Day: janeiro 24, 2020
Política Democrática || Márcia Gomes: Nosso patrimônio imaterial – a manifestação da Folia de Reis
São João del-Rei, em Minas Gerais é um exemplo emblemático da preservação cultural da Folia de Reis. Cidade tem cinco grupos reconhecidos como patrimônio imaterial do município, o que lhes confere maior visibilidade, identidade, reconhecimento e sentimento de pertencimento
Nosso patrimônio é uma construção social que referencia o efeito da ação do homem e permite que ele se sinta pertencente a um mesmo espaço. Considera, também, a representação de um passado, relacionado à memória da sociedade e sua cultura. No dizer de Rita de Cássia Cruz “não há patrimônio, seja ele material ou imaterial, que não seja cultural”, sendo a cultura a formação da sociedade.
O patrimônio imaterial abrange as expressões culturais e as tradições que um grupo de indivíduos preserva em respeito da sua ancestralidade, para as gerações futuras. Desta forma, guarda a memória coletiva e cria um sentimento de identidade, de pertencimento a um grupo – ou seja, uma ideia de continuidade.
São João del-Rei é um exemplo emblemático, uma cidade em que as manifestações culturais – bens culturais de natureza imaterial – sempre estiveram ligadas às devoções religiosas. Elas se entrelaçam e abrigam todas as camadas sociais, as habilidades e ofícios a serviço da beleza e do brilho das cerimônias, da história, da vivência e da memória.
É por meio das observações e das interpretações dessas manifestações populares que se torna possível descobrir os códigos, as regras e os estatutos que constroem o ensinar e o aprender da diversidade da nossa cultura e, consequentemente, o desenvolvimento da nossa identidade. O patrimônio imaterial contido nessas manifestações é fundamental para manter a identidade local.
Toda manifestação da cultura popular só pode ser entendida se vista dentro de seu ambiente e tempo natural de ocorrência, ou seja, se contextualizada à vida de sua comunidade mantenedora, de sua religiosidade, de suas crenças e costumes.
A manifestação da Folia de Reis foi reconhecida, assim, como patrimônio imaterial do Estado de Minas Gerais, e no município de São João del-Rei cinco grupos de Folia de Reis estão também registrados como patrimônio imaterial, conferindo-lhe maior visibilidade, identidade, reconhecimento e sentimento de pertencimento.
Os sentimentos de pertencimento e identidade, quando fortalecidos dentro das relações humanas valores como respeito, cuidado, ajudam também no ‘estar presente’, no ‘pertencer’. É preciso perceber como ‘vivemos’ nossa cidade, como valorizamos nossa cultura, nossos ambientes, nossas relações, nossas tradições, nossa dedicação com o futuro e a responsabilidade com as nossas memórias e nosso comprometimento com a preservação e a valorização do nosso patrimônio material e imaterial – vale lembrar que ‘patrimônio’ é algo mutável. Não é algo natural, nem eterno, nem estático e, sim, uma construção social dinâmica.
A prática da Folia de Reis foi trazida da Europa e incorporada à cultura brasileira e proporciona convergência de grupo e fortalecimento de laços de solidariedade, uma vez que a simbologia que carrega conduz a uma ‘cristianidade’ e vida de luta em comum. Essa prática tem a capacidade de fortalecer os vínculos, a memória e identidade de grupo, por meio da ‘passada’ da Folia de casa em casa – o ‘giro’, momento do auge em que o simbólico se junta à materialidade.
Ela é folclórica sob a ótica do pesquisador ou do admirador que a vislumbra da assistência. Mas quem a pratica a faz como um gesto natural e funcional, de expressão lúdica ou religiosa. Os folieiros podem ter a consciência de que aquilo é folclórico, mas manifestam como um ato de sua vida. É uma diferença sutil, portanto profunda.
Cantos, danças e estandartes compõem a manifestação. As pessoas envolvidas cantam, dançam e carregam a bandeira da Folia até as casas como forma de devoção aos Santos ou aos Três Reis Magos. Devoção essa que se revela também nas brincadeiras, cantos e símbolos presentes no Éthos deste grupo. Ao mesmo tempo, remete a uma narrativa bíblica que enuncia o nascimento do Salvador do mundo – o Menino Jesus.
Para Jorge Amado, ‘meu materialismo não me limita’ (Jubiabá, 1935), o que equivale dizer que a estética dessa manifestação causa tamanho encantamento que, num instante mágico, se desloca do religioso e agrada nossos sentidos. A história ensina que a beleza tem autonomia em relação às crenças.
A Folia de Reis é uma forma de expressar a fé, de fazer pedidos sagrados, de cumprir a missão, de abençoar a vida e, enfim, de se divertir também, digna e respeitosamente.
“Ó senhor dono da casa,
recebei esta bandeira,
faça favor de entregá-la
a quem tem por companheira”.
*Coordenadora de Patrimônio Imaterial, Setor de Patrimônio Cultural/SMCT. Outubro/2019.
Míriam Leitão: As liberdades andam juntas
Para Ilan Goldfajn, só as reformas não bastam para atrair o capital externo. É preciso recuperar a agenda ambiental e fortalecer a democracia
O ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn definiu como “ultrajante” o episódio da repetição das palavras de Goebbels pelo ex-secretário de Cultura Roberto Alvim. Mas constata “que a sociedade colocou um limite e isso é importante reconhecer”. Ilan diz que agora os investidores querem ativos que tenham três qualidades: boa governança, responsabilidade social e sustentabilidade ambiental. Ele não acredita que a economia esteja desligada do resto. “A democracia e a economia andam juntas. Liberdades individuais e liberdades econômicas andam juntas”.
Ilan, que hoje preside o conselho de administração do Credit Suisse, assumiu a presidência do Banco Central com a inflação perto de 10% e os juros em 14,25%. Ao sair, a inflação estava abaixo da meta, e os juros em 6,5%. As taxas continuaram caindo para 4,5%. Isso, segundo ele, está provocando uma revolução:
— Eu acho que esse novo patamar veio para ficar, mas isso não quer dizer que não possa cair um pouco mais ou subir se a economia estiver voltando a crescer. O Brasil vai deixar de ser uma exceção no mundo pelos juros altos que tinha. Isso é uma revolução para quem está no mundo das finanças. Quem tem mais dinheiro se pergunta: “Como eu faço para ter mais rentabilidade?” Todo mundo estava com investimento parado no overnight e ganhava. Agora tem gente que vem falar comigo: você mexeu nos juros e deu problema pra gente, eu quero me aposentar e onde vou botar o meu dinheiro?
Ilan diz que esse dinheiro que ia remunerar o capital aplicado em títulos públicos era custo da dívida, que agora está em queda. Citou o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, para dizer que este ano essa economia pode ser de R$ 120 bilhões para o Tesouro:
— O dinheiro pode ir para outros lugares, pode ajudar na construção civil, pode financiar a infraestrutura. Ou vai para a bolsa, e as empresas captam e podem investir. Então, eu, fora do Banco Central, estou ajudando a navegar nesse novo cenário, que nós mesmos ajudamos a criar.
Recentemente, Ilan disse numa entrevista que “a festa é boa, mas a festa é nossa”. Ele se referia ao fato de que o dinheiro que está chegando na bolsa de valores é basicamente brasileiro. O capital estrangeiro não está vindo. Perguntei a ele, nesta entrevista que fiz na Globonews, o que está acontecendo com o investidor externo:
— A festa é de fato nossa. Eu não estou vendo estrangeiro entrando. Semana passada eu estive em Nova York, de novo, conversando com investidor. E eles falam que o país está indo bem, provavelmente vai ter aumento da classificação de risco, que as reformas são bem-vindas. Mas o ambiente global não é propício a grandes investimentos. E o Brasil ainda não recuperou totalmente a confiança, a ponto de eles tirarem dinheiro de um lugar para pôr aqui.
Ele não acha um problema ter tido aumento da saída de capital no ano passado. Pensa que decorre dessa queda dos juros. O investimento que vinha por este motivo foi embora. Acredita que o dólar permanecerá alto:
— O patamar do câmbio também não volta a ser o que era no passado. O dólar chegou a ser R$ 1,60, há pouco tempo estava em R$ 3,00. Hoje estamos acima de R$ 4,00. O patamar é diferente.
Sobre as reformas, ele diz que é fundamental fazer a reforma tributária e nela o “governo é o ator principal”. O problema é que os projetos que estão tramitando são do legislativo.
Na visão de Ilan Goldfajn, o investidor estrangeiro quando olha para o país quer ter todas essas informações sobre as reformas, privatizações, ajustes, mas não basta isso. Ele quer saber sobre meio ambiente e democracia.
— Tudo se complementa. Uma democracia ativa, com liberdade de imprensa, mostra que tudo tem mais sustentabilidade. E isso complementa a liberdade econômica. A bolsa sobe porque os juros caíram, mas o segundo passo vai depender do dinheiro de longo prazo. A democracia e a economia andam juntas. Liberdades individuais e liberdade econômica andam juntas. O investidor olha isso. Uma coisa não está separada da outra, de jeito nenhum — diz ele.
Ilan é brasileiro, mas nasceu em Israel. Perguntei pelo episódio de Alvim.
— Foi ultrajante. Para qualquer pessoa, para os judeus principalmente. Todos nós nos sentimos ofendidos. Já não como economista, mas como indivíduo olhando algo que nos deixa indignados. Foi um sintoma de algo que está acontecendo, mas é preciso reconhecer que a sociedade colocou um limite e isso foi um passo importante.
Bernardo Mello Franco: Moro volta à frigideira
Para evitar concorrência em 2022, Bolsonaro voltou a torpedear Moro. Além da disputa política, trava-se um duelo pelo comando da Polícia Federal
Durou pouco a alegria de Sergio Moro com a derrubada do juiz de garantias. Na quarta-feira, o ministro da Justiça comemorou a liminar que anulou sua maior derrota no governo. Na manhã seguinte, acordou com a notícia de que Jair Bolsonaro voltou a se movimentar para esvaziá-lo.
Em menos de 24 horas, o ministro mais popular do governo foi da festa à frigideira. Ao admitir a recriação do Ministério da Segurança Pública, Bolsonaro ameaçou reduzir os poderes de Moro na Esplanada. Numa só tacada, o ex-juiz perderia o controle da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e do Departamento Penitenciário Nacional.
A mudança tomaria de Moro o figurino de xerife. O ministro vem capitalizando a queda no número de homicídios, embora o fenômeno tenha começado no governo Michel Temer. Se a segurança migrar para outra pasta, ele não poderá mais colher louros pela redução da violência.
Bolsonaro vê o auxiliar como um potencial adversário em 2022. Ele já ofereceu a vaga de vice em sua chapa à reeleição, mas Moro não mordeu a isca. Agora o presidente volta a mostrar quem é o “capitão do time”, nas palavras do ministro Augusto Heleno.
O movimento de ontem reacendeu a rivalidade entre bolsonaristas e lavajatistas. As duas claques reabriram a guerra virtual, com provocações abertas e ameaças veladas. Contrariado, o ex-juiz mandou novos recados de que pode pedir demissão.
Além da disputa eleitoral, trava-se um duelo pelo comando da PF. Bolsonaro já tentou trocar o diretor-geral da polícia, mas Moro bateu o pé e conseguiu manter o aliado Maurício Valeixo. O ex-deputado Alberto Fraga, cotado para assumir o Ministério da Segurança Pública, não hesitaria em rifar o delegado.
Um novo chefe da PF teria influência direta sobre as investigações que envolvem o caso Marielle Franco e a atuação das milícias no Rio. São dois temas sensíveis à família presidencial, como Moro faz questão de lembrar em conversas reservadas.
Merval Pereira: Fritura de alta pressão
O Congresso e o presidente vêm se encarregando de esvaziar a ação do ministro Moro. Foi o Congresso que tirou o Coaf dele
O ministro Sérgio Moro não acredita que o presidente Bolsonaro vá dividir o ministério da Justiça e da Segurança Pública. Por isso, considera inútil especular sobre o que acontecerá caso a ideia prospere. Se o presidente Bolsonaro quisesse mesmo reforçar a segurança pública, convidaria o próprio Sérgio Moro para o novo ministério, e nomearia outro ministro da Justiça.
A criação do ministério da Segurança Pública, como existia no governo Michel Temer, só tem sentido se abaixo dele ficar a Polícia Federal, que sairia então da Justiça. Nesse caso, se Moro aceitasse continuar no governo, ele ficaria sem os dois instrumentos básicos que imaginou quando propôs a Bolsonaro unir Justiça e Segurança Pública.
A Coaf já foi para o Banco Central, e a Polícia Federal iria para a nova pasta. Moro ficaria com os aspectos mais burocráticos do ministério da Justiça, e com a Funai. Não há razão para retirar do ministério da Justiça todos os encargos que ele ganhou quando se transformou, por decisão do próprio recém-eleito presidente, em superministério que combateria a corrupção e o crime organizado da mesma forma que teria como objetivo melhorar a segurança publica. Ainda mais com os resultados positivos obtidos, provocando a queda dos índices de criminalidade em todo o país.
O Congresso e o presidente Bolsonaro vêm se encarregando de esvaziar a ação do ministro Moro. Foi o Congresso que tirou o Coaf dele assim como o juiz de garantias foi criado pelo Congresso, e sancionado pelo presidente Bolsonaro, mesmo com o parecer contrário de Moro.
Bolsonaro, ao mesmo tempo em que anuncia estar estudando reduzir o tamanho do ministério de Moro, deixa vazar informação de que já decidiu trocar o delegado Mauricio Valeixo, chefe da Polícia Federal indicado pelo ministro da Justiça. Já tentou ano passado, mas naquela ocasião Moro conseguiu dissuadi-lo.
O fato é que, passado o primeiro ano de seu mandato, Bolsonaro está tendo que ajustar seus interesses pessoais às promessas da campanha. No início do governo, quando apresentou o projeto sobre flexibilização da posse e porte de armas, estava sendo coerente, não houve surpresas, mesmo de quem criticou. Mas sua coerência não resistiu à irrealidade de suas promessas.
Prometeu que acabaria com a reeleição, e já pensa não apenas num segundo mandato, mas num terceiro. O combate à corrupção não poderia ter sido sua principal bandeira, pelo passado de ligações perigosas e outras atividades ilegais, como estão sendo reveladas pouco a pouco no processo contra seu filho, senador Flavio Bolsonaro.
Foi apenas uma peça de campanha. Começam a aparecer casos dentro do ministério que derrubam a tese de que, até agora, não existe nenhuma denúncia de corrupção no seu governo. Um irmão surge no cenário de Brasília como lobista bem recepcionado nos círculos do poder. O líder do governo, senador Fernando Bezerra, investigado pela Lava Jato, permanece no cargo, assim como o secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, envolvido em denúncias de conflitos de interesses por ser sócio de uma empresa de comunicação que tem clientes de verbas publicitárias do governo que ele mesmo decide.
A percepção de corrupção no país, índice medido pela ONG Transparência Internacional, manteve a pior média histórica no primeiro ano de governo Bolsonaro.
Se o ministro Sérgio Moro, como dizem seus amigos, estiver certo, o presidente Bolsonaro está apenas ameaçando dividir o ministério para enfraquece-lo, dando sequência ao processo de fritura mais violento de que se tem notícia.
Se, no entanto, mudar mesmo a estrutura que deu para Moro, é sinal de que resolveu dar o golpe final, ou por considerar-se forte o bastante para isso, ou porque avalia que se deixar Moro mais tempo com a visibilidade que tem, ele se tornará um candidato à presidência da República difícil de bater. Cortando-lhe as asas agora, mesmo que ele saia do governo em protesto, o custo a longo prazo seria menor, pois a repercussão negativa não seria suficiente para manter a popularidade de Moro durante os próximos dois anos longe dos holofotes.
Pode estar fazendo um cálculo errado.
Vinicius Torres Freire: Por nada, Bolsonaro cria mafuá na direita e risco de dificuldades políticas
Presidente inventa crises do nada, um problema em ano parlamentar curto
O ano político nem começou, mas Jair Bolsonaro tomou a iniciativa de abrir a porteira para uma crise que até então pastava nas internas do governo. A ideia de recriar o Ministério da Segurança Pública animou o mafuá na direita, soltou a manada que quer atropelar Sergio Moro e explicitou a disputa pela polícia e pela espionagem federais.
Pode dar em nada ou apenas em uma avacalhada em Moro a fim de mostrar "quem é que manda". Seja como for, o sururu interno mostra como o governo cria tumultos quase de graça, que podem ser daninhos em um ano parlamentar curto, de eleição.
A filhocracia quer a Polícia Federal sob controle direto do Planalto e incrementar a espionagem. Carlos Bolsonaro, o 02, quer colocar o diretor da Abin, Alexandre Ramagem, seu próximo, na direção da PF. Difícil que tenha sucesso, mas trata-se de parte de seu projeto de influenciar a comunicação, a polícia e a inteligência do governo.
Parece ridículo esse negócio de espionagem, de Abin ou o que mais inventarem, mas é um assunto real no Planalto. Já incomodou militares no início do governo e começa a incomodar de novo, se por mais não fosse porque o filho 02, Carlos, tem a capacidade de derrubar generais.
Outros amigos de Bolsonaro pai e gente da cozinha do Planalto querem levar Anderson Torres, secretário de Segurança do Distrito Federal, para o comando da PF. Torres quer o novo ministério.
Ministros do Planalto querem a PF e parte do ministério de Moro porque pretendem: 1) dar "agilidade" à política de segurança pública; 2) identificar o possível sucesso de tais políticas diretamente com Bolsonaro, sem deixar casquinha para Moro.
A esse respeito, convém notar que o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, é alguém que tenta colocar alguma ordem política, administrativa e jurídica nos assuntos do governo. É de confiança de Bolsonaro, uma raridade, tem parte na recriação do Ministério da Segurança e, decididamente, na mudança da direção da Polícia Federal.
O bolsonarismo parlamentar rachou com a crise do PSL. Os pesselistas remanescentes são moristas. A tropa parlamentar que ficou com Bolsonaro, muitos líderes da bancada da bala e os amigos policiais do presidente querem recriar e ocupar a Segurança Pública.
Pelo menos um ministro que trabalha no Planalto diz que Bolsonaro não deu sinal de que vá tomar decisão alguma, mas "deixou que o debate fosse reaberto". Pode dar um cala-boca geral a qualquer momento.
Como está óbvio, trata-se de disputa de cargos, de prestígio político e de cálculo eleitoral (evitar proeminência ainda maior de Moro). Em tese, é política politiqueira ou palaciana de costume. Porém, desembestadas, como agora, tais crises criam desafetos e divisões daninhas em demasia. Não é boa ideia para um governo sem articulação parlamentar.
Entre março e julho, parte do governo pretende aprovar as emendas constitucionais que cortam gastos a fundo, mexendo com servidores. Quer aprovar alguma reforma tributária e até mexer em imposto que vai deixar fula a indústria de comida e bebida. É pouco tempo.
Quer fazer tudo isso enquanto as milícias digitais batem em Rodrigo Maia, que, por sua vez, continua podando asinhas várias do governo.
Maia tem seu programa, que é o da elite econômica e, sem mais, não vai criar problema. Mas não é prudente forçar a amizade e, de resto, Maia é liderança parlamentar, não dono de rebanho. Se os humores mudam, ele não pode fazer grande coisa.
Hélio Schwartsman: Denúncia suspeita
É importante mostrar que mesmo no Direito ainda existe o certo e o errado
A denúncia oferecida pelo procurador Wellington Oliveira contra o jornalista Glenn Greenwald no caso do hackeamento de autoridades é escandalosamente frágil. Ela é fraca não apenas no plano jurídico mas principalmente no lógico (não dá para participar de um crime depois que ele já foi consumado). A crer nas avaliações de especialistas, é pouco provável que a iniciativa prospere.
Dado o papel central de Greenwald na divulgação das mensagens que abalaram o prestígio da Lava Jato, acho difícil escapar da suspeita de que o corporativismo motivou a denúncia. Se fosse de fato esse o caso, estaríamos diante de um lastimável desvio de função, em que um procurador se vale do poder do qual foi investido para fazer avançar duvidosos interesses de classe em vez dos da sociedade. Pior, fá-lo buscando enfraquecer uma instituição, a liberdade de imprensa, que é importante para a democracia.
O mundo, porém, é um lugar complexo, que esconde efeitos paradoxais. O filósofo John Stuart Mill defendia a tese de que as más ideias precisam circular livremente para que sejam confrontadas com as boas e estas possam triunfar no debate público. Algo semelhante vale para o Direito.
Ações destrambelhadas de juízes e procuradores, embora essencialmente condenáveis, podem, se forem revertidas de forma rápida e veemente, produzir o efeito contrário ao pretendido pela autoridade usurpante. Foi o que vimos quando o STF cassou diligentemente a decisão do desembargador que proibira a exibição do especial do Porta dos Fundos. A ideia vencedora aí foi a de que a censura não é tolerável. De modo análogo, uma contundente rejeição da denúncia contra Greenwald significará que a Justiça brasileira está comprometida com a imprensa livre.
Num momento em que até a cúpula do Judiciário se vê avariada pela polarização, seria importante mostrar que mesmo no Direito ainda existe o certo e o errado.
Bruno Boghossian: Bolsonaro e Moro nunca estiveram tão próximos de um curto-circuito
Presidente tenta atordoar personagem que enxerga como ameaça, mas pode irritar sua base
Jair Bolsonaro e Sergio Moro nunca estiveram tão próximos de um curto-circuito político. Apesar das eventuais homenagens de um e das recorrentes mesuras de outro, presidente e ministro parecem cada vez mais dispostos a mergulhar numa disputa de poder inevitável.
Ainda que tenha sido divulgada apenas como uma ideia em estudo, a redução dos atributos de Moro com a possível recriação do Ministério da Segurança mostra que Bolsonaro está disposto a enfrentar o integrante mais popular de seu governo.
O presidente faz questão de turbinar a propaganda oficial que ostenta as estatísticas de redução de crimes violentos, mas indicou claramente que poderia tirar esse brinquedo das mãos do subordinado.
Empacado na pauta anticorrupção (sabotada pelo presidente, aliás), Moro abraçou a bandeira da segurança. Bolsonaro poderia ter dito apenas que as coisas vão bem. Preferiu participar ativamente das discussões e dar combustível ao plano encampado por secretários estaduais.
Embora o ministro seja considerado intocável por parte considerável da base bolsonarista, o presidente não demonstrou nenhum receio em contrariá-lo. “Lógico que o Moro deve ser contra”, antecipou-se.
Desde que Moro disse “sim” e entrou no governo, Bolsonaro insiste em dar sinais de que é o dono do passe do subordinado. Disse haver um compromisso para indicar o ministro à primeira vaga aberta no STF em seu governo, mas recuou. Depois, tascou um “quem manda sou eu” ao ameaçar demitir o chefe da Polícia Federal, atropelando o auxiliar.
O presidente quer manter Moro na rédea curta. Ora sinaliza que o ex-juiz seria um vice dos sonhos em 2022, ora indica que ele pode ser seu sucessor em 2026, mas dá outros recados quando o ministro demonstra estar confortável no mundo político.
Bolsonaro age para atordoar um personagem que o ameaça, mas esses choques também desgastam sua imagem entre os seguidores de Moro. Se o ministro decidir enfrentar o chefe, o presidente terá problemas.
Eliane Cantanhêde: Moro, de troféu a alvo
Sem Coaf, PF e Segurança Pública, o que sobraria para o ‘superministro’ Moro?
Ao aceitar um ministério no governo Bolsonaro, o juiz e real mito Sérgio Moro tinha clara noção de todos os riscos, mas encarou como missão e como oportunidade de somar o combate à corrupção (agora em nível nacional) e ao crime organizado. Logo, uma super-Lava Jato. Valia a pena. E agora?
Os dois objetivos de Moro, anti-corrupção e anticrime organizado, significaram, na prática, reunir novamente os ministérios da Justiça e da Segurança Pública. Moro contava com isso e Bolsonaro anunciou que assim seria. Pois é. Já presidente, ele voltou atrás e está seriamente empenhado em separar as duas pastas.
É assim que Moro, mito da Lava Jato, símbolo do combate à corrupção, personagem mais popular do governo – mais do que o próprio presidente –, perde uma atrás da outra. Em bom e claro português, engole sapos.
Com personalidade fechada, contida, é homem de poucas palavras e menos sorrisos ainda e sempre evitou, no primeiro ano de governo, reagir, reclamar ou fazer muxoxos ao ser atropelado pelo chefe e até se ocupa de elogiá-lo pelas redes sociais. Tudo, porém, tem limite. Qual é o limite do paranaense de Maringá Sérgio Fernando Moro? Essa é a pergunta que não quer calar.
Perder o Coaf já foi uma pancada, porque o órgão de inteligência financeira identifica movimentações atípicas, aciona o sinal amarelo e detona investigações – que podem ou não dar em nada. Mas, depois de apresentar ao Brasil um tal de Queiroz, o Coaf virou uma bolinha de pingue-pongue, pulando de lá para cá, e acabou virando UIF e pendurado no Banco Central. Logo, longe da Polícia Federal e de Moro.
Perder o Coaf já não foi fácil, mas o que dizer da possibilidade de perder a PF? Essa seria, ou será, uma consequência direta e imediata da recriação do Ministério da Segurança Pública. Com o Coaf no BC e a PF em outra pasta, o que Moro ficaria, ou ficará, fazendo no abstrato Ministério da Justiça? Articulando politicamente com o Congresso, como foi obrigado a fazer no pacote anticrime? Não é a dele.
Aí entra uma terceira derrota daquele que adentrou o governo Bolsonaro como “superministro”: depois de acertar com o Senado que Bolsonaro vetaria o juiz de garantias – uma nova figura claramente “anti-Moro” –, o ministro foi solenemente desautorizado pelo presidente da República. O veto não veio, Moro ficou falando sozinho.
Assim, o ministro ficou no meio de um imbróglio envolvendo os três Poderes, ou melhor, os presidentes do Executivo, que não vetou o juiz de garantias; o do Supremo, Dias Toffoli, que foi atropelado pelo vice, Luiz Fux; e o da Câmara, que classificou de “desrespeitosa com o Congresso” a decisão de Fux de suspender a implantação da mudança sem prazo.
Fux causou um fuzuê institucional, com críticas de todos os lados, mas com a comemoração explícita de alguém diretamente interessado: o próprio Moro. Segundo ele, uma medida assim precisa ser amplamente debatida e não é uma questão para o Judiciário, mas para o próprio Legislativo. No fundo, quer jogar o juiz de garantias para as calendas.
Assim, aquela primeira desfeita de Bolsonaro com Moro ficou não apenas distante, como bem pequena: o desconvite para a pesquisadora Ilona Szabó ser uma mera suplente num mero conselho da Justiça. Foi horrível, mas só um aviso.
E ainda vem mais: Moro perdeu o Coaf e pode perder a PF e a Segurança, justamente a área de sua pasta que rende bons índices e boas notícias. Só sobraria a vaga no STF, mas ela já tem dono: alguém “terrivelmente evangélico”. Moro é?
Por trás de tudo isso, uma só explicação: Jair Messias Bolsonaro, que tem mania de perseguição e não suporta competição. Moro era um troféu, virou competidor. E alvo.
O Estado de S. Paulo: Bolsonaro diz que a 'chance é zero' de dividir ministério de Moro
Presidente disse não ver possibilidade de divisão do Ministério da Justiça, mas afirmou que 'em política, tudo pode mudar'
Paulo Beraldo, Enviado Especial
NOVA DÉLHI - O presidente Jair Bolsonaro descartou nesta sexta-feira, 24, a chance de desmembrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública em duas pastas. As declarações foram dadas em sua chegada a Nova Délhi, na Índia, para uma missão de quatro dias.
"A chance no momento é zero, tá bom? Não sei amanhã, na política tudo muda, mas não há essa intenção de dividir", disse. "Em segurança pública, os números demonstram que estamos no caminho certo. E é a minha máxima, né, em time que está ganhando não se mexe".
O presidente negou ainda a existência de atritos com seus ministros, principalmente Sérgio Moro. "Não existe qualquer atrito entre eu e o Moro, entre eu e o Guedes, eu e qualquer outro ministro", disse. "O governo está unido, sem problemas. Em segurança pública, os números demonstram que estamos no caminho certo. E é a minha máxima, né, em time que está ganhando não se mexe".
Na quarta-feira, 22, Jair Bolsonaro recebeu de secretários estaduais de Segurança Pública cinco sugestões para políticas na área em uma reunião. De todas elas, ele anunciou publicamente apenas uma – a divisão do Ministério da Justiça, com a recriação da pasta da Segurança Pública. A opção de destacar a demanda mais polêmica chamou atenção dos próprios secretários, que viram na iniciativa um endosso de Bolsonaro à proposta.
Interlocutores de Moro disseram que aconselharam ele a deixar o governo caso a mudança se concretizasse. A investida contra o ex-juiz da Operação Lava Jato ocorre no momento em que sua popularidade supera a do presidente e que seu nome passa a ser cotado como eventual candidato à Presidência. Em entrevista ao programa Roda Viva, nesta segunda, 20, o ministro disse que o candidato do governo é o presidente Bolsonaro, mas refutou assinar um documento dizendo que não disputaria a vaga.
No ano passado, o presidente cogitou a recriação da pasta, mas enfrentou resistências justamente devido às críticas de que a medida poderia esvaziar a pasta de Moro.
Se Bolsonaro optasse por repetir o mesmo modelo de Ministério da Segurança Pública do seu antecessor, Michel Temer, Moro perderia o comando da Polícia Federal, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), os três órgãos mais importantes da sua pasta.
Na quarta, ainda no Brasil, ao ser questionado sobre o assunto, Bolsonaro disse que estudava a sugestão dos secretários estaduais.“É comum (o governo) receber demanda de toda a sociedade. E ontem (terça-feira) os secretários estaduais da Segurança Pública pediram para mim a possibilidade de recriar o Ministério da Segurança (Pública). Isso é estudado. É estudado com o Moro. Lógico que o Moro deve ser contra, mas é estudado com os demais ministros”, disse o presidente.
Um dos nomes cotados para a eventual pasta é o ex-deputado Alberto Fraga (DEM-DF), que é próximo de Bolsonaro e um dos políticos que mais frequentam o Palácio da Alvorada. Em entrevista ao Estado, Fraga contestou a capacidade técnica de Moro para cuidar da área de Segurança Pública.
Luiz Carlos Azedo: Ministério da ordem
“Embora tecnicamente justificável, o desmembramento do Ministério da Justiça é interpretado como uma medida para enfraquecer o ministro Sergio Moro, que carrega a bandeira da ética”
O presidente Jair Bolsonaro confirmou, ontem, que estuda a recriação do Ministério da Segurança Pública, desmembrando o Ministério da Justiça, mas garantiu que o ministro Sergio Moro permanecerá na pasta. O ex-deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), amigo de Bolsonaro, é o mais cotado para ocupar o novo ministério, cuja recriação é defendida por secretários de segurança estaduais e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O Ministério da Segurança Pública foi criado no governo do presidente Michel Temer, para o qual foi deslocado o então ministro da Defesa, Raul Jungmann. É considerada uma experiência bem-sucedida.
Embora tecnicamente justificável, nos meios políticos e jurídicos, a decisão de Bolsonaro é interpretada como uma medida para enfraquecer o ministro da Justiça, Sergio Moro, que hoje carrega a bandeira da ética numa das mãos e a da ordem, na outra. Na quarta-feira, Bolsonaro se reuniu com secretários estaduais de segurança pública, que reforçaram o pedido, o que o levou a revelar que realmente a mudança está em estudos. Segundo Bolsonaro, Moro tem participado do processo. Como era de se esperar, o ministro da Justiça discorda do esvaziamento de sua pasta.
Caso seja efetivado o desmembramento, o Ministério da Justiça perderá o controle sobre os seguintes órgãos: Departamento de Polícia Federal (DPF); Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF); Departamento Penitenciário Nacional (Depen); Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp); Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP); e Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Ou seja, Moro não teria mais poder de mando sobre o sistema de segurança pública.
As especulações políticas sobre a medida levaram o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, a fazer, ontem, um comentário pelo Twitter que Bolsonaro replicou nas redes sociais. Explicou que a proposta de recriar o Ministério da Segurança Pública não é do presidente Jair Bolsonaro e, sim, da maioria dos secretários de segurança estaduais, que estiveram em Brasília. Depois, deu ordem unida para a equipe do governo: “Em nenhum momento, o Presidente disse apoiar tal iniciativa. Apenas, educadamente, disse que enviaria a seus ministros, para estudo, entre eles o Ministro Sergio Moro. O que alguns não entendem é que o Presidente é o CAPITÃO DO TIME, ele escalou seus 22 ministros. As decisões são tomadas, ouvindo os ministros, mas cabe a ele, como Comandante, dar a palavra final, mesmo que isso contrarie alguns dos seus assessores ou eleitores”.
Antissistema
O general também teceu considerações políticas: “Mais ainda, foi esse Capitão que, com risco da própria vida, evitou a volta do PT ao Governo com Haddad. Esses críticos de plantão nunca fizeram 1% sequer do que foi feito por Jair Bolsonaro. Durante 28 anos, dentro da Câmara, ele conheceu o Sistema por dentro e se preparou para derrotá-lo. Repito, ISSO TUDO, SOZINHO”.
Depois, criticou os que veem na medida uma manobra para enfraquecer Moro: “O mesmo já aconteceu quando o Congresso passou o COAF da Justiça para o Banco Central. Os mesmos que, hoje, mentem ser de interesse do Presidente recriar a Segurança, acusaram o mesmo de enfraquecer Moro no caso COAF. Ou vocês confiam no Capitão Jair Bolsonaro, que teve visão e coragem para, sem recursos, enfrentar o Sistema e nos dar esperança de mudar, ou continuarão atacando-o e devolverão o Brasil à esquerda, em 2023. A Argentina está aí para provar que estou certo”.
Resumo da ópera: o ministro Moro é um potencial candidato a presidente da República e tem divergências com o presidente Bolsonaro quanto ao desmembramento de sua pasta. Se isso ocorrer, Moro será enfraquecido. Pode, sim, se conformar e prosseguir no governo. Se decidir sair, porém, estará criado um novo cenário político, pois Moro terá liberdade para se lançar candidato a presidente da República empunhando a bandeira da ética.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ministerio-da-ordem/
Vera Magalhães: Huck é lançado candidato em Davos, e não refuta
Questionado no Fórum Econômico Mundial de Davos a respeito de uma futura candidatura à Presidência da República, Luciano Huck enrolou, falou de Amazônia, que não tinha nada a ver com a pergunta, mas acabou concluindo, para risos da plateia que acompanha a palestra: “Sua pergunta é muito difícil. Não tenho a resposta nem para mim mesmo”.
Mas o fato é que ele não só não refutou a ideia como, na resposta, deu justificativas de por que pode acabar trilhando este caminho. O “lançamento” de sua candidatura foi feito por Raiam Pinto dos Santos, que estava na audiência do almoço-painel, se apresentou como empreendedor e quis saber que garantias Huck daria de que seu projeto é para valer.
Para o apresentador, há “muitas maneiras” de se engajar nas mudanças que o País precisa. “Entrar para a política é uma delas”, afirmou. Mas também listou outras iniciativas que poderiam ser tomadas, como fomentar, inclusive por meio de financiamento, a qualificação de novos talentos da política –algo que já faz, por meio da parceria com os movimentos de renovação, que, por sua vez, são vistos como a plataforma inicial, anterior inclusive aos partidos, para seu lançamento na política.
“Todas as decisões que tomamos na vida são políticas”, afirmou o apresentador, que está circulando em Davos com uma inédita barba branca. Seria uma forma de testar uma aparência mais “presidenciável”?
Rogério Furquim Werneck: Se o Planalto não atrapalhar
Precariedade da articulação do governo com o Congresso limita sua capacidade de assegurar a aprovação das medidas fiscais
As perspectivas da economia brasileira parecem, hoje, bem mais auspiciosas do que em janeiro do ano passado. Inflação sob estrito controle permitiu que o Banco Central, afinal, conduzisse a economia brasileira à fabulosa terra incognita das taxas reais de juros efetivamente baixas. A recuperação mais rápida do nível de atividade parece estar a caminho. Nada espetacular, mas o suficiente para que a taxa de crescimento do PIB em 2020 seja o dobro da observada em 2019.
A consolidação fiscal tornou-se mais crível, na esteira da aprovação da reforma da Previdência e das propostas de medidas complementares requeridas para manter o teto de gastos em vigor. A combinação de taxas de juros baixas, crescimento mais rápido e redução do déficit primário vem tornando a dinâmica do endividamento público bem menos adversa do que parecia.
Mas a melhora do quadro fiscal tem de ser entendida com percepção clara das qualificações pertinentes. Não deve dar lugar a ilusões infundadas. O jogo ainda está longe de estar ganho. Boa parte do esforço de ajuste fiscal que se faz necessário ainda está por ser feito.
Não foi uma decisão sábia dispersar, em três Propostas de Emendas à Constituição (PECs), as medidas complementares de ajuste fiscal contempladas pela equipe econômica. A tramitação de três PECs simultâneas, em ano de eleições municipais, já parece bem mais do que o precário esquema de articulação do governo com o Congresso dará conta de entregar. Mas há ainda muito mais em jogo no Congresso, na batalha pela preservação do teto de gastos.
O agravamento da crise fiscal dos governos subnacionais tem dado lugar a pressões políticas cada vez maiores por formas variadas de resgate federal. Chegou a conta do equívoco de ter deixado estados e municípios de fora da reforma da Previdência. A chamada PEC Paralela, que supostamente sanaria parte desse equívoco, sofreu deformações sérias no Senado que teriam de ser devidamente recompostas na Câmara. Descrentes do que ainda poderá vir do Congresso, vários estados, cada um a seu modo, vêm tentando aprovar reformas de seus sistemas previdenciários, sob cerrada oposição.
O governo terá ainda de zelar pela tramitação de outros projetos de sua iniciativa, como o controvertido programa de fomento ao emprego e a proposta de reforma tributária que prometeu submeter ao Legislativo em fevereiro. E terá também novos desatinos fiscais a enfrentar. A precariedade da articulação do governo com o Congresso não só limita sua capacidade de assegurar a aprovação das medidas fiscais propostas, mas também lhe deixa sem capacidade de bloqueio de iniciativas parlamentares irresponsáveis, na contramão do ajuste fiscal necessário.
Mas, mesmo tendo em conta todas essas dificuldades, é inegável que o delicado círculo virtuoso que vem ganhando força na economia, desde 2016, afigura-se agora bem mais promissor. Com a aceleração do crescimento que, enfim, parece estar a caminho, o governo está prestes a se livrar de um ponto crucial de tensão na condução da política econômica, que era a impaciência com a demora da retomada.
A questão, agora, é em que medida será possível atenuar o principal ponto de tensão remanescente, que é o desgaste político decorrente do aperto fiscal progressivo, envolvido na compressão sem fim das despesas discricionárias. No melhor cenário, o sucesso do esforço de ajuste fiscal em 2020 abriria espaço para que o teto de gastos pudesse ser mantido em vigor por um período prolongado. No pior, a manutenção da contenção requerida de despesas ficaria politicamente inviável, e o governo seria forçado a promover um temerário “aperfeiçoamento” do teto de gastos. Num cenário intermediário, o governo, com algum desgaste, pelo menos conseguiria manter crível o respeito ao teto ao longo do atual mandato presidencial.
Tudo isso, claro, na presunção, um tanto heroica, de que possam ser mantidas sob relativo controle as forças desestabilizadoras que continuam a emanar do Planalto e do hipertrofiado lado aloprado do governo.