Day: fevereiro 18, 2020
Francisco Góes: O Brasil e o imposto sobre os combustíveis
Greve dos petroleiros é o motivo mais recente de preocupação na área de energia no país
A greve dos petroleiros chegou ontem ao 17º dia com novas adesões. No começo da noite, porém, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra da Silva Martins Filho, declarou a greve ilegal. Uma vez conhecido o despacho, os sindicalistas se reuniram para avaliar os rumos do movimento, sem decisão até a conclusão desta edição. Pela manhã, o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Décio Oddone, reiterou que não havia impactos na produção e no abastecimento.
Ele descartou que a continuidade da greve possa levar ao aumento dos preços dos derivados. Afirmou que em uma eventual hipótese de redução da oferta nacional, o que não está previsto, e do aumento da importação os preços nas refinarias da Petrobras seguiriam a paridade com o mercado internacional e a variação do câmbio, como acontece hoje, e concluiu: “Não há expectativa de qualquer impacto em preço”. Na semana passada, em ofício ao TST, Oddone havia alertado para o risco de a greve levar ao desabastecimento caso perdurasse por mais tempo.
A greve dos petroleiros tornou-se motivo de preocupação da ANP, que regula o setor de combustíveis no país, sujeito, desde o começo do ano, a alguns solavancos. Nos primeiros dias de janeiro, a crise entre Estados Unidos e Irã, motivada pela morte do general Qasem Soleimani, provocou incertezas sobre possível disparada nos preços do petróleo. Depois, o mundo tomou conhecimento da epidemia de coronavírus na China e os preços da commodity recuaram. Nesse período, a Petrobras fez quatro reajustes nas refinarias, mas a queda nos preços não chegou até as bombas dos postos.
No começo de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro estrilou: “Estou aqui fazendo papel de otário. Quando é que vai baixar na bomba para o consumidor?.” Ele desafiou os governadores a zerar o ICMS sobre os combustíveis dizendo que faria o mesmo com os tributos federais. Houve reação negativa dos governadores, uma vez que o ICMS sobre os combustíveis é a principal fonte de receita de muitos Estados às voltas com a crise fiscal (no Rio, representa 12,7% da arrecadação).
Embora tenha errado na forma sugerindo algo impossível de se fazer (zerar os tributos), Bolsonaro acertou ao levantar um tema importante: o peso dos impostos sobre o preço dos combustíveis. Coube ao ministro Paulo Guedes acrescentar, dias depois, que a questão será tratada na reforma tributária. Oddone costuma dizer que os preços dos combustíveis são formados por três variáveis: a commodity, a margem de distribuição e de revenda, incluindo custos logísticos, e os impostos (ver tabela). A Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) inclui um quarto elemento: a adição de etanol e de biodiesel à gasolina e ao diesel, respectivamente.
Oddone disse que a solução para o problema dos combustíveis no Brasil passa por ter competição na commodity e na distribuição e por enfrentar a questão tributária com “inteligência”. Na commodity, a Petrobras passou a seguir os preços internacionais. A petroleira usa dados da GlobalPetrolPrices para demonstrar que os preços da gasolina e do diesel no Brasil estão abaixo da média mundial. No diesel, entre 163 países pesquisados, o Brasil ocupa a 58ª posição (105 países possuem preços mais elevados). Na gasolina, o Brasil está na 80ª posição (outros 83 países têm preços mais altos).
Na distribuição, Oddone defende o fim de restrições, como a proibição da venda direta de combustível da refinaria para os postos. Essa proibição não faz sentido pois os volumes de venda direta não seriam relevantes, disse. A proposta enfrenta resistência das distribuidoras. Para o consultor Adriano Pires, a venda direta de combustível causaria insegurança no abastecimento, provocaria perda de qualidade do produto e estimularia a sonegação. “Defendo uma maior competição na distribuição de combustíveis”, rebateu Oddone.
Tanto ele como importadores e distribuidores estão de acordo em um ponto: seria melhor que o ICMS fosse cobrado na forma de um valor fixo em reais por litro, em vez de um percentual sobre o preço do produto na bomba, como é hoje. Essa fórmula garantiria estabilidade na arrecadação e não seria fator de volatilidade no preço final, disse Oddone. Outro problema, afirmou, está na diferença do ICMS cobrado pelos Estados, o que seria “convite” à sonegação.
O secretário da Fazenda do Rio, Luiz Claudio Rodrigues de Carvalho, disse que não há possibilidade de o Brasil ter alíquota única de ICMS porque cada Estado tem uma realidade. Ele mostrou-se cético sobre eventual mudança na sistemática de cálculo do imposto. Lembrou que na crise do Irã, em janeiro, o Rio manteve inalterada a base de cálculo sobre os combustíveis e, mesmo assim, o preço subiu na bomba. “O fato de a refinaria reduzir seu preço de venda para a distribuidora não significa que o preço vai cair na bomba porque os elos intermediários podem se apropriar da margem.” Para ele, a tributação sobre os combustíveis tem que ser tratada na reforma tributária como um todo, e não separadamente. Adriano Pires acredita que o governo seria favorável, na reforma, à redução de impostos sobre a gasolina e o diesel. Para ele, porém, o imposto sobre o combustível não pode seguir o padrão europeu, mais alto como forma de atender exigências ambientais, nem a tributação dos Estados Unidos, mais baixa do que a praticada no Brasil. “Para onde queremos ir? É uma opção de país”, questiona.
*Francisco Góes é chefe da redação no Rio.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro faz festa danada com gasolina, pedágio e outras demagogias
No mês do Carnaval, presidente critica preços que o público comenta nas redes sociais
O fevereiro de Jair Bolsonaro tem sido uma festa danada de demagogia: o presidente critica o preço da gasolina, do pedágio, do dólar, as agências reguladoras e teme a reforma administrativa de seu próprio governo. O grito de Carnaval populista mais recente foi a crítica do preço dos pedágios, que, “quase todos, extrapolam aquilo que poderia ser o razoável para pagar”, disse no sábado (15).
O presidente quer que o reajuste do pedágio seja inferior à variação da inflação (do IPCA), talvez o equivalente a apenas 80% do aumento geral de preços. É uma conversa para “pensar a médio e longo prazo”, disse.
Em certos raros casos, a depender de conjuntura e contratos, pode ser que o reajuste de tarifas de pedágio não acompanhe a inflação. Decidir de antemão que a tarifa terá redução real (reajuste inferior à inflação) é querer afastar investidor, sem o que não haverá obras de infraestrutura.
Além do mais, o próprio governo Bolsonaro vai licitar estradas por um modelo que deixa de privilegiar empresas que oferecem uma tarifa menor no leilão de concessão.
No dia 2 de fevereiro, Bolsonaro culpou os governadores pelo preço da gasolina e disse que iria propor ao Congresso a redução do ICMS, imposto estadual. Dias depois, afirmou que zeraria os impostos federais se os estados zerassem seus tributos sobre combustíveis, o que era uma bravata, ideia inviável dada penúria dos governos, bazófia engavetada a seguir pelo ministro Paulo Guedes (Economia).
No dia 13, talvez para aliviar o insucesso de público e de estima do discurso de Guedes sobre dólar, Disney e empregados domésticos, Bolsonaro fez sua fezinha demagógica cambial: “Como cidadão, [considero que] está um pouquinho alto, está um pouquinho alto, o dólar”.
No sábado da conversa do pedágio, Bolsonaro voltou a bater nas agências reguladoras, um hábito de décadas, que tem repetido na Presidência. Insinuou que lá se fazem coisas escondidas “da população”, por “um interesse muito mais político do que técnico”. “Espero que a imprensa comece a mostrar as agências para que a população entenda como o destino do Brasil é conduzido”, disse.
Neste mês, também titubeou quanto à reforma administrativa (que revê regras de carreiras, salários, reajustes e estabilidade de servidores federais). Como o recuo pegou muito mal e parecia sinal de indisposição reformista, Bolsonaro reafirmou que a reforma vai adiante, frisando que valerá apenas para novos servidores –quer evitar protestos e, afinal, ele mesmo não gosta da reforma.
Bolsonaro talvez não esteja bem informado sobre a natureza de uma emenda constitucional que enviou ao Congresso no final de 2019, a “PEC Emergencial”. Esta emenda prevê que, caso o gasto do governo tenda da furar o limite do “teto” ou o endividamento supere a despesa de investimento, haverá um arrochão de gastos com servidores. Estariam suspensos concursos, reajustes e talvez o salário do funcionalismo seja talhado.
Por fim, note-se que pelo menos desde 2006, o reajuste do pedágio tem sido inferior ao da inflação média (do IPCA), segundo as medições do IBGE (embora não seja o caso de São Paulo, que tem a melhor rede de estradas do país, quase todas as maiores sob concessão a empresas privadas).
Hélio Schwartsman: O Bolsonaro do bem
Terá ele se convertido ao Iluminismo?
Jair Bolsonaro defendendo os direitos humanos e o garantismo judicial? O presidente criticou a polícia baiana por não ter preservado a vida de um foragido numa operação em que teria havido troca de tiros e sugeriu que todos devem ser considerados inocentes até que haja uma sentença judicial transitada em julgado. Terá Bolsonaro se convertido ao Iluminismo?
É pouco provável. Uma explicação bem mais verossímil para a mudança de tom está nas necessidades políticas imediatas do presidente. Ele agora precisa desvencilhar-se da suspeita de que teria mandado matar o miliciano Adriano da Nóbrega e ainda tem de justificar o fato de que, no passado, o elogiou e condecorou. Aí, nada mais conveniente do que tentar empurrar a responsabilidade da morte para a polícia de um estado governado pelo PT e se escudar numa interpretação forte da presunção de inocência.
A quem ele quer enganar, perguntar-se-á o leitor atento. A maioria das pessoas provavelmente percebe a contradição, mas é bastante provável que os militantes bolsonaristas processem a dissonância cognitiva na marra, isto é, dissolvendo a incongruência e comprando as pseudoexplicações presidenciais.
Num dos mais reveladores experimentos da neurociência aplicada à política, o psicólogo Drew Westen meteu militantes partidários em máquinas de ressonância magnética funcional e monitorou suas reações enquanto assistiam a cenas de seus líderes caindo em contradição. Westen não apenas foi capaz de detalhar os circuitos que o cérebro usou para apaziguar o conflito mas também descobriu que ele pode extrair sensações prazerosas desse exercício. Entre os mecanismos acionados estavam os sistemas de recompensa, os mesmos que se ativam quando o viciado em drogas toma uma dose de manutenção.
Daí a dificuldade que experimentamos quando tentamos afastar bolsonaristas ou lulistas fanáticos de suas narrativas de escolha.
José Murilo de Carvalho: Munição de guerra
Temos vivido, desde o impeachment, intensa guerra verbal travada no grande pasquim atual que são as redes sociais
A década de 1880 teve início agitado na capital do Império por conta da Revolta do Vintém. A agitação estendeu-se por uns três anos liderada, sobretudo, por pasquins que guerreavam contra a grande imprensa e entre si. O mais agressivo deles foi o “Corsário”, redigido por Apulco de Castro. Em 13 de novembro de 1882, o redator publicou em edição extraordinária os autos de um imaginado conselho de guerra contra Carlos Bernardino de Moura, redator do jornal “A Pátria”. O acusador, isto é, o próprio Apulco, realizou a proeza de lançar 328 acusações contra o réu, na realidade uma saraivada de insultos. Temos também vivido nos últimos anos, desde o impeachment, intensa guerra verbal travada no grande pasquim atual que são as redes sociais. Parece, no entanto, que a munição dos combatentes anda a escassear. A guerra se monotoniza. Ocorreu-me, então, tomar a iniciativa, que creio patriótica, de reabastecer os combatentes com novas armas recorrendo ao arsenal do Corsário. Seguem os novos insultos, tirados dos autos.
“O réu é acusado de ser gatuno, larápio, salteador, sem-vergonha, traste, biltre, safado, ladrão, estelionatário, cara de tacho, sevandija, canalha, bêbado, devasso, bandido, cigano, dantas, trigo loureiro, debochado, besta, lesma, imundo, matéria excrementícia, besta do sexo macho, escória, vergonha, reles, saltimbanco, ignóbil, torpe, bicho, cínico, fresco, gato magro, Cruzeiro, Montoro [monturo?], nojento, rato de latrina, libertino, cão sem dono, sicofanta, porco varado, venal, burro, corrupto, comua, cloaca, José do Patrocínio, cano de esgoto, capadócio, patife, cabral pinheiro, polícia secreta, lazarento, Otaviano Hudson, pústula, sarna, tinha, mula de médico, tocador de pífanos, zebra, cobra, sapo, serpente, sogra, excomungado, onanista, capacho, escarradeira, cabungo, filho de sete pais, veado, azêmola, hiena, Serpa Junior, cáften, batedor de carteira, city improvements, cadela, ilha de Sapucaia, cara de guardanapo, infame, égua, pântano viscoso, atoleiro, podre, deletério, miasmático, peste, esfaimado, sacripanta, mariola, hediondo, repugnante, incestuoso, rua de S. Jorge, biraia, meirinho, monturo, esterquilínio, guano do Peru, sifilítico, vômito, urubu, caixa d’água, caloteiro, pedaço d’asno, ignorante, abutre, fedorento, invejoso, caluniador, mentiroso, vil, Franklin Dória, lama, podridão, escorpião, lagartixa, raia, cação, mono, piolhento, Van-Halle, monarquista, jogador, sujo, porco, horroroso, Calino, Serzedelo, ingrato, mosca morta, Adelino Fontoura, vagabundo, especulador, tagarela, língua de trapos, Fávila Nunes, azeiteiro, Clímaco dos Reis, Município Neutro, Tribuna Portuguesa, ratoneiro, limpa praia, necrotério, ferradura, pirata, hidrófobo, maluco, gira, Traviata, peru de roda, escarro, fúnebre, gato pingado, quilombo, cara de réu, Tinta Roxa, parvo, cisco, cavalgadura, camelo, garoto, moleque, judas, vendido, unhas de fome, idiota, moeda sem cunho, paciente, testa de ferro, filho de mulher solteira, arlequim, casmurro, trampolineiro, bacalhau sem vinagre, traficante, galé, prostituído, charlatão, falsário, mico, megera, piolho, praia do peixe, D. Brás Tizana, Sousa Freitas, Pereira Monte, inepto, salamarreco, borra-botas, bigorrilha, esfola bodes, troca tintas, canhão, pandorga, peralta, lobisomem, ostra, mulher de padre, pau de virar tripas, bosta, mula sem cabeça, pão duro, parati de quiosque, feijoada de frege, ventas de sumaca, sulanca sem peito, vunga, mal assombrado, mendigo, esqueleto, rufião, Russinho, Mané gostoso, figura de gesso, alarve, José do Telhado, Lucas da Feira, assassino, corujão, alcoviteiro, parasita, chorão, Leão XIII, morcego, parteira, ratazana, desbocado, enjeitado, borracho, cemitério, cadáver, prostituta, gajo, caixa d’ossos, cocota, intrigante, bilioso, sátrapa, mundano, horripilante, desdentado, vasilhame, raposa, chinelo velho, espertalhão, vampiro, planista, japonês, bargante, coruja, cascavel, entanha, Iscariote, hipócrita, venenoso, sandeu, animalejo, jumento, escorbútico, odre, jerico, estúpido, tapado, fleimão, escalavrado, roto, esquálido, envenenado, lazarista, jesuíta, pus, santa casa, sexta-feira, magro, pulha, palhaço, fadista, epidemia, sete de setembro, jiboia, jararacuçu, tanajura, afonso vintém, pandilha, ladrão de estrada, malandro, botocudo, pio Enéas, febre amarela, lorpa, madraço, bugio, farsola, poldro, marau, centopeia, lacrau, água suja, suíno, hipopótamo, impingem, parlapatão, laparoto, perverso, petulante, dromedário, pedante, sensual, sem dignidade, burro esporeado, empacador, ridículo, gorgota, vândalo, beldroega, pateta das luminárias, chifre, arrebentado, badameco, muxibento, pelanca, papa-moscas , lambe pratos, onze-letras, lixo, calango, víbora, caninana, burrego, jacaré, paiorra etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc.”
Aos insultos, cidadãos!
*José Murilo de Carvalho é historiador
Eliane Cantanhêde: Evolução da democracia
Quem se lembra de 20 governadores reagindo unidos a ataques de um presidente?
Quem planta chuva colhe tempestade, como diz um velho ditado que, hoje, cabe perfeitamente no presidente Jair Bolsonaro. Pode ter havido, mas é difícil lembrar se algum dia, em algum momento da história, 20 governadores se reuniram para reagir à chuva de ataques de um presidente como uma tempestade em forma de carta aberta. Não é trivial, nem foram poucos.
Os líderes dessa reação foram eleitos na onda bolsonarista, como João Doria (SP), Ibaneis (DF) e Wilson Witzel (RJ), mas agora exigem do presidente da República algo que não faz parte da personalidade, da cultura e dos costumes políticos dele: “Equilíbrio, sensatez e diálogo”.
Qual a última do Bolsonaro? Essa perguntinha ácida que não quer calar virou uma constante no dia a dia de Brasília – e não só de Brasília. Pois a última foi, simplesmente, jogar no colo da PM da Bahia, frisando que é “do PT”, a queima de arquivo do capitão Adriano, aquela figura sinistra que tanto fez que acabou sendo preso, expulso da PM no Rio e finalmente morto numa emboscada policial na Bahia.
Para Bolsonaro, antes de dar uma nova “banana” para os jornalistas, um cara com tal currículo em algum dia foi “herói”. E foi nessa condição que ele foi homenageado três vezes pelo então deputado Jair Bolsonaro e pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, primogênito do atual presidente.
Flávio homenageou o capitão Adriano duas vezes, uma delas com a medalha Tiradentes, principal honraria da Assembleia do Rio. Em que ano foi isso? Em 2005. E onde estava o “herói” Adriano naquele momento? Preso! Era suspeito de ter matado um pobre e jovem guardador de carros que tinha tido a coragem de denunciar achaques da turma de Adriano na PM do Rio.
Responda rapidamente: quem é mais herói, o pobre coitado que denunciou abusos da polícia, ou o policial acusado de matá-lo torpemente?
O atual presidente da República já deu sua resposta. Na época, em sintonia com o filho, ele fez um discurso no Congresso Nacional defendendo o crápula. Hoje, insiste em que, naquele momento, tratava-se de um “herói”. Cá entre nós, o Brasil já teve heróis melhores, menos sanguinários.
Bem, essa história já é horrorosa por si só, inclusive porque o gabinete de Flávio quebrou o galho de Adriano, quando ele caiu em desgraça, contratando sua mãe e sua ex-mulher. Não satisfeito, o presidente Bolsonaro resolveu tirar o corpo fora, passar a mão na cabeça do filho e empurrar a culpa por uma eventual queima de arquivo para o colo de um governador, que, não por acaso, é de oposição e do PT.
Responda rapidamente de novo: onde o capitão Adriano liderava a milícia conhecida como “Escritório do Crime” e onde passou a vida inteira, no Rio ou na Bahia? Onde ele virou PM, “herói” e foi preso e expulso da corporação, no Rio ou na Bahia? Afinal, era um arquivo vivo no Rio ou na Bahia? E quem tinha interesse em sumir com ele, a polícia e os poderosos do Rio ou o PT da Bahia?
Assim, Bolsonaro transformou a questão numa chuva que virou tempestade política. Até porque ele é reincidente. Já foi grosseiro e preconceituoso ao dizer que “daqueles governadores de Paraíba (sic), o pior é aquele do Maranhão (Flávio Dino, do PCdoB). Depois chamou todos os governadores para a briga quando lançou um desafio impossível, de zerarem os impostos sobre combustíveis, e assim jogou os governadores contra a opinião pública. E, por fim, excluiu os nove governadores da Amazônia do Conselho da... Amazônia.
Na carta, os 20 governadores destacam que essas declarações e o confronto constante “não contribuem para a evolução da democracia no Brasil”. Muito difícil, por essas e outras, não concordar com eles.
Cristovam Buarque: A lição do Enem
Em 1996, a Universidade de Brasília iniciou a experiência pioneira do Programa de Avaliação Seriada (PAS), que substituía a prova única do vestibular por avaliações ao longo do ensino médio: exames ao final de cada série, selecionando os que tinham melhor média dos três anos. A ideia do PAS foi do professor Lauro Mohry, quando era diretor do sistema de vestibular e eu reitor da UnB. Mas, para ser adotada precisava do apoio do Governo do Distrito Federal.
O PAS tinha vantagens: criava um vínculo da universidade com o ensino médio; acabava com o tudo ou nada do vestibular, dando ao candidato a chance de recuperação de um ano para o outro; permitia avaliar o desempenho de cada série de escola; sobretudo servia como incentivo para que os jovens estudassem ao longo dos anos do ensino médio, não apenas em um cursinho no último ano.
Em 1995, logo que assumi o governo do DF, levei a ideia ao então reitor da UnB, Claudio Todorov, que imediatamente a aceitou. Deve-se a ele e ao então secretário de Educação do DF, Antônio Ibañez, e suas equipes, a implantação do PAS em 1996.
Três anos depois, o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, criou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para avaliar o desempenho dos cursos nas escolas. Embora não fizesse a avaliação de cada ano, o Enem foi instrumento decisivo para medir a qualidade da educação no ensino médio.
Em 2003, quando fui ministro, o MEC começou estudos e negociações com as universidades para adotar o PAS em todo o Brasil. Em 2009, apesar de não seguir o sistema de avaliação seriada da UnB, o então ministro da Educação, Fernando Haddad, deu um salto positivo na relação do ensino médio com a universidade ao utilizar o Enem como instrumento de seleção à universidade graças ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
A nova destinação do Enem despertou a atenção da sociedade e da mídia, que não se interessavam pelo exame enquanto ele cuidava apenas de avaliar o ensino médio. O desprezo da opinião pública pelo Enem avaliador do ensino médio e sua valorização como instrumento de seleção para ingresso na universidade são uma lição que mostra que o Brasil superestima o ensino superior em detrimento da educação de base.
Outra lição do Enem é a demonstração da importância de gestão eficiente em qualquer setor do governo. As dificuldades do Enem 2019 mostram a falência de um governo que, preocupado com o sectarismo ideológico, despreza a necessidade de gestão competente na execução de programas.
O Enem deste ano mostrou que não temos ministro da Educação com interesse e competência para gerir a educação. Seu interesse de manter o discurso estridente contra os fantasmas culturais nos quais ele acredita. Parece preocupado apenas em desfazer o abstrato “marxismo cultural”, espectro criado por seus gurus.
Mas olhando para o Enem, para o Pisa (Programa de Avaliação Internacional de Alunos) e para o Ideb (Índice de Educação de Base) dos últimos anos, percebe-se que a tragédia da educação brasileira é muito mais dramática do que o fato circunstancial do atual ministro. Ela é o resultado de todos os governos que o Brasil teve. Ao mesmo tempo que denunciamos o despreparo e descompromisso do atual ministro, precisamos ter a honestidade de reconhecer que os governos anteriores não fizeram o que era necessário para o Brasil ter uma educação de qualidade e igual para todos.
Independentemente de ter ficado oito anos ou 12 meses no cargo, nenhum dos ministros anteriores foi capaz de convencer nossos presidentes a fazerem o que imaginávamos ser necessário para o Brasil ter a boa educação de que precisa. Nem fomos capazes de convencer a sociedade brasileira a desviar os olhos e os sonhos do ensino superior para a educação de base.
Os últimos governos deixaram quase o mesmo número de adultos analfabetos que herdaram, não melhoraram nossa posição no Pisa, deixamos as escolas mais violentas e os professores igualmente desprestigiados. E ainda criamos uma falsa narrativa de que fizemos uma revolução. É provável que Bolsonaro piore o quadro, mas isso não diminui nossa responsabilidade com a catástrofe educacional.
O desastre do Enem 2019 decorre da incompetência, do descuido, desinteresse e até mesmo de certa alienação mental que o ministro demonstra a cada aparição, mas a falência da educação de base tem muitos outros responsáveis. (Correio Braziliense – 11/02/2020)
Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)
Míriam Leitão: Reformas no meio do conflito
Bolsonaro cria um clima de conflito com os governadores no momento em que o governo prepara o envio de reformas ao Congresso
A proposta de reforma administrativa está sobre a mesa do presidente Jair Bolsonaro há cerca de 60 dias. No início, ele e o grupo palaciano decidiram adiar por causa das tensões no Chile, depois disso foram estabelecidas condições como a de que a área econômica ouvisse outros ministros. Por fim, o presidente avisou que hoje receberá nova proposta e a encaminhará. A reforma tributária também está pronta para ir para o Congresso. Mas irá em fases. A primeira etapa é apenas a fusão do PIS e Cofins. Está prevista para ir para o Congresso em duas semanas. No meio de tudo isso, no pior momento, aumentou a tensão entre o presidente e os governadores.
O governo está perdendo tempo. Este ano legislativo será mais curto por causa da eleição municipal. Por outro lado, a crise federativa já faz queimar a largada dessa agenda de reformas. Na semana passada o presidente Bolsonaro fez uma provocação totalmente descabida sobre preço de combustível. Ele sabia que não poderia zerar os impostos sobre gasolina e diesel mas fez um desafio como uma jogada política. Quis passar a impressão de que o presidente quer diminuir o preço e só não o faz porque os governadores não querem.
Quando a situação estava em ponto de ebulição, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi para uma reunião com os governadores em Brasília. Disse que entendia que eles não poderiam abrir mão dessa receita e apresentou a saída de que tudo isso fosse discutido na reforma tributária.
No fim de semana, contudo, surgiu mais uma frente de problemas com a briga entre o presidente e o governador da Bahia, Rui Costa, em torno da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente acusou a “PM da Bahia, do PT,” de ter promovido a “provável execução sumária” e “queima de arquivo”do ex-capitão do Bope. Adriano foi duas vezes homenageado pelo então deputado, hoje senador Flávio Bolsonaro, a pedido do próprio presidente. O clima de beligerância aumentou com as notas trocadas entre eles.
Este é o momento de enviar as novas propostas de reformas e fazer andar as PECs que haviam sido encaminhadas antes do fim do ano. Na área econômica, fala-se das três PECs que já estão no Congresso como sendo uma só: a do pacto federativo. O objetivo delas seria a de redistribuir futuros recursos dos royalties do petróleo. Mas inclui várias outras medidas, como as de emergência fiscal e a extinção de fundos.
A reforma administrativa já foi mostrada aos ministros pelo secretário Paulo Uebel. O projeto estabelece novas regras apenas para o funcionalismo do futuro. O problema é que essa reforma só do futuro pode criar muitas distorções. Os que acabaram de entrar no setor público, nos últimos anos, terão um regime de trabalho totalmente diferente dos que vierem a ingressar. Poucos anos de serviço público vão separar servidores com progressões na carreira bem diferentes. Ela foi entregue pela área econômica ao Planalto no fim do ano passado, mas o presidente considerou que diante do cenário de manifestações populares no Chile era melhor esperar. Agora, o envio tem sido adiado por vários pretextos, mas o presidente passou a dizer que nos próximos dias encaminha.
Na fila, aguardando, está a reforma tributária. A proposta do Ministério da Economia é mandar apenas a fusão do PIS e do Cofins para depois se “acoplar”, como se diz no governo, com a reforma do ICMS. Só num terceiro momento é que se incluiria o IPI. A explicação dada no Ministério da Economia é que o projeto está todo pronto, mas será enviado em fases.
O governo não quer discutir o ISS agora porque considera que a negociação com mais de cinco mil prefeitos seria impossível neste momento. Depois de toda a unificação dos impostos sobre consumo é que seria apresentada a do Imposto de Renda, que reduzirá o imposto cobrado das empresas e passará a recolher tributos sobre dividendos.
O que se defende na área econômica é que tudo seja feito paulatinamente, evoluindo em etapas para um novo regime tributário. O problema é que o Congresso já está adiantado, criando uma comissão mista para discutir as duas propostas de reforma tributária. A agenda de reformas este ano é complexa. O clima de confronto federativo, provocado em grande parte pelo próprio presidente, pode tornar ainda mais difícil sua tramitação.
Bernardo Mello Franco: Um juiz no palanque
Em festa gospel, Bretas escancarou a aproximação com Bolsonaro e Crivella. Ao subir no palanque com políticos, o juiz contraria a Lei Orgânica da Magistratura
A cena viralizou mais do que os gols do Flamengo no domingo. Ao som de um hit evangélico, Jair Bolsonaro tira Marcelo Crivella para dançar. Atrás da dupla, rodopia Marcelo Bretas, responsável por julgar os processos da Lava-Jato no Rio.
A festa gospel não foi a única agenda do juiz com o presidente. Antes de subir no palanque da Igreja Internacional da Graça de Deus, Bretas foi ao aeroporto para receber Bolsonaro. Em seguida, acompanhou sua comitiva na inauguração de um viaduto no Caju.
O magistrado usou o Instagram para celebrar o encontro. “A Cidade Maravilhosa dá boas-vindas ao Sr. Presidente Jair Bolsonaro”, escreveu. Em outro post, ele se mostrou maravilhado com o ministro Augusto Heleno. “Registro de minha admiração”, derramou-se.
O deputado Helio Lopes, eleito com o apelido de Helio Bolsonaro, publicou uma foto ao lado do presidente e do juiz. Pelo sorriso, o papagaio de pirata oficial do bolsonarismo parecia feliz com o reforço.
Bretas começou a se aproximar do capitão na campanha de 2018. Depois celebrou a eleição do primeiro-filho ao Senado, viajou para a posse em Brasília e visitou o presidente no Alvorada.
A tabelinha pode render dividendos pessoais aos dois. Bolsonaro se associa a um magistrado que prendeu corruptos, e Bretas se cacifa para a vaga reservada a um ministro “terrivelmente evangélico” no Supremo.
O desembaraço do juiz tem incomodado colegas e investigadores da Lava-Jato. Ontem a procuradora regional eleitoral, Silvana Batini, pediu uma investigação sobre o ato na Praia de Botafogo. No ofício, ela cita a “grande projeção midiática” de Bretas.
O titular da 7ª Vara Federal já rebateu críticas pelo exibicionismo na internet. O hábito de postar selfies na academia de ginástica é problema dele, mas a mistura da toga com a política contraria a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura.
“A presença de um juiz no palanque contamina a imagem da Justiça, que deve ser imparcial”, critica o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Ele pediu ao Conselho Nacional de Justiça que apure a conduta de Bretas.
Ranier Bragon: Papel passado
Bolsonaro preferiria que relação com miliciano estivesse enterrada
"O então tenente Adriano foi condecorado em 2005. Até a data de sua execução, 9 de fevereiro de 2020, nenhuma sentença condenatória transitou em julgado em desfavor do mesmo." A declaração assinada por Jair Bolsonaro foi elaborada ao lado de seu chefe da comunicação, Fabio Wajngarten, dentro do carro presidencial parado por 38 minutos na entrada do Palácio da Alvorada, na noite de sábado (15). Ela integra nota em resposta a um tuíte do governador Rui Costa (PT-BA).
A aparente trivialidade da tarefa esconde um marco nessa história, toda ela capaz de arrepiar os cabelos de qualquer um que os tenha.
>Horas antes, Jair e Flávio Bolsonaro falaram pela primeira vez sobre a morte do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega. "Querem me associar a alguém por uma fotografia, uma moção", esbravejou o presidente, em referência às honrarias dadas pelo filho ao PM. Bolsonaro talvez tenha se esquecido, mas em 2005 ele contou na Câmara ter ido ao julgamento do "brilhante oficial" Adriano. Afirmou, inclusive, ter descoberto uma linha de defesa que nem o advogado do PM havia imaginado na época.
A partir de 2010, a sogra e a mulher de Adriano foram para o gabinete de Flávio. Quem mandou contratar? A repórter Ana Luiza Albuquerque fez a pergunta, já que Bolsonaro havia admitido ter mandado Flávio homenagear Adriano. "Vamos encerrar essa conversa aqui." Outra pergunta é: Quem mandou exonerar as duas, Fabrício Queiroz —pivô do caso das rachadinhas— e seus familiares no fim de 2018, quando a família se deu conta de que o zé-ninguém da Câmara iria mesmo virar presidente? Os filhos entraram para a política pelas mãos do pai, que sempre coordenou seus gabinetes.
Nenhuma das 2.543 pessoas mortas por policiais só em São Paulo e no Rio, em 2019, mereceu a deferência dada ao ex-capitão do Bope, suposto chefe de milicianos e matadores de aluguel.
Involuntariamente, a nota deste sábado autentica em cartório uma relação que Bolsonaro preferia ver morta e enterrada.
Carlos Andreazza: A irritação de Guedes
O ministro, porém, não é vítima. É agente
Fato: Paulo Guedes está irritado. Constatação: irrita-se com frequência crescente. Sugestão: que se atente à periodicidade dessas erupções. Tese: a irritação, que o ministro expressa em falas desastrosas, corresponde a picos de descontentamento com o governo que integra; suas declarações como transbordamentos de quando o fervo não se pode conter intramuros.
Algo não flui naquele rio; talvez em decorrência do encontro das águas do liberalismo econômico com as do reacionarismo. Numa mistura em que o liberal — porque convicto de prestar um serviço maior ao país — aceita relativizar valores democráticos e supõe ser possível prescindir, ainda que momentaneamente, do liberalismo político, o esgoto sempre se impõe, escraviza e descarta. As declarações de Guedes seriam o alarme de quando a geosmina rompe — vence — o tratamento.
O ministro, porém, não é vítima. É agente. Ninguém pode aceitar que um homem experiente desconhecesse o Guandu em que aceitou nadar. Todo mundo, pois, deve se perguntar: como explicar o descarrilamento entre a propaganda de crescimento otimista para 2020 e doravante, a afirmação constante de que a economia vai bem, e os piques de mau humor de Guedes?
Há um padrão para seus arroubos de franqueza: as piores manifestações do ministro ocorrem sempre que a sua agenda de reformas é travada — deliberadamente prejudicada — pelo presidente da República. É possível também identificar o tema que mais dá concretude a esse desalinho. As três últimas vezes em que explodiu derivaram de Jair Bolsonaro boicotar a reforma administrativa.
A primeira da série remonta à virada de novembro para dezembro de 2019. Aquela fala autoritária sobre AI-5 coincidiu com o presidente trair compromisso firmado. O texto estava pronto. Avalizado pelo ministro. Havia um acordo com o Parlamento para seu encaminhamento. Tudo costurado, fiado na palavra de Guedes. Mas Bolsonaro mandou parar; falou em ajustes. Armou uma crise, instrumentalizou auxiliares, sempre Onyx Lorenzoni, para desautorizar o Posto Ipiranga e brecar o avanço do projeto — e o fez com aquela desculpa de o seu tramitar ser gatilho para a deflagração de revolta popular como a havida no Chile.
Guedes sabia se tratar de balela, não desconhecia a natureza do chefe, líder sindical cuja carreira se constituíra por meio da defesa dos interesses corporativos de servidores públicos; mas não deixou de estourar se valendo da linguagem bolsonarista, a de um pretenso clima de desordem que pudesse desaguar em atos de exceção como resposta. O andamento da reforma, portanto, ficaria para 2020. Aquela desculpa lhe servia.
Há mesmo quem creia que a radicalização do discurso de Guedes — a surfada na onda do AI-5, por exemplo — tenha método; que o ministro, assim, buscaria se aproximar da ala ideológica do governo para ganhar algum fôlego. Talvez. Mas isso somente se intuísse — ao menos intuísse — o destino que os reacionários reservam aos liberais. Intuirá? Há, por outro lado, quem veja o ministro mais à vontade entre os primeiros.
O ano novo chegou. Bolsonaro deixou que circulasse a notícia de que o texto seria remetido ao Congresso na segunda semana de fevereiro, Guedes teve de se engajar nessa promessa; mas logo se soube que era falsa, conforme exprimia a mensagem presidencial ao Legislativo, na qual a reforma administrativa, que fora — para o Ministério da Economia — a mais importante depois de aprovada a da Previdência, nem sequer constava entre as prioridades.
O ministro ficara novamente exposto. Veio, então, a disparada de irritação materializada na fala sobre “parasitas”, com a qual, de resto, atacando o funcionalismo público, subsidiaria a campanha dos que militavam contra seus planos, os que entraram na cabeça de Bolsonaro para lhe fornecer nova desculpa: como mexer agora com aquela categoria?
Com a reforma administrativa adiada e esvaziada, a ser enviada ao Parlamento (se for) decerto muito enfraquecida, não tardaria até que o ministro — ademais tendo de lidar com a perda de Rogério Marinho, sua Casa Civil informal — explodisse de novo, pouquíssimo depois, dessa vez para propor a reflexão sobre real desvalorizado e o fim da festa de empregadas domésticas na Disney.
Outra tese: a irritação de Guedes também como mostra de uma noção particular de tempo; de tempo curto. De quem tem pressa, tanto mais em ciclo eleitoral. De alguém que sabe, conhecendo a pouca convicção do presidente, que precisa entregar logo; que tem consciência de que é a projeção — a esperança —de crescimento, de geração de empregos, o que o mantém protegido. Até quando?
O estrilar de Guedes, afinal, é o apito — o instinto de sobrevivência — que nos informa sobre a impossibilidade de se reformar estruturalmente o Estado sobre um solo de instabilidade, tanto mais se a imprevisibilidade é forjada por aquele que lhe garante o emprego.
Bolsonaro é o limite. O ministro não se poderá dizer surpreendido.
Míriam Leitão: Reformas no meio do conflito
Bolsonaro cria um clima de conflito com os governadores no momento em que o governo prepara o envio de reformas ao Congresso
A proposta de reforma administrativa está sobre a mesa do presidente Jair Bolsonaro há cerca de 60 dias. No início, ele e o grupo palaciano decidiram adiar por causa das tensões no Chile, depois disso foram estabelecidas condições como a de que a área econômica ouvisse outros ministros. Por fim, o presidente avisou que hoje receberá nova proposta e a encaminhará. A reforma tributária também está pronta para ir para o Congresso. Mas irá em fases. A primeira etapa é apenas a fusão do PIS e Cofins. Está prevista para ir para o Congresso em duas semanas. No meio de tudo isso, no pior momento, aumentou a tensão entre o presidente e os governadores.
O governo está perdendo tempo. Este ano legislativo será mais curto por causa da eleição municipal. Por outro lado, a crise federativa já faz queimar a largada dessa agenda de reformas. Na semana passada o presidente Bolsonaro fez uma provocação totalmente descabida sobre preço de combustível. Ele sabia que não poderia zerar os impostos sobre gasolina e diesel mas fez um desafio como uma jogada política. Quis passar a impressão de que o presidente quer diminuir o preço e só não o faz porque os governadores não querem.
Quando a situação estava em ponto de ebulição, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi para uma reunião com os governadores em Brasília. Disse que entendia que eles não poderiam abrir mão dessa receita e apresentou a saída de que tudo isso fosse discutido na reforma tributária.
No fim de semana, contudo, surgiu mais uma frente de problemas com a briga entre o presidente e o governador da Bahia, Rui Costa, em torno da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente acusou a “PM da Bahia, do PT,” de ter promovido a “provável execução sumária” e “queima de arquivo”do ex-capitão do Bope. Adriano foi duas vezes homenageado pelo então deputado, hoje senador Flávio Bolsonaro, a pedido do próprio presidente. O clima de beligerância aumentou com as notas trocadas entre eles.
Este é o momento de enviar as novas propostas de reformas e fazer andar as PECs que haviam sido encaminhadas antes do fim do ano. Na área econômica, fala-se das três PECs que já estão no Congresso como sendo uma só: a do pacto federativo. O objetivo delas seria a de redistribuir futuros recursos dos royalties do petróleo. Mas inclui várias outras medidas, como as de emergência fiscal e a extinção de fundos.
A reforma administrativa já foi mostrada aos ministros pelo secretário Paulo Uebel. O projeto estabelece novas regras apenas para o funcionalismo do futuro. O problema é que essa reforma só do futuro pode criar muitas distorções. Os que acabaram de entrar no setor público, nos últimos anos, terão um regime de trabalho totalmente diferente dos que vierem a ingressar. Poucos anos de serviço público vão separar servidores com progressões na carreira bem diferentes. Ela foi entregue pela área econômica ao Planalto no fim do ano passado, mas o presidente considerou que diante do cenário de manifestações populares no Chile era melhor esperar. Agora, o envio tem sido adiado por vários pretextos, mas o presidente passou a dizer que nos próximos dias encaminha.
Na fila, aguardando, está a reforma tributária. A proposta do Ministério da Economia é mandar apenas a fusão do PIS e do Cofins para depois se “acoplar”, como se diz no governo, com a reforma do ICMS. Só num terceiro momento é que se incluiria o IPI. A explicação dada no Ministério da Economia é que o projeto está todo pronto, mas será enviado em fases.
O governo não quer discutir o ISS agora porque considera que a negociação com mais de cinco mil prefeitos seria impossível neste momento. Depois de toda a unificação dos impostos sobre consumo é que seria apresentada a do Imposto de Renda, que reduzirá o imposto cobrado das empresas e passará a recolher tributos sobre dividendos.
O que se defende na área econômica é que tudo seja feito paulatinamente, evoluindo em etapas para um novo regime tributário. O problema é que o Congresso já está adiantado, criando uma comissão mista para discutir as duas propostas de reforma tributária. A agenda de reformas este ano é complexa. O clima de confronto federativo, provocado em grande parte pelo próprio presidente, pode tornar ainda mais difícil sua tramitação.
Luiz Carlos Azedo: O bloco das emendas
”Qualquer que seja a proposta de reforma administrativa, o governo não tem articulação política para impor suas posições. A reforma será formatada pela Câmara e pelo Senado”
Às vésperas do carnaval, a semana de trabalho em Brasília, principalmente no Congresso, está em clima de esquindolelê. Todos estão mais preocupados com a fantasia ou um lugar de sossego para atravessar a folia. Dificilmente o Palácio do Planalto e o Congresso vão tirar o atraso nos trabalhos, ainda que o presidente Jair Bolsonaro tenha anunciado que o governo apresentará sua proposta de reforma administrativa, que comparou ao parto de um filhote de elefante.
No Congresso, a pauta de votações está centralizada nos novos vetos presidenciais ainda não analisados. Qualquer que seja a proposta de reforma administrativa, o governo não tem articulação política para impor suas posições. A reforma será formatada pela Câmara e pelo Senado, ou seja, será depurada das propostas mais radicais de Paulo Guedes. A mesma coisa deve acontecer com a reforma tributária, que Bolsonaro deseja ressuscitar. A proposta que avança no Congresso é a de Baleia Rossi (PMDB-SP) e Bernard Appy, que conta com o apoio dos governadores.
Enquanto isso, a economia caminha a passos paquidérmicos. Registros de emprego formal evidenciam aumento de novas formas de contratação na geração de vagas em 2018 e 2019, mas a contrapartida é a pouca qualidade dos empregos e a baixa remuneração. No mercado financeiro, a interrupção nos cortes de juros pelo Banco Central, em fevereiro, gerou um ponto de interrogação quanto aos seus efeitos sobre a economia. A relação entre redução dos juros, alta do dólar e investimentos ainda está sendo analisada. Se, de um lado, gera ganhos fiscais para o governo, por causa dos juros da dívida pública, de outro, inibe investimentos privados.
O mercado está de olho nos gastos do governo e cobra a aprovação das reformas. Desde a adoção do teto de gastos, em 2016, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), mantida pelo Senado, as despesas obrigatórias não melhoraram. “Sem efeito da cessão onerosa do pré-sal, deficit do governo central teria melhorado apenas 0,96 p.p. do PIB entre 2016 e 2019”, avalia o último boletim do IFI. A receita líquida federal cresceu 1,1%, sem cessão onerosa.
Nesse cenário de lenta recuperação da economia, a arrecadação permanece estável. Em contrapartida, os gastos com pessoal e previdência cresceram 1,3% e 3,0%, respectivamente, entre 2018 e 2019. O deficit do setor público teria sido de R$ 94,5 bilhões, em 2019, não fossem os leilões do pré-sal de outubro e dezembro. A dívida bruta do Tesouro somente diminuiu por causa da venda de reservas e das devoluções do BNDES ao Tesouro.
Derrubada
O rubicão do governo, porém, é um acordo para manutenção parcial do veto de Bolsonaro às emendas impositivas (VET 52/2019), que foi retirado da pauta de votação do Congresso na quarta-feira passada. Durante a sessão, as bancadas do Podemos, do PSL e da Rede entraram em obstrução, por não concordarem com a derrubada do veto. Para viabilizar a apreciação dos outros três vetos que constavam da pauta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), retirou o veto.
O mais provável é que Alcolumbre deixe para depois do carnaval a apreciação do veto de Bolsonaro às emendas impositivas. Essa questão será decidida hoje, em reunião de líderes. A derrubada precisa ser negociada com o governo para evitar uma crise com o presidente. Segundo o relator do Orçamento para 2020, deputado Domingos Neto (PSD-CE), que incorporou R$ 30 bilhões em emendas de comissões e de sua própria autoria, o orçamento impositivo é uma vitória do Congresso, mas é possível construir um consenso com o governo.
Alcolumbre negociou o acordo para derrubada dos vetos com o ministro da Secretaria do Governo, general Luiz Eduardo Ramos, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e Domingos Neto, relator da proposta orçamentária para 2020. Mas faltou combinar com os demais líderes do Congresso. Os termos do acordo são a derrubada e a devolução de pelo menos R$ 11 bilhões em emendas do relator e das comissões para o governo, além de restabelecer o poder do Palácio do Planalto para contingenciar e administrar o fluxo de liberação das emendas que forem mantidas.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-bloco-das-emendas/