos prefeitos também e o presidente respondia em entrevistas agressivas aos gestores estaduais ou em ataques via twitter. Bolsonaro nessa crise demonstrou não ter a menor noção do seu papel de presidente da República.
Ontem, aconselhado internamente a buscar o caminho do diálogo, o presidente acabou anunciando um pacote de ajuda aos governos estaduais. Era o que ele tinha que ter feito desde o começo. Mas quando o presidente anunciou que estava suspenso o pagamento de juros da dívida dos estados, pareceu mais uma rendição. O governo federal foi empurrado pela liminar do ministro Alexandre de Moraes no fim de semana. Por ela, o governo de São Paulo deixou de recolher por mês o volume de R$ 1,2 bi para o Tesouro, para direcionar o dinheiro para a Saúde.
Com essa liminar na Justiça, não houve como a União fazer outra coisa a não ser estender a todos os outros entes da federação. O governo deveria ter desde o começo liderado esse processo até para estabelecer critérios e prazos e preservar, para o futuro, o ajuste estrutural. Sem diálogo com os governadores e acusando alguns deles de estarem provocando uma crise econômica, o presidente acabou ontem oferecendo tardiamente o que em grande parte já havia sido conseguido.
Os especialistas acham que o pacote ajudará e que as medidas são boas. Quando se fala de R$ 88 bilhões, não é exatamente esse o valor que sairá dos cofres. Uma parte é dívida que os estados ficarão sem pagar por seis meses ao Tesouro e aos bancos públicos. Mas ela depois será quitada. Como a arrecadação vai cair, o governo dará uma garantia R$ 16 bi para manutenção dos fundos de participação. Outros R$ 40 bilhões eram de dívidas que já vinham sendo negociadas dentro do plano Mansueto.
Os números parecem muito grandes, mas quando se olha medida por medida a quantia disponibilizada é menor do que o anunciado.
Há sempre dupla contagem, como o do dinheiro que vai de uma caixa para outra. Exemplo: esses R$ 20 bilhões do PIS-Pasep transferidos para o FGTS. Mas no pacote de ontem para os estados, anunciado atabalhoadamente via twitter pelo presidente, há ideias novas, dinheiro novo e algumas saídas criativas.
José Casado: O alto custo da inércia política
O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso
Líderes políticos deveriam olhar para a novidade na paisagem urbana: pessoas confinadas em casa têm ido às janelas agradecer aos trabalhadores de saúde e de serviços básicos — médicos, enfermeiros, lixeiros, os “caras” da água, luz, internet e TV, feirantes e entregadores, entre outros.
As manifestações espontâneas se repetem, como em outros países. Trazem a mensagem do desejo comum de reinvenção do futuro sem repetir o passado enterrado no último carnaval, três semanas atrás.
O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso na saúde, no saneamento e na distribuição da renda. Os prejuízos acumulados, certamente, já superam a soma de meio século de cortes nos orçamentos da higienização da vida em sociedade, desinvestimentos em ciência, tecnologia e inovação e transferências induzidas de renda dos pobres.
Prevalece o pavor pesaroso com o flagelo da doença, morte e desemprego, num cenário de paralisia de líderes como Jair Bolsonaro, Donald Trump e o mexicano Manuel López Obrador. Ególatras, falam demais, e, até agora, foram incapazes de mapear uma rota para o amanhã. Ocultam fiascos, como o de prover testes rápidos e abrangentes para limitar a pandemia. Vagueiam na irrelevância (Bolsonaro, abraçado a uma oposição sem alternativa até de liderança).
Sábado, a XP (R$ 409 bilhões em ativos) reuniu Rubens Menin (MRV), André Street (Stone), Benjamin Steinbruch (CSN), Wilson Ferreira Júnior (Eletrobras) e Pedro Guimarães (Caixa). Estavam perplexos com os riscos de colapso em saúde, internet, água e luz, e com a depressão — James Bullard (Fed St. Louis) fala em até 30% de desemprego nos EUA. Street, da Stone, contou que seus clientes, pequenas e médias empresas, só têm capital para 27 dias. Mas a burocracia segue, mostra a Receita no prazo do Imposto de Renda.
Líderes em Brasília e nos estados deveriam ouvir os confinados, sair da letargia e reconstruir tudo, rápido. Talvez, até entoando o mantra do cientista Alan Kay: “A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo.”
Carlos Andreazza: Bolsonaro corre atrás
Presidente negligenciou emergência que será tragédia para a saúde pública
A pergunta é objetiva: alguém (ainda) acredita que Jair Bolsonaro esteja à altura de liderar o Brasil na empreitada de combate à Covid-19? Não será necessário responder. O próprio presidente o faz; todo o seu esforço atrasado — no qual empenha (e mascara) o governo — consistindo agora em mostrar, como numa peça de propaganda, que dá importância à pandemia. Isto depois de haver se juntado, exprimindo o leviano que é, a seus apoiadores — a doença já entre nós — em manifestação de rua.
Está correndo atrás; lançando-se numa cruzada de reversão da imagem negativa. Não será simples, contudo. Pela primeira vez em quase 15 meses, vai mal posicionado narrativamente, percebido como alguém que desdenhou do coronavírus e cujos atos —esses por meio dos quais tateia em busca do protagonismo perdido — atrapalham.
O do sujeito que não é apenas roda-presa, mas cujo parco giro propõe retrocessos. Péssimo personagem para um governante encarnar numa adversidade desta monta, tanto mais quando sua atuação é comparada à de alguns governadores. Avalie, leitor: João Doria logo posará em hospitais de campanha.
Enquanto isso, um Ministério da Economia concebido para tocar uma agenda de austeridade fiscal engatinha para ser o que talvez não possa, abrir o teto solar, botar o bolso para fora e gastar os fundos para sustentar artificialmente empregos e empregadores. O modo como se divulgou a MP 927, a que propunha a possibilidade de se suspender contratos de trabalho por quatro meses, sem apresentar — com clareza — a devida contrapartida ao trabalhador, é eloquente. O governo o fez para logo recuar — quem sabe se para reformular o texto. Não importa. O recado estava dado. Bateção de cabeça. Fragilidade.
É dinâmica curiosa, inédita desde que o bolsonarismo ascendeu como pauteiro do debate público; posição da qual nunca saíra. Até esta crise. Por exemplo: o presidente acusa — com fundamento — Wilson Witzel de decretar medidas inconstitucionais, com o que jogaria para a galera; mas é o governador do Rio, com suas canetadas extremas (muitas a darem em nada), quem ora pauta a discussão, sendo Bolsonaro o impopular desafiado pela ousadia alheia. Quem diria? Ante o ritmo das lideranças estaduais, o presidente submerge como um prostrado, a reboque dos fatos, ultrapassado (atropelado) por políticos que farejam o sangue na água.
Bolsonaro perde base social — e sabe que perde, segundo já informava a mais sofisticada modalidade de aferição tribalista: o panelaço. O vídeo em que anuncia a produção militar de cloroquina para enfrentar o vírus compõe a batalha — com muitos elementos de desinformação — por meio da qual tenta reverter a imagem letárgica. Vai piorar.
Jair Bolsonaro é uma peça de propaganda — um girassol publicitário cujo sol seria a reação positiva a seus estímulos. Um populista do século XXI, forjado no pulso das redes — animal sensível a um só termômetro: likes. As pessoas morrendo, o SUS por colapsar, o impacto na economia a projetar depressão, mas o presidente ora desesperado — numa agonia meramente marqueteira — por convencer o eleitor de que dá gravidade àquilo que chama de gripezinha.
Não será fácil — insisto. Não depois de haver se comportado como um sociopata ante a doença mortal. Bolsonaro cometeu grave erro político. Negligenciou uma emergência que será uma tragédia para a saúde pública. Fez aposta equivocada. Botou todas as fichas no que seria uma epidemia superdimensionada, repercutida por uma imprensa interessada em plantar histeria — e ainda trucou. Até que começaram a morrer brasileiros. Tomou um susto. Desde então, é o reacionário movendo-se reativamente.
Ocorre que Bolsonaro não é apenas um populista, mas um populista autoritário: um ressentido gerador de conflitos — alguém que necessita de inimigos.Vai radicalizar. Há perigo golpista aí. Ele precisa, é da natureza, dar respostas firmes que o recoloquem à frente no jogo — e resposta firme de autoritário é testar avanços da casa autocrática.
À cata de reaver o papel principal na trama, o bolsonarismo já forjou um confronto — uma irresponsabilidade — com a China. Não colou. Antes, já sob o alastrar da Covid-19, atentara contra a Justiça Eleitoral, acusando fraude na eleição de 2018. Teria provas. Nunca as apresentou. À luz do que arma Órban na Hungria, e considerando que os governadores têm empregado medidas de exceção em seus estados, não se pode descartar a hipótese de que o presidente decrete, para mostrar força, algo como um estado de sítio — uma forma de entrar em choque com o Congresso, dado que o Parlamento jamais avalizaria um ato com tal musculatura discricionária.
Estado de calamidade. E de atenção. Bolsonaro não é líder à altura do desafio — respondo. Que as dúvidas a respeito não sejam dissipadas da pior maneira.
Bernardo Mello Franco: Perdidos na pandemia
O vaivém da MP mostra um governo perdido. Bolsonaro desperdiçou semanas preciosas. Agora deixa claro que não sabe o que fazer para amenizar o choque do coronavírus
Depois do “Esqueçam o que escrevi”, Jair Bolsonaro lançou o “Esqueçam o que assinei”. No domingo à noite, o presidente editou uma medida provisória que permitiria suspender contratos de trabalho e salários por quatro meses. Em menos de 24 horas, ele informou que revogaria o próprio autógrafo.
A medida já começava a ser chamada de MP da Fome. A pretexto de socorrer as empresas, o Planalto empurraria a conta da crise para os trabalhadores. Durante 120 dias, eles ficariam em casa sem remuneração e sem garantia de voltar ao emprego.
A ideia ia na contramão do que têm feito outros países diante do choque do coronavírus. No Reino Unido, o governo conservador assumiu o pagamento de 80% dos salários de quem recebe até £ 2.500, o equivalente a R$ 14.900. Nos EUA, a Casa Branca promete enviar cheques às famílias mais vulneráveis.
No Brasil de Bolsonaro, o patrão “poderia” conceder uma “ajuda compensatória mensal” ao empregado. Em português claro, isso significaria trocar salário por esmola. A reação foi forte, inclusive em setores que aplaudiam a agenda de Paulo Guedes.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, chamou a MP de “capenga”. Pelo WhatsApp, senadores de diversos partidos iniciaram um movimento para devolvê-la ao Planalto. Seria uma humilhação e um sinal de derretimento do governo.
Em março de 2015, o Senado devolveu uma MP que reduzia a desoneração da folha de pagamento. Foi o início da derrocada de Dilma Rousseff. Cinco anos depois, Bolsonaro sentiu o risco de repetir o destino da antecessora. Ele recuou, mas não conseguiu evitar o sétimo dia seguido de panelaços.
O vaivém mostra um governo perdido na pandemia. Bolsonaro desperdiçou semanas preciosas com o discurso de que o coronavírus era “fantasia”. Agora que parece ter caído na real, não sabe o que fazer para amenizar os efeitos do tombo. O presidente decide e recua de improviso, ao sabor das redes sociais. Seu apelo a Guedes (“Tira porque eu estou apanhando muito”) ficará nos anais de uma gestão sem rumo.